cusa e spinoza

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157 L M Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 5 N.9, INVERNO 2008 JEFFERSON ALVES DE AQUINO * * Doutorando em Filosofia pelo Doutorado Integrado UFRN-UFPB- UFPE. Bolsista da FUNCAP (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico). MÍSTICA E GEOMETRIA: A INTUIÇÃO DA UNIDADE EM NICOLAU DE CUSA E ESPINOSA Recebido em abr. 2007 Aprovado em jun. 2007 RESUMO Nicolau de Cusa (1401-1464) e Espinosa (1632-1677) têm sido algumas vezes relacionados em função da proximidade de suas doutrinas no que concerne à aceitação da unidade como primado ontológico. Procuram por isso expressar essa intuição originária, enfrentando assim as críticas de uma Teologia Negativa, qual a de Maimônides (1135-1204), que insiste na impossibilidade de se atribuir qualquer qualificativo positivo a Deus, princípio Unitário de mundo. Diferenciam-se, no entanto, quanto ao cerne da intuição que lhes serve de fundamento: a intuição cusana é a de uma mística que aceita os limites de sua expressão, a despeito de sua tentativa sempre aproximativa de tradução daquele que seria o Máximo Absoluto, identidade para além de todas as oposições; e a intuição espinosana sendo de orientação matemática, prescinde do conceito de mistério, expressando exemplarmente a metafísica laicizada do século XVII, em que o recurso de uma exposição geométrica suprimiria os limites da linguagem, bem como a pretensa inefabilidade da realidade enquanto unidade ontológica. PALAVRAS-CHAVE Unidade. Intuição. Mística. Teologia Negativa. Geometria. RÉSUMÉ Nicolas de Cuse (1401-1464) et Spinoza (1632-1677) ont été quelquefois rapprochés à cause de la proximité de leurs doctrines en ce que concerne à l’acceptation de l’unité comme primat ontologique. Ainsi, ils cherchent exprimer cette intuition primaire en faisant face aux critiques d’une Théologie Négative, dont celle de Maïmonide (1135-1204), laquelle insiste dans l’impossibilité de donner un qualificatif positif à Dieu, principe Unitaire du monde. Pourtant, ces philosophes s’éloignent dans l’essence de l’intuition qui les sert de base : l’intuition cusane est celle d’une mystique laquelle accepte les limites de son expression, malgré sa tentative toujours approximative de traduction de celui qui serait le Maximum Absolu, l’identité au-delà de toutes les oppositions; par contre, l’intuition spinoziste d’orientation mathématique, se passe du concept de mystère et expresse la métaphysique laïque du XVII siècle, dans laquelle le recours d’une exposition géométrique supprimerait les limites de la langage, aussi bien que la prétendue ineffabilité de la réalité pendant qu’unité ontologique. MOTS-CLÉ Unité. Intuition. Mystique. Théologie Négative. Géométrie.

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De Benoist - Critique of Liberal Ideology

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    JEFFERSON ALVES DE AQUINO *

    * Doutorando em Filosofia pelo Doutorado Integrado UFRN-UFPB-UFPE. Bolsista da FUNCAP (Fundao Cearense de Apoio aoDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico).

    MSTICA E GEOMETRIA:A INTUIO DA UNIDADE EM NICOLAU DE CUSA E ESPINOSA

    Recebido em abr. 2007Aprovado em jun. 2007

    RESUMO

    Nicolau de Cusa (1401-1464) e Espinosa (1632-1677) tm sido algumas vezesrelacionados em funo da proximidade de suas doutrinas no que concerne aceitaoda unidade como primado ontolgico. Procuram por isso expressar essa intuiooriginria, enfrentando assim as crticas de uma Teologia Negativa, qual a deMaimnides (1135-1204), que insiste na impossibilidade de se atribuir qualquerqualificativo positivo a Deus, princpio Unitrio de mundo. Diferenciam-se, no entanto,quanto ao cerne da intuio que lhes serve de fundamento: a intuio cusana a deuma mstica que aceita os limites de sua expresso, a despeito de sua tentativa sempreaproximativa de traduo daquele que seria o Mximo Absoluto, identidade para almde todas as oposies; e a intuio espinosana sendo de orientao matemtica,prescinde do conceito de mistrio, expressando exemplarmente a metafsica laicizadado sculo XVII, em que o recurso de uma exposio geomtrica suprimiria os limitesda linguagem, bem como a pretensa inefabilidade da realidade enquanto unidadeontolgica.

    PALAVRAS-CHAVEUnidade. Intuio. Mstica. Teologia Negativa. Geometria.

