deleuze - essencial

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QUARTA-FEIRA, 3 DE MARÇO DE 2010 A dobra Deleuze-Foucault por Catarina Pombo Nabais in Cascais, António; Câmara Leme, José Luis e Nabais, Nuno (orgs.), Lei, Segurança e Disciplina. Trinta anos depois de Vigiar e Punir de Michel Foucault, Lisboa, CFCUL - Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, col. Documenta n. 3, 2009, pp. 71-111. § 1. Deleuze leitor de Foucault Tornou-se um cliché considerar as leituras que Deleuze faz de outros pensadores como puras projecções das suas próprias teses. E, de facto, é difícil ler, por exemplo, os seus livros sobre Hume, Nietzsche e Kant sem sublinhar aí as primeiras formulações da versão deleuziana do programa do empirismo transcendental. O modo como Deleuze destaca uma dimensão transcendental na teoria da imaginação de Hume, ou como faz aparecer a antropologia política da Genealogia da Moral de Nietzsche sobre um fundo de uma teoria kantiana da génese das faculdades, deixa bem perceber este método de leitura em espelho, onde cada conceito do complicado léxico filosófico do deleuzianismo se vai desenhando segundo um regime de parasitagem, de vampirização dos universos teóricos visitados. Em sentido inverso, há uma imensa rede de conceitos e de decisões teóricas de Deleuze cuja verdade não se deixa determinar sem retornar às imagens dos autores lidos. Sempre que se tenta explicar as teses mais singulares de Deleuze, como aquelas sobre o plano de imanência, o virtual, as sínteses do tempo, a univocidade do ser, é-se imediatamente forçado a cair nestes abismos que são “o Bergson” de Deleuze ou “o Espinosa” de Deleuze, ou melhor, nesta mise en abîme do método deleuziano de “contar um livro da filosofia passada como se fosse um livro imaginário e fingido”[1].

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QUARTA-FEIRA, 3 DE MARO DE 2010A dobra Deleuze-Foucaultpor Catarina Pombo Nabais in Cascais, Antnio; Cmara Leme, Jos Luis e Nabais, Nuno (orgs.), Lei, Segurana e Disciplina. Trinta anos depois de Vigiar e Punir de Michel Foucault, Lisboa, CFCUL - Centro de Filosofia das Cincias da Universidade de Lisboa, col. Documenta n. 3, 2009, pp. 71-111.

1. Deleuze leitor de Foucault

Tornou-se um clich considerar as leituras que Deleuze faz de outros pensadores como puras projeces das suas prprias teses. E, de facto, difcil ler, por exemplo, os seus livros sobre Hume, Nietzsche e Kant sem sublinhar a as primeiras formulaes da verso deleuziana do programa do empirismo transcendental. O modo como Deleuze destaca uma dimenso transcendental na teoria da imaginao de Hume, ou como faz aparecer a antropologia poltica da Genealogia da Moral de Nietzsche sobre um fundo de uma teoria kantiana da gnese das faculdades, deixa bem perceber este mtodo de leitura em espelho, onde cada conceito do complicado lxico filosfico do deleuzianismo se vai desenhando segundo um regime de parasitagem, de vampirizao dos universos tericos visitados. Em sentido inverso, h uma imensa rede de conceitos e de decises tericas de Deleuze cuja verdade no se deixa determinar sem retornar s imagens dos autores lidos. Sempre que se tenta explicar as teses mais singulares de Deleuze, como aquelas sobre o plano de imanncia, o virtual, as snteses do tempo, a univocidade do ser, -se imediatamente forado a cair nestes abismos que so o Bergson de Deleuze ou o Espinosa de Deleuze, ou melhor, nesta mise en abme do mtodo deleuziano de contar um livro da filosofia passada como se fosse um livro imaginrio e fingido[1].Imps-se tambm a ideia de que os anos 70, os de colaborao com Flix Guattari, teriam visto interromper os trabalhos sobre autores filosficos, e que era apenas aps Mil Planaltos que Deleuze teria retornado sua paixo pelos grandes textos tericos[2]. verdade que foi apenas em 1981 que Deleuze retomou e aumentou o seu Espinosa de 1971 como Espinosa - Filosofia Prtica. Por outro lado, Foucault publicado em 1986, e A Dobra. Leibniz e o Barroco em 1988. E, uma vez que estes livros so, em certa medida, a verso realizada dos cursos em Paris VIII dos anos 80, dedicados precisamente a Espinosa, Foucault e Leibniz, emerge a falsa evidncia de que os anos 70, os de colaborao intensivo com Flix Guattari, tinham ignorado esse mtodo de collage na histria da filosofia que ele tinha praticado na dcada de 60, e que ele justificara em Diferena e Repetio como dando origem a um Hegel filosoficamente barbudo, um Marx filosoficamente calvo, assim como um Gioconda com bigode[3]. Foi-se impondo a ideia de que Deleuze teria consagrado a dcada de 70 apenas a trabalhos de economia poltica, de sociologia, de lingustica, de literatura, de psicanlise, de biologia, ou seja, a uma mistura vertiginosa de perspectivas visionrias sobre a evoluo do desejo e do capitalismo, sobre os impasses da revoluo, sobre as mquinas de guerra, de onde saram O Anti-dipo, Kafka, e Mil Planaltos.Mas estas duas falsas evidncias a) que Deleuze faz histria da filosofia projectiva e b) que os anos 70 correspondem a um interregno da sua prtica de leitura dos grandes nomes da tradio filosfica - apagam um captulo decisivo da relao de Deleuze com os grandes textos do patrimnio filosfico. Referimo-nos quele captulo da leitura que Deleuze fez de Foucault. Isso aconteceu em dois momentos. O primeiro, em dois estudos publicados na revista Critique na dcada de 70. Embora alterados e aumentados para serem includos em 1986 no livro sobre Foucault, estes estudos foram originalmente publicados respectivamente em 1971 e 1975. O segundo momento, corresponde aos captulos expressamente escritos para o livro sobre Foucault. Eles retomam o fundamental do curso sobre Foucault nos anos de 1985 e 1986.Os primeiros textos, os publicados em Critique e reformulados em 1986 como captulos iniciais do livro Foucault, tm um valor arqueolgico raro. Informam-nos sobre a muito singular recepo por Deleuze de Arqueologia do Saber e de Vigiar e Punir. E esta informao refere-se, de novo, mais do que compreenso luminosa e ao mesmo tempo fraternal destes dois monumentos dos anos 70, ao desenvolvimento do pensamento do prprio Deleuze. Com efeito, tal como em Kafka - Para uma Literatura Menor, tambm os dois primeiros captulos de Foucault so vias de acesso privilegiadas gnese no somente do livro sobre Kafka, mas tambm do livro que desenha o seu territrio conceptual: O Anti-dipo. No difcil indicar em que medida a teoria dos enunciados de Arqueologia do Saber, como descrio destas multiplicidades discursivas no-pessoais que estabelecem relaes extrnsecas com as formaes no discursivas (como instituies, acontecimentos polticos, prticas e processos econmicos), foi um instrumento fundamental na construo de O Anti-dipo. A teoria das snteses de produo, de registo e de consumo que revelam o carcter ao mesmo tempo social, histrico e poltico dos processos desejantes e, por conseguinte, de todos os delrios familiares, seria impossvel sem a ideia de uma saturao do enuncivel a cada poca, onde tudo real no enunciado, e toda a realidade est a manifesta.Com Vigiar e Punir produz-se um impacto semelhante de Foucault sobre Deleuze. Disso d conta o segundo artigo de Critique. Apresentemos esse impacto esquematicamente. A teoria do Poder deste livro de 1975, com todos os novos conceitos como os de dispositivo, diagrama como exposio material das relaes de foras, causa imanente, oferece um dos fundos mais transparentes para acompanhar a anlise que Deleuze e Guattari propem das obras de Kafka. O prprio conceito de agenciamento colectivo de enunciao, a partir do qual uma comunidade menor se ope s mquinas diablicas do Poder, a expresso literria dos diagramas de poder cuja geometria, ao mesmo tempo abstracta e material, Foucault tinha j fundado em Vigiar e Punir. Pode-se portanto dizer que, de uma maneira paralela aos estudos em cincias humanas, s leituras de etologia animal e de biologia que atravessam o fundo de trabalho dos anos 70, a apropriao que ele fez da pragmtica dos enunciados de Foucault, bem como da sua microfsica do Poder disciplinar, tiveram, embora mais secreto, um efeito enorme na obra de Deleuze.Mas, no nos podemos esquecer que o livro sobre Foucault, publicado em 1986, teve uma composio a dois tempos. O primeiro, aquele que j referimos, inclui os artigos sobre Arqueologia do Saber e Vigiar e punir, escritos em 1971 e 1975 para a revista Critique, e constituem a primeira parte, com o ttulo Do Arquivo ao Diagrama. Ali o que est em jogo a pragmtica dos enunciados e a microfsica do Poder sobre os quais se constri o livro de Deleuze e Guattari sobre Kafka. O segundo momento o dos captulos escritos expressamente para este livro aps a morte de Foucault em 1984. Corresponde segunda parte do livro, com o ttulo Topologia: Pensar de outro modo. Deleuze regressa de novo a Aqueologia do Saber e a Vigiar e Punir, e acrescenta a leitura do primeiro volume de Histria da Sexualidade. No entanto, esses trs livros so aqui pensados luz dos dois ltimos volumes da Histria da Sexualidade, publicados por Foucault no ano da sua morte. Deleuze introduz aqui o conceito de dobra do pensamento [plissement de la pense] que inspira o livro sobre Leibniz e o conceito de dobra, e que elabora o horizonte quer da tica do impossvel que se encontra no texto sobre Bartleby, quer da esttica do esgotamento do possvel em redor de textos de Beckett.Respeitemos esta abordagem a dois tempos que Deleuze faz de Foucault. Como introduo leitura de Kafka - Para uma Literatura Menor, reconstituimos os dois primeiros captulos do livro Foucault, dedicados, respectivamente a Arqueologia do Saber e a Vigiar e Punir. Cremos que possvel detectar as linhas primordiais de inspirao da teoria dos agenciamentos colectivos de enunciao, bem como a ideia de Poder como mquina abstracta de desejo.Os captulos que Deleuze dedicou aos dois ltimos volumes de Histria da Sexualidade, sero visitados apenas nos dois ltimos pargrafos deste artigo. Pertencem a uma nova atmosfera no pensamento de Deleuze, aquela que gravita em redor da pergunta da subjectivao como desdobramento da fora sobre si mesma, transformando a microfsica do Poder numa tica do possvel. Este ltimo olhar de Deleuze sobre Foucault deve por conseguinte ser abordado juntamente com o livro que ele como que j preparava: o livro sobre Leibniz.

