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Denise Helena Frana Marques

Circularidade na fronteira do Paraguai e Brasil: o estudo de caso dos brasiguaios

Belo Horizonte, MG UFMG/Cedeplar 2009

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Denise Helena Frana Marques

Circularidade na fronteira do Paraguai e Brasil: o estudo de caso dos brasiguaios

Tese apresentada ao curso de doutorado em Demografia do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do Ttulo de Doutor em Demografia. Orientador: Prof. Roberto do Nascimento Rodrigues Co-orientador: Prof. Dimitri Fazito de Almeida Rezende Co-orientador: Prof. Weber Soares

Belo Horizonte, MG Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional Faculdade de Cincias Econmicas - UFMG 2009

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Folha de Aprovao

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Dedico memria de meu pai, Paulo, minha me e ao meu av Ulmes

v

AGRADECIMENTOSObrigada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) pelo suporte financeiro durante os cinco anos de ps-graduao. Graas ao CNPq pude me dedicar exclusivamente ao doutorado do CEDEPLAR/UFMG. Agradeo Mrcia Sprandel pela generosidade e ateno desde sempre. Pela motivao e pelas importantes sugestes de temas para esta tese. Ao Sylvain Souchaud pela gentileza de ter me disponibilizado os dados dos censos paraguaios. Ao Celso Salim pelo acesso sua biblioteca pessoal. Ao Jos Lindomar por atender prontamente todas s minhas solicitaes e

esclarecimentos. Irm Teresinha, Irm Roseli, Irm Ilda, Sr. Jab e famlia, Sr. Osmar e famlia, membros da Pastoral do Migrante. Todos eles contriburam de diferentes maneiras para o sucesso do trabalho de campo. Agradeo tambm aos meus assistentes de pesquisa pelas caronas e disponibilidade de tempo. Ao Irineu Rigotti e ao Duval Magalhes pelas sugestes no exame de qualificao. Ao Fundo de Populao das Naes Unidas, especialmente Tas de Freitas, pelo apoio e pelos recursos que financiaram este trabalho, sem os quais no seria possvel sua concluso. Meus agradecimentos especiais aos professores do CEDEPLAR pela confiana, generosidade e transmisso do saber. Ao pessoal da secretaria, do laboratrio de informtica e da biblioteca. Ao Maurcio Lima pelo esforo para entender os conceitos dos efeitos diretos e indiretos da migrao internacional de retorno e pela ajuda com a base de dados. Ao Fausto Brito pela oportunidade na iniciao cientfica, pelo incentivo e fora para eu tentar o concurso do mestrado e por ter despertado meu interesse pelos movimentos migratrios. Ao Dimitri Fazito pelos conselhos e grandes

contribuies para esta tese. Pelo seu estmulo e entusiasmo em trabalhar com este tema novo. Ao Weber pela coragem de aceitar, j no meio do caminho, o convite para me ajudar nesta empreitada. Ao Roberto, por sempre acreditar no meu potencial, pela oportunidade da orientao e principalmente pelo bom

vi convvio. Por ter sido um interlocutor paciente e generoso e pela coragem de trabalhar com novas idias e conceitos. Ao professor Jos Alberto pela amizade, pelas contribuies ao meu aprendizado profissional e pessoal e pela disponibilidade e pacincia para discutir comigo, tantas vezes, os efeitos diretos e indiretos da migrao internacional de retorno. Aos meus queridos colegas da coorte 2004: Geovane, Cntia, Izabel, Clarissa, Laetcia, Luiza, Julio, Juliana, Marisol, Gilberto, Roflia, Elisangla, Edwan e Mrio pela importante e alegre convivncia durante esses cinco anos de doutorado. Agradeo tambm aos demais colegas do CEDEPLAR pela amizade e cordialidade: Andr Braz, Andrea Simo, Mirian, Helder, Cludia, Renata, Elisenda, Marisa, Nelson, Douglas, Cristina, Glauco, Gilvan, Mauro, Maria Carolina, Nina, Harley, Vanessa, Maira, Flvia, Luana, Pamila, Luciana Lima, Luciana Luz, Regiane, Everton e Mariana. Agradeo tambm ao Bruno Hermann da economia pela disponibilidade de tempo e gentileza com que elaborou o mapa da fronteira do Paraguai e Brasil, utilizado neste trabalho. Clarissa pelo ombro amigo e ternura. Laetcia pela cumplicidade e pelas divertidas tardes na sala 2096. Cristina, amiga de todas as horas, pelos conselhos, preocupao e solidariedade. Clarice por tantos anos de dedicao e carinho. Jade, Mel, e Zulu, pela amizade irrestrita, amor e companhia. Por tornarem o meu dia-a-dia mais feliz e por despertarem em mim os sentimentos mais nobres. Agradecimento especial Rubi (in memorian) pelo amor incondicional e at mesmo egosta. Sinto muitas saudades de voc! famlia do Wladimir pelo acolhimento e apoio. Agradecimento especial Adlia pela torcida e carinho. Ao meu pai (in memorian), pela eterna e forte presena. minha querida me, pelo exemplo de vida e de garra. Por sempre acreditar nos meus sonhos e me permitir voar. minha irm Daniela por sempre me querer bem.

vii Aos meus avs, principalmente ao meu av Ulmes, pela admirao e orgulho exagerado e por ser muito mais que um av. Ao Wladimir pelos 10 anos de convivncia harmoniosa e cheia de vida. Obrigada pelo incentivo e credibilidade e pela pacincia de ouvir tantas vezes as minhas reclamaes e repeties. Obrigada tambm por entender e aceitar minha ausncia e por tornar minha vida ainda mais feliz. A Deus pela oportunidade de aprender e amadurecer com os desafios, pela fora e esperana nos momentos mais difceis dessa travessia. Por fim, a todos os brasileiros, paraguaios e brasiguaios que cruzaram o meu caminho neste longo e sinuoso percurso do doutorado. Sentirei saudades!

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLASALADI Associao Lationoamericana de Integrao BPC Benefcio de Prestao Continuada CARICOM Comunidade do Caribe CELADE Centro Latinoamericano y Caribeo de Demografia CEDEPLAR Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional DGEEC - Direccin General de Estadstica Encuestas y Censos DIR Efeito Direto IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IND1 Efeito Indireto do tipo 1 IND2 Efeito Indireto do tipo 2 MERCOSUL Mercado Comum do Sul PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil PNRA Plano Nacional de Reforma Agrria SBT Sistema Brasileiro de Televiso UE Unio Europia UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

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SUMRIO1 INTRODUO .................................................................................................... 1 2 MIGRAES INTERNACIONAIS: PADRES E TENDNCIAS DA MOBILIDADE HUMANA ................................................................................... 6 2.1 As migraes internacionais no contexto mundial............................................ 6 2.2 Amrica Latina e Caribe no cenrio dos fluxos internacionais ....................... 12 2.2.1 Migrao e mobilidade transfronteiria nos pases do MERCOSUL ........... 18 3 MIGRAES INTERNACIONAIS CONTEMPORNEAS: PERSPECTIVAS TERICAS DA ORIGEM E PERPETUAO DOS FLUXOS ......................... 31 3.1 A emergncia dos fluxos migratrios internacionais....................................... 31 3.2 A continuidade dos movimentos internacionais.............................................. 38 3.3 Teoria dos sistemas de migrao internacional ............................................. 42 4. O SISTEMA DE MIGRAO BRASIL-PARAGUAI: A FORMAO DA COMUNIDADE TRANSNACIONAL BRASIGUAIA ....................................... 50 4.1 O sistema de migrao Brasil-Paraguai ......................................................... 50 4.2 A imigrao de retorno e a formao de uma comunidade transnacional brasiguaia: dados e mtodos .............................................................................. 56 4.2.1 Metodologia para estimao dos efeitos diretos e indiretos da migrao internacional de retorno........................................................................................ 58 4.3 A imigrao de retorno e a formao de uma comunidade transnacional brasiguaia: uma anlise das estimativas............................................................ 63 4.4 A comunidade transnacional brasiguaia ...................................................... 70 5 PESQUISA QUALITATIVA: CONCEITOS E ESTRATGIAS

OPERACIONAIS............................................................................................. 75 5.1 O movimento circular como objeto do estudo ................................................ 75 5.2 Quem so os brasiguaios investigados?...................................................... 80 5.3 Algumas consideraes acerca dos dados secundrios disponveis ............. 80

x 5.4 Produo e mtodo de anlise dos dados qualitativos................................... 83 5.4.1 A entrevista em profundidade...................................................................... 85 5.4.2 Os municpios contemplados ...................................................................... 88 5.4.3 Anlise dos dados e das entrevistas ........................................................... 92 6 TEM DIA QUE ESTOU NO BRASIL..., TEM DIA QUE EU ESTOU NO PARAGUAI..., PARA MIM A MESMA CIDADE ......................................... 95 6.1 Um breve perfil dos municpios paraguaios visitados..................................... 95 6.2 Perfil dos brasiguaios entrevistados........................................................... 105 6.3 A identidade brasiguaia segundo a percepo da populao envolvida.... 109 6.4 As motivaes para a circulao dos brasiguaios na fronteira .................. 113 6.5 Sntese dos resultados ................................................................................. 124 7. CONCLUSO................................................................................................. 127 6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................ 134 9 ANEXOS ......................................................................................................... 145 Anexo A.............................................................................................................. 146 Anexo B.............................................................................................................. 147 Anexo C.............................................................................................................. 151

xi

LISTA DE ILUSTRAESTABELA 1- EVOLUO DO NMERO DE MIGRANTES INTERNACIONAIS NO MUNDO E NAS SUAS GRANDES REGIES E INDICADORES SELECIONADOS COM BASE NO ESTOQUE DE MIGRANTES

INTERNACIONAIS, 1970-2000....................................................................... 11 TABELA 2- ESTOQUE DE IMIGRANTES INTERNACIONAIS INTRAREGIONAIS NOS PASES DO MERCOSUL, SEGUNDO PAS DE NASCIMENTO DO IMIGRANTE, 1970-1995.................................................. 20 FIGURA 1 ESTRUTURA DE UM SISTEMA DE MIGRAO

INTERNACIONAL ........................................................................................... 45 QUADRO 1INFORMAES DE LTIMA ETAPA E DATA-FIXA:

POSSIBILIDADES E LIMITAES PARA CAPTAR OS RETORNADOS INTERNACIONAIS QUE REEMIGRARAM DENTRO DO BRASIL, 1991 E 2000 ................................................................................................................ 58 FIGURA 2 EFEITOS DIRETOS E INDIRETOS DA MIGRAO INTERNACIONAL DE RETORNO: FAMLIAS CUJOS CHEFES/

PESSOA DE REFERNCIA SO RETORNADOS INTERNACIONAIS ......... 61 FIGURA 3 EFEITOS DE DIRETOS E INDIRETOS FAMLIAS DA MIGRAO CHEFES/

INTERNACIONAL

RETORNO:

