desafinação vocal

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Augustus – Rio de Janeiro – Vol. 07 – N. 14 – Jan./Jun. – 2002 – Semestral 58 –––––––––– AFINAÇÃO E DESAFINAÇÃO: PARÂMETROS PARA A AVALIAÇÃO VOCAL Sílvia Sobreira * RESUMO: As leis acústicas não são suficientes para justificar a escolha do que deve ser considerado afinado ou desafinado. Uma afinação considerada perfeita em um contexto pode não ser em outro. Os padrões de afinação devem ser vistos como um fator cultural. Embora a palavra desafinado, como usada na língua portuguesa, não remeta o problema a nenhum tipo de deficiência, seu correlato – tone deafness – utilizado na língua inglesa é pouco preciso e preconceituoso, havendo grande controvérsia a respeito de sua adequação. Percebe-se também que, na vida prática, a categorização das pessoas como desafinadas é bastante comum, sendo freqüentes os equívocos de avaliação. Existe a possibilidade de que alguns distúrbios de ordem neurológica possam ser os agentes causadores da desafinação ou de que desafinação seja um traço genético. Entretanto, os estudos nestas áreas ainda não são conclusivos. A classificação dos tipos de desafinados feita neste estudo leva em consi- deração as etapas percorridas por uma pessoa com dificuldade de afinação. ABSTRACT: Acoustic laws are not enough to justify the classification of what is to be considered in tune or out of tune. A pitch that is considered perfect within a certain context may not be considered so in another. Pitch patterns must be interpreted as a cultural factor. Although the employment of the term “desafinado” in Portuguese does not relate the problem to any kind of deficit, its corresponding terminology in English – “tone-deaf” – is little accurate and also biased, and there is a lot of controversy with respect to its adequacy. One can also notice that, in practice, it is very common to classify people as tone-deaf, and there are frequent evaluation mistakes. There is the possibility that some neurological disorders may be the cause of tone-deafness or that tone-deafness is a genetic feature. However, studies in these fields are not conclusive yet. The classification of subjects as “tone-deaf”, developed in this study, takes into account the stages followed by a person with a limited perception of pitch. PALAVRAS-CHAVE: Afinação – Desafinação – Padrões de afinação – Temperamento. KEY-WORDS: Correct pitch – Tone-deafness – Pitch patterns – Temperament. Os termos afinar e desafinar não são de fácil definição, embora de uso corrente. O estudo do som através das leis da acústica pode ajudar a es- clarecer alguns pontos, mas não é suficiente para que se possa compreender todos os aspectos liga- dos à afinação e, por conseqüência, à desafinação. Nosso objetivo é mostrar que tanto a afina- ção quanto a desafinação devem ser analisadas a partir não apenas do ponto de vista acústico, mas também do cultural, sendo esse último o fa- tor – o mais influente – na definição de ambos os termos. * Bacharel em Regência pela UFRJ, Mestra em Educação Musical pela UNI-RIO; e Professora do TEPEM/UNI-RIO.

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Augustus Rio de Janeiro Vol. 07 N. 14 Jan./Jun. 2002 Semestral

AFINAO E DESAFINAO: PARMETROS PARA A AVALIAO VOCALSlvia Sobreira*RESUMO: As leis acsticas no so suficientes para justificar a escolha do que deve ser considerado afinado ou desafinado. Uma afinao considerada perfeita em um contexto pode no ser em outro. Os padres de afinao devem ser vistos como um fator cultural. Embora a palavra desafinado, como usada na lngua portuguesa, no remeta o problema a nenhum tipo de deficincia, seu correlato tone deafness utilizado na lngua inglesa pouco preciso e preconceituoso, havendo grande controvrsia a respeito de sua adequao. Percebe-se tambm que, na vida prtica, a categorizao das pessoas como desafinadas bastante comum, sendo freqentes os equvocos de avaliao. Existe a possibilidade de que alguns distrbios de ordem neurolgica possam ser os agentes causadores da desafinao ou de que desafinao seja um trao gentico. Entretanto, os estudos nestas reas ainda no so conclusivos. A classificao dos tipos de desafinados feita neste estudo leva em considerao as etapas percorridas por uma pessoa com dificuldade de afinao. ABSTRACT: Acoustic laws are not enough to justify the classification of what is to be considered in tune or out of tune. A pitch that is considered perfect within a certain context may not be considered so in another. Pitch patterns must be interpreted as a cultural factor. Although the employment of the term desafinado in Portuguese does not relate the problem to any kind of deficit, its corresponding terminology in English tone-deaf is little accurate and also biased, and there is a lot of controversy with respect to its adequacy. One can also notice that, in practice, it is very common to classify people as tone-deaf, and there are frequent evaluation mistakes. There is the possibility that some neurological disorders may be the cause of tone-deafness or that tone-deafness is a genetic feature. However, studies in these fields are not conclusive yet. The classification of subjects as tone-deaf, developed in this study, takes into account the stages followed by a person with a limited perception of pitch. PALAVRAS-CHAVE: Afinao Desafinao Padres de afinao Temperamento. KEY-WORDS: Correct pitch Tone-deafness Pitch patterns Temperament. Os termos afinar e desafinar no so de fcil definio, embora de uso corrente. O estudo do som atravs das leis da acstica pode ajudar a esclarecer alguns pontos, mas no suficiente para que se possa compreender todos os aspectos ligados afinao e, por conseqncia, desafinao. 58 Nosso objetivo mostrar que tanto a afinao quanto a desafinao devem ser analisadas a partir no apenas do ponto de vista acstico, mas tambm do cultural, sendo esse ltimo o fator o mais influente na definio de ambos os termos.

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Bacharel em Regncia pela UFRJ, Mestra em Educao Musical pela UNI-RIO; e Professora do TEPEM/UNI-RIO.

Augustus Rio de Janeiro Vol. 07 N. 14 Jan./Jun. 2002 Semestral

1. A Afinao sob uma Perspectiva Cultural.Dentre as possveis definies de afinao, pode-se encontrar a seguinte:estado de perfeito acordo entre todas as notas de um instrumento, de uma orquestra, de um grupo vocal, de um conjunto musical ou da voz humana. Ajuste de um instrumento ao tom de outro ou de uma voz (HOUAISS, 2001, p. 103).

rentes, essa diferena ser ouvida como batimento. Segundo Pickering (1995), batimento uma pulsao regular em intensidade que ocorre quando duas notas cujas freqncias so bem prximas, mas no a mesma, soam juntas. O nmero de pulsaes ouvidas em um segundo igual diferena em freqncia dos dois sons. Os batimentos cessam quando as duas freqncias ficam iguais (p. 191).