2 Pragmtica dos enunciados

O conceito de enunciao colectiva que organiza a obra Kafka: para uma literatura menor , em grande medida, consequncia da leitura que Deleuze tinha feito da nova pragmtica dos enunciados proposta por Foucault. Em Arqueologia do Saber, com efeito, o que Deleuze quer sobretudo sublinhar o conceito de enunciado que tinha sido objecto especfico do novo mtodo de arquivista das cincias humanas. A ideia de razo que Foucault tinha descoberto na psiquiatria do sculo XVIII, as imagens do normal e do patolgico que tinham clarificado nas nosografias dos sculos da inveno da clnica, ou as categorias antropolgicas que mostrou na base das cincias humanas, todo este universo de conhecimentos, de classificaes, de categorias, era extrado da leitura dos tratados mdicos, dos relatrios da polcia, das narrativas clnicas, ou mesmo de novelas e peas de teatro. Deleuze quer seguir a justificao que Foucault apresenta do valor de verdade desta camada material do dito. Se se pode relacionar as pginas de Cervantes sobre o delrio de D. Quixote, as linhas finais do Rei Lear de Shakespeare e a descrio da hiptese do gnio maligno de Descartes, porque a, nessa positividade do que foi enunciado, se manifesta uma realidade muito material da razo e da desrazo. Legitimar a epistemologia de Histria da Loucura, de O Nascimento da Clnica e de As Palavras e as Coisas construir a metafsica adequada a esta realidade autnoma dos enunciados que Foucault toma como monumento exaustivo do saber de uma determinada poca.Para Deleuze, o conceito de enunciado proposto por Foucault constri-se em oposio aos conceitos de proposio e de frase. A proposio o que se pode conceber a partir de uma lngua dada. A frase corresponde ao que realmente se diz dentro do domnio infinito das proposies a conceber. A frase , assim, a dimenso material do campo mental do sentido. Em contrapartida, o enunciado, o conjunto efectivo das frases ditas um momento e num espao determinado. A linha de demarcao parece estabelecer-se simplesmente em extenso, por subtraco sucessiva da dimenso dos domnios do sentido, que vai do concebvel ao dizvel, e do dizvel ao dito. Mas, para Deleuze, esta linha sobretudo ontolgica. Refere-se diferena entre, de um lado, o possvel e o virtual, e, do outro, o real. As proposies existem de acordo com o regime do possvel, porque, das proposies, pode-se sempre conceber tanto quanto se quer, tanto quanto se teria podido exprimir umas `sobre' as outras conforme a distino dos tipos; e a formalizao como tal no tem que distinguir o possvel e o real, mas faz abundar as proposies possveis. Quanto ao que realmente dito, a sua escassez de facto advm do seguinte fenmeno: uma frase nega sempre outras, impede outras, contradiz ou repele outras frases, de modo que cada frase est marcada por tudo o que ela no diz. Esse no-dito constitui um contedo virtual ou latente que multiplica o sentido e que se oferece interpretao, formando um `discurso escondido', verdadeira riqueza em direito[4]. As proposies correspondem ao mundo do possvel, ao mundo da formalizao do sentido. As frases, por seu lado, produzem um mundo virtual. o mundo onde o sentido produzido, multiplicado em cada frase, mas em regime de latncia. As frases convocam portanto a interpretao para trazer este virtual clareza. Arqueologia do Saber seria a construo de um programa de anlise histrica de monumentos do saber que recusaria quer a formalizao, quer a interpretao, ou seja quer o estudo das proposies que uma poca teria concebido, quer as frases que essa poca tivesse efectivamente dito mas que, por sua vez, reenviariam a outras frases que estas frases tinham contradito ou repelido. Contra uma histria do possvel, mas tambm contra uma histria do virtual, Foucault prope, segundo Deleuze, uma histria do real actual, uma histria dos enunciados. E este real no contm nada de possvel, como se fosse a sua condio transcendental, nem nada de virtual, como o seu excesso no dito ou escondido. um real unvoco, que contm em si mesmo todo o seu fundamento e todo o seu sentido. Para pensar esta condio de um dito absolutamente actual, absolutamente real, Foucault teria introduzido o conceito de enunciado. Como diz Deleuze, no h nem possvel nem virtual no domnio dos enunciados, tudo neles real, e toda a realidade neles manifesta: s conta o que foi formulado, a, a tal momento, e com tais lacunas, tais brancos[5].Este positivismo do dito, ou, de acordo com a frmula de Deleuze, a positividade do dictum[6], que no reconhece como real seno o que enunciado, e que v no enunciado a manifestao completa de todo o real, tem consequncias imensas. Primeiro, do ponto de vista ontolgico, enquanto univocidade espinosista do Ser, o conceito de enunciado implica uma reduo de toda a realidade ao plano do efectivo, ao plano de um actual sempre em acto, sempre realizado, que absorve todo o possvel do concebvel e todo o virtual do interpretvel no j dito, no dictum a e em um determinado momento. Mas, na maneira de conceber a prpria realidade do enunciado, Deleuze traz ao programa de Arqueologia do Saber determinaes bem especficas do lxico ontolgico que herdou dos esticos, de Bergson e de Espinosa. De acordo com Deleuze, o enunciado no reenvia a nenhum sujeito, a nenhum cogito. No h necessidade de um qualquer transcendental, singular ou colectivo, para produzir um enunciado. O enunciado autoposicional, reenvia apenas a si e no existe seno em si, na sua prpria espacialidade e na sua temporalidade nica: como a recordao bergsoniana, o enunciado conserva-se em si, no seu espao, e vive enquanto este espao dura ou reconstitudo[7]. O enunciado tem portanto uma durao prpria que corresponde durao de espao no qual o enunciado se conserva. Existe como uma essncia pura. E no entanto, embora Deleuze invoque o conceito bergsoniano de recordao, o conceito de enunciado no pode aspirar s condies ontolgicas desta realidade espiritual pura. Privado da dimenso do virtual (que Deleuze quer guardar para definir o domnio da frase), j no se pode mais dizer que a realidade do enunciado ideal sem ser abstracta, real sem ser actual, como Deleuze gostava de repetir a propsito da condio de existncia da recordao pura em Bergson, e da essncia artstica em Proust. O enunciado j no nem ideal, nem virtual, mas unicamente real, e de uma realidade que se confunde com a actualidade. O real que Deleuze detecta em Foucault um real cercado pela sua prpria realidade, asfixiado pela ausncia de possvel ou virtual. por isso que a grande pergunta que Deleuze deve pensar na sua leitura de Arqueologia do Saber a de determinar como um saber, que composto de um conjunto mltiplo mas fechado de enunciados, se refere sua parte externa, se refere a um mundo que, de uma maneira exaustiva, se manifesta e se constitui como saber. Na medida em que o sentido de um enunciado no deriva por formalizao, ou seja, no um caso de um domnio extensional que ele exemplificaria, e, por outro lado, na medida em que no constitudo por interpretao, como que ento um enunciado se constitui como saber? Dito de outro modo: na medida em que a realidade de um enunciado se esgota nela mesma sem estar cercada nem de proposies possveis, nem de frases virtuais (as quais poderiam ancorar o enunciado noutras proposies concebveis ou outras frases ditas ou repelidas), como determinar ento o valor de verdade de um enunciado, ou, pelo menos, o seu valor de saber?Deleuze reconhece que este novo arquivismo dos enunciados coloca Foucault num lugar ambivalente. De certa maneira, Foucault pode declarar que nunca escreveu seno fices: que, como vimos, os enunciados assemelham-se a sonhos, e tudo muda, como num caleidoscpio, de acordo com o corpus considerado e a diagonal que se traa. Mas, de uma outra maneira, ele pode tambm dizer que nunca escreveu seno o real, com real, porque tudo real no enunciado, e toda a realidade nele manifesta[8]. O conceito de enunciado, de acordo com Deleuze, instala o programa de Foucault ao mesmo tempo no sonho e na realidade, na fico e no saber. O que surpreendente o facto de Deleuze ver nesta hesitao entre duas condies do enunciado o ponto de fuga, a linha de transformao do pensamento de Foucault aps Arqueologia do Saber. A sequncia dos seus trabalhos teria sido o combate por uma soluo aos problemas inscritos na tese da existncia em si e para si do enunciado. O enunciado no se diz seno de si mesmo e a si mesmo, ele mesmo repetio. O que ele repete, no entanto, outra coisa, ele supe singularidades de real que se manifestam nele, que lhe so estranhamente semelhantes e quase idnticas, sem se confundirem com ele. Para Deleuze, a passagem de uma teoria do saber a uma teoria do Poder teria sido exigida por esta indeterminao do fora dos enunciados, por esta hesitao quando condio de singularidades no discursivas que o enunciado supe. O maior problema para Foucault seria saber em que consistem estas singularidades que o enunciado supe. Mas `A arqueologia' pra a, e no tem ainda que tratar deste problema que ultrapassa os limites do `saber'. Os leitores de Foucault adivinham que se entra num novo domnio, o do poder[9]. A entrada numa teoria do Poder teria sido a soluo ao problema do fora e do para l do saber.J na exposio sobre o modo de existncia do enunciado, Deleuze tinha distinguido trs crculos ou trs fraces neste espao onde o enunciado se conserva em si. Primeiro, aquilo a que Deleuze chama um espao colateral, que formado por outros enunciados. A segunda fraco de espao seria um espao correlativo, onde se trata da relao do enunciado, j no com outros enunciados, mas com os seus sujeitos, os seus objectos, os seus conceitos[10]. O terceiro o espao complementar, o das formaes no discursivas, como as instituies, os acontecimentos polticos ou as prticas econmicas. E, a propsito desta terceira fraco de espao, a que pe o enunciado em relao com no discursivo, Deleuze escreve: sobre este ponto que Foucault esboa j a concepo de uma filosofia poltica[11]. A pergunta do Poder aparece pela primeira vez no interior da teoria do enunciado para pensar a relao com o fora, a relao do discursivo com o no-discursivo. verdade que cada espao reenvia sempre o enunciado a um fora. O espao colateral inscreve em si o fora dos outros enunciados. O espao correlativo trabalha o fora dos sujeitos e dos objectos do enunciado. O fora das instituies e das prticas econmicas a condio do espao complementar. Mas, em cada caso, Deleuze mostra a presena de um mesmo problema em Foucault. Esse fora - dos outros enunciados, dos sujeitos e dos objectos dos enunciados, das prticas no discursivas - sempre reconduzido a uma funo intrnseca do enunciado. Tal sobretudo visvel a propsito do espao correlativo, aquele que pe o enunciado em relao com os seus sujeitos, os seus objectos, os seus conceitos. Os sujeitos ou objectos do enunciado no so as suas referncias. S uma proposio suposto ter um referente, porque a proposio tem como constante intrnseca o reenvio a um estado de coisas que vem (ou no) preencher a intencionalidade de sentidos. Como tal, o estado de coisas a varivel extrnseca da proposio. Mas no se passa o mesmo com o enunciado: este tem um `objecto discursivo' que no consiste de modo algum num estado de coisas visado, mas deriva pelo contrrio do prprio enunciado[12]. Para o enunciado, no h referncia ou intencionalidade. H apenas objectos discursivos que so variveis intrnsecas dos enunciados, ou seja que so instaurados unicamente pelos enunciados. E, para melhor ilustrar esta pertena dos objectos aos enunciados, Deleuze recorda a teoria sartriana dos sonhos: cada sonho, cada imagem de sonho, que tinha o seu mundo especfico. E Deleuze acrescenta Os enunciados Foucault so como sonhos: cada um tem o seu prprio objecto, ou se cerca de um mundo[13].Esta consequncia no pode seno ser insuportvel para Deleuze. Nenhum saber se constitui em sonho, nenhum saber pode supor os seus enunciados como sonhos, como fices. Da a importncia que Deleuze atribui terceira dimenso do espao, que ele designa como o espao complementar do enunciado. o nico extrnseco, porque reenvia, no a mundos que cercam os enunciados como sonhos, mas a formaes no discursivas, a prticas institucionais (contratos, registos). Contudo, este fora no onrico rompe com a teoria do saber. Ele supe que os enunciados sejam retidos em redor dos lares difusos do Poder, em redor das instituies, dos acontecimentos polticos, das prticas econmicas. neste sentido que Deleuze compreende que esta dimenso extrnseca do espao do enunciado j o esboo de uma filosofia poltica em Foucault. O Poder esta dimenso do espao do enunciado que o abre para as funes extrnsecas. O Poder a relao com o Fora [Dehors]. E esta tese fornecer at ao fim, no s o fio condutor da leitura que Deleuze prope da transformao do pensamento de Foucault, mas tambm o modelo para pensar a enunciao colectiva, ou o agenciamento colectivo de enunciao que compe, de acordo com ele, o fundamental do trabalho romanesco de Kafka. Ser suficiente acrescentar leitura de Arqueologia do Saber a de Vigiar e Punir para fundir uma nova compreenso do carcter colectivo da enunciao com uma nova teoria do Poder enquanto campo de imanncia. Podemos pois dizer que, tanto o conceito de enunciado como o de Poder so o efeito de inspiraes que vm de Foucault.Mas ento foi necessrio que Deleuze esperasse este grande livro sobre o Poder de Michel Foucault. Vale a pena sublinhar que Foucault publica Vigiar e Punir neste mesmo ano de 1975, ou seja, quase em simultneo com a publicao de Kafka - para uma Literatura Menor. No livro sobre Kafka Vigiar e Punir citado duas vezes. Ora, na medida em que os livros so editados com uma diferena de dois meses, temos que concluir que o efeito que este livro de Foucault produziu sobre o conceito de Poder que organiza a leitura que Deleuze e Guattari fazem de Kafka deve ser visto como a consequncia de um acesso antecipado ao contedo fundamental de Vigiar e Punir antes mesmo da sua publicao[14].