CUJOS

PESSOAS DE REFERNCIA SO IMIGRANTES INTERNACIONAIS .......... 62 TABELA 3- BRASIL: UNIDADES DA FEDERAO DE DESTINO DOS IMIGRANTES INTERNACIONAIS E RETORNADOS DO PARAGUAI NOS QINQNIOS DE 1986/1991 E 1995/2000......................................... 64 TABELA 4- BRASIL E UNIDADES DA FEDERAO SELECIONADAS: EFEITO DIRETO DA MIGRAO INTERNACIONAL DE RETORNO DO PARAGUAI, 1981/1991 E 1990/2000 ............................................................. 65 TABELA 5- BRASIL: EFEITO DIRETO DA MIGRAO INTERNACIONAL DE RETORNO DE BRASILEIROS DO PARAGUAI, POR SEXO E GRUPOS DE IDADE, 1981/1991 E 1990/2000............................................... 66

xii TABELA 6- BRASIL: FILHOS NASCIDOS NO PAS APS O RETORNO DAS MES BRASILEIRAS DO PARAGUAI (EFEITO INDIRETO 1), POR SEXO, 1981/1991 E 1990/2000 ...................................................................... 67 TABELA 7- BRASIL: IMIGRANTES INTERNACIONAIS NO BRASILEIROS ORIUNDOS DO PARAGUAI, QUE ENTRARAM NO PAS

ACOMPANHADOS POR ALGUM FAMILIAR BRASILEIRO (EFEITO INDIRETO 2), SEGUNDO RELAO COM O CHEFE/ PESSOA DE REFERNCIA DA FAMLIA, POR SEXO, 1981/1991..................................... 68 TABELA 8- BRASIL: IMIGRANTES INTERNACIONAIS NO BRASILEIROS ORIUNDOS DO PARAGUAI, QUE ENTRARAM NO PAS

ACOMPANHADOS POR ALGUM FAMILIAR BRASILEIRO (EFEITO INDIRETO 2), SEGUNDO RELAO COM O CHEFE/ PESSOA DE REFERNCIA DA FAMLIA, POR SEXO, 1990/2000..................................... 69 FIGURA 4 FLUXOS RECPROCOS E DESLOCAMENTO DE PESSOAS ....... 77 QUADRO 3- FATORES QUE CONCORRERAM PARA A ESCOLHA DOS MUNICPIOS PARAGUAIOS A SEREM VISITADOS ..................................... 88 TABELA 9- PARAGUAI: POPULAO TOTAL, TOTAL DE IMIGRANTES INTERNACIONAIS E DE BRASILEIROS, POR DEPARTAMENTO, 1992 E 2002............................................................................................................. 90 TABELA 10- AMAMBAY E CANINDEY: POPULAO TOTAL, ESTOQUE DE IMIGRANTES INTERNACIONAIS E DE BRASILEIROS, SEGUNDO DISTRITOS, 2002 ........................................................................................... 92 QUADRO 2 CATEGORIAS PRINCIPAIS E SUBCATEGORIAS DAS INFORMAES QUALITATIVAS COLETADAS EM CAMPO........................ 94 FIGURA 5BRASIL E PARAGUAI: MUNICPIOS FRONTEIRIOS

VISITADOS ..................................................................................................... 96 FIGURA 6- FOTO DE SATLITE DA FRONTEIRA SECA QUE SEPARA PARANHOS, NO BRASIL, DE YPEHJ, NO PARAGUAI, 2009 .................... 98 FIGURA 7- LINHA INTERNACIONAL QUE SEPARA YPEHJ, NO PARAGUAI, DE PARANHOS, NO BRASIL, 2009........................................... 99

xiii FIGURA 8- PRIMEIRO QUARTEIRO DE PEDRO JUAN CABALLERO, 2009 .............................................................................................................. 100 FIGURA 9- FOTO DE SATLITE DA FRONTEIRA SECA QUE SEPARA PONTA POR, NO BRASIL, DE PEDRO JUAN CABALLERO, NO PARAGUAI, 2005.......................................................................................... 101 FIGURA 10- FOTO DE SATLITE DA FRONTEIRA ENTRE GUARA, NO BRASIL, SALTO DEL GUAIR, NO PARAGUAI E DA PONTE AYRTON SENNA, 2009................................................................................................ 104 FIGURA 11- AVENIDA PARAGUAI EM SALTO DEL GUAIR, 2009 ................ 105 TABELA 11 PERFIL SOCIODEMOGRFICO DETALHADO DOS

BRASIGUAIOS ENTREVISTADOS EM YPEHJ, SALTO DEL GUAIR E PEDRO JUAN CABALLERO ..................................................................... 107 QUADRO 4 - ASPECTOS DOS TRANSNACIONALISMO BRASIGUAIO ....... 113 FIGURA 12- BALSA VINDA DE GUARA, NO BRASIL, COM ESTUDANTES CHEGANDO DE ESCOLAS BRASILEIRAS ................................................. 118 A 1 - MUNDO: PRINCIPAIS PASES DE DESTINO DE MIGRANTES INTERNACIONAIS, POR ESTOQUE, DISTRIBUIO RELATIVA E DISTRIBUIO ACUMULADA, 1970 E 2000............................................... 146 C 1 PERFIL SOCIODEMOGRFICO DOS BRASIGUAIOS

ENTREVISTADOS EM YPEHJ, SALTO DEL GUAIR E PEDRO JUAN CABALLERO, 2008....................................................................................... 151 C 1 PERFIL SOCIODEMOGRFICO DOS BRASIGUAIOS

ENTREVISTADOS EM YPEHJ, SALTO DEL GUAIR E PEDRO JUAN CABALLERO, 2008....................................................................................... 152 C 1 PERFIL SOCIODEMOGRFICO DOS BRASIGUAIOS

ENTREVISTADOS EM YPEHJ, SALTO DEL GUAIR E PEDRO JUAN CABALLERO, 2008....................................................................................... 153

xiv

RESUMOA emigrao massiva de brasileiros para o Paraguai iniciou-se no final da dcada de 1950, intensificou-se nos dois decnios seguintes e, nas duas ltimas dcadas tem dado lugar a uma migrao internacional de retorno de brasileiros provenientes do Paraguai. Esse fenmeno, aliado ao desenvolvimento de um comrcio na regio de fronteira e aos deslocamentos que marcam uma circularidade transfronteiria entre o Brasil e o Paraguai, configuram alguns dos fatores que concorreram para a formao de uma comunidade transnacional brasiguaia. Residir no Paraguai e circular nas fronteiras nacionais do Paraguai e Brasil uma prtica muito comum dos brasiguaios, sobretudo daqueles que residem em municpios paraguaios fronteirios ao Brasil. A proposta desta tese investigar as motivaes dos brasiguaios para circularem nas fronteiras entre o Paraguai e o Brasil, mais especificamente daqueles que residem em municpios paraguaios fronteirios ao Brasil. As informaes presentes nos censos demogrficos brasileiros permitem caracterizar os retornados originrios do Paraguai, assim como descobrir os municpios que mais receberam essa populao nos ltimos anos. No entanto, os atributos sociodemogrficos dos brasiguaios que residem no Paraguai no so captados pelos censos brasileiros, muito menos as informaes relativas s motivaes subjacentes ao trnsito dessas pessoas na fronteira do Brasil com o Paraguai. Os censos paraguaios, por sua vez, tambm no disponibilizam essas informaes para seus residentes. Diante de tais limitaes, a tcnica qualitativa foi eleita a mais adequada para investigar as motivaes para o intenso trnsito dos brasiguaios nas fronteiras entre o Paraguai e o Brasil. Foram realizadas 39 entrevistas em profundidade com os brasiguaios residentes em Ypehj, Salto del Guair e Pedro Juan Caballero. Constatou-se que a circularidade dos brasiguaios nas fronteiras nacionais do Paraguai e Brasil motivada pela demanda de servios pblicos nas reas de sade e educao, de benefcios assistenciais, por compras, visitas, religio e trabalho. Essas demandas revelam as diferentes estratgias de adaptao e sobrevivncia dos brasiguaios, residentes em municpios paraguaios fronteirios ao Brasil, e a importncia de suas redes pessoais para intercambiar recursos, informaes e solidariedade que

xv os permitam acessar bens e servios brasileiros. Ademais, chamam ateno dos formuladores de polticas pblicas para as regies de fronteiras nacionais do Brasil, uma vez que essa intensa circularidade pode interferir no equilbrio da oferta e demanda de servios pblicos brasileiros.

Palavras-chave: circulao, fronteiras nacionais, brasiguaios

xvi

ABSTRACTThe mass emigration of Brazilians from Brazil to Paraguay began at the end of the 1950's, and it was intensified in the following two decades (the 1960's and the 1970's), and the last two decades have given place to an international migration of Brazilians returning from Paraguay. This phenomenon, along with the

development

of commercial

businesses

in the border

region and the

displacements that mark an international transborder circulation between Brazil and Paraguay, configures some of the factors that have contributed to the formation of brasiguaia, a transnational community. Residing in Paraguay and circulating through the national borders of Paraguay and Brazil is a common practice amongst "brasiguaios", especially those who live in Paraguayan cities bordering Brazil. The purpose of this thesis is to investigate the motivations of the "brasiguaio" to circulate between the borders of Paraguay and Brazil, more specifically, those "brasiguaios" residing in Paraguayan cities bordering Brazil. The current

information in the Brazilian demographic censuses allows us to identify which part of the returning population actually originated from Paraguay, as well as discover which cities have received most of this population in recent years. However, the sociodemographical attributes of the "brasiguaios" which reside in Paraguay are not caught by the Brazilian censuses, much less the relative information concerning underlying motivations for their transit on the border of Paraguay and Brazil. The Paraguayan censuses, in turn, do not provide this information about its residents either. Realizing these, the qualitative technique was chosen as most appropriate in order to investigate the motivations for the intense transit of the brasiguaios between the borders of Paraguay and Brazil. Thirty-nine in-depth interviews took place with the brasiguaios residents in Ypehj, Salto del Guair e Pedro Juan Caballero. It was established that the circulation of the "brasiguaios" between the national borders of Paraguay and Brazil is motivated by the demand of public services in the areas of health and education, social aides and benefits, shopping, visits, religion and work. These demands reveal different strategies of adaptation and survival of the brasiguaios, the residents of Paraguayan cities bordering Brazil, and the importance of their personal networks to exchange

xvii resources, information and solidarity that allow them to have access to Brazilian goods and services. Moreover call attention to the public policy makers in the national border regions of Brazil, and make them aware that this large circulation can possibly interfere with the balance of offers and demands of public Brazilian services.