    RSUM

    Nicolas de Cuse (1401-1464) et Spinoza (1632-1677) ont t quelquefois rapprochs cause de la proximit de leurs doctrines en ce que concerne lacceptation de lunit commeprimat ontologique. Ainsi, ils cherchent exprimer cette intuition primaire en faisant faceaux critiques dune Thologie Ngative, dont celle de Mamonide (1135-1204), laquelleinsiste dans limpossibilit de donner un qualificatif positif Dieu, principe Unitaire dumonde. Pourtant, ces philosophes sloignent dans lessence de lintuition qui les sert debase : lintuition cusane est celle dune mystique laquelle accepte les limites de sonexpression, malgr sa tentative toujours approximative de traduction de celui qui serait leMaximum Absolu, lidentit au-del de toutes les oppositions; par contre, lintuitionspinoziste dorientation mathmatique, se passe du concept de mystre et expresse lamtaphysique laque du XVII sicle, dans laquelle le recours dune exposition gomtriquesupprimerait les limites de la langage, aussi bien que la prtendue ineffabilit de la ralitpendant quunit ontologique.

    MOTS-CLUnit. Intuition. Mystique. Thologie Ngative. Gomtrie.

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    TUDO VEM DO UNO E AO UNO DEVE VOLTARSE NO QUISER DESDOBRADO E MLTIPLO FICAR

    (TUDO DEVE VOLTAR AO UNO, aforismo 1 do Livro Vde O PEREGRINO QUERUBNICO, de Angelus Silesius)

    APRESENTAO

    O objetivo que nos propomos neste artigo ainstaurao de uma reflexo acerca do princpio deunidade de todas as coisas tomado a partir de duasperspectivas: a da filosofia mstica de Nicolau de Cusa(1401-1464), e a do racionalismo geomtrico de Beneditode Espinosa (1632-1677). Os conceitos de mstica egeometria expressaro aqui as proximidades ediferenas entre duas perspectivas que caracterizarobem, no apenas o cerne do pensamento dos dois filsofos,mas de duas consideraes diferenciadas acerca de ummesmo problema. O discurso de Nicolau de Cusa, medida que busca superar o silncio oriundo de umaconscincia da inefabilidade do Absoluto, ultrapassaigualmente a perspectiva de uma Teologia Negativa comoa de Maimnides (1135-1204), que somente admiteenquanto dizer, o que no a essncia divina. A reflexocusana pode ser assim caracterizada como renovadaprocura de uma nomeao de Deus, dialeticamenteaceitando os limites da linguagem, mas ao mesmo tempoprocurando desenvolv-la em sua mxima amplitude. Enisso consistir o maior distanciamento de Nicolau deCusa em relao quele com quem mais tarde dividir aacusao de pantesmo: para Espinosa, a deduo daordem das idias por via geomtrica representa a

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    seguridade de que a ordem das coisas alcanara corretaexposio. O mesmo objeto o Uno como primadoontolgico ser definido a partir de uma compreensodiferenciada de intuio: a intuio de que parte a Ethicade Espinosa matemtica e, assim, expresso secularde uma metafsica que, j em pleno sculo XVII, procuradesocultar todo mistrio.

    1 MSTICA E TEOLOGIA NEGATIVA: ENTRE O SILNCIO E A LINGUAGEM

    [...] todos, antigos e modernos, afirmam corajosamenteque o Criador (exaltado seja!) no pode ser apreendidopelas inteligncias, que s Ele pode abarcar o que ,e que perceb-lo equivale incapacidade de reconhec-lo plenamente. Todos os filsofos confessam: suaformosura nos deslumbra e se nos oculta pela mesmaintensidade de sua manifestao, como o sol se encobreaos olhos demasiado dbeis para contempl-lo. Sobreisso se escreveu amplamente e no h por que repeti-lo. Porm o mais admissvel a esse respeito proclamado pelo salmista: Para ti o silncio louvor(Salmo 65, 2); [...] Em conseqncia, mais acertado osilncio e limitar-se s percepes intelectivas, comorecomendaram os perfeitos, ao dizerem: Pensai emvosso corao, em vosso leito, e guardai silncio(Salmo 4, 5).1

    Em sua introduo ao Livro da divina consolaode Mestre Eckhart (1260-1328), afirma-nos LeonardoBoff que toda mstica, crist ou pag, vive de umaexperincia radical: aquela da unidade do mundo com o