A altura de uma nota musical definida por sua freqncia que medida em ciclos por segundo (BUDDEN, 1978, p. 429). Hertz (Hz) representa a maneira simplificada e corriqueira de nos referirmos medida da freqncia. Freqncias regulares, constantes e estveis geram sons musicais com altura definida. Freqncias irregulares e instveis produzem o que se convencionou chamar rudo1. O ouvido humano s capaz de perceber os sons se suas freqncias estiverem compreendidas entre 15 e 20 mil Hz aproximadamente (MATRAS, 1991). Por volta de dezesseis Hz as vibraes so ouvidas como sons graves; quanto mais rpidas forem as vibraes, ou seja, quanto maior for sua freqncia, mais agudos sero os sons gerados. A partir de certa altura, os sons agudos vo progressivamente saindo da nossa faixa de percepo, e eles vo perdendo intensidade at desaparecer para ns, embora sejam escutveis (por um co, por exemplo) (WISNIK, 1989, p.19). Dentro do campo de audibilidade do ouvido so extrados aqueles utilizados musicalmente. Contudo, o sistema auditivo extrai alturas de uma ampla variedade de sons e rudos, mas apenas sons com certas qualidades so chamados de musicais, dependendo do contexto, da origem e da cultura (CARTERETTE; KENDAL, 1999, p. 730). Em termos acsticos, pode-se dizer que a afinao entre dois sons semelhantes e de origens distintas depende apenas da freqncia destes. Para se obter um unssono perfeito, ou seja, sons com a mesma altura, as suas freqncias devem ser iguais. Se esses sons forem ligeiramente dife1

Em se tratando de unssonos, a relao entre os sons parece simples de estabelecer: se ocorrerem batimentos, estes indicam que os sons esto desafinados; ao se afinar, os batimentos cessam. Porm, os batimentos no podem ser associados a sons desafinados, uma vez que eles sempre ocorrem quando o ouvido percebe dois sons diferentes.Com freqncia esse fenmeno de batimento incmodo; ele impede, de maneira corrente, a utilizao simultnea de duas notas de freqncia muito prximas. No entanto, os msicos tiraram disso um bom efeito no rgo: pode-se dar ao som um tom ondulante muito agradvel, utilizando o jogo celeste, formado de duas freqncias muito prximas, que batem entre si (MATRAS, 1991, p. 13).

Do ponto de vista estritamente acstico, o batimento pode indicar que os sons no esto afinados; entretanto, do ponto de vista cultural, o batimento no apenas tolerado, como algumas vezes, desejado. A Srie Harmnica e a Escolha do Padro de Afinao. Desde a Grcia antiga, msicos, fsicos e matemticos se empenharam em estudar as leis acsticas para esclarecer as relaes entre os sons musicais. No ocidente, a anlise da srie harmnica tem sido o ponto de partida para a compreenso dos intervalos musicais e das propores matemticas que justificam a afinao perfeita entre eles. Entre as vrias vibraes de um som, a de freqncia mais baixa e grave chamada de som fundamental ou som gerador. As demais freqncias so os sons que formam a srie harmnica (MATRAS, 1991). Essas freqncias no so ouvidas como sons distintos, mas como timbre. Um som sem harmnicos s pode ser produzido ele59

Para um maior aprofundamento a respeito da questo acstica, consultar MATRAS, 1991.

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tronicamente (WISNIK, 1989). Os sons pobres em harmnicos, como o som do diapaso, por exemplo, no so considerados bons meios para a Exemplo 1: Srie Harmnica

expresso musical. A riqueza e a qualidade de um som musical depende da proporo em que os diferentes harmnicos se combinam.

Dentro da srie harmnica esto contidos todos os intervalos musicais. Tais intervalos so percebidos como consonantes ou dissonantes dependendo de determinadas caractersticas:[...] as notas cujas freqncias fundamentais so precisa e rigorosamente iguais a uma das freqncias harmnicas de uma determinada nota possuem com esta ltima uma afinidade particular. Compreende-se que essa afinidade, esse parentesco, seja mais estreita medida as duas notas tenham maior nmeros de harmnicos comuns. Isso significa encontrar teoricamente o que a experincia evidencia h milnios; a saber, essencialmente, que duas notas cujas freqncias fundamentais esto na relao 2 casam-se nas melhores condies possveis. [] convencionalmente, admite-se que so consonantes os sons de freqncias relativas: 2 e 3 que definem o intervalo de quinta (3/2) 3 e 4 que definem o intervalo de quarta (4/3) 4 e 5 que definem o intervalo de tera (5/4) 3 e 5 que definem o intervalo de sexta (5/3) 5 e 6 que definem o intervalo de tera menor (6/5) 5 e 8 que definem o intervalo de sexta menor (8/5) (MATRAS,1991, p. 41-42).

Pickering (1995), analisando a abordagem de Helmholtz sobre o assunto, esclarece que para este grande terico do sculo XIX, consonncia significa a ausncia de dissonncia; a sensao de dissonncia, por sua vez, caracterizada por batimentos rpidos. Um certo nmero de batimentos por segundo pode ser tolerado, mas existe um limite onde ele passa a ser ouvido como aspereza; esse limite varia de acordo com a altura dos sons, mas costuma ser mais acentuado na distncia de um semitom, desaparecendo distncia de uma tera menor (PICKERING, 1995). Contudo, mesmo a classificao da combinao dos sons como consonantes e dissonantes sofreu mudanas durante os vrios perodos histricos. Os intervalos de tera e sexta, por exemplo, eram considerados dissonantes na Idade Mdia, mas por volta do sculo XVI j eram aceitos como consonncias (PICKERING, 1995). Aqui voltamos ao problema dos batimentos e sua relao com a afinao. Pode-se afirmar que a afinao de dois sons de mesma altura ser mais perfeita se for caracterizada pela ausncia de batimentos; entretanto, ao se comparar sons distintos, que formam intervalos musicais, percebe-se que o batimento sempre existir, pois esse fenmeno est relacionado superposio dos harmnicos dos sons envolvidos. O batimento menor e quase imperceptvel nos intervalos consonantes e mais acentuado nos intervalos dissonantes. O batimento existente nas dissonncias no significa que os intervalos dissonantes sejam desafinados; contudo, os primeiros intervalos da srie harmnica, definidos como aqueles que tm o mximo de consonncia, parecem ter influenciado a evoluo das escalas de muitas culturas, apesar de no

Se um som fundamental tem, como no exemplo 1, 64 vibraes por segundo, cada som de sua srie ter sempre 64 vibraes a mais que o som que o precede; isso significa que os harmnicos tm freqncias que so mltiplos exatos do som fundamental. O primeiro harmnico forma o intervalo de oitava; por isso, esse intervalo considerado o mais simples e o que apresenta a mais perfeita das consonncias. Para se conseguir formar a oitava deve-se dobrar a freqncia de um determinado som. O segundo harmnico a dcima segunda justa, que vem a ser a transposio da quinta justa; este intervalo obtido ao se triplicar a freqncia da nota fundamental. 60

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serem suficientes para explicar a escolha dos padres de afinao. A Afinao das Escalas Musicais: Os Temperamentos. A escolha das escalas musicais, bem como a sua afinao, podem variar segundo as culturas onde elas estejam inseridas. Entretanto,A srie harmnica a nica escala natural, inerente prpria ordem do fenmeno acstico. Todas as outras so construes artificiais das culturas, combinaes fabricadas pelos homens, dialogando, de alguma forma com a srie harmnica [...] (WISNIK, 1989, p. 21).