Keywords: circulation, national borders, brasiguaios

1

1 INTRODUO

No final do sculo XX e especialmente nos dias atuais, incio do sculo XXI, os fluxos migratrios internacionais so reconhecidos como elementos vitais para o processo de desenvolvimento de pases e regies. Em 1960, o estoque de imigrantes internacionais no mundo, ou seja, o nmero de pessoas vivendo fora de seus pases de nascimento, era cerca de 76 milhes de pessoas (Internacional, 2005). Em 2000, esse volume mais que duplicou, atingindo o patamar de 175 milhes de imigrantes. Isso significa um crescimento mdio anual de 2,1%, mdia superior ao crescimento da populao mundial nesse mesmo perodo, que foi de 1,7% (United Nations, 2008). Grande parte dos fluxos migratrios internacionais acontece entre pases em desenvolvimento e pases desenvolvidos (Sul-Norte), mas numerosas trocas populacionais tambm ocorrem entre os prprios pases em desenvolvimento (Sul-Sul). Villa & Martinez (2000) ressaltam que os deslocamentos humanos nas fronteiras nacionais, dentro da Amrica Latina e Caribe, so muito freqentes, facilitados pela proximidade geogrfica e cultural. Para esses autores, os pases de destino so aqueles cuja estrutura produtiva favorvel gerao de empregos. Contudo, importante destacar que fatores estruturais e polticosociais tambm exercem fortes influncias sobre a deciso do migrante. Para se ter uma idia da importncia desses fatores, nos anos 1980, por exemplo, os conflitos e convulses poltico-sociais que tiveram lugar em vrios pases da Amrica Central foram responsveis pelo deslocamento e expatriao de um elevado volume de populao. S nos primeiros anos da dcada de 1990, a populao de refugiados nesse subcontinente superou 1,1 milho de pessoas (1.163.030 refugiados), com destaque para o Mxico, Honduras e Costa Rica, pases acolhedores da maioria desses refugiados (Pellegrino, 2001, p. 43). No mbito da mobilidade populacional internacional, alm da migrao tradicional, sempre estiveram em curso modalidades de deslocamento que no envolvem mudana de residncia. A crescente abertura das economias nacionais e o

2 desenvolvimento de tecnologias ligadas aos transportes e s comunicaes, que diminuem as barreiras fsicas e culturais, tm contribudo para o crescimento de tais deslocamentos internacionais. As regies de fronteiras nacionais so importantes cenrios de deslocamentos populacionais que no resultam em mudana de residncia. Esses movimentos podem ser circulatrios e de outra natureza, como a mobilidade diria dos brasiguaios que cruzam as fronteiras do Paraguai e do Brasil motivados por uma variedade de fatores. Esses deslocamentos so muito peculiares, porque ocorrem entre pases e em fronteiras que so, ao mesmo tempo, permeveis e rgidas. A permeabilidade da fronteira est na utilizao alternativa, por parte dos demandantes, de servios ofertados num ou noutro lado da fronteira nacional, sobretudo de transportes, sade, educao, comunicao, entre outros. J a rigidez est presente na separao do espao em duas soberanias, com todas as suas diferenas significativas quanto a fatores tais como normas, sistemas administrativos, preos e produtividade. Apesar da intensidade e volume dos deslocamentos populacionais nas regies de fronteiras nacionais, pouco se conhece a respeito desse fato. Diversos pesquisadores, no decorrer de suas investigaes acadmicas, identificaram a circulao dos brasiguaios na fronteira do Paraguai e Brasil, mas, como esse no era o foco de suas pesquisas, somente mencionaram o fenmeno, o que deixou uma lacuna a respeito do assunto. Este trabalho insere-se no mbito daqueles que focalizam deslocamentos populacionais motivados por questes que no demandam, ou no requerem, mudanas de residncia, configurando-se, portanto, no como fluxos migratrios, mas como movimentos circulares. A proposta desta tese investigar as motivaes dos brasiguaios para essa circulao nas fronteiras nacionais do Paraguai e Brasil, mais especificamente dos que residem em municpios paraguaios fronteirios ao Brasil. A dcada de 1980, sobretudo o segundo qinqnio, presenciou um xodo significativo de retornados do Paraguai para o Brasil. Foi nessa poca que surgiram os brasiguaios. Esse termo possua, at ento, apenas uma conotao poltica. As famlias expulsas do Paraguai pelo novo modelo de reestruturao produtiva se viram obrigadas a retornar para o Brasil e reivindicar seus direitos

3 terra. Sob o amparo da denominao brasiguaio, esses imigrantes procuraram se distinguir de outros grupos que tambm reivindicavam a posse da terra no pas. Os brasiguaios aqui pesquisados so indivduos transnacionais, porque mesclam as culturas dos dois pases e possuem vnculos sociais, econmicos e polticos, tanto no Brasil quanto no Paraguai. Esses indivduos possuem nacionalidade brasileira e/ou paraguaia (filhos de brasileiros que compem a segunda gerao de imigrantes residentes no Paraguai) e lanam mo de estratgias de adaptao e sobrevivncia mais baratas e seguras, se comparados a outros transmigrantes. Os movimentos dos brasiguaios, ao serem tomados como um estudo de caso, inserem-se no mbito das investigaes que buscam contribuir para polticas sociais direcionadas aos municpios ou regies de fronteira do Brasil com outros pases, como, por exemplo, para a delimitao da oferta e demanda de servios pblicos. Tal incorporao torna bem mais complexa a discusso e definio dos pblicos-alvo dessas polticas ou programas, mas fundamental para uma considerao mais abrangente acerca do seu volume/dimenso e qualidade. Investigar as motivaes para a circulao dos brasiguaios na fronteira do Paraguai e Brasil justifica-se por vrias razes. Em primeiro lugar, porque as motivaes para a circularidade dos brasiguaios na fronteira do Paraguai e Brasil so de diferentes ordens. As motivaes para a circulao de jovens adultos nessa fronteira, por exemplo, so bem diferentes daquelas que levam os idosos a transitarem nela. Em segundo lugar, pela especificidade do sistema de migrao Brasil-Paraguai. Em geral, as correntes migratrias originam-se em pases em desenvolvimento e destinam-se aos pases ricos. No cabe aqui discutir as causas dessa migrao, mas apenas enfatizar sua direo, j que a emigrao de brasileiros para o Paraguai e o posterior retorno de milhares deles constitui um caso particular. As correntes, contracorrentes e a circulao entre o Paraguai e Brasil ocorrem entre dois pases perifricos, com diferenas econmicas significativas. Outro aspecto importante a frgil situao socioeconmica de grande parcela dos brasiguaios retornados do Paraguai, conforme constatado por Carvalho (2004) para os qinqnios de 1986/1991 e

4 1995/2000. A maioria das famlias desses brasiguaios retornados chefiada por indivduos com baixa escolaridade e renda, o que requer uma ateno especial dos formuladores de polticas sociais. Em quarto lugar, importante estudar, no mbito dos movimentos migratrios internacionais, os movimentos circulares nas fronteiras nacionais, assim como suas particularidades, uma vez que tais movimentos so capazes de interferir no dimensionamento da demanda e oferta de servios e dos mercados consumidores dos pases envolvidos. Em quinto, estudar essas motivaes de grande importncia para a construo e efetivao de projetos discutidos no mbito do Mercosul, como a livre circulao de pessoas e a legalizao de programas e acordos binacionais de dupla cidadania. Ademais, os resultados do estudo podem servir para o estabelecimento de bases e diretrizes capazes de gerenciar tais deslocamentos, de tal forma a preservar, a um s tempo, o direito de ir e vir das pessoas e as soberanias nacionais, garantindo condies dignas de sobrevivncia aos segmentos populacionais envolvidos. Para o desenvolvimento dos seus objetivos, esta tese organizada em seis captulos. O Captulo 2 apresenta um panorama geral dos fluxos migratrios internacionais no mundo e na Amrica Latina e Caribe, tendo como pano de fundo os diferentes contextos econmicos, polticos e demogrficos que modelaram a histria da humanidade desde a colonizao do Novo Mundo. Maior ateno dada migrao e, sobretudo, aos movimentos circulares que acontecem entre os pases que compem o MERCOSUL, especialmente entre o Brasil e o Paraguai. O Captulo 3 focaliza as principais proposies tericas que procuram explicar a origem e perpetuao da migrao internacional. A expressiva migrao de brasileiros para o Paraguai, o posterior retorno de milhares deles e o intenso trnsito nas fronteiras nacionais desses dois pases so fenmenos analisados dentro da perspectiva de um sistema de migrao, conforme definido por Kritz & Zlotnik (1992) e replicado por Fazito (2008). Nessa tica, o Captulo 4 apresenta uma sntese dos traos caractersticos do sistema de migrao BrasilParaguai, que originou a formao da comunidade transnacional brasiguaia. O foco do Captulo 5 a conceituao do termo circularidade, adotado para denominar os deslocamentos que acontecem entre o Paraguai e o Brasil, a justificativa para escolha dos municpios que constituem o universo de

5 investigao da pesquisa, assim como uma descrio da metodologia qualitativa adotada na coleta e anlise dos dados. A apresentao e anlise dos resultados so contemplados no Captulo 6. Por fim, o Captulo 7 apresenta uma sntese dos principais resultados, alm de indicaes de estudos futuros que poderiam elucidar com maior profundidade as questes abordadas ao longo do trabalho.

6

2

MIGRAES INTERNACIONAIS: PADRES TENDNCIAS DA MOBILIDADE HUMANA

E

Neste captulo apresenta-se, de maneira sucinta, a histria das migraes internacionais no mundo e na Amrica Latina e Caribe. Adota-se a periodizao realizada por Massey et al (1998) e Pellegrino (2002; 2003), com o propsito de facilitar a anlise e o entendimento dos fluxos migratrios internacionais. Maior nfase dada migrao entre os pases que compem o MERCOSUL e, sobretudo, circulao transfronteiria, especialmente entre o Brasil e o Paraguai, que constitui o objetivo especfico de investigao proposto neste trabalho.

2.1 As migraes internacionais no contexto mundial

Os movimentos populacionais sempre estiveram presentes na histria da humanidade. Motivados por diversos fatores, tais como mudanas climticas, econmicas e crescimento demogrfico, homens e mulheres sempre se deslocaram no espao. Contudo, a construo dos Estados Nacionais na Europa foi um marco importante na histria das migraes. A extenso espacial do poder do Estado e, com ele, a delimitao das fronteiras nacionais transformou muitos dos deslocamentos humanos em migraes internacionais. A colonizao de territrios de alm-mar e a industrializao deram grande impulso para esses fluxos migratrios internacionais. O antigo sistema colonial foi responsvel por um volumoso influxo de europeus e, sobretudo, africanos para regies do globo at ento pouco povoadas. As revolues industriais que tiveram lugar nos sculos XVIII e XIX introduziram novas tecnologias na produo manufatureira e exigiram a quebra de monoplios e do exclusivo comercial (Brito, 1995, p. 2). A instabilidade poltica e econmica na Europa, aliada reestruturao produtiva do capitalismo, aceleraram a emigrao de europeus para o continente americano.

7 A primeira metade do sculo XX testemunhou importantes acontecimentos na histria da humanidade que contriburam para o arrefecimento dos fluxos intercontinentais de populao. O perodo entre 1914 e 1945 foi de guerras, estagnao econmica e, consequentemente, fortalecimento da hostilidade para com os imigrantes internacionais em muitos pases. Aps 1945, observou-se, novamente, aumento no volume migratrio e mudana em suas caractersticas. O continente europeu foi cenrio de numerosos fluxos populacionais

intracontinentais, graas aos programas de recrutamento de mo-de-obra dentro do prprio continente; e recebeu tambm muitos imigrantes ultramarinos, oriundos principalmente das ex-colnias. Uma caracterstica importante das migraes internacionais nessa poca foi a massiva emigrao de europeus para os Estados Unidos e, mais tarde, a emigrao de asiticos e latino americanos para esse pas. Com base em uma estratgia analtica, Massey et al (1998) e Pellegrino (2002; 2003) identificaram quatro grandes etapas no processo migratrio mundial e tomaram como ponto de partida a ocupao de territrios ultramarinos pelos reinos de Portugal e Espanha. A primeira fase foi caracterizada pela colonizao da Amrica, frica, sia e Oceania e incorporao de populao proveniente das metrpoles europias e da frica, dessa ltima em regime de escravido. A explorao de produtos coloniais era garantida pela mo-de-obra africana que, em condies de escravido, foi levada s colnias por meio da migrao forada (Pellegrino, 2002; Castles, 2000). Esses trabalhadores desempenharam papis fundamentais na produo de matrias-primas, como o acar, tabaco, caf, algodo e ouro, fontes de poder econmico e poltico das metrpoles europias. Conforme Castles & Miller (1998, p. 53), o trabalho escravo j existia em sociedades pr-capitalistas. Contudo, a emergncia de imprios globais e a construo de um mercado mundial (dominado pelo capital mercantil) modificaram as caractersticas da escravido. Os escravos passaram a ser comercializados como commodities e eram submetidos a rgidas formas de controle. A maioria deles trabalhava em plantaes cuja produo era destinada exportao, parte integrante do sistema internacional de comrcio. S para se ter uma idia da grande magnitude de escravos africanos na Amrica, Appleyard (1991) calcula que chegaram nesse continente, antes de 1850, cerca de 15