    1 MAIMNIDES, M. Guia de perplejos, p. 161.

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    08supremo Princpio ou do homem com Deus. Trata-se de

    uma experincia imediata de Deus ou simplesmente doUno.2 A ser assim, enquanto imediata uma talexperincia prescinde, para fazer-se realizar, de qualquerulterior desdobramento lingstico, podendo mesmoculminar no silncio: antecedente ao prprio dizer, d-se com o simples apresentar-se quele que intui. O calarapareceria aqui como resultante da intuio da unidadeporque esta, ao mesmo tempo em que se apresentaria aomstico sem mediaes quaisquer do pensamento e dafala, ultrapassaria igualmente a prpria pretenso de umasua reproduo pelo pensamento e, conseqentemente,pela fala. Estaramos diante do sentido originrio doconceito de mstica, enquanto mistrio (mysterion, dogrego). O mstico seria a um s tempo o portador eguardio do grande segredo incomunicvel: infelizmentedever manter exclusivamente consigo a chave de seusagrado conhecimento. Eis por que alguns, como So Jooda Cruz, iluminados pelo anseio de travessia da grande noiteescura da alma, preferem expressar pela poesia suaexperincia vivencial de unidade. Mas convenhamos quea poesia embora veladamente j um dizer.3

    Um semelhante esforo de articulao aquelepropugnado pela Teologia Negativa que, muito embora

    2 BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart: a mstica da disponibilidade eda libertao; introduo a ECKHART, Mestre. Livro da divinaconsolao e outros textos seletos, p. 16.

    3 Entrme donde no supe,/ y quedme no sabiendo,/ toda cienciatranscendiendo./ 1. Yo no supe dnde entraba,/ pero cuando all mevi,/ sin saber dnde me estaba,/ grandes cosas entend;/ no dir loque sent,/ que me qued no sabiendo,/ toda scienciatranscendiendo: CRUZ, San Juan de la. Cntico espiritual, pp. 25-26.

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    afastando de si o silncio, aceita como unicamentearticulvel a propsito do Absoluto aquilo que no constituia essncia deste, a saber: toma como nico discursoteolgico possvel a indicao dos limites pelos quaisinteligimos a insuficincia do prprio dizer ante aquilo quepaira sempre para alm de toda razoabilidade einteligibilidade. Nesse sentido a figura de MoissMaimnides exemplar, e o Captulo L (e os seguintes LI-LII-LIII nos quais desenvolvida a questo) do seu Guia dosperplexos nos serve primorosamente de referncia. Neleencontramos as consideraes segundo as quais Deus defendido como Uno, mas sob a condio de que tal implicaa negao de qualquer atributo como passvel de expressara essncia divina, uma vez esta no ser constituda de modoalgum por atributos essenciais. Se atributos diversosexprimem a essncia de Deus, temos ameaada a idia deunicidade, posto que sua exata expresso deve evitar amultiplicidade de idias, e com isso fica interditada aexposio de uma possvel diversidade de atributos divinospositivos. Os atributos afirmativos configuram-se comouma apresentao equivocada da unitariedade divina equalquer qualificao sua imprpria, pois pela prpriaatribuio da diversidade de atributos a Deus, tramos o Unosubstancial que este .

    Mas ainda com Maimnides (seguindo, finalmente,os captulos LVII-LVIII de seu Guia), teramos que nemmesmo atributos como existncia, unidade e eternidadepodem ser tomados como atribuveis a Deus. A existnciaseria um atributo somado, acrescentado, sobrevindo quidditas do ente, e como tal no deve ser afirmado de Deus,pois este existe, mas no por uma existncia; vive, mas

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    08no por uma vida; pode, mas no por um poder; conhece,

    mas no por uma cincia; tudo se reduz a uma s idia,na qual no h multiplicidade.4 Assim, tambm oconceito de eternidade no Lhe deve ser fixado, pois talconceito designa sobretudo uma relao com o tempo, oque imprprio de Deus. A no-temporalidade divina Oexime de qualquer vnculo com um conceito que, mesmopretendendo significar durao indefinida, aindarelativo mensurao temporal. Finalmente, que dizerdo prprio conceito de unidade, aquele que aqui nos mais caro? Para Maimnides, quele que isento dequalquer composio, quele que de absolutasimplicidade, a atribuio da unidade ainda um erro,posto vincular mais uma vez a essncia divina aomltiplo da quantidade: assim como existe, mas no emfuno da existncia como acrscimo de sua essncia, Uno, mas no pela unidade como atributo que se Lheadere. Se Deus verdadeiramente Uno, a enumerao eexposio de seus atributos nada Lhe acrescentamporque traem pela diversidade a prpria unicidadedivina. Que nos resta dizer de Deus, por conseguinte?