Na msica ocidental, o termo temperamento usado para indicar a medida dos intervalos dentro da oitava. A questo do temperamento ideal sempre foi tema de controvrsia entre msicos e matemticos. A escala pitagrica (afinao da escala privilegiando as oitavas e quintas justas que so afinadas sem nenhum batimento) oferece alguns problemas:Uma questo crucial a imperfeio do sistema musical por ns adotado, na medida em que, afinandose os intervalos absolutamente puros, sem batimentos, o prprio sistema no consegue ser fechado. Assim, ao afinarem-se doze quintas justas, a partir do d, por exemplo, chega-se ao prximo d sete oitavas acima. Caso tanto as quintas justas quanto as oitavas sejam afinadas puras, no se chega ao mesmo resultado. A diferena entre o resultado obtido a partir das doze quintas justas e daquele alcanado a partir das sete oitavas a chamada coma pitagrica [] para que as oitavas fechem o nico intervalo que tem que ser puro2 em qualquer sistema de afinao, pelo menos ocidental a coma pitagrica deve ser dividida entre os outros intervalos, que eventualmente sero estreitados ou alargados, para que as oitavas possam ser devidamente afinadas (FAGERLANDE, 2000, p. 17).

de afinao foram usados, havendo defensores e opositores para cada um deles. No sistema de temperamento igual, a oitava dividida em doze partes eqidistantes, os semitons. O motivo deste tipo de afinao prevalecer entre os outros reside na importncia que o piano tomou a partir do sculo XIX; por ser esse instrumento afinado de acordo com o sistema de temperamento igual, tal sistema passou a ser o mais difundido e aceito (FAGERLANDE, 2000). No entanto, neste sistema, apenas as oitavas so perfeitamente afinadas; os outros intervalos ficam levemente desafinados. Nos temperamentos desiguais, vrias possibilidades podem surgir. Em geral, as quintas e teras de determinadas tonalidades so mais afinadas do que em outras; tal tipo de afinao, muito usado em fins do sculo XVII e durante o sculo XVIII, proporcionava coloridos diversos para as diferentes tonalidades, particularidade altamente aproveitada na msica daquele perodo. No temperamento desigual, as tonalidades prximas ao centro de d maior tm a afinao privilegiada, em detrimento das mais afastadas, que soam menos afinadas, ou, segundo Fagerlande (2000), speras e menos puras. No temperamento mesotnico, um outro tipo de temperamento desigual, procura-se afinar as teras sem batimentos; como conseqncia, todas as quintas justas tm que ser estreitadas, sendo que uma delas fica to estreita que no pode ser usada (quinta do lobo). Segundo Harnoncourt (1988, p. 83), nesse sistema, a afinao resultante muito doce e descontrada [...] as escalas e as passagens cromticas soam particularmente interessantes. Outros Padres Culturais de Afinao. Devido ao fato dos sistemas de afinao variarem de acordo com as culturas e pocas, pode-se afirmar que a afinao uma questo cultural. Assim, pode ocorrer que, ao escutar uma msica que obedea a um sistema de afinao que no seja o esperado, tenha-se a impresso de estar ouvindo sons desafinados. A afinao igualmente temperada qual estamos acostumados, por exemplo, pode criar relaes sonoras no aceit61

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Na tentativa de solucionar tal problema vrios tipos de temperamento foram propostos. A coma pitagrica deveria ser dividida de modo que as sonoridades fossem aceitas como afinadas; essa diviso diferente em cada sistema de afinao. Do sculo XV at o sculo XIX vrios sistemas Na definio de Fagerlande, intervalo puro aquele que no tem batimento.

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veis para um grupo de msica Barroca que, como se sabe, utiliza outros tipos de temperamento.A questo de uma afinao justa no tem resposta. No h um sistema natural de afinao nico que seja vlido para todos. A educao nos familiariza com um sistema sonoro que pode ser um dos cinco ou seis sistemas sonoros de nossa cultura, ou at um outro, no qual a altura do som medida com sementes de trigo ou pedras e todo homem que est habituado a um determinado sistema, ouve, canta ou toca de acordo com este. [] Precisamos compreender que no podemos fazer de um sistema de afinao uma norma para todos; aquilo que parece puro aos nossos ouvidos, pode no s-lo para outros. [] Em geral, educamos os nossos ouvidos para que eles se orientem pelo sistema de afinao de um instrumento temperado, como o piano. [] Assim, quando se escuta uma msica cuja afinao obedece a um outro sistema, por mais perfeito que seja, se tem a impresso de algo desafinado (HARNONCOURT, 1982, p. 76-77).

Se, ao se comparar os sistemas de afinao existentes no ocidente so encontradas discrepncias, uma observao rpida em outras culturas mostra que as possibilidades aumentam muito. Na ndia, por exemplo, o sistema de afinao adotado em tempos antigos dividia a escala em 22 partes iguais, os srutis, embora a prtica moderna tenha abandonado o srutis e defina a escala em termos de tons e semitons, apesar da altura desses no ser precisamente fixada (ABRAHAM, 1986).Em certas ragas [] uma nota particular pode ser levemente mais alta ou baixa do que o usual, e microtons indefinidos ocorrem em profuso na expressiva e improvisada ornamentao, to importante na msica indiana (ABRAHAM, 1986, p. 559).

Outro sistema que utiliza quartos de tons o perso-rabe (ABRAHAM, 1986). Entretanto, existem dvidas se esses intervalos so verdadeiramente microtonais ou se so, como no sistema indiano, variantes de certos intervalos. A afinao tambm pode variar dependendo do grau de importncia que ela tenha em uma determinada cultura. Existem culturas em que esse parmetro pode no ter o mesmo valor que costuma ter em culturas ocidentais. Ao estudar a msica dos Venda (frica do Sul), Blacking (1980) observou que, quando ele 62

prprio cantava uma melodia igual para todas as estrofes de uma cano, os Venda no a consideravam como melodia autenticamente Venda. Ao cantar alterando as alturas em determinadas palavras, sua msica passou a ser considerada pelos Venda como autntica. As alturas deveriam mudar em certos lugares da melodia para expressar as nuances das inflexes das palavras. O autor tambm cita o fato de que as meninas cantoras transpem uma nota difcil de ser alcanada para uma 5a ou uma 8a abaixo sem que isso seja considerado errado. Mesmo dentro de uma mesma cultura, como por exemplo a brasileira, podemos notar que a maneira de afinar tambm pode variar. As inflexes vocais feitas por um cantor de aboio, por exemplo, podem ser consideradas desafinao para um ouvinte urbano. Uma interessante reflexo a respeito da afinao na msica do ritual do congado feita por Queiroz (2000). O autor aponta duas hipteses bsicas para explicar a questo da afinao neste tipo de msica: 1) o tipo de afinao usado pode ser herana de alguma tradio no-europia que se tenha agregado msica tonal dos colonizadores; 2) os problemas de afinao seriam gerados pela assimilao no completa dos parmetros da msica europia. Queiroz julga, a partir de relatos de participantes do congado, que provavelmente a afinao um aspecto que os prprios congadeiros desejam aprimorar; contudo, a perfeio da afinao pode ficar em segundo plano, pois [] o importante no o resultado sonoro perfeitamente coerente com a estrutura musical do modelo, e sim o ato de cant-lo [] (p. 201). Neste caso, sendo o congado uma festa de carter religioso, o ato de louvor o elemento privilegiado e no a perfeio da afinao; alm disso, a falta de qualquer dos elementos inerentes msica seria responsvel por sua descaracterizao:A somatria de todos esses elementos musicais (ritmos, instrumentaes, afinaes e desafinaes etc) a composio de um timbre entremeado desde os timbres instrumentais e vocais propriamente ditos at a desafinao do coro. [] Qualquer alterao desse universo far com que esta

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matria sonora se descaracterize, e sendo assim, o canto deixar de ser ele mesmo.[] A afinao passa a ser claramente um elemento secundrio na hierarquia de valores e na prtica dessa msica (QUEIROZ, 2000, p. 199).

musical, embora, em geral, tal procedimento seja feito de maneira inconsciente.Um sistema de msica , em parte, uma organizao de configuraes contextuais de relaes de altura. Uma nota, em msica, est sempre numa relao com outra ou mais notas, ouvidas ou implcitas. A afinao de cada grau da escala depende de sua funo na melodia ou harmonia, ou de sua relao estrutural com outros intervalos e notas. Uma nota como o d tem uma cor diferente, quando funciona como tnica no tom de d maior, do que quando funciona como subdominante de sol maior (PICKERING, 1995, p. 11).