8 milhes de africanos escravizados. Tais trabalhadores eram responsveis pela produo de um tero do valor total do comrcio europeu nessa poca. A segunda etapa identificada por Massey et al (1998) e Pellegrino (2002; 2003) foi marcada pela industrializao da Europa Ocidental e suas consequncias. Entre 1800 e 1925, a escassez de terras e o aumento da pobreza levaram mais de 48 milhes de pessoas a emigrarem para outros continentes. O acelerado crescimento da populao europia, consequncia das primeiras etapas da transio demogrfica, a instabilidade poltica e econmica no continente e a existncia de extensos territrios com muito baixa densidade demogrfica, como, por exemplo, a Oceania e a Amrica, eram os ingredientes perfeitos para as migraes internacionais. Na segunda metade do sculo XIX, a economia capitalista experimentou um forte crescimento. O desenvolvimento de novas tecnologias na indstria permitiu a expanso de sua produo e a liberao de um excedente demogrfico, no absorvido pela economia europia (Brito, 1995). Ademais, a disputa por mercados consumidores internacionais fez com que os pases da Europa entrassem em choque na competio por colnias. Nesta fase, as polticas econmicas foram dominadas pelo liberalismo, que via com bons olhos a entrada de estrangeiros nos Estados Nacionais. A emigrao europia extracontinental decresceu substancialmente com a iminncia de uma guerra (Primeira Guerra Mundial), mas foi a Grande Depresso que ps fim ao apogeu do liberalismo econmico e aos volumosos fluxos migratrios internacionais. Nesse terceiro estgio da histria das migraes (Massey et al, 1998; Pellegrino, 2002; 2003), muitos pases adotaram medidas para limitar a entrada de estrangeiros em seus territrios. Nos Estados Unidos, grupos nacionalistas encararam os imigrantes europeus como ameaa ordem pblica e aos valores americanos (Castles, 2000). Se, por um lado, vrios pases restringiram, por meio de leis, a entrada de imigrantes, por outro, assistiu-se retrao da propenso emigratria europia. Os fluxos migratrios internacionais nessa poca limitaram-se aos movimentos internacionais de refugiados, perseguidos por questes polticas e tnicas. A quarta etapa na histria dos fluxos internacionais de populao surgiu no perodo do ps-guerra, durante a dcada de 1960, e caracterizou-se pelo

9 aumento e mudana de direo dos fluxos migratrios internacionais. A Amrica Latina, por exemplo, passa de grande receptora de imigrao transatlntica para expulsora de populao em direo aos pases desenvolvidos, sobretudo para os Estados Unidos, em meio ao incremento no nmero de naes participantes das trocas populacionais. Muitos pases do Terceiro Mundo, destino dos fluxos na poca do colonialismo e imperialismo, se transformaram em regies de origem (Massey et al, 1998). Castles (2000) distingue duas etapas dos fluxos internacionais, que

compreendem o que Massey et al (1998) denominaram de ltimo perodo na histria das migraes internacionais. A primeira, iniciada em 1945, durou at 1973, com a crise do petrleo, quando o crescimento econmico estimulou a emigrao de mo-de-obra da frica, sia e Amrica Latina e Caribe para a Europa Ocidental, Amrica do Norte e Oceania. A segunda fase, principiada no segundo qinqnio da dcada de 1970, quando os investimentos em capital foram deslocados dos velhos centros e formas transnacionais de produo e distribuio reformularam a economia mundial. Os pases industrializados passaram a receber novos tipos de fluxos populacionais e diferentes naes surgiram como receptoras de imigrantes internacionais. As migraes internacionais intracontinentais na Europa Ocidental iniciaram-se por volta da segunda metade do sculo XX. Entre 1950 e 1975, grande parte dos fluxos migratrios ocorreu dentro do prprio continente europeu. Muitos trabalhadores saram dos pases localizados no sul da Europa, relativamente intensivos em mo-de-obra (Itlia, Espanha, Portugal e Grcia), e se dirigiram para o norte e o oeste europeu, pases intensivos em capital e escassos em mode-obra (Alemanha, Frana, Blgica, Holanda e Sucia). No final dos anos 1960, a economia de pases como Portugal, Espanha e Itlia comeou a se tornar intensiva em capital. A escassez de mo-de-obra nesses pases, causada pela emigrao massiva de trabalhadores na dcada anterior, fez com que a importao de trabalhadores se tornasse necessria. Assim, durante a dcada de 1970, numerosos imigrantes desembarcaram nesses pases, oriundos

principalmente do Oriente Mdio e Norte da frica (Massey et al, 1998).

10 Poder-se- supor que esses imigrantes deveriam retornar para seus pases de origem assim que as condies econmicas que causaram tal importao de mo-de-obra desaparecessem. Entretanto, um grande nmero de trabalhadores migrantes optou por permanecer nos pases de destino e requereu a entrada de membros de suas famlias, como esposas, filhos e outros parentes. Nos pases do Golfo Prsico e nos Tigres Asiticos, os fluxos migratrios internacionais principiaram-se em 1973 e na dcada de 1980, respectivamente. Esses grupos de pases tambm adotaram polticas de recrutamento de mo-deobra no exterior. A necessidade da economia dessas regies de importar trabalhadores para suprir as demandas internas fez com que os pases, assim como algumas naes europias, passassem de exportadores a importadores de mo-de-obra. A ltima dcada do sculo XX inaugurou uma fase sem precedentes na histria das migraes internacionais. Em 2000, de cada 35 pessoas no mundo, uma residia num pas diferente do seu pas de nascimento (Internacional, 2005). Isso significa que o total de imigrantes representava 2,9% da populao mundial, em 2000, percentual um pouco superior ao de 1970, que era de 2,2% (TAB. 1). Vale ressaltar que essas informaes referem-se ao estoque acumulado de imigrantes documentados, isto , so cifras subenumeradas, uma vez que existem milhares de migrantes ilegais espalhados pelo mundo. O aumento da participao dos migrantes internacionais no total da populao mundial deveu-se, em boa parte, ao surgimento de novos pases, com a decomposio da antiga Unio Sovitica, na dcada de 1990, que ao incremento dos fluxos internacionais. Em 1991, quando a ex-Unio Sovitica se desintegrou em 15 novos pases, o estoque de imigrantes internacionais no mundo se elevou drasticamente. As pessoas que eram consideradas imigrantes internos, dentro da repblica sovitica, adquiriram o status de imigrantes internacionais com a independncia de seus pases de nascimento (International, 2005).

11

Tabela 1- Evoluo do nmero de migrantes internacionais no mundo e nas suas grandes regies e indicadores selecionados com base no estoque de migrantes internacionais, 1970-2000

Nmero de migrantes internacionais Principais regies 1970 81,5 38,3 35,2 43,2 9,9 28,1 5,8 13,0 3,0 18,7 3,1 (em milhes) 1980 1990 99,8 154,0 47,7 89,7 44,5 59,3 52,1 64,3 14,1 16,2 32,3 41,8 6,1 7,0 18,1 27,6 3,8 4,8 22,2 26,3 3,3 30,3 2000 174,9 110,3 80,8 64,6 16,3 43,8 5,9 40,8 5,8 32,8 29,5

Mundo Pases desenvolvidos Pases desenvolvidos, com exceo da URSS Pases em desenvolvimento frica sia* Amrica Latina e Caribe Amrica do Norte Oceania Europa** Antiga URSS

Taxa mdia anual de Proporo dos migrantes Distribuio percentual crescimento do nmero de internacionais em dos migrantes migrantes internacionais relao populao internacionais (percentual) total por regio 1970/1980 1980/1990 1990/2000 1970 2000 1970 2000 2,0 4,3 1,3 2,2 2,9 100,0 100,0 2,2 6,3 2,1 3,6 8,7 47,0 63,1 2,3 2,9 3,0 4,3 8,3 43,2 46,2 1,8 2,1 0,0 1,6 1,3 53,0 36,9 3,6 1,4 0,0 2,8 2,0 12,1 9,3 1,4 2,6 0,5 1,3 1,2 34,5 25,0 0,7 1,3 -1,7 2,0 1,1 7,1 3,4 3,3 4,2 3,9 5,6 12,9 15,9 23,3 2,1 2,3 2,1 15,6 18,8 3,7 3,3 1,7 1,7 2,2 4,1 6,4 22,9 18,7 0,5 22,3 -0,3 1,3 10,2 3,8 16,8

(*) Com exceo de Armnia, Azerbaijo, Gergia, Cazaquisto, Tadjiquisto, Turcomenisto e Uzbequisto. (**) Com exceo de Belarus, Estnia, Letnia, Litunia, Repblica da Moldova, Federao Russa e Ucrnia. Fonte: UNITED NATIONS, 2005.

12 Embora os valores absolutos gerem certa perplexidade, a participao do estoque de migrantes internacionais na populao mundial no chegou a 3,0%, em 2000. Porm, olhando com ateno essa participao por regio, percebe-se a importante representatividade dos imigrantes internacionais na populao total da Oceania, da Amrica do Norte e da Europa, sobretudo no ano 2000 (TAB. 1). A TAB.1 mostra que, em 1970 e 1980, os pases em desenvolvimento concentravam mais da metade do estoque total de imigrantes internacionais do mundo. Em 1990, observa-se uma inverso nessa concentrao. Os pases economicamente mais ricos passaram a ser os destinos preferenciais de tais imigrantes. Alm disso, comparando os anos de 1970 e 2000, percebe-se que o estoque de migrantes internacionais no planeta permaneceu concentrado em poucos pases. Em 1970, alm da ex-URSS, outros 22 pases concentravam trs quartos do estoque total de estrangeiros. Desse total, nove eram pases desenvolvidos e 13 em desenvolvimento. No ano 2000, esse nmero passou para 28, dos quais 11 eram pases considerados de Primeiro Mundo, 13 de Terceiro Mundo e quatro surgiram da desintegrao da antiga Unio Sovitica (Anexo A). Os Estados Unidos continuaram liderando a classificao dos pases com o maior estoque de migrantes internacionais, passando de 9,7 milhes (11,9%), em 1970, para 35,0 milhes (20,0%) em 2000.

2.2 Amrica Latina e Caribe no cenrio dos fluxos internacionais

As migraes internacionais so parte fundamental da histria da Amrica Latina e Caribe. Mesmo antes da formao dos Estados Nacionais e da existncia de fronteiras polticas, os fluxos de pessoas na Regio j eram freqentes, especialmente entre localidades com identidades tnicas e vnculos

preestabelecidos (Pellegrino, 2003). Com a instituio de fronteiras pelos estados independentes, no sculo XIX, a circulao tradicional que ocorria na Amrica Latina e Caribe adquiriu carter formal de fluxo internacional (Patarra & Antico, 1998).

