da palavra não dita à palavra mal dita

23
Teatro Da palavra não dita à palavra mal dita Rogério Viana Curitiba – Paraná Abril de 2010 (Todos os direitos reservados) 1

Upload: rogerioviana

Post on 29-Jun-2015

354 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Um jogo de poder. Quem pode mais. Quem sabe usar melhor a palavra. Que vocês são essas? Três personagens. Um propósito para tudo: a busca pelo poder.

TRANSCRIPT

Page 1: Da palavra não dita à palavra mal dita

Teatro

Da palavra não ditaà palavra mal dita

Rogério Viana

Curitiba – ParanáAbril de 2010

(Todos os direitos reservados)

1

Page 2: Da palavra não dita à palavra mal dita

Da palavra não dita à palavra mal dita

Personagens

Matheus

Ricardo

Anália

“Não tenho medo de lutar, mas temo as regras que não conheço.”Fala do personagem O C L I E NT E em

“Na Solidão dos Campos de Algodão”, de Bernard-Marie Koltès

2

Page 3: Da palavra não dita à palavra mal dita

Da palavra não dita à palavra mal dita

1 – A possibilidade de troca

(Uma cadeira e Ricardo está sentado nela. Matheus se aproxima, se afasta da cadeira. Anália vem e vai, entra e sai, chega e se afasta, fica e volta) Matheus – Recordando o que foi dito naquele dia...

Ricardo – Não me lembro bem.

Matheus – Não foi o que o senhor disse na primeira vez.

Ricardo – Sim, eu não me lembro bem do que eu disse naquela vez.

Matheus – Quero que o senhor recorde o que aconteceu...

Ricardo – Não me lembro bem. Foi o que eu disse. Não me lembro bem.

Matheus – Mas quero que o senhor nos relate o que aconteceu de fato.

Ricardo – Quando?

Matheus – Naquela vez... Ricardo – Já disse. E vou repetir: não me lembro bem. Matheus – Quando o senhor foi ouvido a primeira vez relatou o que aconteceu. Ricardo – Sim, relatei. Mas eu não me lembro bem o que disse.

Matheus – Quer que eu leia? Assim poderá se lembrar.

Anália – Não acho aconselhável induzir, agora, uma resposta. Insista. Matheus – Faça um esforço. Ricardo – Não tenho mais forças para nada. Matheus – Não me pareceu estar tão fragilizado assim... Ricardo – Mas estou. Matheus – Prefere ler? Ricardo – Sempre gostei mais de ler. Mas não aprecio ouvir-me em voz alta. Não gosto de ouvir minha própria voz, entende? É enfadonha. Matheus – Prefere escrever? Alguém pode ler depois... Anália – É um recurso que não está previsto nos nossos critérios. Insista. Matheus – Mas eu posso dar a ele esse direito. Seria um encargo. Ou uma obrigação. Uma tarefa. Não há como se safar. Estou insistindo, não está vendo? Ricardo – Vocês vão se desentender por minha causa? Anália – O critério aqui, aqui a regra é clara: quem fala, fala por si, fala pelo que leu ou lê o que escreveu. Ninguém pode

3

Page 4: Da palavra não dita à palavra mal dita

interferir num processo de outra pessoa envolvida, ouvida, questionada. Insista. Matheus – Mas eu posso romper com esse critério. Modifica-lo para o bem do processo. Estou insistindo. Usando a força de minhas palavras. Ricardo – Posso sugerir algo diferente? Anália – Como assim? Você não tem o direito de perguntar nada! Matheus – Não entendi. Como assim? Ricardo – Eu pergunto. Quem de direito, responde. Matheus – É uma total inversão de valores. De papéis. Não aceito troca de papéis. Anália – Não parece justo isso... Não faz justiça ao processo. Ricardo – Não está envolvida aqui a noção de justiça. E sim de oportunidade. Não abordarei nada pela noção de justiça. É uma oportunidade de vocês me ouvirem sem que se preocupem em formular abordagens mirabolantes para ouvir-me. Matheus- O senhor acha justo mesmo ter essa oportunidade? Anália – Assumir uma outra posição? Ter outro papel no processo? Quero que insista. Insista. Ricardo – Sim. Tudo poderá ficar mais claro se eu levar a bom termo o questionamento. Não vocês.

Matheus – Mas, em minha posição, eu ficaria fragilizado se tivesse que responder a qualquer formulação sua. Tenho que insistir que se recorde do que disse naquele dia. É assim que quer? Insisto na proposição inicial: Quero que o senhor nos relate o que aconteceu de fato. Anália – E o que eu teria que justificar para meus superiores esse processo completamente alterado na sua essência, no seu objetivo. Insista. Não dê trégua a ele. Insista, estou mandando.

Ricardo – Eu posso me sentir fragilizado. Vocês, não? A regra só é válida para o meu lado. No lado de vocês, não? Anália – Mas os critérios são outros. São nossos. Não seus. Insista. É minha última palavra: Insista. Ricardo – Os seus são outros. Os meus, vocês não querem conhecer? Nem validar. É justo? Matheus – Seria totalmente ridícula a resposta ser dada por quem deve apenas perguntar... Vou insistir: Quero que o senhor nos relate o que aconteceu de fato. Ricardo – Mas aqui sempre foi dito que a pergunta é o que leva a ação à frente. É o que move todo o processo... Anália – O senhor parece que está tentando manipular alguma coisa a seu favor. Fazendo com que fiquemos em situação delicada. Um contra o outro. Está na hora de parar com essa brincadeira. O senhor deve relatar o que aconteceu de fato. Sabe muito bem do que se trata. Apenas relate o que aconteceu de fato. O que aconteceu de fato. O que de fato

4

Page 5: Da palavra não dita à palavra mal dita

aconteceu. Insisto que acolha essa determinação: diga logo que porra aconteceu? Ficou claro? Claro? Ricardo – Vocês tem todo o direito de pensar o que quiserem. Matheus – Eu não aceitaria, então, ser levado a sentar-me no seu lugar e ouvir suas perguntas. Ricardo – Não? Pensa que não? Matheus – Não. Como? Você está mesmo tentando manipular o processo a seu favor. Ricardo – Mas vocês já estão respondendo minhas indagações desde o começo. Matheus – Não, ninguém aqui está respondendo coisa nenhuma! Engano seu. Ninguém está respondendo nada a você.

Ricardo – Como, então, me explicam o fato de terem, aqui, respondido ao que eu não me lembrava? Matheus – Não respondemos. Agimos dentro dos critérios que foram estabelecidos previamente. Só isso. Anália – Já deixei claro que os critérios são nossos. O seu é uma intromissão. Indevida, até. Indevida, muito indevida. Intromissão indevida, está claro? Responda. E logo acabamos com isso. Matheus – Sim, uma clara intromissão. Você, a bem da verdade, sempre é tentado a atravessar. Interferir no

processo. Ir além. Muito além. Mas quero que o senhor nos relate o que aconteceu de fato. Ricardo – Atravessar? Matheus – Sim. Ir para o outro lado, sem ter autorização para tal. Anália – Atravessar é algo proibido dentro dos nossos critérios. Aqui ninguém tem autorização para atravessar nada. Em nenhum momento, sob nenhuma hipótese. Está claro? Insista. Vamos! Ricardo – Mas eu não quis atravessar nada. O que sempre eu quis foi questionar a inexistência de critérios. Nunca vi critério em nada. E é sobre os critérios – inexistentes para mim – que eu gostaria que vocês comentassem. O que estabelecem de modo nada claro, com truques e muitos desvios, senões. Sempre há algo que não é dito e que fica sempre sem sabermos o que foi dito. Incomoda isso do não dito ter mais valor que o que é dito claramente. Matheus – Veja, só, está atravessando, de novo! Anália – Sim. Como tem feito desde que o processo se instaurou. Não deixe de responder. Relate o que aconteceu. Ricardo – Defender um ponto de vista não é algo desabonador. É salutar para todo processo ter opiniões divergentes, contrárias até. Enriquece o processo. Não é? Matheus – O seu ponto de vista não devia ser igual ao dos outros?