Outro tipo de contexto em que a afinao pode ter uma funo secundria o da msica no erudita, comercialmente denominada msica popular, onde comum cantores alcanarem sucesso, apesar de no terem cuidado com a afinao. Em contextos como este, parmetros como expressividade, timbre, estilo e presena em palco so mais valorizados. Tambm deve ser considerada a possibilidade dos msicos terem padres de afinao que sejam diferentes entre si. Isso no indica a superioridade de um msico sobre o outro, mas sim, que cada um tem maneira prpria de afinar. Deve-se levar em considerao que, apesar das inmeras possibilidades de sistemas de afinao, o termo afinar usado de maneira mais freqente tomando como modelo a msica de influncia europia, que utiliza o temperamento igual como padro, muito embora o conceito de afinao seja mais amplo. Para compreender, portanto, o significado de uma boa afinao, deve-se verificar o contexto no qual esta avaliada. Afinar estar de acordo com um determinado sistema, seja ele qual for. A capacidade de afinao de uma pessoa, seja vocal ou instrumentalmente, diretamente proporcional sua integrao ao sistema em questo e sua habilidade em reproduzir sonoramente as relaes intervalares propostas em tal sistema; uma pessoa afinada capaz de se adaptar, com facilidade, s inflexes exigidas pelas diversas situaes musicais sendo capaz de afinar sozinha ou em grupo A definio de afinao usada nesta pesquisa exclui aquelas pessoas que s conseguem afinar quando cantam sozinhas, sendo incapazes de se adaptar quando cantam em grupo3. Afinar implica no apenas na reproduo correta das alturas das notas isoladas, mas tambm na compreenso da estrutura musical em que essas alturas se encontram; para afinar uma nota, a pessoa deve ser capaz de perceber sua funo dentro do contexto 3

A definio de afinao, usada nesta pesquisa, limitada ao sistema do temperamento igual, dentro de contextos tonais ou modais; a justificativa para essa escolha deve-se ao fato de serem esses os elementos mais comuns cultura brasileira, que por sua vez est inserida nos padres aceitos no ocidente. O termo afinado ser utilizado para designar pessoas que sejam capazes de reproduzir, vocalmente, as relaes sonoras aceitas dentro dos padres de nossa cultura.

2. Definindo DesafinaoSe a afinao pode ser considerada um fator cultural, e no como algo fixo e imutvel, a desafinao pode seguir os mesmos critrios de avaliao. Portanto, para se considerar algum desafinado, deve-se levar em considerao o contexto e a cultura em questo. Existem culturas que desconhecem o que possa ser a desafinao. Discutindo o problema do talento musical, Kingsbury (1988) faz uma citao do antroplogo John Messenger que, em um trecho de suas observaes a respeito dos Anang Ibibio (Nigria), relata:[] ns procurvamos, em vo, por pessoas no musicais, achando difcil fazer perguntas a respeito da desafinao e seus supostos efeitos porque na lngua Anang no h tal conceito []. Eles no admitem, como ns tentamos to arduamente c onvenc-los, que existem aqueles que no tenham o requisito dessas habilidades. Essa mesma atitude se aplica a outras reas estticas. Alguns danarinos e cantores so considerados mais hbeis do que outros, mas todos podem danar e cantar bem (MESSENGER apud KINGSBURY, 1988, p. 62).

Existem pessoas que s conseguem afinar em um determinado tom, escolhido por elas. Tal atitude impede que elas afinem ao cantar em grupo.

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Existem pesquisas que relatam que a desafinao tambm desconhecida em povos que utilizam idiomas dependentes das variaes de alturas, como os vietnamitas (ROBERTS; DAVIES, 1976). Na cultura ocidental, embora a desafinao tenha definies que possam abranger vrios significados, ela tida, muitas vezes, como falta de talento ou habilidade musical; as coisas no podem ser vistas de maneira to simplista, pois sabe-se da existncia de msicos que, embora hbeis em tocar ou afinar seus instrumentos, tm dificuldades de afinar vocalmente (GAINZA, 1988). Mesmo na cultura ocidental, concordar a respeito do que seja essa caracterstica no to simples como possa parecer, pois a desafinao pode ocorrer em situaes onde ela no seja percebida da mesma maneira por todos; para um msico experiente, por exemplo, uma determinada passagem musical pode soar desafinada, enquanto para um novato o mesmo trecho pode estar soando afinado. Isso se deve ao fato de que os msicos aprendem, com a prtica, a ter uma exigncia com relao afinao que os iniciantes no costumam ter; no caso, esses desvios so, de certa maneira, leves, pois s os profissionais experientes podem perceb-los imediatamente. Alm disso, alguns desses desvios podem ser utilizados propositalmente como recurso expressivo. Assim como a maioria das pessoas aprende a falar por estar naturalmente exposta ao seu idioma natal, pode-se supor que a facilidade de captar e reproduzir msica dependa do grau de experincia que a pessoa tenha com sua cultura. Esse tipo de aprendizado no precisa ser consciente, mas a pessoa deve ter um certo grau de exposio msica, a fim de perceber os padres estruturais que do sentido ao sistema musical adotado. Apesar de conviverem com os elementos musicais de nossa cultura, existem pessoas que demonstram ter grandes dificuldades para reproduzir as melodias com preciso; aparentemente, elas no so capazes de perceber ou reproduzir os padres musicais que so captados, em nvel inconsciente, pela maioria das pessoas. Uma comparao interessante a respeito das questes da fala versus linguagem musical apontada por Kingsbury (1988), que comenta sobre a fala errada to co64

mum nas crianas pequenas; at um certo ponto, esse tipo de fala considerado normal e as expectativas culturais so de que todas as crianas saudveis aprendero a falar.Aberraes infantis so vistas como transitrias e essencialmente insignificantes. Em contraste, a atuao das crianas na msica tipicamente avaliada muito cuidadosamente para descoberta de talento e as possibilidades de aprender mais tarde habilidades musicais dependem muito das avaliaes dos adultos (KINGSBURY, 1988, p. 73).