________________________________________[1] Diffrence et Rptition (DR), p. 4.[2] O estudo que refora mais esta perspectiva o de Manola Antonioli, Deleuze et lHistoire de la Philosophie, Paris: Kim, 1999.[3] DR., p. 4.[4] Foucault, p. 12.[5] Ibid.[6] F, p. 24.[7] F, p. 14.[8] F, p. 27.[9] F, p. 21.[10] F, p. 16.[11] F, p. 19.[12] F, p. 17.[13] Ibid.[14] O novo conceito de poder de Foucault duas vezes mencionado em Kafka - Para uma literatura menor: trata-se da nota 20, p. 44, e sobretudo na nota 3, p. 103, onde se pode ler: Michel Foucault faz uma anlise do poder que renova hoje todos os problemas econmicos e polticos. Com outros meios, esta anlise tem uma ressonncia kafkiana. Foucault insiste sobre a segmentaridade do poder, a sua contiguidade, a sua imanncia no campo social (o que no quer dizer interioridade numa alma ou num sujeito maneira de um superego). Ele mostra que o poder no procede de modo algum pela alternativa clssica, violncia ou ideologia, persuaso ou constrangimento. Cf. Vigiar e punir : o campo de imanncia e de multiplicidade do poder nas sociedades `disciplinares'.

3. Agenciamentos e mquinas abstractas

Deleuze reconheceu em Vigiar e Punir um momento decisivo no pensamento de Foucault. Para ele, trata-se antes de mais da passagem de uma analtica do saber a uma cartografia do Poder. Mas este livro representa tambm, segundo Deleuze, o suplemento poltico da teoria do enunciado de Arqueologia do Saber. Mas o interesse de Deleuze no apenas hermenutico. Ele no est preocupado com a compreenso dos mecanismos de transformao interna do programa terico de Foucault. Deleuze ele mesmo que entra em crise com a publicao de Vigiar e Punir. E a primeira manifestao dos efeitos da leitura de Foucault o livro de Deleuze e Guattari, publicado nesse mesmo ano de 1975 Kafka: para uma literatura menor. Como veremos, o livro sobre Kafka, em torno da questo central da ligao dos enunciados literrios com o espao da experincia do poder a boa convergncia entre Arqueologia do Saber e Vigiar e Punir, entre uma teoria da saturao poltica do discurso e a reformulao radical dos modelos de poder que organizavam aquela teoria.Deleuze dedica um artigo inteiro, publicado em 1975 no nmero 343 da revista Critique, nova cartografia do Poder elaborada por Foucault em Vigiar e Punir. Este artigo ser includo no livro sobre Foucault como captulo II, com o ttulo Um novo cartgrafo. No entanto, nessa verso de 1986 do artigo da Critique, Deleuze inclui tambm algumas referncias a A Vontade de saber (livro publicado apenas em 1976), sobretudo no que diz respeito crtica da hiptese repressiva. Mas o fundamental do seu olhar sobre o conceito de poder de Foucault vem da sua leitura de Vigiar e punir construda em 1975 para a Critique. No tanto a questo da vida ou dos dispositivos de produo do discurso sobre os prazeres que interessa Deleuze, mas antes a questo da natureza das relaes de foras enquanto exerccio de estratgias internas s formaes de meio e da sua maneira de agir sobre os corpos (como o meio prisional, o meio militar ou o meio escolar). Noutras palavras, Deleuze reconhece-se menos na biopoltica de Foucault do que na sua microfsica. E, tal como o sublinharemos mais frente, Deleuze procurar na microfsica a confirmao do seu conceito de mquina, particularmente o de mquina abstracta, bem como o conceito de agenciamento - que Deleuze far coincidir com o de dispositivo que ocupava o centro do novo olhar sobre o Poder por Foucault. Aps a primeira exposio da teoria do agenciamento, feita nesse mesmo ano de 1975 no livro sobre Kafka, na sua dimenso de instrumento para pensar a literatura menor, o texto sobre Vigiar e punir revela-se o laboratrio dos enredos polticos deste conceito. Retrospectivamente, podemos mesmo reconhecer que o rebatimento do conceito foucauldiano de dispositivo sobre o conceito deleuziano de agenciamento que se encontra no artigo da revista Criique tinha j trabalhado na sua gnese o livro sobre Kafka.Na cartografia de Foucault, Deleuze sublinha dois planos: o de um mapa crtico dos postulados que marcaram a posio tradicional marxista sobre a natureza do Poder, e o de uma representao diagramtica do Poder como campos vectoriais de relaes de foras. Estes dois planos explicam-se reciprocamente. pela demolio dos postulados sobre o Poder herdados da tradio marxista, que Foucault torna provvel o seu novo conceito de Poder. Inversamente, s o modelo diagramtico permite, em negativo, o diagnstico dos limites dos postulados tradicionais sobre o Poder. Deleuze reconstitui este mapa, desenhado por Foucault, das iluses da esquerda no que diz respeito a questes como a natureza do Estado, o modo de existncia das classes e das suas lutas, a relao entre os regimes punitivos e os sistemas de produo, ou as formas de dominaes simblicas, para, em retorno, fazer aparecer a verdade do olhar Foucault sobre as mquinas abstractas do Poder. Assim, contra o postulado da propriedade, que faz do Poder uma caracterstica de uma classe que o teria conquistado, Foucault teria mostrado, de acordo com Deleuze, que o Poder antes uma estratgia, que se exerce mais do que se possui. O Poder no o privilgio de uma classe dominante mas o efeito global das suas posies num campo de foras. Contra o postulado da localizao do Poder em instituies especficas - o Estado - Foucault faz ver o prprio Estado como uma resultante de uma multiplicidade de estratgias, como o efeito de uma microfsica do Poder. A a disciplina o tipo fundamenta de relao de poder, enquanto tecnologia dos corpos, dos gestos, dos tempos, que atravessa todo o tipo de aparelhos e de instituies. Em terceiro lugar, o postulado da subordinao. Deleuze refere-se representao do Estado como subordinado a modos de produo especficos. A microfsica de Foucault teria tornado visvel, no prprio interior da economia, nas fbricas, nos ateliers, formas de dominao semelhantes s vigentes nas escolas, nos quartis, nas prises e nos hospitais, que afectam do interior os corpos e as almas, tornando portanto evidente que toda a economia que pressupe os mecanismos do Poder. O quarto postulado teria sido o da essncia ou do atributo. Como Deleuze indica, trata-se de fazer do Poder uma essncia que qualificaria aqueles que a possuem, instaurando-os como dominantes. Foucault teria mostrado que o Poder no tem essncia. No atributo, mas relao: a relao de poder o conjunto das relaes de foras, que passa menos pelas foras dominadas que pelas dominantes, ambas constituindo as singularidades[1]. O postulado da modalidade apresenta o Poder como uma realidade biforme, umas vezes enquanto violncia, outras como ideologia. Por outras palavras, segundo a posio marxista, o Estado umas vezes restringe, outras vezes faz acreditar. O Estado seria antes de mais represso. Se produz algo, no seno crena, ideologia. Pelo contrrio, segundo Deleuze que retoma Foucault, o poder `produz real', antes de reprimir. E tambm produz o verdadeiro, antes de ideologizar, antes de abstrair ou mascarar[2]. Finalmente, o postulado da legalidade. O Poder teria, para a tradio marxista, a lei como a sua forma por excelncia. A lei seria quer a pacificao das foras brutas, quer o resultado de uma guerra ganha pelos mais fortes. Essa falsa coincidncia entre Estado e lei conduziu o pensamento revolucionrio a reclamar-se de uma outra legalidade, a qual no poderia seno passar pela conquista do Poder e pela instaurao de um outro Estado. Vigiar e Punir teria invertido radicalmente esta relao entre lei e Poder. Um dos temas mais profundos do livro de Foucault consiste em substituir a esta oposio demasiado pesada lei-ilegalidade uma correlao fina ilegalismos-lei. A lei sempre uma composio de ilegalismos que ela diferencia ao formaliz-los[3]. Estratgia, tecnologia dos corpos, economia como dispositivo disciplinar mais do que produtivo, relao mais do que atributo, produtor do real antes de reprimir ou ideologizar, finalmente formalizao da lei por composio de ilegalismos - tais so, segundo Deleuze, os novos traos do poder aps Vigiar e Punir. Mas estes no se esgotam numa teoria do Poder, no se referem s a uma diferente compreenso das formas de dominao. A grande novidade introduzida por este livro no interior do pensamento de Foucault seria, de acordo com Deleuze, resolver um problema que assombra a teoria foucauldiana da expresso, o da relao do enunciado a domnios no-discursivos.Como vimos, Deleuze sublinhava uma insuficincia no conceito de enunciado de A Arqueologia do Saber. Propunha a distino entre dois tipos de formaes prticas: as discursivas ou de enunciado, e as no-discursivas ou de meios. As no-discursivas eram designadas genericamente como os domnios das relaes de poder - instituies, acontecimentos polticos e processos econmicos. Faltava ento uma definio do poder enquanto definio positiva dos estratos no-discursivos das formaes prticas. Com Vigiar e Punir, segundo Deleuze, esta falta desaparece. Deslocando o no-discursivo para instituies materiais enquanto modos de agir sobre os corpos, como a priso, o quartel, a escola, o hospital, Foucault teria tocado uma nova relao entre o dito e o no-dito. Por exemplo, o direito penal refere-se ao enuncivel em matria criminal, mas os suplcios, ou a priso que os vieram substituir, so formaes prticas que estabelecem a associao entre a infraco e o cdigo, mas referem-se no a um regime de linguagem que classifica as infraces e calcula as penalidades, mas um regime muito especfico do no-discursivo, o regime do visvel. A priso faz ver o crime e o criminoso. Atravs de um regime de visibilidade, um regime de luz, a priso diferencia, ao mesmo tempo que formaliza, a lei e a sua encarnao no corpo dos indivduos. A passagem de um poder jurdico-discursivo a um poder disciplinar, ou seja a um poder que se constri na organizao material dos tempos e dos espaos dos corpos, transforma o fora do enunciado em coisas, em formaes de meio onde possvel distinguir uma forma de contedo (por exemplo o prisioneiro) e uma forma de expresso (por exemplo as palavras e os conceitos como delinquncia ou delinquente). Estas formaes de meios, estas coisas, so visibilidades. Aquilo que `a arqueologia' reconhecia, mas no designava ainda seno negativamente, como meios no-discursivos, encontra com `Vigiar e Punir' a sua forma positiva que assombrava toda a obra de Foucault: a forma do visvel, na sua diferena com a forma do enuncivel[4]. O exemplo privilegiado do visvel, na sua relao com o que se diz, a priso - no enquanto figura de pedra, mas pela sua condio de visibilidade universal do criminoso no seu corpo, nos seus gestos, nos seus ritmos. Esta visibilidade, como sabemos, Foucault designa-a como Panoptismo. Deleuze retoma este Panoptismo a partir da distino entre duas dimenses: o luminoso e o visual. A primeira tem a condio de um meio, a segunda, significativamente, a de algo a que Deleuze chama um agenciamento. De facto, quando Deleuze apresenta pela primeira vez a ideia de Panoptismo, podemos ler j tambm a introduo desse conceito to decisivo de Deleuze : `Panoptismo', ou seja () um agenciamento visual e um meio luminoso onde o supervisor pode ver tudo sem ser visto, sendo os prisioneiros vistos a cada instante sem se verem a eles mesmos[5]. O modo como Deleuze pensa este conceito-chave de Vigiar e Punir a partir do conceito de agenciamento bem significativo. ele que vai permitir estabelecer como que um duplo no-discursivo do conceito de agenciamento colectivo de enunciao que, paralelamente, Deleuze trabalhava com Guattari no livro sobre Kafka. Mais precisamente, o agenciamento visual o que d finalmente uma forma positiva a este domnio no-discursivo que faltava teoria do enunciado de Arqueologia do Saber[6]. O contraponto do enunciado torna-se ento o visvel, na sua dupla condio de um agenciamento visual e de um meio luminoso.