5

Page 6: Da palavra não dita à palavra mal dita

Anália – O meu, por exemplo. O meu ponto de vista é exemplar. Ricardo – Não. Não posso aceitar que queiram que eu enxergue apenas sob esse ângulo. Ou sob aquele outro, esse, do outro. Tenho o meu, particular. E exijo que o respeitem. É justo. Anália – Tente se por no meu lugar. Tente. É justo. Matheus – Ou no meu. É justo. Anália – Veja por esse lado. Justíssimo. Matheus- Ou por esse. Muito mais justíssimo. Ricardo – Não. Daqui eu tenho uma visão agora bem mais clara. Parece que as coisas estão ganhando contornos mais nítidos. É justo assim. Matheus – O senhor, então, está se lembrando do que havia dito? Ricardo – Não. Não me lembro. Anália – Se diz estar enxergando de outro jeito, então... Pode comparar o que disse antes com o que enxerga neste momento. É justo que se lembre. Aceitável, pelo menos... Ricardo – Não. Eu estou enxergando de outro jeito, mas não me faz ver pelo critério que em vocês inexiste. Esse é o ponto. Matheus – Como assim?

Anália – Isso é uma afronta! Matheus – Posso me sentir profundamente ofendido. Anália – Assim devemos considerá-lo pernicioso no convívio com os demais membros da classe. Matheus – Embora eu tenha até colocado, certa vez, que é salutar ter uma visão de mundo diferente...

Ricardo – Mas eu tenho a minha. Anália – Mas o critério é que todos pensassem de um jeito todo particular. O nosso jeito particular. Desse jeito particular, o nosso. Ricardo – A minha visão de mundo sempre evolui. A cada novo fato, eu vejo as coisas diferentes, sempre. Eu me reposiciono. É um enriquecimento de visão e de voz. Matheus – Vem, de novo, com esse recurso. Ricardo – Não é recurso. É a soma de minhas experiências, dos meus erros, sobretudo. Anália – Então admite que errou?

Matheus – Que foi contra os critérios estabelecidos? Que ... Anália – ... que avançou, que atravessou, que foi além do permitido e do que poderia ser plausível? Relembrou-se?

6

Page 7: Da palavra não dita à palavra mal dita

Matheus – Ultrapassou as fronteiras do bom senso... Anália – Afrontou a todos... Matheus – Deixou todos indignados... Anália – Não tinha o direito de expor assim... Ricardo – Sobre meus erros eu respondo. Não posso é agir contra minha consciência. Matheus – Mesmo estando errado? Ricardo – O que é um erro? Pode definir claramente o que é um erro? Matheus – Remar contra a maré. Anália – Boi em terra alheia é vaca.

Matheus – A má erva mata a boa.

Anália – Passarinho que anda com morcego, acaba dormindo de ponta-cabeça.

Ricardo – A imitação é a forma mais sincera de bajulação. Matheus – O senhor está querendo insinuar o quê? Anália – Não pode falar sobre o que desconhece.

Matheus – O senhor tem procuração para falar em nome de mais alguém? Anália – Não aceitamos procuração. Aqui a voz é de cada um. É o critério. Matheus – Nem use, também, o artifício da ironia. Inaceitável, isso! Ricardo – Falo por mim mesmo. Digo e assumo o que digo. Ao custo que for. Anália – Como, então, quis sobrepor sua voz à nossa? Ricardo – O que eu disse, não retiro. Matheus – Eu queria ouvir, de novo, o que disse no começo de todo o processo... Ricardo – Então diga... Matheus – Você é quem deve dizer... Anália – É impossível que esteja esse tempo todo fugindo de dizer o que disse. Ricardo – Mas eu já disse. O que eu disse, não retiro. Anália – Queremos que repita. Ricardo – O que eu disse, não retiro. O que eu disse, não retiro. O que eu disse, não retiro. Não basta? Anália – Vindo assim, dito assim, não tem valor de uma confirmação. Não é válido para nós. Não é válido. Diga. Repita. Não

7

Page 8: Da palavra não dita à palavra mal dita

use de artifícios, nem venha se fazer de bobinho. Aqui, ninguém nasceu ontem, está sabendo? Ninguém nasceu ontem. Matheus – Tem que repetir o que disse antes. Ricardo – O que eu disse, não retiro. Matheus – Assim não é válido. Ricardo – Não retiro o que eu disse. Não retiro. Matheus – Também não vale assim. Anália – Quer nos confundir? Ricardo – Não preciso disso. Vocês estão confusos por si só. Anália – Como assim? É outra acusação? Matheus – Está apontando de novo seu dedo... Metendo-o onde não deve... Ricardo – Será? Matheus – De novo acusando. Tenha cuidado. Anália – Atravessando, metendo-se onde não deve e nem pode se meter. Ricardo – Vocês não querem mesmo mudar de lado? Matheus – Como assim?

Ricardo – Eu pergunto, vocês respondem... Talvez as perguntas indiquem algo novo... Matheus – Não posso aceitar tamanha insolência. Ponha-se no seu lugar. Anália – Como o senhor é, hein? Ricardo – Eu sei o que tenho que perguntar. Minha posição é essa. Não retiro o que disse. É minha palavra final!

2 – A improvável troca (Uma cadeira e agora Matheus está sentado nela. Anália vem e traz outra(s) cadeira(s) e senta-se nela. Ricardo fica em pé, anda por traz das duas cadeiras, fica de lado delas, do outro lado, muda de lado, volta para o mesmo lado, rodeando, parando, voltando a rodear e parar) Ricardo – Eu sei o que tenho que responder, mas vou perguntar. Minhas respostas serão minhas perguntas. Anália – Quando escreveu e colocou no que escreveu uma outra voz apareceu e ela não era a sua, de quem era aquela voz? Matheus – Como permitiu que outra voz entrasse lá? Uma voz que atravessou o que disse, ou o que poderia ter dito. Anália – Falou, digo, deixou que a voz falasse por você? Falou, então...

8

Page 9: Da palavra não dita à palavra mal dita

Matheus – Sua voz é sua mesmo, ou é de quem? Anália – Acha justo falar pelos outros, ou com a voz dos outros, não evidenciando sua própria voz? Ricardo – Aqui quem faz perguntas sou eu... Matheus – É sua voz agora? Anália – Está se escondendo. Ocultando sua própria voz? Ricardo – Aqui quem pergunta sou eu... Que voz? Vocês estão ouvindo alguma outra voz que não a minha? Naquele lugar distante ele olhou para seu próprio umbigo e queixou-se: ainda aqui? Por onde você tem andado? Precisa se apressar. Já é quase de manhã... Matheus – Dito e feito. Mudou de voz. Mudou, claro que mudou. Uso indevido de outra voz. Anália – Não tem o mesmo timbre que a sua voz. Outro feitio, outro timbre, tom, cor. Você atravessa assim, sempre? Matheus – Como permite isso? Como usa uma voz proibida? Aqui, no processo, é algo muito grave. Ricardo – A voz que fala não é a voz que pensa. A que pensa é muda. A que vê é cega. A que fala, não ouve. A que comanda, está surda. Cegos, surdos e mudos. Em cada vez, em cada ação. Pensar é agir? Não! Falar é agir? Ação é palavra? E a palavra, onde fica?