A falta de exposio msica pode ser uma das causas da desafinao. As pesquisas no campo da cincia cognitiva tm se empenhado em esclarecer quais componentes necessrios para a realizao musical so inatos e quais so adquiridos com a experincia. Segundo Dowling (1999, p. 610), o processo de aculturao dos padres da altura da escala longo e lento [...] os ouvintes precisam de um maior nmero de anos da aculturao antes de ouvir as alturas corretamente em termos de uma estrutura tonal de referncia. difcil estabelecer o ponto exato a partir do qual uma nota ou melodia passa a ser considerada desafinada, pois o ouvido humano no capaz de ter a preciso de um aparelho tecnolgico, e podem existir situaes onde o aparelho acuse o erro, enquanto o ouvido no o reconhea. Usando critrios puramente humanos para fazer uma avaliao, constata-se que enquanto existem pessoas que reproduzem os modelos propostos com bastante preciso, existem outras em que esse grau de preciso pode variar de leves desvios a distores que desfiguram a linha meldica. A desafinao pode ocorrer vocal ou instrumentalmente. So definidas como desafinadas vocalmente aquelas pessoas que, apesar de conviverem com os padres musicais comuns nossa cultura, no conseguem reproduzir vocalmente uma linha meldica, cometendo erros, entre os intervalos das notas, que a tornam diferente do modelo sugerido. Essa definio inclui as pessoas que: 1) cantam cometendo desvios, grandes ou pequenos; 2) aquelas que no conseguem reproduzir nem uma determinada nota, sendo, por este motivo, incapazes de reproduzir qualquer tipo de modelo proposto;

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3) alm das que desafinam por s conseguirem cantar a partir de uma nota escolhida por elas. Neste sentido, a desafinao considerada uma deficincia; suas causas so variadas podendo ter diferentes graus de dificuldade. A desafinao pode ser passvel de correo, embora tambm varie o grau de aprimoramento do problema nos indivduos. A Desafinao no Senso Comum Se entre os msicos j difcil estabelecer o ponto exato onde o som passa a ser considerado desafinado, para quem no profissional da rea definir o termo uma situao ainda mais complexa. comum que pessoas inexperientes percebam algo que desagrada ao seu ouvido, mas nem sempre saibam definir a causa do incmodo; por isso, algumas pessoas no iniciadas em msica podem vir a considerar qualquer sonoridade pouco familiar ao ouvido como desafinada. Pode-se usar, para exemplificar essa afirmao, a msica atonal, muitas vezes erroneamente caracterizada como desafinada. Uma voz de timbre diferente e no reconhecido como padro dentro da cultura tambm pode conduzir a equvocos de avaliao e, portanto, ser considerada desafinada.[] algumas pessoas podem no ser desafinadas em qualquer sentido convencional do termo. ( possvel que cantores populares com vozes no convencionais, como Bob Dylan ou Neil Young, possam ter sido assim descritos quando crianas) (LEVITIN, 1999, p. 4).

A afirmao acima pode ser confirmada pelo depoimento de Milton Nascimento ao programa Fantstico (Rede Globo, novembro de 1993) em matria cujo tema era a desafinao. O cantor descreve que foi reprovado em canto quando tinha 10 anos de idade. Ao apresentar seu boletim em outra escola, causou estranheza aos professores o fato de suas outras notas serem altas. Os professores pediram, ento, que ele cantasse e o resultado foi um canto to belo e afinado que um dos professores comeou a chorar. O depoimento acima ilustra a afirmao de que, quanto menos usuais forem as vozes, maior o risco de serem consideradas desafinadas. Em

geral, tal tipo de engano ocorre com pessoas de vozes muito agudas, talvez devido ao fato desse tipo de voz colocar em maior evidncia os problemas vocais; normalmente o equvoco ocorre na infncia, levando a pessoa a se considerar desafinada. Por outro lado, nas vozes graves os problemas no ficam to aparentes, sendo por isso menos provvel que as pessoas com esse tipo de voz sejam classificadas, por pessoas que no tenham um certo grau de conhecimento musical, como desafinadas. O que se observa que no o fato, em si, de ter voz aguda que gera o equvoco de avaliao, mas a falta de habilidade no controle da emisso vocal; muito comum que aqueles dotados com esse tipo de voz sejam acusados de cantar como gralhas ou de ter a voz esganiada e tal fenmeno, para a maioria das pessoas, sinnimo de desafinao, quando na verdade ele pode ser apenas uma caracterstica de tessitura. Nota-se tambm que, no senso comum, tanto o termo afinado quanto desafinado no so, muitas vezes, utilizados de maneira prpria. Em um coro iniciante, por exemplo, poucos tm coragem de afirmar se um acorde est ou no afinado. Os termos mais usados so bonito, feio, agradvel etc. Outro tipo de uso equivocado do termo aparece quando se ensina uma pessoa, pouco habituada prtica musical, a cantar uma melodia. Dependendo do grau de dificuldade que essa pessoa tenha para reproduzir a melodia de imediato, ela pode vir a ser classificada como desafinada. Porm, ela pode estar errando por no ter ainda conseguido memorizar a melodia correta. Neste caso, a pessoa poderia apenas estar cantando notas erradas, no devendo ser julgada desafinada. Logo, conclui-se que muitos indivduos se consideram ou so considerados desafinados sem que isso corresponda verdade. Certamente, esses enganos ocorrem por serem as definies a respeito da desafinao to distintas entre si. Sinnimos para a Palavra Desafinado. Apesar da palavra desafinado(a) ser a mais usada na lngua portuguesa para designar pessoas incapazes de reproduzir corretamente a altura das notas, ela deve ser avaliada em funo do contex65

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to no qual usada, pois pode indicar uma vasta gama de distores da afinao esperada. Existem outros termos a serem considerados, como, por exemplo, monotnico usado para designar pessoas que ao tentar acompanhar o movimento meldico proposto, apenas gravitam em torno de uma mesma altura, em geral prxima da regio da fala. Outros termos usados so desentoado e semitonado. A palavra desentoar aparece nos dicionrios como sinnimo de desafinar, e no uso corrente usada desta maneira; enquanto um dicionrio (AURLIO, 1986) nos indica que semitonar significa cantar ou entoar em semitom, outro (HOUAISS, 2001) nos d o significado de desafinar para baixo. O termo semitonar, contudo, usado entre msicos para caracterizar desvios leves com relao afinao esperada, sejam eles para baixo ou para cima, mas nunca utilizado com o significado de cantar por semitons. Para a rea mdica, a desafinao pode estar inserida dentro de uma patologia denominada amusia. Embora seja mais correto utilizar esse termo para caracterizar dificuldades musicais mais amplas do que a desafinao, ele pode ser utilizado como palavra-chave para encontrar estudos ou artigos mais especficos sobre a desafinao e sua relao com problemas de ordem neurolgica ou fsica. Uma das primeiras dificuldades encontradas no decorrer desta pesquisa foi a de conseguir a traduo exata, principalmente para o ingls, dos termos desafinar e desafinao. Embora o termo out of tune seja o nico a ser encontrado nos dicionrios significando um cantor ou instrumento desafinado, ele no constava em nenhum ttulo de pesquisa. Provavelmente, o termo mais utilizado entre msicos ao referirem a desvios relativamente leves. Contudo, deveria existir um termo que correspondesse ao sentido que encontramos na linguagem coloquial brasileira. Em ingls, a palavra mais usada tone-deafness4, cuja possvel traduo surdez para as notas musicais5. Variaes em torno do termo so propostas, como o caso de 4 5

Outras possibilidades do termo escrito so tonedeafness ou tone deafness. Outras possibilida des de traduo so: surdez para os tons ou para melodia.