4. Agenciamento e dispositivo

O conceito de agenciamento no pertence ao lxico de Foucault. Mas Deleuze transform-lo- no elemento central da sua leitura do conceito de poder de Vigiar e Punir. Para tal, bastou-lhe mostrar como ele era a boa traduo do conceito de dispositivo. Primeiro, pela condensao das duas dimenses da visibilidade do Panoptismo na nica figura do agenciamento. Em vez dizer que o Panoptismo um agenciamento visual e um meio luminoso, como Deleuze o tinha feito na sua primeira apresentao deste conceito (que Foucault tinha encontrado em Bentham), pode-se ler: Quando Foucault define o Panoptismo, tanto o determina concretamente como um agenciamento ptico ou luminoso que caracteriza a priso, como o determina abstractamente como uma mquina que no somente se aplica a uma matria visvel em geral (atelier, quartel, escola, hospital priso) mas tambm atravessa em geral todas as funes enunciveis. o agenciamento que condensa toda a dimenso do visvel, ele que ao mesmo tempo ptico e luminoso. O Panoptismo em Foucault no teria assim seno duas determinaes: enquanto agenciamento e enquanto mquina. Mas, mesmo o conceito de mquina vai ser reconduzido ao de agenciamento.O diagrama segundo Foucault, como Deleuze o diz, a exposio das relaes de foras que constituem o poder[7]. Ora, na medida em que estas relaes de foras so sempre estratgicas, microfsicas, difusas, elas constituem funes puras, formam um campo abstracto. O diagrama dito mquina abstracta[8]. No surpreendente que os conceitos de diagrama e de mquina abstracta sejam utilizados em todo este texto sobre Vigiar e Punir indiferentemente como conceitos sinonmicos. neste sentido que Deleuze pode escrever o diagrama ou a mquina abstracta, o mapa das relaes de foras[9].Basta que a mquina abstracta (e o diagrama) seja apresentada como a causa dos agenciamentos, para que a relao foucauldiana entre diagrama e dispositivo seja transposta sobre a ligao entre a mquina abstracta e os agenciamentos. O princpio desta transposio dado pelo conceito de causa imanente, a qual existe, segundo Deleuze, precisamente entre a mquina abstracta e os agenciamentos concretos - a mquina abstracta como que a causa dos agenciamentos concretos que efectuam as relaes[10]. E Deleuze apresenta uma longa explicao deste conceito de causalidade, no fim da qual estabelecer a equivalncia fundamental entre o conceito de agenciamento e o de dispositivo. O que significa aqui causa imanente? uma causa que se actualiza no seu efeito, que se integra no seu efeito, que se diferencia no seu efeito. Ou antes, a causa imanente aquela cujo efeito a actualiza, a integra e a diferencia. H tambm correlao, pressuposio recproca entre a causa e o efeito, entre a mquina abstracta e os agenciamentos concretos ( a estes que Foucault reserva mais frequentemente o nome de dispositivos)[11]. O agenciamento a actualizao da mquina abstracta, ou seja a actualizao do diagrama como mapa das relaes de foras que constituem o poder. Deleuze reduz assim o dispositivo de Foucault a uma actualizao do diagrama. Mas no o pode fazer seno porque ele pensa a ligao entre a mquina/diagrama e o agenciamento/dispositivo como um processo de actualizao. Isto supe uma outra deciso terica: a de fazer do Poder uma realidade, no actual ou efectiva, mas virtual. O Poder, as relaes de foras, no existem, como tais, no modo da actualidade. S os agenciamentos que actualizam o Poder so eles mesmos actuais. Se os efeitos actualizam, porque as relaes de foras ou de poder so apenas virtuais, potenciais, instveis, evanescentes, moleculares, e definem apenas possibilidades, probabilidades de interaco[12].Deleuze adopta explicitamente uma perspectiva modal para pensar a condio do poder na sua relao com as dimenses efectivas que ele reserva aos agenciamentos tais como o agenciamento priso ou hospital. Deleuze retoma o conceito de virtual que ele tinha to bem formulado em Diferena e Repetio. Para ele, as relaes de fora ou de poder so apenas virtuais. Mas este conceito de virtual j no o mesmo. Pela primeira vez, o virtual tomado como pertencendo ao mesmo lxico de conceitos como possvel, potencial, provvel, esses conceitos que Deleuze, neste livro de 1968, tinha tentado refutar como ms descries dos domnios do no-actual. O poder torna-se assim o equivalente de todas as figuras clssicas daquilo que, sem ser ainda efectivo, tende para o actual, para o domnio dos factos realizados.Nunca Deleuze tinha colocado numa mesma frase o conjunto completo dos conceitos do no-efectivo. A questo central da sua leitura de Foucault, sobre a natureza do poder, v-se assim reduzida a uma reconfigurao das representaes modais do poltico. O Poder apenas a propenso para fazer, a disposio para agir, a orientao para a passagem a acto. verdade que estas propenses, estas disposies, estas orientaes, no so propriedades subjectivas, no reenviam a agentes. Deleuze reenvia-as a agenciamentos concretos, assim como a agenciamentos abstractos ou a mquinas abstractas, ou seja, a relaes de foras como funes puras, como diagramas ou mapas de densidades e de intensidades. Mas isto no impede que o Poder se veja reconduzido a essa dimenso que, desde Kant, define o mais profundamente a condio humana: em vez de um conjunto de propriedades dadas, ser o conjunto das suas possibilidades, das suas probabilidades, das suas potencialidades, numa palavra, das suas faculdades (faculdades de conhecimento, de desejo e de prazer, como mostrava Deleuze no seu livro sobre Kant). Em vez de serem propriedades dos agentes, em vez serem faculdades dos indivduos envolvidos nas relaes de foras, as possibilidades, as probabilidades, as potencialidades so as propriedades das mquinas abstractas. Mas, na medida em que estas no existem seno enquanto se actualizam em agenciamentos concretos, e na medida em que estes agenciamentos concretos se actualizam ou se integram por seu lado em indivduos qualificados por estes agenciamentos, permanece sempre a suspeita de que so efectivamente estes indivduos que carregam neles mesmos, como sua propriedade arcaica, e em ltima instncia, todo o Poder no modo de possibilidade, de potencialidade, de probabilidade. De facto, Deleuze diz que a actualizao uma integrao, um conjunto de integraes progressivas. () Os agenciamentos concretos da escola, do atelier, do exrcito operam integraes sobre as substncias qualificadas (crianas, trabalhadores, soldados)[13]. A escola um agenciamento concreto que actualiza a mquina abstracta das relaes de foras segundo o regime do poder disciplinar, e esta actualizao opera integraes ou actualizaes sobre os alunos. No sero ento estas substncias qualificadas, como alunos, trabalhadores ou soldados, os pontos materiais reais do poder? Veremos que Deleuze ir descobrir, de seguida, nestas singularidades qualificadas, a verdadeira ancoragem das relaes de foras. Mas, ento, ele ir cham-las de mnadas - e o desafio j no a natureza do poder mas o do possvel. Ser o momento de inscrever a sua leitura de Foucault na de Leibniz. Mas esta passagem no feita de forma directa. Ela implicar a inveno do conceito de dobra o que s acontecer em 1984, com a leitura dos dois ltimos volumes da Histria da Sexualidade.Devemos ento passar segunda parte do livro sobre Foucault, escrita propositadamente para o livro e j no uma recuperao de um artigo anterior, onde Deleuze reconstitui o movimento a trs tempos do pensamento de Foucault - do saber ao poder e do poder subjectivao. Recordemos o carcter decisivo que tem em Deleuze a ligao entre uma teoria do poder e o conceito de agenciamento, ligao que central no conceito chave do livro sobre Kafka, o de agenciamento colectivo de enunciao. Ora, unicamente neste captulo sobre Vigiar e Punir que se encontra a tentativa de aproximao entre, de um lado, os conceitos de diagrama e de dispositivo que traam o fundamental do olhar de Foucault sobre o poder e, do outro, os conceitos de mquina abstracta e de agenciamento que Deleuze e Guattari tinham comeado a construir em O Anti-dipo enquanto instrumentos para pensar a ancoragem poltica de enunciados literrios.O fundamental da teoria dos agenciamentos na leitura que Deleuze faz Vigiar e Punir pode, como vimos, condensar-se em cinco teses. 1. O agenciamento , em primeiro lugar, a dimenso positiva do no-discursivo, o contraponto - visvel e luminoso - do enunciado; 2. O agenciamento diz o mesmo que o dispositivo de Foucault. H portanto o agenciamento concreto da escola, o agenciamento do atelier, do quartel, do hospital, da priso. 3. Neste sentido, enquanto dispositivo, o agenciamento tambm biforme, no s a dimenso da visibilidade das relaes de foras, mas ele tambm mistura o visvel e o enuncivel[14]; 4. O agenciamento a actualizao da mquina abstracta, ou seja do diagrama das relaes de foras. E a mquina abstracta no existe seno nos agenciamentos que o actualizam, como se a mquina abstracta e os agenciamentos concretos constitussem dois plos, e se passasse de um a outro insensivelmente[15]. 5. Esta migrao de conceitos entre o lxico de Foucault e o de Deleuze conduziu a uma simples equivalncia entre, de um lado, o diagrama e a mquina abstracta, e, do outro, entre o dispositivo e o agenciamento. Deleuze di-lo numa nica frmula, para sublinhar a dimenso de mquina - concreta - dos agenciamentos: As mquinas concretas, so os agenciamentos, os dispositivos biformes; a mquina abstracta o diagrama informal[16].