13 A histria das migraes internacionais na Amrica Latina e Caribe est diretamente ligada conjuntura econmica mundial. Como mencionado anteriormente, o regime colonial foi responsvel pelo influxo de milhes de europeus, e especialmente de escravos africanos, para o continente americano. Na segunda metade do sculo XIX, o forte crescimento da populao de alguns pases europeus, que vivenciavam as primeiras etapas da transio demogrfica, juntamente com a expanso da indstria e o desenvolvimento de novas tecnologias, tambm foram causadores da emigrao de milhares de europeus, principalmente do Sul da Europa, para a Amrica Latina e Caribe. No perodo entre guerras, esses fluxos diminuram e foram perdendo peso,

progressivamente, frente migrao intra-regional. Desde a dcada de 1930, alguns pases latino-americanos adotaram um projeto de crescimento econmico baseado no desenvolvimento da indstria nacional. Tal projeto foi intensificado durante a Segunda Guerra Mundial e exitoso at meados dos anos 1970, quando comeou a sentir os primeiros sinais de esgotamento. A partir do decnio de 1930 tambm se observa um crescimento acelerado da populao do subcontinente, graas queda das taxas de mortalidade, combinadas com estabilidade das taxas de fecundidade em nveis elevados. Concomitantemente esses acontecimentos, ocorreram grandes transformaes na distribuio territorial da populao, manifestos no xodo rural e na migrao intra-regional, principalmente fronteiria (Pellegrino, 2001). J nas ltimas dcadas do sculo XX, a regio latinoamericana e caribenha assistiu reverso das correntes migratrias extracontinentais. O subcontinente deixou de ser eminentemente receptor de populao estrangeira e passou a ser visto como expulsor de populao em direo aos pases desenvolvidos, especialmente para os Estados Unidos (Pellegrino, 2003). Villa & Matnez (2000) e Lattes & Lattes (1996), baseando-se nessas grandes tendncias dos movimentos populacionais na Amrica Latina e Caribe, fizeram um exerccio semelhante ao de Massey et al (1998) e Pellegrino (2002; 2003). Os autores identificaram trs padres gerais de migrao no subcontinente e tomaram como referncia a emigrao ultramarina (segunda metade do sculo XIX at a primeira metade do sculo XX) para a Regio.

14 Lattes & Lattes (1996) estimam que entre 1800 e 1970 a Amrica Latina e o Caribe receberam mais de 21 milhes de imigrantes ultramarinos. Grande parte deles originou-se da Espanha, Portugal Itlia e frica. Estima-se que s a Argentina recebeu cerca de 3 milhes de italianos. Durante o ltimo quarto do sculo XIX, a entrada de italianos, espanhis e portugueses na Argentina, Uruguai e Brasil se intensificou, assim como a imigrao de chineses para o Peru. Entre 1885 e 1894, a Argentina recebeu mais de 1,5 milho de imigrantes. De acordo com Brito (1995), o Brasil, durante a ltima dcada daquele sculo, acolheu cerca de 1,2 milho de pessoas. Entre 1901 e 1910, a Argentina foi destino de mais de 1,7 milho de imigrantes, com destaque para os italianos, os espanhis e os russos, nesta ordem. No perodo de 1901 at 1920, chegaram ao Brasil mais de 1,3 milho de pessoas, oriundas principalmente de Portugal. Nessa poca, Uruguai, Chile, Mxico e Cuba tambm receberam um grande volume de imigrantes europeus (Lattes, 1985). Para Brito (1995, p. 5), os fluxos internacionais que chegaram ao Brasil entre 1890 e 1929 foram comandados especialmente pelas polticas que subsidiavam a imigrao de mo-de-obra estrangeira e pela demanda da economia cafeeira em expanso para o oeste paulista. Com a Primeira Guerra Mundial, os fluxos ultramarinos para a Amrica Latina e Caribe, no quadrinio de 1915 a 1919, diminuram. Mas na dcada de 1920 assistiu-se recuperao de tais movimentos. S o Brasil, nesse decnio, acolheu mais de 840 mil imigrantes (portugueses, italianos, alemes, espanhis e japoneses) e a Argentina mais de 1,3 milho (italianos, espanhis, poloneses e alemes). Cuba e Mxico, no qadrinio 1920/1924, acolheram 224,5 mil e 176,6 mil imigrantes europeus, respectivamente. O saldo migratrio do Uruguai chegou a quase 170,0 mil, o maior volume em uma dcada, em toda a histria do pas. Conforme Lattes (1985), a dcada de 1930 e a primeira metade dos anos 1940 foram marcadas pela diminuio da imigrao de almmar. A crise de 1929 e a Segunda Grande Guerra foram os principais freios para os movimentos populacionais extra-regionais. Nesta fase, alguns fluxos intra-regionais ganharam destaque. Em 1935, com o fim da guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolvia, muitos desertores bolivianos se instalaram no noroeste da Argentina, em busca

15 de trabalho na agricultura. A demanda temporria por mo-de-obra boliviana perdurou na Argentina por mais de trinta anos e diminuiu com o advento da mecanizao agrcola (Castles & Miller, 1998). A Argentina tambm recebeu imigrantes oriundos do Paraguai, Chile e Uruguai. Tais imigrantes se dirigiram ao pas para trabalhar na agricultura, na manufatura, construo civil e no setor de servios. O perodo ps-guerra testemunhou o que seria a ltima onda de emigrao europia para os pases latinoamericanos e caribenhos. Entre 1941 e 1957, a Argentina acolheu mais de 800 mil imigrantes ultramarinos e o Brasil, no mesmo perodo, um montante superior a 400 mil. A Venezuela e o Uruguai tambm foram destinos preferenciais dos emigrantes europeus. Entre 1948 e 1956, o Uruguai recebeu 57,7 mil imigrantes da Europa, cuja maioria era originria da Espanha e Itlia. A Venezuela, por sua vez, no perodo 1950/1957 recebeu 487,8 mil europeus, sobressaindo-se os italianos e os espanhis. Lattes (1985) chama ateno para a possibilidade de subestimao dos valores apresentados em seu trabalho, em razo da omisso dos censos, dos subregistros de entradas e sadas e da inexatido das informaes. Por outro lado, o duplo registro de entradas (fluxos entre pases da regio) atua em sentido contrrio tal subestimao. Os anos 1960 presenciaram grandes mudanas nos cenrios econmicos e sociais dos pases latinoamericanos. Por um lado, a passagem de um modelo econmico, predominantemente agro-exportador, para um de substituio de importaes. Por outro, o rpido crescimento populacional de alguns pases, como conseqncia da transio demogrfica experimentada em algumas dcadas anteriores. Esses acontecimentos desencadearam uma massiva migrao interna (do campo para as cidades) e internacional transfronteiria (Brito, 1995; Kratochwil, 1996; Pellegrino, 2003). Nesse cenrio de transformaes, a migrao intra-regional ganhou espao e constituiu o que Villa & Matnez (2000) e Lattes & Lattes (1996) identificaram como o segundo padro na histria das migraes internacionais na Amrica Latina e Caribe. A migrao intra-regional nos pases latino-americanos e

16 caribenhos sempre esteve enraizada nas histricas disparidades econmicas e sociais entre os territrios da regio. A proximidade geogrfica e cultural facilita o trnsito das pessoas em direo aos pases cuja estrutura produtiva seja favorvel gerao de empregos (Villa & Matnez, 2000). A Venezuela recebeu muitos imigrantes latinoamericanos at os anos 1980. A indstria petrolfera, a agricultura, a construo civil e outras indstrias de diversos ramos atraram milhares de imigrantes intracontinentais, sobretudo colombianos, para o pas. Os colombianos tambm se dirigiram para o Panam1 e o Equador, pases fronteirios. importante destacar que fatores estruturais e poltico-sociais tambm exercem grande influncia sobre a deciso do migrante. Por exemplo, entre 1973 e 1984, o estoque de imigrantes nicaragenses e salvadorenhos aumentou

consideravelmente na Costa Rica. O cenrio de instabilidade poltico-social e o crescimento insuficiente da economia daqueles pases foram os grandes responsveis pela convergncia desses dois fluxos. Alm do mais, nesse mesmo perodo, o Mxico tornou-se um importante receptor de correntes migratrias provenientes da Guatemala e de El Salvador. Patarra & Baeninger (2001) tambm destacam a importncia crescente das trocas populacionais entre os pases da Amrica Latina e Caribe, principalmente a partir dos anos 1970. O estoque de latinoamericanos e caribenhos que viviam naquela Regio, mas fora de seus pases de nascimento, em 1970, era de 1.218.990 pessoas. Em 1980, esse estoque subiu para 1.995.149 migrantes e em 1990 atingiu o patamar de 2.242.268 pessoas. Argentina e Venezuela, em 1990, abrigavam quase dois teros dos latinoamericanos residentes no continente, fora dos seus pases de nascimento. A outra tera parte desse contingente estava distribuda em diversos outros pases. O estoque de migrantes latinoamericanos e caribenhos nos anos 1980 sofreu um incremento menor que no perodo anterior, fato relacionado crise econmica e reforma estrutural nos pases de destino.1

O Panam e a Colmbia constituam-se um nico Estado, at a ocupao do Canal pelos

Estados Unidos (Pellegrino, 2003).

17 Essa reforma foi caracterizada pela abertura econmica e pela gradual flexibilizao das relaes de trabalho. A base de dados do CELADE (2000) disponibiliza o estoque de imigrantes internacionais residentes nos pases da Amrica Latina e Caribe, por pas de nascimento e pelas datas dos censos de cada pas. Tais informaes fornecem um panorama geral da migrao internacional na Regio, mas preciso ter em mente que esses dados, embora obtidos nos censos nacionais dos pases latinoamericanos, possuem algumas limitaes. Em primeiro lugar, esto os subregistros, presentes principalmente em pases cuja proporo de imigrantes ilegais seja elevada. Em segundo lugar, esto as diferentes interpretaes, tais como, por exemplo, o conceito de residncia e de migrao. Ademais, nos questionrios dos censos nacionais nem sempre esto presentes as mesmas perguntas e a realizao de tais censos no obedece a um calendrio regular (Villa & Martnez, 2000). Outro ponto importante que os censos enumeram o estoque de populao residente no pas em um momento do tempo, ou seja, entram nesse clculo apenas os sobreviventes e as pessoas que no reemigraram antes da data do censo e no as migraes que ocorreram ao longo do tempo (Villa & Martnez, 2000). O terceiro padro caracteriza-se pela emigrao de latinoamericanos e caribenhos para diversos destinos, sobretudo para os Estados Unidos. De acordo com CEPAL (2004), cerca de 43,0% dos imigrantes internacionais residindo nos Estados Unidos em 2000 eram provenientes da Amrica Latina e Caribe, com destaque para os mexicanos, cubanos, dominicanos e salvadorenhos, nesta ordem. Apesar do aumento absoluto no nmero de imigrantes latinoamericanos e caribenhos residentes nos Estados Unidos, no perodo considerado, observa-se um arrefecimento das taxas de crescimento desse fluxo migratrio, de 9,3%, na dcada de 1970, para 5,5% ao ano, na dcada de 1990. A legislao migratria americana e a emigrao de latinoamericanos e caribenhos para outras regies de destino, como a Espanha, o Canad e o Japo, so algumas das explicaes para o decrscimo dessas taxas. Neste ltimo caso, alguns desses emigrantes constituram-se em efeitos indiretos da migrao de retorno de antigos imigrantes de ultramar e outros conseguiram a cidadania nos pases de origem de seus

18 antepassados, o que facilitou muito a entrada deles em outras localidades no exterior.