tune-deafness surdez para melodias (KALMUS; FRY, 1980). Levitin (1999, p. 1) argumenta que o termo tone deafness tende a ser aplicado indiscriminadamente a uma constelao de deficincias no processamento, percepo e produo musicais. Mitchell (1991) observou que, embora os desafinados de sua pesquisa fossem capazes de reconhecer notas erradas nos testes, eles certamente no percebiam seus erros quando cantavam. A partir desta constatao, Mitchel emprega apenas os termos non-singer (no cantor, cantor incapaz) e out of tune singer, uma vez que a causa do problema parece estar mais ligada incapacidade de reproduo vocal do que a uma deficincia no campo da audio, como o termo tone-deafness sugere. Mawhinney (1986) alerta que este termo pode sugerir um paralelo com o fenmeno visual do daltonismo (colour-blindness: cegueira para as cores), sendo que se este fosse o caso, o estudo da desafinao traria insights para a psicologia do processamento auditivo, assim como as pesquisas sobre o daltonismo trouxeram para os estudos da viso. Porm, o prprio autor alerta que esse paralelo problemtico, pois a literatura musical critica o fato do termo sugerir uma deficincia auditiva. Ao concluir sua pesquisa, Mawhinney afirma que at ser estabelecida uma relao entre a desafinao e suas causas o termo tone-deafness no deveria ser usado cientificamente. Nos artigos escritos entre as dcadas de 30 e 60, alm de tone-deafness, que usado tanto como adjetivo quanto substantivo, encontra-se o termo monotone. Apesar de menos comum, o termo tone-dumbness tambm pode ser utilizado. Levando em considerao que a palavra dumb pode ser traduzida como mudo, pode se avaliar que esse termo seja usado para designar pessoas que so capazes de reconhecer as alturas musicais, mas no so capazes de cant-las. De qualquer forma, o termo to inadequado quanto tone-deafness. Por volta da dcada de 70, percebe-se que essas denominaes passam a ser menos aceitas e uma grande parte dos autores (DAVIES, ROBERTS, 1975; FORCUCCI, 1975; KAZEZ, 1985; STENE, 1969; WELCH, 1979) se queixa da inadequao dos termos usados. Alguns propem a utilizao de substitutos, como Davies e Roberts (1975) que sugerem poor pitch singer

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cantor pobre em afinao, Stene (1969) que prope singers of undeveloped voices cantores de vozes no desenvolvidas ou Forcucci (1975) que prefere restricted ou limited-range singers cantores restritos ou de extenso limitada. A dificuldade de encontrar, na lngua inglesa, um nico termo que seja usado por todos os autores talvez se justifique pela problemtica do tema. Percebe-se que a maioria dos pesquisadores se sente desconfortvel ao ter que utilizar os termos tone-deaf e monotone. Provavelmente, isso se deve ao fato do primeiro termo indicar erroneamente, como j foi mencionado, problemas na rea da percepo. O segundo, usado com abrangncia suficiente para abarcar tambm vrios tipos de desafinao, deveria ser utilizado apenas para um tipo de desafinado: o de pessoas capazes de emitir apenas uma ou poucas notas em torno de um pequeno centro. Alm dos termos especficos, pode-se encontrar a expresso he (she) cant carry a tune in a bucket (KINGSBURY, 1988; STENE, 1969) com o significado de que a pessoa no capaz de entoar melodia de espcie alguma. A traduo literal desta frase ele no consegue carregar uma melodia em um balde , sugere uma analogia com o fato de uma pessoa no conseguir carregar gua em um balde sem que esta derrame. Analogias como essa tambm podem ser encontradas na lngua portuguesa, como por exemplo, na expresso todas na trave, para pessoas que cantem todas as notas fora da altura. A mesma expresso pode ser substituda na gria pela sigla TNT (Tri NitroTolueno, um explosivo), sofrendo, portanto, um novo desdobramento em seu significado. Como a maior parte do material consultado para esta pesquisa proveniente de pases de lngua inglesa, uma grande variedade de termos significando desafinao nesse idioma foi encontrada. O mesmo no pde ser feito com relao s outras lnguas. Contudo, um dos artigos estudados (KALMUS; FRY, 1980) indica que a desafinao conhecida em alemo por Melodientaubheit; curioso notar que este termo tem uma traduo semelhante da palavra tone deafness, significando, ao p da letra, surdez para melodias. Em francs usa-se a expresso chanter faux, ou cantar em falso, no sentido literal. A expresso avoir la voix et loreille fausses

(ter a voz e ouvidos falsos ou errados) tambm pode ser utilizada na lngua francesa (MAWHINNEY, 1986). Cabe aqui ressaltar que o termo desafinado e seus correlatos utilizados na lngua portuguesa no remetem a nenhum tipo de deficincia, indicando apenas o problema e no sugerindo suas causas. A Desafinao para a rea Mdica. Problemas neurolgicos ou no aparelho auditivo podem, naturalmente, fazer com que a pessoa cante desafinado. Existe tambm a possibilidade da desafinao ser um trao gentico. Embora tais casos no sejam o foco desta pesquisa, eles sero abordados por indicarem que a desafinao pode ser estudada sob outros pontos de vista, especialmente das reas relativas s cincias neurocognitivas. Por outro lado, devido possibilidade dos termos poderem ser citados em peridicos de cunho pedaggico, faz-se necessria uma reviso dos mesmos. a) As descobertas de Alfred Tomatis: saturao auditiva Em 1940, o mdico francs Alfred Tomatis (1993) iniciou uma pesquisa relacionada audio. Em 1947, o pesquisador foi procurado por um cantor que se queixava de no afinar mais em uma determinada regio (comeando prximo ao mi b3). Os exames de laringe demonstraram que o problema no residia naquele rgo. O pesquisador passou, ento, a investigar as causas no campo da audio. Os resultados dos testes auditivos demonstraram que os cantores correm riscos de desenvolverem uma surdez funcional, s comum em pessoas que trabalham em ambientes muito ruidosos. Tomatis mediu os sons produzidos pelo cantor, e observou que eles atingiam surpreendentes 100, 110, 120 e at 130 decibis, estando o aparelho de medio posicionado a um metro do cantor. Constatou-se que um cantor profissional emite sons que podem ser destrutivos para o seu prprio ouvido; quando o ouvido exposto a rudos intensos, ele sofre o que Tomatis chama de saturao, sendo ela causada pela fadiga auditiva. Tomatis prosseguiu fazendo experincias a fim de determinar a influncia da saturao auditiva. 67

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Atravs da saturao podemos parcialmente conseguir eliminar a audio. Para produzir a saturao necessrio que o sujeito se exponha a um ambiente de alta intensidade sonora por um perodo que pode variar de 20 segundos a um minuto (TOMATIS, 1963, p. 78).