Respondam! Ainda bem que você me acordou. Tinha perdido completamente a noção do tempo. Foi tão bom estar aqui. Vendo seu corpo, sentindo seu perfume. A maciez de sua pele. Sua bunda... Matheus – Mesmo assim, é uma afronta confundir isso aqui. Você não tem o direito de se por em defesa de quem não pediu sua ajuda. É uma intromissão inominável. Anália – É um total descaramento, usar essa máscara... Ainda mais com tantas vozes diferentes. Ricardo – Quero que vocês respondam. Ninguém aqui, agora, aqui, no presente instante, pode furtar-se a não ser o que é, nem a falar o que não deve, e não deve, em hipótese nenhuma, confundir-se com o que está bastante claro. Minha querida, minha querida. Seu cheiro está em meus dedos... Que gostoso é seu gosto. Matheus – No primeiro depoimento você escreveu que era um rei de si mesmo, seu próprio lacaio e que se julgava Deus. Pode explicar? Anália – Você ouve vozes? Dá ouvido a elas? Dá vez a elas? Vez e voz? Ricardo – Cala a sua boca! Você não sabe o que diz. Como posso esquecer o que você fez a noite toda? Nem senti o tempo passar. Matheus – Que porra de audácia é essa? Manda calar a boca assim, numa boa? Ponha-se no seu lugar, seu filho da puta bastardo!

9

Page 10: Da palavra não dita à palavra mal dita

Ricardo – Não me diga o que devia ser dito para você mesmo, não por essa voz interna que só confunde o tempo e o espaço. Diga para você mesmo e responda para quem lhe perguntou. Não fuja da sua responsabilidade. O que é dito, tem que ser respeitado. Bem ou mal dito, a responsabilidade é de quem deixa a boca falar. Se não quer falar, tapa a sua boca. Ou faça o que digo: cala a sua boca! Beijando-me assim, fico sem poder dizer tudo o que sinto. Seus lábios são tão macios. Sua língua... sua língua... de novo, não... não posso aguentar sua língua, assim... Matheus – Você é mesmo um ser audacioso. Disfarça-se muito bem na figura do acusado, mas quer ser mesmo, o acusador. Ponha sua verdadeira cara aqui em nossa frente. E não fique falando por nós, aí atrás! Saia da sombra. Ricardo – Ah... sim... eu trafego por uma imensa gama de afetos. Minha faixa de percepção vai além de suas duas orelhas, está entendendo? Sei que você não tem olhos para trás, mas você não se arrepia quando um bafo quente lhe pede para se abaixar, para ficar de quatro? Vire-se, venha por cima. Esfregue toda sua vontade na minha cara... Sim... esfregue com força. Agora, sim... deslize bem devagar agora até meus seios... Anália – Como? O que está insinuando? Sou mulher. Gosto de mulher. Isso não é comigo. É? Ricardo – Mas eu não falava para esse você. Eu falava para aquele outro você, não em você, mas nele, não nele, mas no outro, nos outros vocês, imperceptíveis vocês. É tão difícil perceberem como isso é amplo e merece uma atenção que vai além do visual, do táctil? Que vai além da palavra, da ação? Ah... eu não consigo

mais parar de gozar... Vendo-a gozar assim, eu gozo ainda mais. Como pode tirar tudo isso de mim, como posso sentir-me capaz de dar-lhe esse prazer que jamais imaginei? Matheus – Não gosto quando insinua que eu seja gay. Ou eu entendi mal?

Anália – Cada um gosta do que gosta. Não há como insinuar nada contra o que cada um prefere.

Ricardo – Não coloquei as coisas assim. Não me vejam assim. Eu falava em submissão, não em opção. Você, acostumado a curvar-se. A agir como uma perfeita vaquinha de presépio, tá me entendendo? A aceitar. A não se impor. A deixar-se invadir. Eu disse invadir. Não usei o verbo penetrar. É outro o sentido. Invadir é uma coisa, penetrar é outra. E não são sinônimos, ouviram? Mas você me fez tão mulher. Tirou dentro de mim um sentimento de pertencer a um mundo privilegiado que eu já não imaginava poder pertencer. Acho que agora tenho o mesmo gosto que você. Somos um só cheiro. E é tão bom essa mistura... Matheus – Não gosto de insinuações. Não quero que insinue mais nada, está claro?

Anália – O que é opção, não foge à regra. O que é aceito, aceitado está! Não venha colocando palavras em bocas indevidas.

Ricardo – Eu não posso fugir à regra? Vocês podem? Terei que aceitar todas as condições impostas de um modo não claro, nem transparente, nem... Venha, de novo, esfregue seu interminável desejo em meus seios, esfregue... De novo, em minha boca. Bem devagar. Assim. Ah... sua língua, de novo... Como posso segurar

10

Page 11: Da palavra não dita à palavra mal dita

tudo isso. Como posso? De novo, assim? É assim que você quer. Sim, assim... Não vire, não vire... Assim, sim... sim... Ah...!!! Matheus – Você e os critérios, de novo? Condição é critério? Critério é regra? Regra é condição? Tudo parece convergir para um só ponto. Aceitar ou não. Ficou claro? Ricardo – A cada dia fica mais claro que você é meu último e derradeiro amor. Quanto tempo eu perdi, quanto tempo! Não é critério o que estamos discutindo. Eu falava em vozes. Há um imenso espectro de vozes que podem surgir dentro de um pensamento, de uma ação. Se há uma voz, há uma emissão. Se há emissão, só é válido tendo alguém para receber. A voz não pode se calar apenas porque alguém não a quer ouvir. Alguém, em algum tempo, em algum lugar vai ouvir o que possa ter ficado perdido no ar, no tempo, no espaço... Nos últimos meses – quanto? - Só uma semana? Foi tudo tão intenso... Recuperei tanto tempo em tão pouco tempo? Não é possível. Parece que estamos nos amando há um século. Não? Não é o que você sente? Claro, claro... é tão intenso, mas tenho um lado racional que me diz que hoje é quinta-feira, que daqui a pouco tenho que trabalhar. Mas voltarei correndo para mergulhar entre suas pernas. Quero você entre as minhas, sim... sempre...todos os dias... Anália – Você vem até aqui para justificar as vozes que você se apropria para justificar o que disse, o que tem dito, nos últimos tempos... Não é esse o critério. Acho que deixamos bem claro isso. Não usar a voz do outro, nunca. É a regra, é o critério, é a condição que não se pode burlar, nem alterar. Ricardo – Essa condição, que vocês chamam de critério eu desconhecia.