2.2.1 Migrao MERCOSUL

e

mobilidade

transfronteiria

nos

pases

do

Durante mais de 300 anos, a Amrica do Sul ficou dividida entre as colnias de Portugal, Espanha e outros pases europeus, que colonizaram uma pequena poro da Regio. Kratochwil (1996) afirma que desde o sculo XVIII j existia uma intensa circulao de pessoas entre os portos de Montevidu, Buenos Aires e suas reas adjacentes. A chegada de imigrantes ultramarinos na Regio, a partir do sculo XIX, ao invs de intensificar tal circulao, instaurou um novo circuito de mobilidade. Os novos imigrantes passaram a transitar entre a Argentina, o Uruguai, o Brasil e o Paraguai, seguindo o padro das misses jesutas. O autor acrescenta que a circulao de pessoas dentro desse novo circuito respondia ao mercado laboral, produo agroindustrial e agrcola, ao comrcio e outros servios, a laos tnicos, familiares e culturais. Os movimentos migratrios entre esses quatro pases no eram considerados migrao internacional, com exceo dos movimentos que cruzavam a fronteira brasileira. Com o estabelecimento de fronteiras nacionais, pelos estados independentes, no sculo XIX, a circulao tradicional que ocorria no corao territorial do atual MERCOSUL2 adquiriu carter formal de transfronteiria. Apesar das profundas diferenas sociais e econmicas que permeiam os pases que compem o MERCOSUL, a contigidade geogrfica e a proximidade histrica e cultural dos Estados membros facilitam os fluxos migratrios entre os pases. As diferentes oportunidades nos pases de origem e destino, as condies macroeconmicas e o tamanho e alcance das redes sociais so fatores decisivos para a intensificao das migraes dentro do Bloco. Soma-se a isso o importante

2

O Tratado Comercial do MERCOSUL surgiu da aproximao geopoltica do Brasil e Argentina e de acordos bilaterais de integrao econmica, os quais se deram com o fim das ditaduras militares nos dois pases. Inaugurado em 1991, este Tratado incide sobre um grupo de pases do Cone Sul da Amrica Latina (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, com adeso posterior de Chile e Bolvia) (Patarra, 2007).

19 papel do mercado de terras e a internacionalizao do mercado de trabalho (Brito, 1995). Grande parte da emigrao de brasileiros com destino aos demais pases do Cone Sul significou, na verdade, uma contrapartida das polticas agrcolas governamentais do Brasil durante as dcadas de 1970 e 1980, como ilustra Sales (1996). As polticas agrrias desenvolvidas pelos governos do Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina, ao longo desse perodo, tinham o objetivo de reforma agrria ou simplesmente de democratizar o acesso terra e apoiar a pequena produo na agricultura. Entretanto, tais polticas acarretaram efeitos indiretos perversos, como o desenvolvimento de um mercado de terras agrcolas e a entrada de grandes grupos e empresas na agricultura brasileira, valorizando as terras e deixando de fora a pequena produo familiar. Com base nos dados apresentados na TAB. 2, verifica-se que o estoque de brasileiros na Argentina sofreu um decremento mdio de 1,3% ao ano, entre 1970 e 1980, e que, no decnio 1980/1990, essa queda foi ainda maior (-2,3% a.a.). O nmero de brasileiros no Uruguai tambm diminuiu entre 1975 e 1995: de um total de 14.315 brasileiros para 13.521.

20 Tabela 2- Estoque de imigrantes internacionais intra-regionais nos pases do Mercosul, segundo pas de nascimento do imigrante, 1970-1995Pas de residncia Argentina Bolvia Brasil Chile Paraguai Uruguai Total Pas de residncia Argentina Brasil Chile Paraguai Uruguai Total Pas de residncia Argentina Bolvia Brasil Chile Paraguai Uruguai TotalFonte: CELADE (2000).

Ano 1970 1974 1970 1970 1972 1975 Ano 1980 1980 1982 1982 1985 Ano 1991 1992 1991 1992 1992 1995

Argentina 14.669 17.213 13.270 27.389 19.051 91592 Argentina 26.633 19.733 43.670 19.669 109.705 Argentina 17.829 25.468 34.415 47.846 26.256 151.814

Bolvia 101.000 10.712 7.563 364 247 119886 Bolvia 115.616 12.980 6.298 500 211 135.605 Bolvia 143.735 15.691 7.729 766 376 168.297

Pas de nascimento Brasil Chile 48.195 142.150 8.492 7.508 1.900 930 34.276 359 14.315 1.006 106208 152923 Pas de nascimento Brasil Chile 42.134 207.176 17.830 2.076 98.730 1.560 12.332 1.439 155.272 228.005 Pas de nascimento Brasil Chile 33.543 218.217 8.586 3.909 20.437 4.610 107.452 2.264 13.521 1.726 167.712 246.553

Paraguai 230.050 972 20.025 290 1.593 252930 Paraguai 259.449 17.560 284 1.421 278.714 Paraguai 251.130 683 19.018 683 1.512 273.026

Uruguai 58.300 193 13.582 759 ... 72834 Uruguai 109.724 21.238 989 2.310 134.261 Uruguai 133.653 327 22.143 1.599 3.029 160.751

Sales (1996) distinguiu dois tipos diferentes de emigrao de brasileiros para a Argentina e o Uruguai. O primeiro tipo seria a emigrao de proprietrios rurais ou empresrios agrcolas (grandes proprietrios e pequenos produtores familiares) que compram terras mais baratas para produzir ou simplesmente especular. O segundo tipo de migrao seria caracterizado pela presena de trabalhadores brasileiros em carter temporrio e clandestino, que buscam condies de subsistncia nas terras desses proprietrios e empresrios. No caso do Paraguai, de acordo com essa mesma autora, a poltica explcita de ocupao da fronteira leste paraguaia por camponeses paraguaios (por meio da criao do programa Marcha para o Leste) e a ausncia de leis que regulassem a venda de propriedades aos estrangeiros na regio de fronteira contriburam para a entrada de imigrantes internacionais provenientes dos pases vizinhos, sobretudo brasileiros.

21 Com base em CELADE (2000), observa-se que, em 1970, o estoque de imigrantes paraguaios na Argentina era de 230.050 pessoas e que, no decnio de 1970/1980, esse volume cresceu num ritmo de 1,2% ao ano, superando os 250 mil imigrantes paraguaios, residindo no pas em 1980. Por sua vez, a taxa de crescimento do estoque de argentinos residentes no Paraguai, no mesmo perodo, foi quase quatro vezes superior taxa de crescimento dos paraguaios na Argentina: de um estoque total de 27.389 pessoas, em 1972, passou para 43.670 indivduos, em 1982 (TAB. 2). As diferentes trajetrias econmicas da Argentina e do Paraguai podem explicar o incremento no estoque de argentinos no Paraguai e, sobretudo, de paraguaios na Argentina, nos perodos considerados. Entre 1950 e 1974, Paraguai e Argentina se tornaram pases economicamente integrados. A economia paraguaia era movida, exclusivamente, pela explorao de recursos naturais, principalmente da pecuria de corte e da silvicultura. Alm disso, durante esse perodo, o Paraguai era um importante fornecedor de matrias-primas para a Argentina e esta, de produtos manufaturados para o Paraguai (Parrado & Cerrutti, 2003). Apesar de o estoque oficial de brasileiros no Paraguai ser bem menor que o de paraguaios na Argentina, como mostra CELADE (2000), a taxa de crescimento do volume de brasileiros naquele pas sofreu um expressivo incremento no decnio 1972/1982: de um total de 34.276 imigrantes, em 1972, para 98.730 pessoas, em 1982, com um crescimento mdio anual de 10,6% (TAB. 2). Esse incremento foi resultado de diversos fatores, como, por exemplo, das transformaes na estrutura produtiva brasileira e da aproximao poltica e militar dos governos do Brasil e Paraguai. As informaes de CELADE (2000), como mencionado acima, fornecem uma viso ampla das migraes internacionais na Amrica Latina e Caribe, mas possuem algumas limitaes. De fato, alm das restries citadas anteriormente, com base nessas informaes no possvel identificar outros movimentos populacionais, tais como os que no envolvem mudana de residncia. Tal limitao representa um obstculo na etapa de crescente abertura econmica internacional e de integrao de mercados (Villa & Martnez, 2000).

22 No mbito da mobilidade populacional internacional, alm da migrao tradicional, esto em curso novas modalidades de deslocamento que no implicam mudana de residncia. No caso dos pases europeus, esse fenmeno foi acentuado com a formao da Unio Europia (UE). No que diz respeito aos pases

latinoamericanos e caribenhos deve-se destacar a ALADI, o CARICOM, o Pacto Andino, numerosos acordos bilaterais e o MERCOSUL. A crescente abertura das economias nacionais e o desenvolvimento de tecnologias ligadas aos transportes e s comunicaes, que diminui as barreiras fsicas e culturais, tm contribudo para o crescimento dos deslocamentos populacionais internacionais. Tais deslocamentos podem ser circulatrios e de outras naturezas, como os movimentos peridicos dos brasiguaios que cruzam as fronteiras entre o Paraguai e o Brasil. As regies de fronteira nacionais constituem espaos regionais especficos. Elas possuem dinmicas prprias e criam reas que se complementam por meio do intenso fluxo de capitais, pessoas, bens e servios. Essas comunidades, como destaca Farret (1997), ao operarem com o conceito de fronteira como contato, ao invs do conceito de limite, geram entre si processos interativos em reas onde convive uma diversidade de fatores geogrficos, econmicos, sociais e de conflitos, prprios de regies transfronteirias. Nesses cenrios de fronteiras, muitos estudiosos analisam as novas formas de mobilidade espacial da populao que, como sero exemplificadas a seguir, diferentemente dos movimentos migratrios, no envolvem mudana de residncia. Marques (2007), com base numa pesquisa de campo, observou a circulao de pessoas nas fronteiras da Bolvia e do Paraguai com Mato Grosso do Sul (Brasil). A autora destaca o comrcio intenso na fronteira das cidades de Pedro Juan Cabalero, no Paraguai, e em Ponta-Por, no Brasil. A fronteira entre esses municpios se constitui uma fronteira seca, isto , no possui um componente fsico-geogrfico como definidor. Na regio de fronteira com o Paraguai, o municpio de Porto Murtinho, no Mato Grosso do Sul, foi visitado. Marques (2007) constatou, com base no sotaque dos moradores da cidade, a forte influncia cultural paraguaia. Ela menciona tambm a utilizao de servios brasileiros de sade e educao, na cidade de Corumb, por parte dos habitantes das cidades

23 bolivianas de Quijarro e Puerto Suarez. Alm disso, Marques ressalta a mobilidade dos trabalhadores bolivianos em direo ao Brasil, para trabalharem no comrcio e em feiras de artesanato, e a mobilidade de mo-de-obra especializada brasileira para a Bolvia. Souchaud & Carmo (2006) descrevem as diferentes modalidades da mobilidade populacional e da migrao internacional na regio de fronteira internacional que abrange o estado do Mato Grosso do Sul, no Brasil, o Departamento de Santa Cruz, na Bolvia, e a regio do Chaco, no Paraguai. Para isso, os autores criaram tipologias para as migraes que ocorrem nessa regio, com base na noo de fronteira. Os quatro tipos foram: o fronteirio de vizinhana recproca, o fronteirio unilateral, o urbano diversificado e o metropolitano exclusivo. no primeiro tipo de migrao, como denominado por Souchaud & Carmo (2006), que possvel identificar a mobilidade e circulao de pessoas na regio analisada. A regio imediata fronteira internacional procurada pelos migrantes internacionais que buscam vantagens no mercado de trabalho, na rea de sade e educao. Essa migrao em grande parte urbana ou procura a proximidade de centros urbanos importantes. Os municpios de Campo Grande e Santa Cruz de la Sierra podem ser considerados, nesta perspectiva, centros importantes, localizados no extremo desses espaos. Cidades como Ciudad Del Este, Pedro Juan Caballero, Corumb e Puerto Surez podem ser classificadas como cidades intermedirias, que combinam a proximidade geogrfica da fronteira e a relevncia demogrfica (Souchaud & Carmo, 2006). Na fronteira do Brasil com a Colmbia, no mbito do Projeto Binacional de Cooperao Fronteiria, as cidades gmeas de Tabatinga, no Brasil, e Letcia, na Colmbia, possuem projetos de cooperao que abrangem uma rea maior que a dos dois municpios. No entanto, de acordo com Farret (1997), esses projetos de cooperao so carregados de incgnitas em relao a alguns pontos especficos. Um deles sobre o tamanho da demanda por bens e servios privados, e, sobretudo pblicos, que so utilizados indistintamente pela populao dos dois lados da fronteira. Incluem-se a a sade, o comrcio, o lazer e a educao.