A saturao afeta a curva auditiva criando o que o autor chama scotoma, ou ponto de surdez, ou seja, a pessoa fica incapaz de ouvir uma determinada faixa de freqncia. Dependendo da regio onde este scotoma se localize, ele pode gerar vrios problemas: prximo aos 2000 Hz (por volta da nota d 4), por exemplo, a voz do cantor se torna mais fraca e vacilante, alm de menos rica em harmnicos. Se o scotoma avana e invade o espectro de freqncia a ponto de apagar as freqncias entre 1.000 e 2.000 Hz, as dificuldades de controle da afinao comeam a acontecer. Tomatis afirma que nenhuma tcnica ou experincia ajuda o cantor a afinar, se ele no capaz de se ouvir. Essa constatao pode parecer bvia, mas completamente contrria suposio, defendida por outros autores, de que a desafinao ocorre apenas devido a deficincias no campo da tcnica vocal. Tomatis fez vrios testes em que o cantor era submetido ao processo de saturao; os resultados mostraram que a experincia e tcnica dos cantores de nada adiantavam e a afinao passava a ser afetada. Assim que os ouvidos se recuperavam da saturao, o canto voltava a ser afinado. Outros tipos de testes foram feitos. Com a utilizao de filtros, algumas faixas de freqncias foram eliminadas; esse som alterado chegava ao ouvido do cantor atravs de fones de ouvido. Os resultados comprovaram que os cantores sempre perdiam certas caractersticas tmbricas, tais como o brilho, sendo que, dependendo das faixas eliminadas, a afinao tambm era prejudicada. A premissa do mtodo Tomatis, comprovada em 1953 na Academia Francesa de Cincias, a de que a voz pode produzir apenas aquilo que o ouvido pode ouvir (1993, p. 87 e p. 200). Porm, esclarece o pesquisador, nem tudo que o cantor ouve pode ser emitido pelo fato do nosso aparelho vocal ser incapaz de reproduzir todos os sons detectados, como as freqncias mais altas, por exemplo. Por outro lado, os indivduos parecem 68

escolher e preferir ouvir determinadas faixas de freqncia, dependendo do momento. Alm disso, o autor comenta: a qualidade especfica para cada indivduo. Os cantores so como instrumentos alguns so Stradivarius enquanto outros so violinos de menor qualidade (TOMATIS, 1993, p. 89). Tomatis desenvolveu um mtodo de estimulao sonora, que aumenta a capacidade auditiva da pessoa ajudando-a, no s a ter sua habilidade musical ampliada, como tambm aumentando sua capacidade de aprender idiomas. O tratamento feito atravs da escuta de sons filtrados eletronicamente. Apesar de ter tratado pacientes como Maria Callas e Gerard Depardieu e ter cerca de 200 centros de tratamento, seu mtodo praticamente ignorado, no sendo citado nas pesquisas aqui estudadas. b) Amusia, Auditory Atonalia e Amelodia: deficincias neurolgicas no processamento musical.Amusia a perda, decorrente de leso cerebral, de uma ou mais habilidades musicais, sejam as exigidas para ouvir msica, como a capacidade de ouvir intervalos harmnicos, ou as exigidas para fazer msica, como a leitura de partituras. (JOURDAIN, 1988, p. 419).

Amusia um termo genrico usado para indicar vrios tipos de distrbios no campo da percepo musical e no somente a desafinao. Por ser tratar, no campo da medicina, de uma rea ainda nova, envolvendo o estudo do crebro e suas funes, no se pode tirar concluses a respeito desta doena. Apesar disto, alguns autores acreditam que o termo possa estar relacionado desafinao (BENTA, 1977 apud KALMUS; FRY; 1980; LEVITIN, 1999). Na amusia a pessoa pode perder sua capacidade de compreender a msica, embora no perca sua capacidade auditiva. Os estudos so complexos e procuram descobrir quais reas do crebro so responsveis pela compreenso da escuta musical. Algumas formas de amusia ocorrem na rea da percepo, outras envolvem problemas com os sistemas simblicos de leitura e escrita musical ou, ainda compreendem a execuo vocal ou

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atividades motoras-manuais (MARIN; PERRY, 1999, p. 655). O caso mais famoso de amusia o do msico Maurice Ravel. A causa de sua doena desconhecida, mas ele foi acompanhado por um neurologista. Suas ltimas composies foram completadas quando ele tinha 56 anos e, pouco depois disso, ele comeou a apresentar os sintomas da doena. Apesar de detectar erros nas execues de peas de sua autoria e de poder imitar uma nota tocada ao piano, ele era incapaz de solfejar. Ele se tornou incapaz de escrever msica atravs de ditados e at as cpias se tornaram difceis de serem feitas. Ele s conseguia cantar frases de suas prprias canes se algum lhe desse a primeira nota, embora ele alegasse que podia ouvir a msica em sua cabea (MARIN; PERRY, 1999, p. 659). Em um estudo de caso, Peretz (1993) relata o caso de um paciente que apresenta uma doena denominada Auditory Atonalia ou Amelodia. A caracterstica desta deficincia a inabilidade da pessoa organizar tonalmente as melodias, no percebendo a diferena entre uma melodia tonal de outra atonal. O paciente estudado por Peretz, aps uma cirurgia no crebro, perdeu a capacidade de reconhecer melodias ou de identificar padres tonais, como o de finalizao, por exemplo. Suas habilidades lingsticas se mantiveram, assim como a capacidade de distinguir outros eventos sonoros, como rudos ambientais, timbres de instrumentos, sons de animais etc. Porm, ele no conseguia reconhecer msicas como o hino nacional e, quando solicitado a reproduzir uma melodia, o fazia sem que o resultado correspondesse ao modelo proposto. Entretanto, a sua capacidade de distinguir duas notas diferentes (intervalos) e o contorno meldico de um trecho de at seis notas foi preservada. Peretz afirma haver pouca controvrsia a respeito dos distintos mecanismos neurolgicos responsveis pelo processamento do contorno meldico e dos intervalos. Porm, ela ainda sugere um terceiro componente, que estaria relacionado interpretao tonal das notas musicais. Isto , a rea do crebro responsvel pelo reconhecimento de intervalos pode no ser a mesma que organiza as relaes do sistema tonal, alm de ser diferente da que diz respeito ao contorno meldico. A autora acredita na possibilidade de que o sujeito de sua pesquisa pudesse ouvir a

msica tonal como a maior parte dos ouvintes ouve a msica atonal, ou seja, sem um centro fixo, um eixo que d sentido aos sons escutados. Portanto, existe a possibilidade de algumas pessoas desafinarem por terem problemas de ordem neurolgica, no sendo, por isso, capazes de organizar o material sonoro escutado. Isso nos leva a considerar, como j foi exposto, que a afinao pode no ser apenas uma questo de acertar a altura das notas isoladas, mas de perceber a funo destas dentro de um contexto maior. c) Asonia e diplacusis: outras possibilidades de termos mdicos Kazez (1985, p. 46) afirma que a desafinao formalmente conhecida como asonia, sendo este o nico autor que utiliza tal termo. O autor indica que o termo definido no Butterworths Medical Dictionary com o seguinte verbete:um tipo de amusia na qual existe a inabilidade de se compreender ou ouvir as diferenas entre uma nota e outra da msica, assim torna-se impossvel cantar ou tocar um instrumento de corda afinadamente.

Kazez ainda sugere que as pessoas consideradas desafinadas podem sofrer de uma doena denominada diplacusis. O autor explica a doena da seguinte maneira:Diplacusis uma condio na qual uma nota ouvida como duas ou mais notas diferentes, possivelmente acompanhada por rudos e batimentos produzidos pela interao entre os dois sons (p. 47).