Quando falo não falo por mim só. Não está em mim essa condição de ser único. De ser uma só voz. Um só. Sou múltiplo. Ampliam-se em mim todos os sentidos. Além das vozes. Estou tentando, desde o início do processo deixar bem claro que não falo apenas pelo que eu falo. Pela necessidade que se impõe. Eu falo pelo que outras vozes precisam falar. Não é tom de voz, nem é timbre, nem é emissão, nem é meramente sotaque ou vício de linguagem. Eu falo de algo mais profundo e que vem de uma consciência. Uma latente consciência que se soma a outra consciência latente. Uma que se esfrega na outra. Outra que alavanca outra, que provoca sinergia, confronto. Que faz outra eclodir, nascer. Que bate, que recebe o baque de volta, que retorna com mais força e solta, salta, pula, amplia, vai além, explode em outras vozes, que alcançam outra voz, mais alta, mais perceptível. Uma que provoca, que sai, outra que brota, que se soma, que se amplia, que se torna uníssona para, lá na frente, se fragmentar e rebrotar, re-somar, re-ampliar, re-virar, re-transformar, virar um duo, depois, um quarteto, um octeto, uma orquestra, um coral imenso, vários corais, várias orquestras, na sinfonia da voz primeira, do grito primitivo. Daquele eu que gritou de dor, mais adiante vai gritar mais forte é de prazer, de um prazer imenso de poder ser ouvido, sem interferências, sem pré-condições, sem regras, nem critérios, nem nada que atrapalhe que imponha barreira, que prenda, que estanque, que confunda, que afunde, que aprisione, que guarde, que proteja, que salve, que encarcere numa gravação ou na forma mais primitiva de eco ou de reverberação atonal... Não, as vozes não nascem das palavras, nem as palavras nascem das vozes. A voz é palavra quando ela é sentimento, é razão. A voz é sentimento quando é palavra e palavra ouvida, que se possa ouvir. Voz é isso. Deixem as vozes serem ouvidas, não aprisionem as vozes, as razões e os sentimentos nos tais critérios que não estão claros, está bem?

11

Page 12: Da palavra não dita à palavra mal dita

Matheus – Que explosão verborrágica é essa? Surtou? Quanta repetição! Tudo é indevido, não percebe que a apropriação é indevida? Apropria-se da voz e da vez, sem poder. Acha que pode? Não!

Anália – Quer abrir um dicionário aqui? Deixe de ser prolixo! Seja mais claro! Não misture tanto assim, seja mais claro! Matheus – Meu ouvido não é pinico, está sabendo?

Anália – Nem vim aqui para ouvir tanta baboseira... Que maluco! Parece que você quer contar uma coisa e fica usando essas máscaras... Dá para parar de brincar? Aqui não se pode brincar. Tudo tem que ser levado a sério. Muito sério!

Matheus – Vire essa boca para lá... Sai de mim! Não se aproxime assim. Eu não permito essa aproximação indevida.

Ricardo – Mas eu gosto de me aproximar assim, invadir seu ventre com minha língua voraz. Meus dedos certeiros e delicados. Preciso por o dedo em você, molhar em minha boca. Minha boca, ah, sua boca... Meu gosto, seu cheiro. Meu cheiro, seu gosto. Tudo se misturando...Sempre julgando. Julgando-se serem seres escolhidos para terem espadas em suas mãos e o poder de cortar o que lhes incomodam, não é? Um sempre fazendo o contraponto da voz uníssona do outro. Não são vozes opositoras as de vocês. São vozes acordadas para a mesma coisa, ditas diferentes, porém significando a mesma coisa, o mesmo significado insignificante pelo que traz em seu bojo: outras vozes não são bem vindas se forem diferentes, discordantes, sobretudo. Como vou conseguir trabalhar hoje, amanhã... tenho que viajar hoje e só retorno na sexta-feira.

Como vou conseguir me concentrar no meu trabalho, estando quilômetros longe de você? Estar aqui eu vivo mais. Longe, do que viverei? Matheus – E quem disse que nosso critério é de aceitar a voz discordante?Quando um fala a outra voz se cala. É o critério. E não se fala mais nisso!

Anália – Aqui só é aceito o que foi classificado como singular. Não importa a qualidade. Tem que ser singular. Uma voz singular, entendeu? A qualidade, descartamos. Entenda isso de uma vez por todas! Ricardo – Eu posso ir ao seu encontro. Posso pegar um voo noturno. Voar nos seus braços noite adentro e retornar pela manhã. Se você quiser... Ter a mesma voz, o mesmo sem sentido não me parece ser singular. Isso me parece mesmice. Vozes singulares que se disfarçam em voz singular. O que é singular não se aplica ao coletivo. Coletivo é o que é diverso. Diverso não é singular. Na visão de vocês, o coletivo singular é o que faz uma diversidade singular? Se todos são singulares, ao mesmo padrão, deixam de ser singulares, pois pluralizam a mesmice. O igual. Onde fica o diferente? Onde ele entra? Isso é de uma clareza para mim. Venha, você pode? Vai pagar como essa loucura? Acha que consegue? Minha milhagem cobrirá tudo... Ganhei tanta milhagem de vida e prazer com você, que nada terá um custo que eu não possa assumir... De novo, venha... ainda temos 10 segundos... Anália – Mesmice é o que você pensa! Sempre batendo na mesma rebatida tecla!

Matheus- Não é o fato de você se postar como voz discordante que dará a você a

12

Page 13: Da palavra não dita à palavra mal dita

condição de ser diferente. De ser singular. O singular aqui é ser igual. Não discordar. Não contrapor. Não confrontar. Não deixe de se conformar. Conforme é, conforme está. Ricardo – Alguém tem que pensar um pouco. Será que não vai sair caro essa nossa loucura? Não? Não quero ter uma voz discordante. Não é loucura? É um amor que jamais senti. Quero expor todas as vozes que não se encaixem na tal singularidade decretada sobre o que possa ter outra qualidade, não aquela do mesmo molde, do que é só excêntrico, esquisito ou estanho. Não é loucura? Eu sei, eu sei que não é. Amor, paixão... nunca é loucura. Só de pensar, fico ardendo, derretendo. Escorrendo, fluindo... como aquela pequena nascente que vai virar a foz de um imenso rio...

Matheus – Você quer ser diferente apenas por discordar.

Anália – Discordando, quer se fazer diferente. Só isso!

Ricardo – Vocês acreditam mesmo nisso? Eu não sou herdeira por um acaso! Você é minha princesa. Meu reinado está acima do bem e do mal. Não vou pensar em felicidade a partir de uns míseros reais. De umas noites voando sobre esses céus... O céu de seu corpo me pede coisas que sou incapaz de negar...

Matheus – Sim. Discorda por discordar. Sua voz diferente é apenas isso. Um disfarce. Não se sustenta. É uma mera voz que discorda, disfarçando-se de diferente.

Ricardo – Sua língua...E o que significa essa voz uníssona do discurso de vocês? Sua língua, de novo... E a minha... e a

minha... você está gostando tanto assim? Seria o quê? Comodismo ou burrice? Venha, ainda temos 5 segundos. Cinco longos orgasmos, nunca gozei tanto assim em minha vida. E nunca com tanta intensidade... E estou viva, lúcida. Inteira. Não me sinto como objeto. Você e eu, numa substância que se funde em si mesma. Exala um perfume. É perfume. Produto de nossa mais fina alquimia.

Matheus – De novo, na forma de agressão? Você tem sempre que agredir a todos nós?

Anália – A mesma e surrada fórmula. Bate para não apanhar. Agride para se sentir protegido. Você é um louco, está sabendo? Um insano e intolerável louco...