24 Goettert & Dutra (2007) investigaram os aspectos que perpassam a mobilidade de trabalhadoras e trabalhadores de Ponta Por, no Brasil, para Pedro Juan Caballero, no Paraguai. Para isso, focaram seu trabalho nos movimentos da mode-obra brasileira que cruza diariamente a fronteira nacional para trabalhar no Paraguai em atividades comerciais de produtos, tais como eletrnicos, brinquedos, bebidas, cigarros e telefonia. Para os autores, as relaes cotidianas, vividas pela populao da fronteira, num espao separado apenas por uma avenida (cidades gmeas), so relaes complexas de semelhanas e diferenas sociais, econmicas, polticas e culturais. O cidado fronteirio se beneficia de um ambiente trans-cultural, caracterstico de um ambiente transnacional. Burgos (1996) realizou um trabalho de campo nas cidades fronteirias de Alberti, no Paraguai, e Formosa, na Argentina. O objetivo de seu trabalho foi investigar as situaes sociais, ocupacionais e as especificidades da conduta reprodutiva das mulheres que viviam naquelas localidades. As caractersticas do contexto social e econmico dos familiares dessas mulheres, assim como da zona de fronteira considerada, foram inseridas na anlise. A autora constatou que mais de 65,0% das mulheres inquiridas, residentes em Formosa, cruzavam a fronteira em direo a Alberti para trabalhar. Do total dos entrevistados residentes em Alberti, aproximadamente 37,0% das mulheres e 60,0% dos homens declararam atravessar a fronteira todos os dias, fato justificado por eles pela atividade econmica que desempenhavam. Mais de um quarto dos indivduos que afirmaram fazer o movimento diariamente, inclusive mais de uma vez ao dia, eram paseros, isto , atravessadores de mercadorias de Alberti para Formosa. Entre o restante das pessoas que informaram cruzar a fronteira cotidianamente estavam tambm empregados, trabalhadores temporrios e pedreiros, pessoas que realizavam atividades profissionais diversas e indivduos que declararam buscar atendimento de sade. Do total de mulheres inquiridas, cerca de 34,0% alegaram cruzar a fronteira sempre que necessitavam, sem periodicidade, 7,5% uma vez ao ms e 9,0% uma vez por semana. Por outro lado, apenas 16,0% dos homens entrevistados responderam atravessar de Alberti para Formosa sempre que precisavam, 13,6% semanalmente e 2,5% uma vez ao ms. Entre os indivduos que afirmaram atravessar a fronteira com menor freqncia, isto , quando necessrio, estavam os trabalhadores informais e os docentes.

25 As cidades fronteirias de Alberti, no Paraguai, e Formosa, na Argentina, tambm foram alvo da pesquisa de Palau (1995b). O propsito do autor era conhecer a populao residente em ambos os municpios e suas caractersticas

sociodemogrficas, suas condies de residncia, os motivos e a freqncia dos deslocamentos transfronteirios, assim como a relao entre o perfil ocupacional e a renda. Palau (1995b) verificou, em sua pesquisa, que as oportunidades educacionais, de sade, de moradia e demais servios eram maiores na cidade de Formosa e que as mulheres argentinas procuravam trabalho em Alberti, apesar de suas desvantagens monetrias. Entre os moradores que residiam em Alberti, h dez anos ou mais, 60,0% cruzavam a fronteira nacional diariamente e apenas 32,0% dos residentes, h menos de dez anos no municpio, faziam o mesmo. O autor no conseguiu identificar uma relao clara entre as ocupaes dos

entrevistados, residentes em Alberti, e a freqncia das travessias, exceto para os paseros que, por causa da natureza de suas atividades, atravessavam a fronteira diariamente, alguns mais de uma vez ao dia. Os docentes, empregados e trabalhadores independentes declararam cruzar a fronteira ocasionalmente, apenas quando necessrio, e os trabalhadores da construo civil e diaristas erraticamente, pois dependiam da demanda no mercado de trabalho em Formosa. Palau (1995b) acredita que exista uma forte associao entre o nmero de vezes que as pessoas cruzam a fronteira com a periodicidade com que recebem seus salrios. Por exemplo, os paseros e os diaristas, como recebem por dia de trabalho, so as pessoas que mais atravessam a fronteira. Por outro lado, os indivduos que recebem o salrio mensalmente so os que transitam na fronteira apenas quando necessrio. O trnsito dirio de crianas residentes no Paraguai em direo ao Brasil foi constatado no estudo de Pereira (2002), que investigou a diversidade cultural e educacional na fronteira entre esses dois pases, mais especificamente na cidade brasileira de Ponta Por. Pereira (2002) desenvolveu dois projetos de pesquisa cujos temas explorados foram a escolarizao e a problemtica lingstica cultural dos migrantes. Ela identificou na fronteira a presena das nacionalidades japonesa, coreana, chinesa, libanesa, vietnamita, chilena e paraguaia que, com

26 freqncia, optam em estudar no lado brasileiro. Tal fato justificado pela assistncia oferecida, por parte das escolas brasileiras, s famlias de baixa renda. A oferta de merenda escolar, materiais didticos, no obrigatoriedade do uniforme, atendimento oftalmolgico e odontolgico atraem para o Brasil as famlias fronteirias residentes no Paraguai (Pereira, 2002). Sprandel (1992) estudou o retorno dos brasiguaios ao Brasil, em 1985/86, que foram beneficiados pelo Plano Nacional de Reforma Agrria (PNRA) da Nova Repblica. A autora, j na dcada de 1990, havia identificado deslocamentos circulatrios realizados pelos brasiguaios na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. Muitos dos pequenos produtores rurais que obtiveram uma parcela rural em assentamentos, criados teoricamente para fix-los em territrio brasileiro, retornavam sazonalmente para o Paraguai para trabalhar na colheita. As motivaes para esses deslocamentos sazonais esto relacionadas falta de assistncia tcnica e creditcia por parte do governo brasileiro. Ademais, os grupos familiares que transitam pela fronteira internacional dos dois pases desenvolveram estratgias de fixao em territrio paraguaio por meio da legalizao de sua condio de imigrantes ou estrangeiros. Entretanto, quando ameaados na garantia de suas propriedades, acionam a identidade brasiguaia e reivindicam a interveno do governo brasileiro para a resoluo de seus problemas (Sprandel, 1992, p. 405). Salim (1995), ao apresentar os antecedentes histricos da migrao dos brasiguaios para o Paraguai, destacou que o crescimento demogrfico da regio leste daquele pas teve contribuio notvel da migrao. Inicialmente, com a predominncia dos migrantes nacionais, e posteriormente, com os internacionais fronteirios. Esta regio conheceu elevadas taxas anuais de crescimento intercencitrias de sua populao, de 8,0%, 14,3% e 13,2%, para os perodos de 1950-62, 1962-72 e 1972-82, respectivamente. A populao do departamento de Alto Paran, em 1962, era de 24.067 pessoas e passou, 20 anos depois, para 192.518 habitantes. Desses, 91,0% eram brasileiros. Para Salim (1995), a criao do Mercosul poder agravar a situao dos trabalhadores rurais que se movimentam no espao regional, assim como favorecer os grandes latifundirios, ao tornar mais competitivo o mercado de produtos agropecurios.

27 A importncia dos movimentos transfronteirios, de curtas durao e distncia, entre os municpios localizados ao longo da fronteira do Brasil com o Paraguai mencionada por Palau (1995a). O autor cita vrios fluxos existentes entre municpios dos dois pases, alm do mosaico heterogneo formado pelos comerciantes estabelecidos, estudantes e consumidores, contrabandistas,

transportadores, estivadores, vendedores ambulantes e profissionais que transitam em ambos os lados da fronteira.

Santa Brbara (2001) abordou o jogo de identidades travado entre brasileiros e paraguaios e o processo de reordenamento territorial que tem caracterizado a imigrao de brasileiros para o Paraguai. O autor citou a mobilidade espacial dos emigrantes brasileiros que vivem na fronteira do Paraguai com o Brasil. Em seu trabalho de campo, o autor visitou os distritos paraguaios de San Alberto, localizado no norte do departamento do Alto Paran, e La Paloma, situado no departamento Canindey. Chegando em Ciudad del Este para tomar o nibus em direo a San Alberto, o autor relatou que, com ele, no mesmo nibus, estavam somente um casal de jovens paraguaios e um rapaz. Contudo, descobriu que durante o percurso havia um tipo de parada obrigatria, no quilmetro quatro da rodovia, onde embarcam os brasileiros vindos de Foz do Iguau. Naquele local costumam passar nibus circulares originrios do Brasil, no passando pela rodoviria de Ciudad del Este. Ainda segundo Santa Brbara, baseado em suas observaes em campo, o trnsito na Ponte da Amizade, principal via de acesso entre o Brasil e o Paraguai, era lento e bastante confuso. Ciudad del Este possui uma grande dinmica comercial. A divisa entre Foz do Iguau e Ciudad del Este constitui um corredor de constante circulao de pessoas, mercadorias e negcios, por onde se entrecruzam redes legais e ilegais. Santa Brbara (2001) tambm ressaltou que algumas cidades do Paraguai abrasileirado da soja comearam a articular uma rede urbana bastante vinculada aos centros urbanos no sul do Brasil. As classes sociais dominantes, localizadas em toda a fronteira leste do Paraguai, especialmente no departamento de Alto Paran, so formadas por grandes produtores de soja, donos de madeireiras e comerciantes bem sucedidos que, em sua maioria, so sulistas brasileiros que realizam freqentes movimentos transfronteirios entre o Brasil e o Paraguai.