5. Kafka com Foucault

Em todas as abordagens ao conceito de agenciamento, a grande questo a que se refere sua natureza de actualizao ou de integrao das mquinas abstractas. Deleuze diz que o Poder, enquanto relaes de foras, no seno virtual. Mas como pensar um Poder que existe apenas como virtual, como possvel, como provvel, como potencial? Ou ento, porqu pensar o conceito de causa imanente que conecta a mquina abstracta de relaes de foras aos agenciamentos concretos, como relao entre uma realidade virtual e uma realidade actual?Podemos compreender que Mil Planaltos, em 1980, tenha investido uma to grande energia terica no conceito de mquina abstracta, para a apresentar como concreta, como imanente aos agenciamentos concretos. Significativamente, a concluso do livro tem como ttulo Regras concretas e mquinas abstractas. quase um glossrio de todo o livro, um condensado dos conceitos principais. De facto, a concluso comea pelo conceito de estrato e de estratificao, recapitula os conceitos de agenciamento, de rizoma, de plano de consistncia e de corpo sem rgos, at ao conceito de desterritorializao, para terminar com o conceito de mquina abstracta. E o problema central que atravessa este ltimo pargrafo da concluso Mil Planaltos precisamente o da condio modal destas mquinas. As primeiras linhas declaram logo de entrada que no h mquina abstracta, nem mquinas abstractas que seriam como Ideias platnicas, transcendentes e universais, eternas. As mquinas abstractas operam nos agenciamentos concretos[17]. verso platnica do abstracto (transcendente, universal, eterno), ope-se o conceito de operao em agenciamentos concretos. As mquinas so realidades abstractas, mas que existem apenas enquanto operam. O que significa aqui operar? Ser o equivalente actualizao, incorporao, efectuao?A resposta vaga, quase no dada. Sabemos sobretudo que a condio abstracta das mquinas consiste na sua realidade hbrida. Elas tm matria, mas no forma, uma vez que a sua matria existe apenas enquanto ela opera, ou seja, enquanto est ligada a uma funo. Mas estas funes, por seu lado, so puramente materiais, no sentido em que no tm propriedades definidas. Deleuze e Guattari podem ento dizer as mquinas abstractas consistem em matrias no formadas e em funes no-formais. Cada mquina abstracta um conjunto consolidado de matrias-funes (phylum e diagrama) [18]. O que falta s mquinas abstractas, e que as obriga a no existir seno enquanto operam em agenciamentos concretos, so as formas e as substncias. Mas este o papel de um processo metafsico complexo: aquele que Deleuze e Guattari designam como efectuao. Operar explica-se ento como efectuar. As mquinas abstractas efectuam-se. Podemos ler, no seio das dimenses do agenciamento, a mquina abstracta ou as mquinas abstractas efectuam-se em formas ou em substncias, com estados de liberdade variveis[19]. Efectuar receber uma forma ou incorporar-se em substncias. Mas, em vez de explicar a natureza deste processo de formalizao e de substancializao que define a efectuao, Deleuze e Guattari preferem referir-se ao processo inverso, aquele que vai, no das mquinas abstractas aos agenciamentos onde elas operam e se efectuam, mas dos agenciamentos s mquinas abstractas. Neste caso, e paradoxalmente, Deleuze e Guattari pensam as mquinas como Ideias platnicas. De facto, pode-se ler isto no impede que a mquina abstracta possa servir de modelo transcendente, em condies muito particulares. Desta vez os agenciamentos concretos so conduzidos a uma ideia abstracta da Mquina[20]. A potencialidade dos agenciamentos, a sua criatividade, deriva do modo como so trazidos a uma mquina abstracta, e essa relao do tipo da cpia ao modelo transcendente. Na sua necessidade de subtrair a realidade do abstracto condio do universal e do eterno platnico, sem que, no entanto, o abstracto se confunda com o concreto, Deleuze e Guattari chegam em Mil Planaltos a uma tese metafsica surpreendente: as mquinas abstractas so actuais apesar de no efectuadas. Como escrevem: No seio das dimenses do agenciamento, a mquina abstracta ou as mquinas abstractas efectuam-se em formas e substncias, com estados de liberdade variveis. Mas foi simultaneamente necessrio que a mquina abstracta se compusesse, e compusesse um plano de consistncia. Abstractas, singulares e criativas, aqui e agora, reais embora no concretas, actuais embora no efectuadas[21].Vimos que, na leitura que Deleuze faz dos conceitos de diagrama e de dispositivo em Foucault, as mquinas abstractas no eram actuais. Na leitura de Vigiar e Punir, Deleuze apresentava-as como virtuais, possveis, potenciais ou provveis. neste sentido que as mquinas abstractas se actualizavam em agenciamentos pticos e meios luminosos como as prises, os ateliers, as escolas. As relaes de foras, no-actuais, actualizavam-se nos agenciamentos concretos, nos agenciamentos actuais e efectivos.Mil Planaltos prope uma figura difcil de pensar: a figura de algo actual sem ser efectivo. Esta condio modal completamente nova no pensamento de Deleuze. Ela marca um deslocamento enorme nas suas abordagens questo da pluralidade dos modos de existncia. Deleuze tinha comeado o seu trabalho sobre questes de metafsica da modalidade com a frmula proustiana Reais sem ser actuais, ideais sem ser abstractos. Era a frmula dos estados de ressonncia na memria involuntria assim como a frmula das essncias artsticas em Procura do Tempo Perdido. Esta frmula construiu toda a doutrina do virtual em Diferena e Repetio em torno dessa subtil distino entre realidade e actualidade[22]. Bem que no actual, o virtual real. Existe em si, independentemente da sua actualizao em singularidades. Em Mil Planaltos, o que necessrio compreender a condio de realidades abstractas de certas mquinas. Aqui a oposio invertida. Em vez de salvar a idealidade contra a abstraco, como em Diferena e Repetio, a realidade do abstracto que necessrio proteger da confuso com a idealidade platnica. Contudo, o mais surpreendente a forma como esta realidade no ideal, embora no concreta, definida em Mil Planaltos. A mquina abstracta actual embora no efectuada. Mas que metafsica modal nos pode fazer compreender um actual, no ideal, que no efectuado? Como pensar uma tal modalidade de existncia? Tratar-se- de um novo conceito de actualidade, ou, antes, de uma nova abordagem condio da efectividade?Esta dificuldade est no centro do livro sobre Kafka. A partir do momento em que Deleuze queria sair do modelo virtual/actual na sua verso estruturalista, ele teve de abandonar a ideia de actualizao como relao entre a lei e a sua aplicao cega como culpabilidade. Substitui ento o conceito de lei pelo de mquina abstracta. Contudo, no livro sobre Kafka, o conceito de mquina abstracta no tem a mesma funo que tnhamos localizado no comentrio de Vigiar e Punir. Em Kafka - para uma literatura menor abstracto no um conceito positivo, no significa aquilo que se actualiza num domnio concreto, mas, pelo contrrio, aquilo que se ope ao actual, ao concreto. neste sentido que todo o livro construdo em torno da diferena entre a lei e a justia. A primeira uma mquina abstracta no sentido de uma transcendncia artificial, fingida, enquanto que a segunda apresentada como mquina concreta, a qual agenciamento de enunciao e agenciamento de desejo. Para Deleuze e Guattari, o fundamental das imagens terrficas que atravessam as novelas e os romances de Kafka a construo de uma outra compreenso da relao entre a lei e os agenciamentos de desejo. Todas estas imagens de punio e de sofrimento absurdo so reenviadas, no livro sobre Kafka, a mquinas abstractas de suplcio. Em vez de uma lei transcendente, o que se d a ler na novela A Colnia Penitenciria ou no romance O Processo so mquinas abstractas, mecanismos de punio que no funcionam, ou que funcionam em auto-destruio[23]. A lei existe apenas como mquina, mas apenas como mquina abstracta disfuncional.Deleuze e Guattari duplicam esta definio maqunica das relaes de foras, entre, de um lado, a mquina abstracta da lei (que no funciona ou que autodestrutiva) e, do outro, a mquina concreta da justia. Os milhares de funcionrios, juzes, polcias, que compem os aparelhos da justia, com tribunais, prises e inesgotveis escritrios, no so seno mquinas, mquinas concretas. E estas no so a actualizao nem a incorporao da lei transcendente. S h desejo. Onde se pensava haver lei, s h de facto desejo e apenas desejo. A justia desejo e no lei. () Se todos pertencem justia, se todos lhe so auxiliares, do padre s jovens raparigas, no em virtude da transcendncia da lei, mas da imanncia do desejo[24]. Kafka teria mostrado que o poder no seno relaes de desejo, relao entre a mquina abstracta de uma lei presumidamente transcendente e os agenciamentos maqunicos da justia, onde apenas existe desejo[25]. Deleuze e Guattari podem ler estas descries de Kafka como antecipaes das anlises do Panoptismo em Vigiar e Punir[26].As novelas e os romances deixam-se ler como o movimento do personagem K. que sai da mquina abstracta da lei, a qual se constri sobre a oposio da lei ao desejo como o esprito ao corpo, para entrar no agenciamento maqunico da justia, onde existe apenas a imanncia do desejo. necessrio sublinhar que, no livro sobre Kafka, a mquina abstracta como lei transcendente no tem a condio de uma realidade actual. Enquanto fictcia, ela nem sequer virtual. A lei de Kafka no tem actualizao. Os agenciamentos concretos de justia so-lhes indiferentes. A mquina abstracta da lei, segundo Deleuze e Guattari, est condenada auto-destruio, como a mquina da Colnia Penitenciria, ou ao ridculo pattico dos escritrios infinitos do Processo. A mquina abstracta da lei serve apenas para fazer rir.O que mais difcil de compreender em Kafka - para uma literatura menor o facto de este esgotamento, ao mesmo tempo metafsico e poltico, do plano da lei, em nome da mquina concreta dos agenciamentos da justia, no se conservar em todo o livro. Com efeito, no fim do ltimo captulo, dedicado ao conceito de agenciamento, Deleuze e Guattari vo fazer a inverso desta relao. At agora opnhamos a mquina abstracta aos agenciamentos maqunicos concretos. () Transcendente e reificada, entregue s exegeses simblicas ou alegricas, ela opunha-se aos agenciamentos reais que j s valiam por eles mesmos e se traavam num campo de imanncia ilimitado - campo de justia contra construo da lei. Mas, de um outro ponto de vista, seria necessrio inverter esta relao. Num outro sentido de abstracto (no figurativo, no significante, no segmentrio), a mquina abstracta que passa do lado do campo de imanncia ilimitado e se confunde agora com ele no processo ou no movimento do desejo: ento os agenciamentos concretos j no so aquilo que d uma existncia real mquina abstracta, destituindo-a do seu fingimento transcendente, mas antes o inverso: a mquina abstracta que mede em teor o modo de existncia e de realidade dos agenciamentos[27]. Trata-se de um novo conceito de mquina abstracta. J no a mquina da lei, j no o domnio fingido do irrepresentvel e no entanto irrevogvel, j no o simblico que torna o real impossvel, mas o real ele mesmo na sua total imanncia. Inverso completa. A mquina abstracta torna-se no s o plano mais concreto - quer o plano do campo social, quer o plano do corpo do desejo - como se constitui num verdadeiro plano transcendental, ou seja, que condio de realidade dos agenciamentos concretos. a mquina abstracta que, para retomar a formulao de Deleuze e de Guattari, mede em teor o modo de existncia e de realidade dos agenciamentos. Ora, a mquina abstracta adquire este estatuto apenas por um agenciamento especfico: o agenciamento de enunciao, o qual se revela uma outra mquina - a mquina literria. Agenciamentos concretos como mquinas comerciais, mquinas bancrias, judiciais, burocrticas, tornam-se nos romances de Kafka um campo de imanncia, um campo de desejo. A prpria obra de Kafka torna-se mquina abstracta, como prolongamento dos diagramas das relaes de foras que compem o campo social, e como encarnao de um corpo do desejo[28]. A, ento, os agenciamentos de enunciao que trabalham os agenciamentos de expresso de romances como o agenciamento Processo ou o agenciamento Castelo, em vez serem o plano de actualizao da mquina abstracta em sentido transcendente, tendem para a mquina abstracta em sentido imanente. Percebemos ento que Deleuze e Guattari terminem o livro sobre Kafka com uma ltima pergunta: Qual a aptido de uma mquina literria, de um agenciamento de enunciao ou de expresso, para formar ele mesmo essa mquina abstracta enquanto campo do desejo? Condies de uma literatura menor?[29].A leitura de Vigiar e Punir por Deleuze em 1975 e o livro sobre Kafka, com Guattari, deste mesmo ano, chegam a uma mesma dificuldade: a relao entre a mquina abstracta (diagrama das relaes de fora de acordo com Vigiar e Punir ou lei transcendente segundo Kafka - para uma literatura menor) com os agenciamentos concretos (os dispositivos disciplinares ou mquinas burocrticas, judiciais, hoteleiras, bancrias). No primeiro caso, a mquina abstracta, a sua condio de diagrama do poder, pensada como puramente virtual, potencial, possvel. No segundo caso, fingida. Os agenciamentos concretos ou dispositivos, como as prises, os quartis, as escolas, parecem no pertencer ao domnio do poder. Eles no fazem parte das relaes de foras, mas so apenas a sua actualizao no campo da visibilidade. H assim como que uma viso anglica do poder, sempre exterior, enquanto virtual, s suas actualizaes por agenciamentos de visibilidades e por meios luminosos. O mesmo se passa com o conceito de mquina abstracta no livro sobre Kafka. A transcendncia ilusria da lei priva-a de toda a relao com os agenciamentos concretos do desejo, seja no corpo da justia, seja na enunciao colectiva. S a ideia de que a prpria obra de Kafka uma mquina abstracta, uma mquina literria, que mede o teor de existncia dos agenciamentos de enunciao que ela exprime porque directamente ligada ao campo social, vem salvar esta abordagem poltica do literrio, fundada ao mesmo tempo sobre uma pragmtica dos agenciamentos colectivos de enunciao e sobre uma microfsica dos agenciamentos colectivos do desejo como justia.