Ricardo – Faltam só dois segundos... e já gozei umas dez vezes... acho que...Mas estou indagando: o que é esse discurso igual, repetitivo e com o mesmo sentido, mesmo quando usam palavras diferentes? Que de igual tem isso? ...não quero acordar... Nem vou deixar você viajar.

13

Page 14: Da palavra não dita à palavra mal dita

3 – A palavra não dita (Duas cadeiras e agora Anália deita-se nela. Matheus vem e traz outra(s) cadeira(s) e senta-se nela. Ricardo puxa uma cadeira para o procênio. Depois, pega outra cadeira e coloca-a ao lado da primeira)

Anália – Quando você se for, não esqueça de jogar a chave por baixo da porta. Vou mandar fazer uma cópia...Você é mesmo muito louco. Como foi que eu pude aceitá-lo na congregação? Logo você, agindo assim. Matheus – Eu havia avisado. A presença dele poderia não ser bem recebida pelos demais membros. Você foi boazinha demais.

Anália – É, mas havia uma vaga. Antes de sair, venha de novo...

Matheus – Você sabe o quanto eu resisti.

Anália – O que foi feito, foi feito. Você poderia ter batido o pé. Eu não vou resistir...

Ricardo – Você vem sempre para cá? Eu a vejo nos voos da noite. Vocês não tinham como impedir minha participação. Seria uma tremenda burrice anunciarem a congregação com menos integrantes. Caíram na própria armadilha. É mesmo? Que bom!

Matheus – Mas o argumento dele foi poderoso. Ou eu não entendi direito. Mas ele veio e ficou.Anália – A que horas sai o seu voo? Um

erro que poderia ter sido evitado. Nós nunca sabemos mesmo sobre as pessoas. Elas sempre nos surpreendem. E, nesse processo, foi uma surpresa muito desagradável e que vai nos custar muito e nos causar muitos aborrecimentos. Você chega quando? Tem táxi neste horário? Posso pegá-la. Eu a pegarei e vamos continuar nosso amor durante o trajeto...

Ricardo – Por coincidência, por pura coincidência. Nas três últimas noites viajamos no mesmo voo. Você não percebeu? Apenas disse que vocês iam ter que cobrir o custo com menos participantes. Eu entrando, sendo aceito, a despesa seria igual e a receita maior. Mas é difícil vocês entenderem isso, não é? Percebem a simplicidade do raciocínio? Você, me parece, está sempre muito cansada? Engano meu? O que? É mesmo? Uma nova paixão? Bem, não vou falar sobre o que já foi superado.

Matheus – Ele veio e ficou. E foi ficando, ficando, ficando. Ficando cada vez mais evidente que ia se intrometer no processo. Sim, no processo. Intromissão que, reiteradas vezes eu questionava e você nada. Apenas dizia: deixe o tempo passar. As coisas vão se assentando. Assentando merda nenhuma! Agora, a bomba estourou em nossas mãos. Anália – Não deixe, nunca de acreditar no meu amor. Meu amor virou o nosso amor, não é o mesmo que você sente? É? Podemos desarmar a bomba. Mas preciso da sua ajuda. Ele não terá como reverter a situação. Essas últimas noites, nos minutos que antecediam sua chegada, eu imagina estar ao seu lado, no voo para cá.

Ricardo – É tão bom quando uma nova paixão se instala em nós, não é mesmo? E também fico bobo. Igualzinho com você? Vocês desistiram de exigir de mim uma

14

Page 15: Da palavra não dita à palavra mal dita

atualização do meu relato anterior? Desistiram?

Anália – É um acordo o que você está propondo, agora? Não fazemos acordos com pessoas como você. Você não tem palavra. Vive roubando a palavra dos outros. Invade as conversas com uma falta de cerimônia, que, olhando de longe, eu sinto nojo, percebe? Nojo! Não, nunca... Eu nunca sentirei algo que não seja amor por você. Nunca. Esse tipo de amor quando chega para nós, pessoas mais experientes, não desse tipo de experiência única que estou vivendo, mas a experiência da longa caminhada, da aventura pessoal, da profissão que escolhemos e para a qual nos preparamos, estudamos... Você me dá nojo, está sabendo? Eu e muita gente mais sente nojo do seu jeito insolente de ser. Matheus – Não fale assim com ele. Ele é incapaz de entender a dimensão da cagada que fez. Estou quase acreditando que será pura perda de tempo insistir para que ele repita as palavras sobre o tal fato. É impossível ele repetir. Cada vez ele diz uma coisa diferente. E não vejo como um acordo o que ele está propondo. Apenas está protelando o final do processo, empurrando com a barriga, usando dos artifícios que as vozes possam de dar como segurança. Não vamos insistir com o jogo. Parece bem claro que ele confirmou o que disse. Ou você pensa de modo diferente?Ricardo – Igualzinho? É mesmo? A paixão a pegou em cheio, não é? Diferente, vocês pensam que me enganam. Nada é diferente entre vocês. Creio que possam até ser gêmeos idênticos com corpos diferentes só para enganarem nos seus jogos de poder. Quando a paixão nos invade, todos ficamos com a mesma cara de bobo. Parece que levitamos. E voamos mesmo. Ah! Claro, estamos voando. Mas

não apenas literalmente, como agora. Voamos de formas tão distintas.

Anália – Acho que eu me preparei ao longo de minha vida para esse encontro com você. Todas as minhas frustrações, todas, em todos os campos de minha vida, de minha caminhada, todas elas foram a preparação para esse encontro. Você vem e nos ataca com essa ideia de que fazemos um jogo de poder. Não enganamos ninguém. Temos uma caminhada retilínea em nossa ética. Você é quem pensa que não temos ética. Se há falta de ética, ela é do seu lado. Ela aparece rota, rasgada, no seu modo de agir e de envolver as pessoas. Eu me preparei para esse nosso encontro. E estamos voando nesse amor que não quero que termine nunca.

Matheus – Vamos encerrar a discussão desse processo? Dá para aceitarmos o que foi dito pelo que dito foi?

Anália – Você não quer insistir mais? Talvez, se insistir mais um pouco ele assuma e repita o anteriormente dito. E, assim, dito e feito. Nós o pegamos! Quando eu a pegar de novo... você não imagina o que vou fazer?

Ricardo – Eu não tenho pressa. Se quiserem prorrogar a discussão do processo, sinta-se à vontade. Tenho todo o tempo do mundo para esperar. Se quiserem encerrar agora, não me oponho. O que eu já disse, está dito. Não repito o que disse e não retiro o dito. Se há palavras não ditas, a interpretação ficará por conta de vocês. O que eu disse, disse. Você aprendeu a voar através do amor? Desculpe. Não queria entrar nesse aspecto mais íntimo. Ah, que bom... Desculpe, mas as pessoas que aprendem voar no amor são pessoas diferentes em vários aspectos. Voam com uma noção de

15

Page 16: Da palavra não dita à palavra mal dita

plenitude que é demais. Voam de um jeito tão especial que é inegável a gente não perceber suas habilidades. Parece que fica impresso no permanente sorriso e nos olhos que brilham tão intensamente. Até o perfume natural das pessoas exalam mais acentuadamente. Será que estou exagerando? Tenho dito, afirmado, repetidas vezes. A interpretação de tudo é por conta de vocês. São vocês, os detentores do poder supremo, que vão mesmo dar o veredicto final, não é? A última palavra é sempre de vocês, eu sei. Eu sei. Está claro para mim, isso. Não deixei, nunca, nunca mesmo, de ter em mente que vocês poderiam fazer o que desejassem a qualquer hora e por qualquer motivo. Como afirmei antes, não há regras. E quando não há regras, só me restava temer apenas a dimensão da reação e da resposta de vocês dois. Ou seriam mais, os que vão decidir?