O autor assinala uma forma comum da doena na qual cada ouvido pode perceber um som diferente. Ele tambm afirma, citando outras pesquisas como suporte, que uma significativa relao entre essa doena e a desafinao foi encontrada por vrios patologistas e audiologistas. Kazez sugere a possibilidade de se ajudar uma pessoa a controlar essa doena tapando o ouvido que ouve mal. Deste modo, o ouvido saudvel aprende a discriminar os sons, sem ser confundido pelo outro. d) Dysmelodia: a possibilidade da desafinao ser um trao gentico. Dysmelodia o termo proposto por Kalmus e Fry (1980) para ser usado no lugar de tone ou tune69

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deafness. Os autores acreditam que esta palavra indica sua semelhana com doenas tais como a dislexia (dificuldades com a leitura) e a disfasia (dificuldades com a fala). Kalmus e Fry acreditam que exista uma grande probabilidade da desafinao ser um distrbio de caracterstica autossmica dominante de penetrncia6 reduzida (1980, p. 382). Isso poderia significar que o filho de uma pessoa desafinada teria 50% de chances de ser desafinado. No entanto, se os pais forem afinados, apesar de terem o gene responsvel pela desafinao, os filhos no sero afetados. Entretanto, para os autores, a comprovao da desafinao como fator hereditrio difcil de ser feita. A pesquisa de Kalmus e Fry, porm, parte do pressuposto de que a incapacidade de reconhecer notas erradas em uma melodia conhecida seja uma caracterstica bsica de pessoas desafinadas. Os testes usados por esses pesquisadores foram de discriminao auditiva e no de desempenho vocal. O pressuposto usado como ponto de partida da pesquisa pode conduzir a equvocos, pois existem pessoas que, apesar de serem desafinadas, conseguem perceber se uma melodia contm, ou no, notas erradas. Essas pessoas, na pesquisa de Kalmus e Fry, apareceriam como afinadas. Mitchell (1995) usou o teste de Kalmus e Fry, o Distorted Tune Test em trs adultos desafinados e observou percentagens altas de acertos entre eles. O fato de reconhecerem as incorrees das melodias no significava que eles fossem capazes de afinar. Tipos de Desafinados. Vrios autores propem classificaes para os diversos tipos de desafinados (FORCUCCI, 1985; JOYNER, 1968; LEVITIN, 1999; MITCHEL, 1991; MAWHINNEY, 1986; ROBERTS; DAVIES, 1975; STENE, 1969). Levintin (1999) prope uma bateria de testes para especificar cada tipo, segundo as causas da deficincia. Mawhinney (1986) discorre a respeito de dois tipos: os que desafinam por terem dificuldades no campo da percepo musical e aqueles que desaPenetrncia: possibilidade de um gene ter qualquer tipo de expresso fenotpica. Ou seja, existe o gene, mas a pessoa no apresenta o trao. Herana autossmica dominante: um fentipo expressado da mesma maneira em homozigotos ou heterozigotos. Toda pessoa afetada possui um genitor afetado (Universidade Federal de So Paulo Escola Paulista de Medicina). www.virtual.epm.br/cursos/genetica/genetica.html.

finam por terem dificuldades ligadas produo vocal. Embora esse tipo de classificao seja bastante coerente, ele no simples de ser utilizado, pois como o prprio autor afirma, muito difcil de estabelecer qual a deficincia geradora do problema apenas a partir do resultado final. Como uma das propostas desta pesquisa fornecer recursos com os quais os educadores musicais possam lidar, classificaes envolvendo testes complexos foram descartadas. A soluo foi optar por uma tipologia que fizesse sentido a partir das etapas a serem percorridas por uma pessoa com dificuldades de afinao. Para tanto, ser adotado o modelo proposto por Forcucci (1975) por ser claro em indicar que o problema pode se apresentar em diferentes nveis. Com relao aos termos usados, algumas adaptaes foram feitas, pois a falta de consenso para a palavra desafinado gera, na lngua inglesa, dificuldades no encontradas na lngua portuguesa. Tambm foram feitas modificaes no segundo e terceiro nveis, que foram subdivididos em duas subcategorias. So quatro os tipos sugeridos por Forcucci7: Cantores monotnicos; Cantores desafinados; Cantores dependentes; Cantores independentes. No primeiro tipo encontra-se o cantor com o maior grau de dificuldade em conseguir a afinao vocal. Com freqncia, essas pessoas apresentam tambm o problema do monotonismo na linguagem. Entende-se monotonia como a ausncia de variedade, de diversidade, de multiplicidade em alguma coisa que, geralmente, se caracteriza pela presena de componentes diversos (HOUAISS, 2001). O cantor monotnico no consegue reproduzir o som proposto. ; na tentativa de mudar a altura do som, o cantor conseguir apenas modificar-lhe a intensidade, tornando-o mais forte ou fraco. O monotnico no consegue se ouvir, nem perceber que est cantando diferente de um modelo proposto. Desde que a causa desta dificuldade no tenha origem em deficincias auditivas ou neurolgicas, pode-se afirmar ser a inibio um fator predominante na formao deste tipo; o medo de se expor pode gerar as mais variadas dificuldades no ato de cantar. 7

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Na terminologia de Forcucci: Restricted Singers, Uncertain Singers; Dependent Singers;Independent Singers.

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No segundo tipo est a maior parte dos cantores tidos como desafinados. So cantores que tm mais flexibilidade vocal que os monotnicos e, na maior parte das vezes, so capazes de seguir o contorno meldico de uma determinada melodia, embora esta possa sofrer distores. Tais distores podem ser leves ou graves a ponto de gerar mudanas no centro tonal. A subdiviso desse grupo se d devido natureza da dificuldade: 1) pessoas que percebem que esto cantando diferente de um modelo proposto, apesar de no saberem reagir de maneira a produzir o som desejado. Em geral, elas cantam dessa maneira por no saber controlar a voz ao cantar. 2) pessoas que no percebem os prprios erros, precisando receber estmulos no campo da percepo musical a fim de aprenderem a perceber os padres musicais usados em nossa cultura. bastante comum que as pessoas enquadradas no segundo tipo no sejam capazes de seguir um modelo que lhes sirva de voz-guia. Para os desafinados aqui descritos o acompanhamento instrumental pode ser um empecilho, em vez de ajuda. No terceiro tipo esto as pessoas que podem vir a desafinar, quando cantam sozinhas, mas que so capazes de cantar satisfatoriamente se acompanhadas por outra voz ou instrumento. As pessoas consideradas semitonadas se encaixam nesse grupo. A subdiviso deste tipo ocorre em funo do grau de dependncia do cantor: 1) cantores que afinam desde que acompanhem uma linha meldica, vocal ou instrumental, que lhe sirva de voz-guia. 2) cantores que afinam com o apoio da base harmnica tocada por algum instrumento REFERNCIAS BIBLIOGRFICASABRAHAM, Gerald. The Concise Oxford History of Music. Oxford: Oxford University Press, 1986. BLACKING, Jonhn. Les Sens Musical. Trad.: ric e Marika Blondel. Paris: Les Editions de Minuit. Ttulo original: How Musical is Man?, 1980. BUDDEN, F. J. The Fascinations of Groups. London: Cambridge University Press, 1978. CARTERETTE, Edward; KENDAL, Roger. Comparative Music Perception and Cognition. In: DEUTSCH, D. (Ed.).

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