________________________________________[1] F, p. 35.[2] F, p. 36.[3] F, p. 37.[4] F, p. 40.[5] Ibid.[6] O que `A arqueologia' reconhecia, mas s designava ainda negativamente, como meios no-discursivos, encontra com Vigiar e punir a sua forma positiva que assombrava toda a obra de Foucault: a forma do visvel, na sua diferena com a forma do enuncivel (F, p.40).[7] F, p. 44.[8] O diagrama, j no o arquivo, auditivo ou visual, o mapa, a cartografia, coextensiva a todo o campo social. uma mquina abstracta. () uma mquina quase muda e cega, embora seja ela que faa ver e que faa falar. (F, p. 42).[9] F, p. 44.[10] Ibid.[11] F, p. 44-5.[12] F, p. 45.[13] Ibid.[14] No exagerado dizer que todo o dispositivo um caldo que mistura o visvel e o enuncivel: `O sistema prisional junta numa mesma figura discursos e arquitecturas dos programas e dos mecanismos (F. p. 46). Esta mesma mistura do visvel e do enuncivel est no centro da teoria do agenciamento no livro sobre Kafka. Na primeira linha do ltimo captulo O que um agenciamento pode-se ler Um agenciamento, objecto por excelncia do romance, tem duas faces: agenciamento colectivo de enunciao, agenciamento maqunico de desejo. (K, p. 145). E mais frente que a mquina desejo, no que o desejo seja desejo da mquina, mas porque o desejo no cessa de fazer mquinas na mquina (); o agenciamento maqunico de desejo tambm agenciamento colectivo de enunciao () O enunciado sempre jurdico, ou seja faz-se de acordo com regras, precisamente porque constitui a verdadeira utilizao da mquina (K, p. 146-7).[15] F, p. 48. Deleuze explica este corte entre os dois plos a propsito do caso das prises: E se as tcnicas, no sentido estricto da palavra, so tomadas nos agenciamentos, porque os prprios agenciamentos, com as suas tcnicas, so seleccionados pelo diagrama; por exemplo, a priso pode ter uma existncia marginal nas sociedades de soberania (as cartas de denncia), mas s existe como dispositivo apenas quando um novo diagrama, o diagrama disciplinar, a faz cruzar o limiar tecnolgico () Se se deixa ir de um plo ao outro, porque cada agenciamento efectua a mquina abstracta, mas num grau especfico: como coeficientes de efectuao do diagrama. (Ibid.).[16] F, p. 47. muito significativo que no momento de escrever O que um dispositivo?, em 1988, ou seja, na mesma poca de A Dobra. Leibniz e o Barroco, uma anlise exaustiva do conceito de dispositivo na obra Vigiar e Punir, Deleuze nunca utilize o conceito de agenciamento. uma prova adicional de que este conceito, embora construdo sobre o conceito foucauldiano de dispositivo, deixou de ser necessrio no universo terico dos anos oitenta e noventa.[17] MP, p. 636.[18] MP, p. 637.[19] Ibid.[20] MP, p. 639.[21] MP, p. 637.[22] O virtual no se ope ao real, mas apenas ao actual. O virtual possui uma plena realidade, enquanto virtual. Do virtual, necessrio dizer exactamente o que Proust dizia estados de ressonncia: `Reais sem ser actuais, ideais sem ser abstractos' (DR., p. 269).[23] Mquinas abstractas emergem por elas mesmas e sem ndices, todas montadas, mas desta vez no tm ou j no tm funcionamento. Como a mquina da Colnia penitenciria, que responde Lei do velho comandante e que no sobrevive sua prpria desmontagem. () Ora, parece que a representao da lei transcendente, com o seu cortejo de culpabilidade e de incogniscibilidade, uma tal mquina abstracta. Se a mquina da Colnia penitenciria, enquanto representante da lei, aparece como arcaica e ultrapassada, no de forma alguma, como o dissemos frequentemente, porque haveria uma nova lei mais moderna, mas porque a forma da lei em geral inseparvel de uma mquina abstracta autodestrutiva e que no se pode desenvolver concretamente (K, p. 87-8).[24] K, p. 90 e 92.[25]A transcendncia da lei era mquina abstracta, mas a lei existe apenas no imanncia do agenciamento maqunico da justia. O Processo, a composio das peas de toda a justificao transcendental. No haveria nada a julgar no desejo, o prprio juiz est todo atravessado de desejo. A justia apenas o processo imanente do desejo. (K, p. 93).[26] Como j referimos, o papel de Vigiar e Punir em Kafka - para uma literatura menor explicitamente reconhecido numa nota. Michel Foucault faz uma anlise do poder que renova hoje todos os problemas econmicos e polticos. Com outros meios, esta anlise tem uma ressonncia kafkiana. Foucault insiste na segmentaridade do poder, na sua contiguidade, na sua imanncia no campo social (o que no quer dizer interioridade numa alma ou num sujeito maneira de um superego). Ele mostra que o poder no procede de modo algum pela alternativa clssica, violncia ou ideologia, persuaso ou constrangimento. Cf. Vigiar e punir : o campo de imanncia e de multiplicidade do poder nas sociedades `disciplinares' (K, p.103, nota 3).[27] K, pp.154-5.[28] A mquina abstracta o campo social ilimitado, mas tambm o corpo do desejo, e tambm a obra contnua de Kafka, sobre a qual as intensidades so produzidas. (K, p. 155).[29] K, p.157.