Matheus – Será assim?

Anália – Vou ter que pensar um pouco mais. Me dê uns segundinhos, está bem? Você imagina o que vou fazer? O que posso fazer nestes segundinhos antes de sua saída?

Matheus – Quando tiver com sua decisão, é só me chamar. Vou fumar um cigarro enquanto isso.

Anália – Uns segundinhos, só. Nesses cinco segundos finais do nosso encontro eu me transformo em outra pessoa. Imagino, até, que eu seja o homem de sua vida. E veja só que loucura. Eu a imagino homem também. Não é loucura? Já pensou? Fazemos amor feito loucos e cada um cai morto para o seu lado. Os homens, quando fazem amor e gozam, não viram-se para o lado e dormem? Já imaginou? Mas isso é apenas um pensamento inconsequente meu. Eu a quero mulher, só mulher. É o que quero. Acho que cheguei a uma conclusão. Venha até aqui.

Matheus – Não deu nem tempo para o meu cigarro. Tomei um café primeiro. Ainda bem!

Ricardo – Vão consultar mais alguém? A palavra final de quem é? É sua? Ou é sua? Não me parece que você tenha tanto cacife assim para dar a palavra final. Parece-me, muito claramente, confesso, que você é apenas aquele que dá a palavra final como o pobre coitado que tem algumas bombas amarradas no corpo num tipo de ataque suicida de certos extremistas pelas bandas do Oriente. Você vai lá apenas como veículo, sem vontade própria. Dirigido sempre, nunca dirigindo, nunca criando. Apenas seguindo o que lhe determinam. Até para morrer você é assim? Até para matar, também? Até para tirar a sua vida, até para ceifar sonhos e felicidades alheias? Quando eu a vi pela terceira vez, olha, não me leve a mal. Mas eu senti um forte cheiro de amor exalando de você. Senti-me, olhe, não me leve a mal mesmo, senti uma certa dose de ciúme. Dá para acreditar? Como posso sentir ciúme de alguém que eu não sei quem é, nem conheço um pouquinho mais além do que estamos conversando há poucos minutos aqui, neste voo para lá...

Anália – Venha, venha logo. Olhe, preste atenção no que vou dizer. Preste mesmo muita atenção: Vou aceitar que ele continue no processo. Não vou deixar que ele saia do processo.

Matheus – Você ficou louca? Surtou?

Anália – Espere. É uma jogada. Talvez seja uma saída para nós. Para todos nós. Quando eu lhe disser que você é meu homem, não se assuste, está bem?

Matheus – É muito confuso isso. Confuso mesmo! Vai revelar isso para ele?

Anália – Não, espere. Será apenas um jogo. Vou levá-lo a acreditar que eu aceitei as tais vozes que ele anda usando sem

16

Page 17: Da palavra não dita à palavra mal dita

permissão e de forma irresponsável. Eu o trago para perto de nós. Ao nosso lado, ficará mais fácil controlá-lo. O que acha? Então, é um jogo. Você entra no jogo e faz o seu papel, improvisa suas reações, age como melhor lhe convier, está combinado? Mas você nunca deixará de ser minha mulher, mesmo fingindo ser meu homem. Trocamos os papeis, finjo também que sou seu homem. Invertemos sempre, trocamos. Ficará um jogo interessante, não é mesmo minha querida? Quando ele estiver ao nosso lado vai, aos poucos, aceitando nosso comando, nossas ideias. E deixará de se opor ao nosso critério do dia. Não vai mais questionar nada. Será um aliado. É mais fácil a gente descartar um aliado que um inimigo. Podemos armar alguma coisa e ele será flagrado e não poderá usar de nenhuma outra voz que não a sua própria. Entendeu bem o que eu disse? Está claro para você?

Matheus – Não me parece que, pelo estilo dele, pelo jeito que ele é, vá aceitar esse jogo. Ele não vai cair nessa, não! Tenho certeza. Não cairá. O cara não tem tipo de ser bobo, você sabe. Ele é dos que sabem armar, muito bem, um contragolpe, um contra ataque poderia ser mortal para nossas pretensões e para a manutenção desse processo todo.

Ricardo – Eu sei lutar pela minha felicidade. Meus sonhos não estão aí para serem tomados e revendidos. Meus sonhos eu não negocio. Não adianta quererem propor algum tipo de permuta, de troca, de escambo. Eu não cedo, não vendo, não empresto, nem alugo sonho nenhum. E, muito menos, eu deixarei os meus sonhos serem tomados, Nem com jeito, nem, à força. Que fique bem claro tudo isso! Um acordo, não estou disposto a isso. Não mesmo! Então... é o que eu tenho sentindo, nos últimos minutos, desde que você veio sentar-se ao meu lado, nesse voo que parece ser mais longo nessa noite. Você, me perdoe mais uma vez, mas você não quer dizer nada? Será

que ficou assustada com o que eu disse? Diga, pode até me xingar, mas não fique sem dizer nada, está bem? Vou me sentir melhor com você reagindo mal a não reagir de nenhum modo. Quer que eu saia daqui e procure outra poltrona mais atrás? Não estou disposto a nenhum tipo de imposição. Não aceitarei mudar de posição. Que fique bem claro. Sem imposição nenhuma!

Anália – Adoro brincar assim. Levar a experiência do amor e do prazer para as últimas consequências. Ir além do limite. Você adora correr perigo também, não é? Sinto que você fica mais excitada quando eu proponho esses jogos, essas brincadeiras na beira do precipício. Sabe... o prazer vem com uma certa dose de medo, e o medo de não dar certo, de tudo sair errado, é excitante demais! Eu gozo só de pensar que tudo pode ser uma tremenda roubada. Mas ainda bem que você aceita. Ainda bem que você me induz, até, a agir assim. Ainda bem que você é minha mulher, mas pode ser meu homem. E sendo meu homem pode exigir que eu seja homem também, ou sua puta, sua vadia. Eu tenho cara de santa, tenho? Ainda bem que me chamo Anália, e não Amélia. Nomes de mulheres em duas canções famosas. Se Anália não puder ir, eu vou só... Será que eu posso estar só com tantas péssimas ideias que me ocorrem rotineiramente? Sempre estou acompanhada de pensamentos pra lá de impublicáveis, eu diria. Não, não me venha com essa ideia de que eu seria uma excitante Amélia. Não, não venha pensando besteiras, sim? Você entendeu bem qual o tipo de jogo eu vou articular? Vai me ajudar, em todos os detalhes, em cada lance. Tem que se manter firme em sua posição de meu principal aliado, está bem? Não me deixe antes do tempo. Nunca pense em abandonar o barco, viu seu ratinho?

Matheus – Eu gosto muito de você. Não a abandonarei, você pode confiar em minha

17

Page 18: Da palavra não dita à palavra mal dita

lealdade. Mas você acha mesmo que eu possa ser o seu ratinho?