28 Essa classe social dominante encontra-se inserida nos circuitos dos negcios, da poltica e do lazer e mantm estreitos laos com suas reas de origem no Brasil. O autor menciona, ainda, as questes referentes manuteno da cidadania brasileira; as deficincias crnicas em sade e educao, que estimulam muitos brasileiros, residentes no Paraguai, a procurarem atendimento mdico e escolas no Brasil; e o trnsito de brasileiros, em ambos os sentidos, para visitar seus parentes e para votarem em candidatos polticos. A existncia de movimentos circulares na regio de fronteira entre o Brasil e o Paraguai aludida tambm por Albuquerque (2005). O autor investigou a disputa de identidades e as representaes nacionais que so construdas pelos imigrantes brasileiros e pelos paraguaios, no contexto dos conflitos pela propriedade da terra e pela defesa do meio ambiente e do territrio nacional, no incio do sculo XXI. Albuquerque fez referncias s estratgias dos imigrantes brasileiros que vivem na ampla faixa de fronteira entre os dois pases, para a efetivao e negao de uma dupla cidadania. Por exemplo, muitos imigrantes brasileiros registram seus filhos nos dois pases, independentemente de acordo diplomtico, com o objetivo de receberem atendimento mdico no Brasil, de diminuir a burocracia quando quiserem visitar seus parentes, no lado brasileiro, e de aumentar as oportunidades de estudo em colgios e universidades brasileiras. O exerccio do direito poltico tambm faz parte de um jogo de estratgia dos imigrantes brasileiros. Atualmente, eles podem votar nos candidatos do Brasil, sobretudo para presidente, mesmo quando moram h anos no exterior. Quando regularizados, podem votar tambm para prefeitos e vereadores no Paraguai.Esse duplo exerccio do direito poltico facilitado pela prpria distncia territorial. Os brasileiros simplesmente atravessam a fronteira e votam nas cidades prximas ao limite internacional. Se houver coincidncia de votao nos dois pases, podem votar pela manh no Paraguai e tarde no Brasil, ou vice-versa. Os mecanismos tradicionais da poltica brasileira tambm se fortalecem no perodo de caa aos votos daqueles que vivem do outro lado da fronteira. Em dia de eleio no Brasil, os polticos brasileiros contratam carros, nibus e caminhes para buscarem os eleitores que vivem no pas vizinho. Alguns vereadores e deputados brasileiros, principalmente da cidade de Foz do Iguau e do estado do Paran, se elegem com os votos dos brasiguaios (Albuquerque, 2005, p. 208).

29 As prticas polticas dos migrantes incluem uma variedade de atividades. Entre elas est a participao como eleitores nos dois pases (Levitt & Jaworsky, 2007). Esse duplo exerccio da cidadania fortalece a idia de um espao transnacional e, dentro dele, de uma comunidade transnacional brasiguaia, como ser explicitado posteriormente. Alm do duplo registro de nascimentos e do exerccio dos direitos polticos, no Brasil e no Paraguai, a obteno de aposentadorias e a contratao de mo-deobra brasileira tambm fazem parte do jogo estratgico dos imigrantes nos dois pases. Pelo fato de existir aposentadorias no Paraguai somente para militares e funcionrios do governo, os imigrantes brasileiros se cadastram no Brasil e utilizam endereos de parentes, j que o benefcio s pago para aqueles que residem no pas. Assim, nem que seja apenas uma vez por ms, os imigrantes aposentados cruzam as fronteiras do Paraguai para receberem seus benefcios no Brasil. Muitos empresrios agrcolas, madeireiros e comerciantes brasileiros que vivem no Paraguai contratam trabalhadores brasileiros e no pagam seus direitos trabalhistas, uma vez que a legislao brasileira s funciona em seu territrio. Nesse mercado informal, as redes de relaes pessoais funcionam como elos entre os patres e os empregados. Os primeiros, quando necessitam de mo-de-obra, muitas vezes contratam parentes pobres ou conhecidos que vivem no Paraguai ou no Brasil (Albuquerque, 2005). Conforme as informaes de Sprandel (1992), Palau (1995a), Santa Brbara (2001), Pereira (2002), Albuquerque (2005), Dutra & Goettert (2007) e Marques (2007), diferentes movimentos populacionais, que no envolvem mudana de residncia, ocorrem na fronteira do Brasil e Paraguai. Alm disso, como visto em Sprandel (1992), Palau (1995a), Santa Brbara (2001), Pereira (2002) e Albuquerque (2005) essa mobilidade fronteiria que ocorre entre os dois pases acontece nos dois sentidos, isto , tanto em direo ao Brasil quanto em direo ao Paraguai. Os principais aspectos da dinmica migratria internacional na regio de fronteira entre o Brasil e o Paraguai residem, hoje, no incio do sculo XXI, muito mais em suas peculiaridades, tais como as motivaes, a intensidade, a temporalidade e o impacto, do que no volume de indivduos envolvidos nesses deslocamentos. No

30 contexto desses movimentos transfronteirios de populao, sejam eles migratrios, circulatrios, temporrios ou pendulares, um aspecto que deve ser levado em conta a redefinio dos conceitos relativos ao fenmeno da migrao, j que com o MERCOSUL a tendncia de tais movimentos aumentar. Para focalizar essa questo, no prximo captulo so sintetizadas as principais proposies tericas que visam explicar os fluxos migratrios internacionais.

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3 MIGRAES INTERNACIONAIS CONTEMPORNEAS: PERSPECTIVAS TERICAS DA ORIGEM E PERPETUAO DOS FLUXOS

Como apresentado no Captulo 2, a histria das migraes internacionais pode ser analiticamente dividida em perodos, conforme condies histricas

especficas que modelaram um contexto particular da economia, da demografia, da poltica e da sociedade mundial. Baseando-se nesses diferentes cenrios de periodizao, foram propostas teorias na tentativa de explicar o fenmeno migratrio em seus respectivos contextos. O objetivo deste captulo apresentar, de maneira sucinta, as diferentes teorias das migraes internacionais. De um lado, as abordagens tericas que tentam explicar as causas dos fluxos, e de outro, as que procuram justificar a continuidade e permanncia dos movimentos populacionais internacionais. Maior ateno dada teoria dos sistemas de migrao.

3.1 A emergncia dos fluxos migratrios internacionais

De acordo com teoria da atrao e expulso (Raventein, 1980), as condies econmicas, sociais e polticas de um pas tendem a atrair populao ou a expuls-la. Dentre os fatores de expulso esto o elevado crescimento populacional (excedente de mo-de-obra que no absorvido pelo mercado de trabalho local), a falta de oportunidades econmicas, a desigualdade de renda, represso poltica e social (que leva violao dos direitos humanos) e a pobreza (Castles & Miller, 1998; Soares, 2002). Os fatores de atrao so, por exemplo, a demanda por trabalho, disponibilidade de terras, boas oportunidades econmicas e liberdade poltica. O desequilbrio entre oferta e demanda de trabalho entre os pases de origem e destino considerado pelos macroeconomistas neoclssicos (Todaro, 1980) como o motor dos fluxos migratrios internos e internacionais. Pases com

32 elevada oferta de mo-de-obra, em relao ao capital, possuem um baixo salrio de equilbrio, ao passo que pases abundantes em capital, em relao quantidade de trabalhadores, tm um elevado salrio de equilbrio. Esse diferencial salarial ento responsvel pela emigrao de trabalhadores do primeiro grupo de pases (pases com excessiva oferta de mo-de-obra) para o segundo grupo (pases com limitada fora de trabalho em relao ao capital). A entrada de tais trabalhadores no segundo grupo de pases fora a queda nos salrios e gera um novo equilbrio internacional. Em contrapartida, no primeiro conjunto de pases, os salrios sobem e atinge-se o mesmo equilbrio. Alcanado este equilbrio internacional de salrios, os fluxos migratrios internacionais no deveriam mais existir (Massey et al, 1993). Nessa perspectiva, o mercado de trabalho o mecanismo primrio pelo qual a migrao de mo-de-obra induzida. Trabalhadores altamente qualificados percorrem o circuito migratrio internacional no sentido contrrio dos

trabalhadores desqualificados ou com baixa qualificao. A relativa escassez de capital nos pases pobres produz uma taxa salarial de retorno elevada para os padres internacionais, o que atrai investimentos. Nos fluxos de capital dos pases ricos para os pobres est includo capital humano, ou seja, mo-de-obra qualificada que almeja retornos elevados. Conforme esta teoria, a nica maneira de o governo controlar os fluxos migratrios regular ou influenciar, de alguma forma, os mercados de trabalho nos pases de origem e destino. Para os microeconomistas neoclssicos (Todaro, 1980), as pessoas so consideradas seres racionais e decidem migrar por esperar retornos positivos, geralmente monetrios, do movimento. As caractersticas individuais (capital humano) que incrementam a probabilidade do migrante de ser mais bem remunerado ou aumentam a probabilidade de emprego no pas de destino, em relao ao pas de origem, impulsionam os movimentos internacionais. Nesse sentido, os migrantes potenciais estimam os custos e benefcios de imigrarem para diversos pases e escolhem a localidade onde as futuras chances de retornos sero maiores (Borjas, 1990, citado por Massey et al, 1993). Na estimao dos retornos potenciais desses possveis migrantes, entram fatores tais como a probabilidade de conseguir emprego no pas de destino, de alcanar

33 os ganhos almejados e o salrio esperado no pas de origem (ganhos observados, multiplicados pela probabilidade de se conseguir um emprego). Para os imigrantes ilegais, a probabilidade de deportao tambm entra na equao. A queda nos custos da migrao, ocasionada pelo desenvolvimento dos meios de comunicao e transporte, as caractersticas individuais (por exemplo, a educao, experincia e o conhecimento de lnguas estrangeiras) e as condies sociais tambm so fatores que incentivam os indivduos a emigrar, pois aumentam o retorno esperado com a mudana de residncia (Massey et al, 1993). Assim como os macroeconomistas neoclssicos, esses tericos acreditam que os movimentos internacionais no ocorrem na ausncia de diferenciais salariais e/ou de taxas de emprego entre os pases de origem e destino. A migrao internacional ocorrer apenas at que os ganhos esperados sejam equilibrados internacionalmente. As aes governamentais tm o poder de controlar os movimentos populacionais, mediante polticas que afetem os ganhos nos pases de origem e de destino. Tais polticas podem, por exemplo, diminuir a probabilidade de se conseguir emprego na regio de destino ou elevar os retornos na origem. Diferentemente da corrente macroeconmica, os microeconomistas neoclssicos no consideram a situao de pleno emprego. Para os novos economistas da migrao, as decises de migrar no so tomadas isoladamente pelo indivduo, mas sim por unidades de produo e consumo. As famlias ou domiclios buscam no apenas maximizar a renda, mas tambm minimizar os riscos e driblar as ameaas associadas s falhas de mercado. como se as famlias ou domiclios estivessem em posio de controlar os riscos do bem-estar econmico da unidade, diversificando a alocao de seus membros em diferentes localidades (Massey et al, 1993). Esses tericos acreditam que os domiclios enviam seus membros para trabalharem no exterior no apenas para incrementar a renda absoluta, mas tambm para elevar a renda relativa, quando comparada aos retornos de outros domiclios do seu grupo de referncia. Diferentemente dos neoclssicos, para os novos economistas da migrao a diversidade das fontes de renda importante, mesmo que no aumente necessariamente o total da renda familiar ou domiciliar. As unidades de anlise

34 no so os indivduos e sim as famlias e domiclios e o diferencial salarial entre pases e regies no condio necessria para que ocorram os fluxos internacionais de pessoas. Os mercados de trabalho na origem e no destino no so mutuamente excludentes. As famlias e domiclios podem combinar as fontes de renda, sejam elas nacionais ou internacionais. A diminuio das diferenas no desenvolvimento econmico entre as regies de origem e destino no necessariamente reduz as presses para a migrao internacional. Os governos influenciam as taxas de migrao via polticas de assistncia social, como, por exemplo, aumentando o v