6. Do Poder ao Possvel

Se possvel reconstituir a arqueologia da abordagem poltica pergunta literria que desenha o fundamental do programa de Kafka - para uma literatura menor a partir da recepo por Deleuze de Vigiar e Punir, poder-se- dizer o mesmo a propsito dos captulos que Deleuze escreveu propositadamente para o livro sobre Foucault? Haver um efeito semelhante de revelao em retorno da gnese do ltimo pensamento de Deleuze a partir da anlise da sua leitura dos textos que Foucault tinha publicado aps Vigiar e Punir? Mais concretamente: em que medida A Vontade de saber (1976), o artigo A Vida dos Homens Infames (1977) o Uso dos Prazeres (1984) e o Cuidado de si (1984), sobre os quais Deleuze escreve pela primeira vez apenas para o seu Foucault, nos conduz compreenso dos livros como A Dobra. Leibniz e o Barroco (1988), O que a Filosofia? (1991) ou Crtica e Clnica (1993)?A hiptese que nos orienta supe uma afinidade quase mimtica no apenas entre o Deleuze o Foucault da dcada de 70, mas tambm entre o Deleuze e o Foucault da dcada de 80. Cremos estar em condio de tornar evidente o facto de que os ltimos livros de Deleuze tm como lugar de explicao a substituio de uma teoria do poder por uma teoria do possvel, substituio que Deleuze, ele prprio, tinha localizado nas ltimas obras de Foucault como o seu fio terico mais fundamental. Esta substituio interessa-nos imensamente. Vai para l do quadro geral das obras ltimo de Deleuze. a chave para compreender um momento decisivo que afecta os textos sobre a literatura. Como vimos, Kafka - para uma Literatura Menor pensa o trabalho da criao na lngua como disposies de resistncia ao poder, como mtodos de reduo ou subtraco das potncias estatais, burocrticas, familiares. Mas, como tentaremos mostrar de seguida, tudo o que Deleuze escreveu a respeito da literatura aps A Dobra, Leibniz e o Barroco, este grande livro sobre o possvel, j no orientado pela realidade do poder. As grandes perguntas que atravessam desde sempre o olhar de Deleuze sobre a literatura, como a natureza dos acontecimentos que se encarnam em personagens, as formas de criao de uma sade, as vises do escritor de um povo por vir, ou as que se referem aos mtodos da linguagem de estranhamento e de bgayement, sero, de repente, reconfiguradas no interior de uma ontologia do possvel e do impossvel. De facto, se Deleuze se interessa subitamente pela frmula de Bartleby, este personagem paradoxal que recusa qualquer ordem de preferncia, ou se se deixa atrair pelas ltimas peas de Beckett para a televiso onde as sequncias de movimentos e de enunciados tm a condio de combinatrias num todo desde sempre determinado, porque quer pensar uma nova matria do poder: o impoder. Trata-se de um impoder que est para alm do poder. um impoder que conduz a uma experincia de um outro modo da faculdade de agir. Conduz a um impossvel.A sequncia deste artigo tentar sublinhar a existncia de duas figuras paradigmticas desta nova ontologia. A primeira encontra-se na famosa frmula de Bartleby. De acordo com Deleuze, a agramaticalidade de I would prefer not to pe, primeiro, um impoder. Ela diz a recusa de qualquer preferncia e, por conseguinte, a condio de impotncia de toda a aco. Mas ela abre sobre uma nova possibilidade: a possibilidade do impossvel, a possibilidade que faz o impossvel, j no a ausncia de possveis, mas a actualizao de um modo de existncia que tem como caracterstica a recusa absoluta do possvel. Os personagens de Beckett, por outro lado, oferecem a Deleuze uma segunda ilustrao. Na sua lassitude, na sua actividade para nada, sero apresentados em O Esgotado como experincias limites de uma exausto, no do real, mas do possvel.Melville teria inventado um leibnizianismo invertido. A frmula de Bartleby seria a expresso da descoberta pelo copista de uma absoluta incompossibilidade entre, por um lado, o mundo onde ele no copia e, por outro, o mundo onde se espera dele trabalhos de copista. Se preferir pr em harmonia mundos compossveis, ento a no-preferncia seria a nica posio altura de uma ontologia dos incompossveis. Bartleby, de acordo com Deleuze, este visionrio de um novo princpio metafsico: o princpio, no do melhor dos mundos possveis, mas do pior, ou seja do princpio da total incomunicabilidade entre mundos incompossveis.Beckett deve ser compreendido, ele tambm, como um grande metafsico do possvel. Teria inventado uma pluralidade de camadas ontolgicas do possvel no interior da cena teatral. Em cada movimento dentro do quadrado espacial do palco, em cada voz, em cada enunciado, os seus textos para o teatro distinguem vrios mundos possveis. Mas estes mundos, em vez de abrir a aco, em vez de fazer ver alternativas, encruzilhadas de existncia, asfixiam a vida em cena. Transformam a aco em gestos para nada e em enunciados vazios. E este nada e este vazio no se inscrevem numa esttica do absurdo. No uma pergunta da ausncia de sentido para o que se diz, ou de um nada de objectivos para o que se faz. Se os personagens forem construdos de acordo com um princpio de puras combinatrias, quer de enunciados quer de movimentos, porque se encontram para l de toda a possibilidade. Os personagens de Beckett actuam como marionetes porque esto esgotados, porque o prprio possvel se apresenta, a cada um e a todos, j e sempre como esgotado. O gnio de Beckett teria sido o de inventar um conceito de possvel que, ao contrrio de aumentar medida que realizado, se esgota.Aps os agenciamentos de minorao, que Deleuze descobre nos anos 70 nos textos sobre Franz Kafka e Carmelo Bene, podemos falar de acontecimentos de esgotamento, na leitura que Deleuze faz de Melville e de Beckett no fim dos anos 80 e incio dos anos 90. Aps uma poltica que se inventa pela literatura como agenciamentos colectivos de enunciao, vemos emergir uma ontologia que se exprime atravs de personagens annimos ou sem qualidades. De uma poltica a uma ontologia, de uma microfsica dos agenciamentos a uma coreografia dos acontecimentos, o conceito central do pensamento de Deleuze que gira sobre um eixo modal: ele passa de uma teoria do poder a uma teoria do possvel. Deleuze, como Foucault, chega a um plano que se define como um para-alm-do-poder. Mas no necessrio ir procurar este para-alm nos Gregos ou nos Romanos. Somos todos Gregos e Romanos. E ningum melhor do que Melville e Beckett para nos deixarem perceber isso. Este para-alm-do-poder num possvel paradoxal encontramo-lo em Bartleby e nos personagens annimos do teatro de Beckett. A literatura no ser mais uma questo de resistncia ao poder mas, para retomar as palavras de Deleuze sobre Foucault, uma questo de dobra da fora sobre ela mesma, onde a relao a si adquire independncia, constituindo um interior por envolvimento. Este interior, um poder que se exerce sobre si mesmo. Melhor, ele j no um poder, mas camadas de possibilidades que se esgotam, ou ento que se pem na sua impossibilidade.Necessitamos ento de uma segunda hiptese. Ser que podemos dizer que este movimento que conduziu Deleuze de uma teoria do poder a uma teoria do possvel, de uma poltica a uma ontologia modal, em resumo, de uma literatura menor ou de menos a uma literatura do impossvel ou do esgotamento, no apenas reproduz este mesmo movimento que Deleuze descreveu no ltimo pensamento de Foucault, mas efectivamente uma consequncia deste mesmo percurso que afecta a obra de Foucault? Neste caso, Deleuze teria conduzido ao extremo, contra a sua vontade, o seu mtodo de histria da filosofia. Ao escrever o seu livro sobre Foucault, ele entra num devir- Foucault, inventa o que se poderia desenhar, de acordo com o seu mtodo de collage, ao mesmo tempo que um Foucault filosoficamente cabeludo, um Deleuze filosoficamente calvo.A leitura que Deleuze fez do que ele descreveu como uma viragem tica no ltimo pensamento de Foucault seria ento o lugar de explicao de um momento decisivo semelhante ao seu olhar sobre a literatura. De Kafka e Carmelo Bene, a Melville e a Beckett, no se trataria s de uma deslocao de objecto. Trata-se de algo mais decisivo. Os universos de Melville e de Beckett, enquanto vises de camadas paradoxais do possvel, tornaram-se laboratrios literrios de uma viragem ela mesma tica no pensamento de Deleuze. E esta viragem s se deixa compreender pela forma como Deleuze l esta mesma viragem no prprio Foucault.H uma passagem muito significativa numa entrevista com Claire Parnet, de 1986, a propsito do seu livro sobre Foucault, que acabava de ser publicado. Deleuze refere-se expressamente ao que ele descreve como um movimento que teria conduzido Foucault da questo do poder questo do possvel. No momento de falar sobre o silncio que se abateu sobre Foucault aps a publicao de A Vontade de saber, Deleuze diz: suponho que ele se tenha confrontado com a questo: no haver nada `alm' do poder? No estaria ele a encerrar-se nas relaes de poder como num impasse? Ele est como que fascinado, lanado para o interior daquilo que, no entanto, ele odeia. E ele tem a beleza de responder a si mesmo e de dizer que o defrontar-se com poder o destino do homem moderno (o homem infme) e que o poder que nos faz ver e falar. Ele no chega a sentir-se satisfeito com essa resposta, falta-lhe o `possvel' () Foucault tinha talvez o sentimento de que devia a todo o custo transpor essa linha, passar para o outro lado, ir ainda para alm do saber-poder[1].No livro sobre Foucault, Deleuze tinha proposto considerar a narrativa especulativa deste imenso movimento que conduziu Foucault de uma teoria do saber em Arqueologia do Saber a uma teoria do poder em Vigiar e Punir, em seguida de uma teoria do poder a uma teoria do saber-poder em A Vontade de Saber, para culminar num para-alm-do-poder, ou seja, numa teoria do possvel, com O Uso dos Prazeres e O Cuidado de si. Mas, como tentaremos mostrar, esta passagem da questo do poder questo do possvel, que Deleuze detecta no ltimo pensamento Foucault, refere-se sobretudo ao prprio pensamento de Deleuze. por isso que essa passagem demorou tanto tempo a ser formulada. No livro sobre Foucault o conceito de possvel nunca aparece. O para-alm-do-poder tem apenas a forma da dobra, do desdobramento interior da fora enquanto poder sobre si mesmo, como cuidado de si. Ser necessrio esperar pelo livro sobre Leibniz, dois anos depois, para ver Deleuze fundar este conceito de dobra numa ontologia do possvel. Apenas a Deleuze encontrar os instrumentos para uma ontologia do possvel, enquanto essas dobras internas da fora na alma que Foucault tinha descoberto nos Gregos, mas que Leibniz tinha descoberto em todas as mnadas como o modo de existncia do mundo antes da sua actualizao.