Ricardo – Nossa! Sua mão está tão fria. Será que foi demais o que eu disse? Sim, sim... eu fico... fico sim. Você gostou do teor de minha confissão. É precipitado eu ter agido assim? Já dizendo o que sinto? E você? O que está sentindo? Sim, pode se encostar em mim. Pode, venha... Meu coração parece que vai explodir. Nunca imaginei que eu pudesse agir assim com uma estranha! Tirem seus cavalinhos da chuva! Não vou mudar um só ponto do que já afirmei. Nem vou querer que façam uma coisa e, para os demais, possa parecer que foi outra coisa completamente diferente do que aconteceu. O que é é, o que foi dito, está dito, dito com ou sem palavras.

Anália – Sim, você é meu ratinho, meu ratinho obediente e bobinho. Mas um ratinho muito gostosinho com esse bigodinho tão delicado neste rostinho de menino tímido e bonzinho... De Amélia eu não tenho nada! Mas eu tenho mesmo um jeito vulgar que tanto agradam homens quanto mulheres. Há certas mulheres que se excitam só de entrar na minha sala. Pois eu faço um tipo tão sério, mas tão sério, que muitas delas quase gozam só de ouvir minha voz grave e séria. Se eu desse espaço para umas avançadinhas que me procuram, eu não ia ter sossego na vida e já teria sido demitida do meu cargo. Ia ser uma foda só... Fodendo, fodendo, fodendo... Você vai seguir todas as minhas instruções, ratinho? Vai? Que bom!

Matheus – Só farei o que você mandar. Terei alguma queijinho especial para comer, como recompensa pela minha fiel e cega obediência? Adoro um rochefort! Pode ser um gorgonzola também. São similares, mas o francês cai mais ao meu refinado gosto.

Anália – Pode acreditar! Uma foda atrás

da outra. Gozando sem parar. Eu também gosto do cheiro forte de certos queijos. E do sabor marcante que eles tem.

Ricardo – Será que vocês não estariam armando um tipo de armadilha? Não sou um rato que se pegue tão facilmente, entenderam? Sou imune a todo tipo de ratoeira. Ao sentir o seu cheiro marcante, que define bem o que você deve mesmo ser, fiquei chapado. É ruim dizer que se ficou chapado por causa de uma mulher? Paixão. Seria amor à primeira cheirada? Bem, você tem um tipo que me atrai, claro que é uma mulher bonita. Mas tem alguma coisa meio ambígua em você. E isso de ambiguidade é o que me atraiu, além do seu cheiro, desse que exala em seu corpo tão fortemente. Ah, não é uma questão de dom olfativo. Mas esse amor e essa paixão alucinada que você exala é de matar! Fiquei mesmo chapado, acredita? Não me venham com armadilhas. Nem com acordos, pois já deixei claro que não farei nenhum tipo de acordo. Quero uma decisão e é só isso. Nada de deixar uma decisão para uma outra instância. Um outro dia, como é costume de vocês, não mesmo. É o que é e será aqui, e pronto!

Anália – Você gosta de queijo e de champanhe?

Matheus – Como queijo até com uísque! Com pinga, cachaça e cerveja. Um paladar eclético, eu diria.

Anália – Põe eclético nisso!

Matheus – Vai me dar alguma instrução especial antes de eu chamá-lo para a etapa final do processo?

Anália – Não será preciso. Vou continuar gozando ainda por umas quatro horas. Uma coisa louca é isso que aconteceu comigo ao descobri-la minha, ao senti-la minha. Meu homem, minha mulher. Ele vai saber a hora exata de vir aqui. Não se esqueça que ele é um homem com dons

18

Page 19: Da palavra não dita à palavra mal dita

especiais, também. Pena que seja tão turrão e teimoso. Além do problema maior, de descaradamente utilizar-se de vozes não autorizadas aqui. As intromissões dessas vozes não serão jamais aceitas por aqui. Quando estiver no seu voo de volta, imagine-se sendo paquerada por um homem desconhecido. Imagine que esse homem seja eu. Imagine que ele vai seduzi-la em pleno voo e que vai encontrar um jeito de tocá-la, tão intensamente e tão disfarçadamente, que você, vai atingir alturas inimagináveis do seu prazer. E se acontecer do prazer chegar bem no instante de uma forte turbulência, grite, grite, grite de prazer e engane a todos. Engane a todos que vão imaginar um grito de medo. Engane a todos, mas goze muito, muito mesmo! Como nunca gozou antes. Faça isso por mim e por você. Eu tenho um jeito para acabar com essas vozes intrometidas que ele tanto esforço faz para dar a elas um aspecto de realidade e de normalidade. Não há nada mais falso que uma voz que surge sem ter autorização para surgir...

Matheus – O que eu faço?

Anália – Espere.

Matheus – Onde eu fico?

Anália – Onde achar melhor.

Matheus – Fico em pé?

Anália – Pode ficar sentado.

Matheus – Agora?

Anália – Quando eu der um evidente sinal.

Ricardo – Eu não sei o que poderá acontecer se você continuar segurando minha mão assim. Diga-me o que está pensando. O que se passa em sua cabeça? Diga-me... Posso me aproximar? Vocês discutiram tanto, mas será que chegaram a uma conclusão? Sem rodeios,

tratem de dizer o que concluíram. Não estou disposto a ter enfrentado tudo isso e não sair daqui com uma conclusão. Vamos! Sem essa de pedirem para voltar amanhã. Agora, já. Agora, já? O que quer? É mesmo? Aqui? Assim? Posso não aguentar... Posso... Posso?

Anália – Vou fazer isso por você, meu amor! Será por você, meu ratinho delicado. Venha... Agora... Aqui...

4 – A palavra mal dita

(Matheus retira as cadeiras excedentes e deixa apenas uma. Ricardo pega as duas cadeiras do procênio e as coloca ao lado da outra cadeira. Anália senta-se na cadeira do meio. Ricardo senta ao seu lado esquerdo e Matheus ao seu lado direito. Estão todos de mãos dadas)

Matheus – Não foi assim que eu imaginei as cenas finais.

Anália – Você não é pago para imaginar nada! Muito menos para pensar.

Matheus – Mas eu tenho imaginação, tenho ideias. Não devia desprezar, agora o que lhe serviu durante esse tempo todo!

Anália – É irrelevante o que você possa pensar. Sei onde quero chegar e com o que posso contar.

Matheus – Será que eu fui apenas instrumento de sua vontade? Será que fui usado?

Anália – Não se dê tanto valor assim...

Matheus – Valor, que valor?

19

Page 20: Da palavra não dita à palavra mal dita

Anália – Ficar se lamentando não é o que eu esperava de você...

Matheus – Mas as promessas...

Anália – Você acreditou nelas?

Matheus – Não eram de verdade?

Anália – Quanta ingenuidade... Assim pode parecer que você é um idiota.

Matheus – Mas ingênuo posso ser. Idiota, jamais!

Anália – Não aparente, então. Segure sua onda, rapaz!

Matheus – Eu pensei...

Anália – Eu já havia dito antes. Você não foi contratado para pensar. Está fora de cogitação qualquer ideia que possa sair dessa cabecinha de melão...

Matheus – Sinto-me traído. Enganado. Parece que você me usou e que tudo o que fez foi de caso pensado.

Anália – Mas eu só faço coisas pensando muito bem cada centímetro do caminho que teria que percorrer.

Matheus – Eu era um simples objeto em tudo isso? Um instrumento para você usar nos momentos certos?

Anália – Percebeu muito tarde, meu bem. Muito tarde.

Ricardo – Será que a turbulência vai passar? Ainda bem que está segurando a minha mão...

Anália – Eu não gosto de dar a mão para pessoas mais medrosas e mais fracas que eu.