7. As dobras do poder

Aps a morte de Foucault, Deleuze volta a Arqueologia do Saber e a Vigiar e Punir, mas agora para os ler face aos dois ltimos volumes de Histria da Sexualidade publicado nesse mesmo ano de 1984. Deleuze dedica os seus cursos de tera-feira reconstituio do que seriam os trs perodos do pensamento de Foucault - o saber, o poder, a subjectivao. Estes cursos so o horizonte da segunda parte do livro Foucault. A estrutura desta segunda parte retoma esta tripartio cronolgica. O primeiro captulo tem como ttulo Os estratos ou formaes histricas: o visvel e o enuncivel (Saber) e dedicado anlise de Arqueologia do Saber. O segundo As estratgias ou o no-estratificado: o pensamento do Fora (Poder) s se refere a Vigiar e Punir e a A Vontade de saber. O terceiro Os desdobramentos, ou o interior do pensamento (Subjectivao) ocupa-se de O Uso dos Prazeres e de O Cuidado de si. O efeito global ligeiramente estranho. Aps ter retomado, como captulos da primeira parte do livro, os artigos que tinha escrito para a revista Critique sobre Arqueologia do Saber e Vigiar e Punir, Deleuze regressa a estes livros de Foucault na segunda parte, mas para os inscrever numa cronologia a trs tempos, onde o terceiro momento, aquele que corresponde aos ltimos livros de Histria da Sexualidade, surge com uma tonalidade hegeliana, como se a questo da subjectivao fosse a resoluo dos impasses tericos das abordagens questo do saber e do poder.Desde o comeo desta segunda parte do livro - escrito como j referimos aps 1984 - Deleuze, num olhar desencantado, toma a pragmtica dos enunciados, bem como a microfsica do poder, como estando feridas por um fragilidade terica de origem. Esta fragilidade deixa-se desenhar progressivamente do interior da delicada anlise das grandes teses de Foucault sobre o saber e o poder. Ela tem um s nome o Fora.De acordo com Deleuze, o Fora assombra a relao entre os regimes do enunciado e as maneiras de ver ou de perceber de Arqueologia do Saber. A visibilidade no se confunde com os elementos visuais ou mais geralmente sensveis, como qualidades, coisas, objectos ou compostos de objectos, mas composta por formas de luminosidade ou um ser-luz que no so abertos pelos campos de enunciados. Por seu lado, o enuncivel reenvia a um ser-linguagem que torna os enunciados enunciveis, dizveis ou legveis. Desde o comeo, uma das teses essenciais de Foucault : diferena de natureza entre a forma de contedo e a forma de expresso, entre o visvel e o enuncivel[2]. Para Deleuze esta diferena de natureza tambm uma no-relao ou uma relao de exterioridade de essncia entre o visvel e o enuncivel. No h encadeamento que v do visvel ao enunciado, ou do enunciado ao visvel. Entre falar e ver trata-se de uma conjuno impossvel. Deleuze interroga-se ento como que a no-relao uma relao?[3]. Como falar e ver ao mesmo tempo sem ver o que dito da mesma maneira que no se v do que se fala?Deleuze faz o mapa das diferentes respostas tentadas por Foucault quanto a este problema. A primeira teria sido a da metfora da batalha, ou da dupla insinuao. Os enunciados e as visibilidades estabelecer-se-iam ao mesmo tempo uns contra os outros como lutadores que se foram ou se capturam. Contudo, de acordo com Deleuze, esta soluo no daria conta daquilo que continuaria sempre a ser fundamental para Foucault, ou seja o primado do enunciado. Neste sentido, Foucault teria formulado outra soluo. Teria passado por uma inspirao kantiana. Trata-se da atribuio ao enunciado de uma condio de espontaneidade, semelhante ao papel do entendimento, enquanto que o visvel seria o correlato receptivo da espontaneidade do enunciado, como que a sua faculdade da sensibilidade; a est uma segunda resposta ao problema da relao entre as duas formas: s os enunciados so determinantes, e fazem ver, embora faam ver outra coisa daquilo que dizem[4]. Mas esta soluo tambm seria fraca, ou seja, ela teria a mesma fraqueza que a sua inspirao kantiana[5]. A Foucault era tambm necessrio uma terceira instncia entre o enuncivel e o visvel, do mesmo modo que o esquema o foi para a relao entre a espontaneidade do entendimento e a receptividade da intuio em Kant. Esta terceira instncia, de acordo com Deleuze, no poderia ser encontrada por Foucault seno numa outra forma de no-relao. J no a no-relao da exterioridade entre linguagem e visibilidade, mas qualquer coisa de exterior ao exterior. Deleuze chama-o o Fora [Dehors]. E, como para a leitura de Vigiar e punir de 1975, Deleuze toma esse Fora como Foucault o tinha constitudo em conceito central do seu olhar sobre a natureza do pensamento. Apenas com uma pequena mutao no-fenomenolgica: o Fora a fora, ou antes, a relao da fora com outras foras, ou seja, o poder[6].Estamos perante um deslocamento enorme. Agora o poder no se refere aos dispositivos disciplinares, ou quilo que Deleuze designava, em 1975, como as mquinas abstractas do Panoptismo - alis, o prprio conceito de mquina abstracta bem como o agenciamento simplesmente desaparece do texto de 1986. O poder de que se trata em Vigiar e punir, de acordo com o olhar de 1986, um conceito kantiano, essencialmente relacional, relao de foras. s assim que pode funcionar como resposta pergunta fundamental sobre a natureza da no-relao entre o dizer e o ver. E Deleuze di-lo com toda a transparncia. O poder seria a terceira soluo encontrada por Foucault ao problema do esquematismo kantiano. Entre a espontaneidade do enunciado e a receptividade do ver, ele seria o anlogo de uma faculdade intermdia entre o entendimento e a sensibilidade[7].O conceito de diagrama igualmente alterado. Indica apenas que as foras so sempre realidades hbridas, onde cada fora s existe em conflito com outras foras, ou seja, agindo sobre outras foras, ao mesmo tempo que afectada por elas. O diagramatismo de Foucault, apesar de todas as suas declaraes, j no um conceito poltico para Deleuze. Ele surge agora como uma tese ontolgica, dando-nos a ver a natureza da fora, ao mesmo tempo activa e passiva, ao mesmo tempo tendo a mesma espontaneidade do enunciado e a mesma receptividade do ver.O poder o Fora da no-relao entre o enuncivel e o visvel. Embora diagramtico, embora supondo a dimenso de um campo fechado onde as foras, no seu conjunto, se encontram em relaes de conflito locais e instantneos que afectam sempre o todo, o fora do poder - de acordo com a verso de 1986 j no tem a dimenso de fechamento da verso de 1975. Deleuze sublinha, pelo contrrio, a sua abertura. Mais do que vulnerabilidade a outras foras com as quais cada fora est em relao de conflito, a afecto, isto , o ser receptivo da fora, sobretudo o efeito do Fora. sempre do fora que uma fora afectada por outras, ou afecta outras. () O diagrama procedente do fora, mas o fora no se confunde com nenhum diagrama, e nunca deixa de traar novos diagramas. assim que o fora sempre abertura de um futuro, com o qual nada termina[8]. O Fora, que no incio era tomado na finitude das relaes de foras, agora transformado em horizonte de infinitude, em campo no limitado de singularidades e de funes no formais. Deleuze apresenta-o progressivamente como vida. Primeiro, como a vida que ele toma por objecto de controlo como bio-poltica das populaes. Depois, a vida torna-se um conceito metafsico. a plenitude do possvel[9]. Finalmente, Deleuze toma-o como um conceito vitalista. No ser a fora vinda de Fora uma certa ideia da Vida, um certo vitalismo onde culmina o pensamento de Foucault?[10]. O Fora seria a Vida. E a Vida, ela mesma, se torna, no s o Fora, mas a sua prpria potncia[11].O Fora adquire assim uma dimenso paradoxal. o exterior do exterior, a no-relao face a uma outra no-relao, aquela entre o enuncivel e o visvel. Mas, ao mesmo tempo, enquanto vida, o Fora o plano mais imanente do real. O Fora como Vida habita todas as dimenses do saber, do poder, do pensamento. De acordo com Deleuze, os dois ltimos livros de Foucault perseguiam este paradoxo. Do conceito de bio-poder ou poder sobre a vida trabalhado no primeiro volume de Histria da Sexualidade, Foucault teria passado ao conceito de poder da vida sobre si prpria. Nos Gregos e nos Romanos as relaes de foras ter-se-iam estabelecido, j no como um conflito entre indivduos, mas como o redobramento da fora. Das anlises precedentes, libertavam-se os conceitos de um saber e de um poder sem sujeito. Mas, com O Uso dos Prazeres e O Cuidado de si, Foucault no somente teria dado lugar a uma problemtica da subjectivao mas, para chegar a, teria rompido com uma perspectiva da finitude sobre o poder. Teria ento pensado algo ainda completamente diferente: o redobrar do saber e do poder sobre si mesmo pelo qual e no qual o sujeito se escava para si mesmo, no seu interior, um lugar de refgio. ento que s grandes figuras da exterioridade e do Fora se sucedem as da interioridade: se as ltimas tinham sido literalmente excludas pelas primeiras, tal foi para se encontrarem reclusas num outro espao que lhes prprio. O Fora como Vida, e a Vida enquanto potncia do Fora, conduzem figura de um Fora que se efectua apenas numa interioridade, num interior que mais profundo que qualquer mundo interno. De relao a uma no-relao, o Fora torna-se relao a si. A enkrateia, a relao a si como controlo, esse poder que se exerce sobre si-mesmo, teria sido a soluo grega questo do poder como governo dos outros, bem como a soluo questo da autonomia do saber. Se a Grcia inventou o saber autnomo, um saber que se afirma por si mesmo, se definiu um poder da verdade que j no verdade do poder, porque fundou o poder do saber sobre as problematizaes de si do poder. O controlo, o governo de si como condio do governo dos outros, teria ento suposto uma operao do Fora e sobre o Fora, uma dobra do Fora que constitui um interior. Os Gregos so o primeiro redobramento. O que pertence ao Fora a fora, porque ela essencialmente relao com outras foras: nela mesma inseparvel do poder de afectar outras foras (espontaneidade), e de ser afectada por outras (receptividade). Mas, o que deriva ento uma relao da fora consigo mesma, um poder de se afectar a si mesma, um afecto de si para si[12].A este movimento de redobramento do Fora, a esta reflexo da fora sobre si prpria que produz um interior, no no sentido de outra coisa que o fora, mas o interior do Fora, Deleuze chama dobra [pli] ou dobramento [plissement]. Foucault teria sido o grande pensador desta dobra[13]. E se ele teve de remontar at aos Gregos na sua arqueologia do saber e do poder, foi precisamente porque apenas nas suas problematizaes dos prazeres e do cuidado de si como desdobramentos da fora, eles teriam tocado o centro desta operao do Fora que, na sua totalidade, se dobra e produz um interior que se escava e se desenvolve de acordo com uma dimenso especfica. A dobra do Fora vem revelar uma terceira dimenso da no-relao entre o dizvel e o visvel, para l do saber e do poder. a dimenso da subjectivao, a dimenso de si. Chega-se assim ao que Deleuze designa como o momento tico da obra de Foucault, aps o que teriam sido o momento epistemolgico e o momento poltico.O momento do saber estava fundado sobre a primazia do real, da saturao da efectividade dos domnios dos enunciados, contra a possibilidade das frases e a virtualidade das interpretaes. O momento do poder, das mquinas abstractas, foi o da primazia do poder e de todos os outros conceitos modais associados, como o de probabilidade ou de potencialidade. O momento da subjectivao seria, j no o do poder, mas do possvel. Deleuze nunca utiliza o conceito de possvel como correlato do si. Ele prefere designar o interior do fora como absoluta memria ou como memria do futuro, onde o tempo faz passar todo o presente no esquecimento e conserva o passado na memria[14]. Tal ser a tarefa de A Dobra.Leibniz e o Barroco. Em 1988, Deleuze retomar este conceito de desdobramento, de dobra da fora, para explicar Leibniz. E ento, o abandono de uma teoria do poder em nome de uma teoria da subjectivao, ser explicitamente acompanhado de uma ontologia do possvel.

________________________________________[1] Pourparlers, p. 148.[2] F, p. 68.[3] F, p. 72.[4] F, p. 74.[5] Kant teria atravessado uma aventura semelhante: a espontaneidade do entendimento no exercia a sua determinao sobre a receptividade da intuio sem que esta no continuasse a opr a sua forma do determinvel da determinao. Era portanto necessrio que Kant invocasse uma terceira instncia para l das duas formas, essencialmente `misteriosa' e capaz de dar conta da sua co-adaptao como Verdade. Era o esquema da imaginao (F, p. 75).[6] A chamada do fora um tema constante de Foucault, e significa que pensar no o exerccio inato de uma faculdade, mas deve ocorrer ao pensamento. Pensar no depende de uma feliz interioridade que reuniria o visvel e o enuncivel, mas faz-se sob a intruso de um fora que escava o intervalo, e fora, desmembra o interior (F, p. 93).[7] O diagramatismo de Foucault, ou seja a apresentao de puras relaes de foras ou a emisso de puras singularidades, portanto o anlogo do esquematismo kantiano: ele que assegura a relao de onde decorre o saber, entre as duas formas irredutveis de espontaneidade e de receptividade. E isso enquanto a fora goza ela mesma de uma espontaneidade e de uma receptividade que lhe so prprias. (F, p. 88).[8] F, p. 95.[9] F, p. 97.[10] F, p. 98.[11] a vida como potncia do fora (F, p. 102).[12] F, p. 108.[13] O interior como operao do fora: em toda a sua obra, Foucault parece perseguido por esse tema de um interior que seria apenas a dobra do fora, como se o navio fosse um desdobramento do mar. (F, p. 104).[14] Se o desdobramento, se o redobramento assombra toda a obra de Foucault, mas no encontra o seu lugar seno tardiamente, porque convocava uma nova dimenso que se devia distinguir ao mesmo tempo das relaes de fora ou de poder, e das formas estratificadas de saber: a `absoluta memria (F, p. 106).PUBLICADA PORCATARINA POMBO NABAIS(S)09:111 COMENTRIO:SBADO, 25 DE JULHO DE 2009Homem/animal - arte como anti-humanismo por Catarina Pombo Nabais in Omar Kohan, Walter e Mller Xavier, Ingrid (orgs.),ABeCedrio de criao filosfica, Belo Horizonte, ed. Autntica, 2009, pp. 133-8.O Homem um animal racional. Desde Aristteles que esta definio, incessantemente retomada, nos persegue e nos enaltece. Ela constitui uma tentativa quase obsessiva de distanciar o homem face ao animal, de o expulsar do mundo opaco e mudo da animalidade. O homem seria detentor de uma caracterstica nica, a racionalidade, que irremediavelmente o elevava acima de todos os outros animais. Ao homem ficava reservada a possibilidade de fazer Filosofia, Cincia, Arte. Curiosamente, tambm foi Aristteles quem primeiro definiu a Arte como mimsis da Natureza. A arte uma actividade exclusivamente humana mas em profunda relao com o mundo natural. A obra de arte imita a Natureza porque, em primeiro lugar, a desdobra nos seus duplos, a replica, e porque, em segundo lugar, pensada a partir do estatuto de um ser vivo, como totalidade orgnica, como a articulao funcional das partes de um todo semelhana de um organismo. Isto significa que, para Aristteles, a arte uma tcnica do orgnico artificial, daquilo que, criado pela habilidade humana (techne), tem todas as caractersticas do ser vivo singularidade, totalidade, autonomia, finalidade interna.No sculo XX, Deleuze foi o filsofo que mais profundamente rompeu com a viso aristotlica do homem. Em vez de pensar a essncia do homem como o nico animal racional, Deleuze explora os lugares de indeterminao e de indiscernabilidade entre o homem e o animal. Uma vez mais, a arte que serve de operador. Ela o exemplo por excelncia, o lugar que melhor deixa perceber essa indistino. De facto, para Deleuze a arte expresso de um mundo que existe por si, de um espao no qual o homem e o animal se tornam indiscernveis. Deleuze faz assim da arte o denominador mximo de um anti-humanismo cerrado contra a tradio aristotlica.Como Deleuze afirma: A arte no privilgio do homem. Messiaen tem razo em dizer que muitos pssaros so, no s virtuosos, mas artistas, e so-no em primeiro lugar pelos seus cantos territoriais[1]. Segundo Deleuze, a arte comea com impresses territoriais que no reenviam a nenhum sujeito humano que as capte. Ela deve por isso ser pensada a partir das marcas constituintes de domnios estabelecidos por animais nas suas demarcaes de territrios, de moradas, de marcas expressivas, de assinaturas. As qualidades expressivas escreve Deleuze em Mil Planaltos as cores dos corais, so au