Matheus – Mas você soube pedir a minha mão quando disse que estava com medo de todo o processo, não é? E agora... agora, o que vai acontecer?

Anália – Para quem?

Matheus – Para nós?

Anália – Nós, quem?

Matheus – Nós... eu, você...

Anália – Você ainda não percebeu mesmo o que está acontecendo e o que vai resultar disso tudo? Não percebeu? Santa ingenuidade!

Matheus – Foi uma grande descortesia sua, está sabendo? Você me usou de forma deliberada. Não foi algo ocasional o que você fez comigo.

Anália – Sim. E tem alguma coisa mais a reclamar?

Matheus – Estou profundamente decepcionado com seu comportamento.

Anália – Não se dê ao trabalho de se decepcionar. Ainda é muito pouco o que poderia ter acontecido com você...

20

Page 21: Da palavra não dita à palavra mal dita

Matheus – Pouco, pouco como?

Anália – Você é o que se sairá melhor disso tudo...

Matheus – Você não merece nenhum gesto de afeto. Quando estiver morrendo, ninguém vai lhe prestar socorro ou vai lhe segurar as mãos nos seus instantes finais... Nenhum padre vai lhe dar a extrema unção... Ninguém vai rezar por você. Você só será amaldiçoada por todos.

Anália – Você pensa que não terei alguém comigo?

Ricardo – E se essa tempestade ficar pior? Estou mesmo com muito medo. Nunca enfrentei um medo tão grande num voo assim...

Anália – Ainda bem que você pode rezar...

Matheus – Quem vai precisar de reza é você. Muita reza, muita vela... Só não sei se alguém vai querer pagar por suas penitências... pelos seus pecados.

Anália – Os pecados são meus. Mas só pequei porque tive prazeres que você jamais imaginou.

Matheus – Prazer terei eu ao vê-la cair.

Anália – Não darei a você esse ínfimo prazer, meu ratinho de laboratório. Você nunca me serviu para nada mesmo. Posso descartá-lo quando quiser. E agora é chegada a hora de você ser sacrificado. Nenhum cientista ia querer um ratinho que apenas fosse para um lado. Você é um ratinho de laboratório com uma parte do

seu cérebro funcionando. O outro é cheio de fios que anulam aspectos básicos de sua vida sem sentido.

Matheus – É assim que você me vê. É assim que você reconhece o que fiz para você?

Anália – Você não fez nada. Apenas seguiu a risca o que eu determinava.

Ricardo – Está ficando pior. Parece que a turbina desse lado está soltando umas faíscas.

Anália – Não olhe para os lados quando for atravessar a rua.

Matheus – É bem provável que um carro a atropele quando for para aquele lado da cidade.

Anália – Você será, invariavelmente, atropelado pelo que o destino lhe reservou como inevitável.

Matheus – Não me assusto com suas ameaças... Do fundo do meu coração só lamento não poder dar um tiro na sua cara, agora. Mas você não merece um tapa, ou um soco. Seria ruim demais sentir a dor de minha mão explodindo em sua cara. Não quero sentir essa dor, pois sei que seria um grande prazer você apanhar na cara.

Ricardo – Você percebe que a luz está piscando?

Anália – Não olhe para os lados, já disse!

Matheus – Não vou lhe dar esse prazer!

21

Page 22: Da palavra não dita à palavra mal dita

Anália – Pare de fazer papel ridículo de criança!

Matheus – Ridículo?

Anália – Sim, ridículo. Não combina em nada com seu bigodinho...

Matheus – Bigodinho? Quem disse para você que eu tenho bigodinho? Está enxergando muito mal.

Anália – Mas eu pedi para você deixar um bigodinho, não pedi? Foi uma de minhas exigências ao contratá-lo...

Matheus – Minha caracterização não obedeceu orientação sua nenhuma. E que raio de contrato você pensa que eu assinei? Não há contrato nenhum. Nem acordo, nada. Não existe absolutamente nada entre nós na forma de documento, de papéis...

Anália – Se não existe nada, porque, então, você se amarrou em mim e agora está pedindo socorro, segurando com tanta força a minha mão?

Matheus – Não sou eu quem está segurando sua mão. Quem está segurando sua mão é ele...

Anália – Ele quem?

Matheus – Ele!

Anália – Ele quem?

Matheus – Olhe para seu lado e veja...

Anália – Não tem ninguém aqui. Ninguém...

Matheus – Não foi o que eu disse? Quando chegasse sua hora não haveria ninguém para segurar a sua mão... Ninguém... Percebeu agora o significado disso tudo?

Anália – Que coisa é essa de significado. Aqui nada significa nada. Só isso.

Matheus – Mas o que não foi dito pode ser mal dito, sem deixar de ser dito, entendeu?Anália – Jogo de palavras, de novo?

Matheus – Não é de palavras. É de vida!

Anália – Eu não gosto de brincar com coisas sérias... Não gosto desse tipo de brincadeira, nem desse tipo de intimidade. Não lhe dei e nunca lhe darei essa liberdade de falar comigo assim...

Matheus – Sua vida está em minhas mãos...

Anália – Não mesmo! Nunca esteve.

Matheus – Você não percebe mesmo nada. Fechou-se em si mesma e esqueceu que a vida não para e que as pessoas podem, com o livre arbítrio, fazerem diferente.

Anália – Diferente? Que merda de diferente é isso?

Matheus – A diferença entre viver e morrer.

22

Page 23: Da palavra não dita à palavra mal dita

Anália – O quê? Vida e morte, como assim?

Matheus – Sim, minha vida. Sua morte. Meu ganha pão, seu ocaso. Meu prazer, a sua dor...

Anália – Não... Não... Agora eu tinha que estar gozando... Aproveitando essa turbulência toda e gritar, gritar, gemer de prazer... Cade o seu dedo me tocando? Onde está o seu dedo?

Matheus – Você acha que eu me prestaria a tocá-la com meu dedo? Acreditou mesmo que seria possível eu tocá-la?

Ricardo – Será que podemos arriscar e trocarmos de lugar?

Anália – Trocar como? Tocar, é isso que você está dizendo?

Matheus – Eu não vou tocá-la mesmo que isso signifique a minha salvação...

Anália – Mas o que você está dizendo? Quer me tocar ou quer trocar de lugar comigo?

Ricardo – Eu não tenho muita habilidade com essa mão. Preciso estar no seu lugar para poder tocá-la com o dedo da mão certa.

Anália – Que dedo? Que dedo?

Matheus – Não há nenhum dedo...

Ricardo – Troque de lugar, vamos...

Anália – É preciso tudo isso para gozar?

Matheus – Gozar? Você acha que vai gozar?

Anália – Que confusão... Antes eram apenas as vozes, agora, tudo ganhou corpo, voz e corpo. É chegada a hora? É a minha vez de gozar?

Matheus – Não. Você não tem mais vez nessa brincadeira.

Anália – Vamos, quero que me toquem... Estou mandando.

Ricardo – Com que dedo?

Matheus – Com que dedo?

Anália – Um dedo qualquer...

Ricardo – Então ouça essa derradeira voz. Serve o dedo de Deus?

Anália – Que Deus? Que dedo?

Matheus – O meu...

FIM

Curitiba – PR, 08 de abril de 2010.Tem sol, mas faz frio. Hoje é quinta-feira. E com meus dedos escrevi as 23 páginas dessa peça.

23