    Resta-nos a enunciao daquilo que no Lhepertence, daquilo que no O constitui. Vejamos: se cadaatributo positivo, enquanto diverso de outro atributo,limita a idia da infinita singularidade de Deus, entohaveremos de adotar como medida (no o silncio, no ono-dizer, mas) o dizer-no. O dizer o que Deus no-.5

    4 MAIMNIDES, M. Op. cit., p. 205.5 Os atributos negativos so os que necessariamente ho de

    empregar-se para direcionar o intelecto at o que dEle (exaltadoseja!) devemos crer, pois da absolutamente nenhuma idia demultiplicidade haver de resultar, e so os atributos [Continua]

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    Semelhante postura no deve sob hiptese algumaconfundir-se com a admisso da completa ignorncia.No se ignora aqui o uno primordial que Deus, sabe-se que Ele , mas no se sabe o que Ele . Afirm-Lo Uno precisamente negar a diversidade de atributos e, comisso, a possibilidade de qualquer discurso que queirafazer-se seguir sua apreenso como substnciasimples: fica impedida a dialtica como desdobrar-se doconceito mediante a negao de si, fica aberta a via paraa negao como discurso esttico. Isto , se pensarmosa negao em sua dinmica como exposio medianteo movimento do conceito que se desdobra e se enriqueceem determinaes que expressam gradualmente aquiloque ele , tal dialtica cai por terra j que paraMaimnides o Uno primordial no passvel deconceituaes particularizantes; estas identificar-se-iam, em ltima instncia, diversidade, traindo mesmoa essncia substancialmente nica do divino. Permanecea negao como afirmao esttica, isto , renovadorecomeo a partir do ponto originrio, a saber: o de quede Deus s se diz com propriedade aquilo que Ele no .

    Mas dizer, por exemplo, que Deus no corpreoadianta muito mais ao entendimento do que dizer quese ignora tal coisa (bem como afirmar dele positivamentequalquer outra coisa, conforme j o vimos). Assim, odizer o que Deus no , deve multiplicar-se de modo quenos aproximemos cada vez mais de uma idia divina,ainda que nunca positivamente. Porque do contrrio

    [Continuao da Nota 5] negativos que encaminham o intelectoat a meta do acessvelao homem na percepo de Deus:MAIMNIDES, M. Op. Cit., p. 158.

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    08corremos o risco abissal de, para alm de alcanar uma

    idia imperfeita de Deus, perd-Lo por inteiro. Afinal,aquele que pretende estabelecer a afirmao de atributoscomo qualidades parciais complementares de Deus,desliga-se deste por este no dever ser compreendidoseno integralmente. O dizer-no dizer acerca deDeus o que pode ser dito com acerto. Um passointermdio entre a pretenso da palavra positiva, e aresignao do silncio absoluto.

    Ora, todo o esforo de uma teologia mstica que notome, por um lado, o silncio absoluto como (in) expressomaior e nica possvel da intuio da unidade do mundo, epor outro a negatividade da qualificao dos atributosdivinos, empreender-se- no sentido de tentar traduzirverbalmente, reflexivamente, essa mesma unidadeoriginria, sem que sua expressividade alcance jamais oesgotamento do objeto. A dupla referncia da teologiamstica cataftica consiste na aceitao, por um lado, danecessidade de comunicao positiva da unidade intuda, epor outro na conscincia de que o dizer permanecersempre aqum daquilo que o dito em si mesmo. Emboraalgo sumria, tal constatao prepara-nos suficientementea abordagem do pensamento de Nicolau de Cusa, ainda quetambm em suas linhas mais gerais.

    2 NICOLAU DE CUSA E O PRINCPIO DE UNIDADE

    Contudo, supera nossa mente o modo de complicaoe explicao. Quem, por favor, poderia entender comoda mente divina seja a pluralidade das coisas,admitido que o entender de Deus seja seu ser, o qual a unidade infinita? Se continuas considerando a

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    semelhana com o nmero, como o nmero amultiplicao do uno comum feita pela mente,pareceria como se Deus, que a unidade, se dmultiplicado nas coisas, admitido que seu entender ser. E no entanto, entendes que no possvel que semultiplique aquela unidade que infinita e mxima.6

    A intuio de uma unidade que ultrapassa o dizerdefinitivo mas no elimina o dizer aproximativo,constitui de certo modo o cerne do esforo filosfico deNicolau de Cusa. A propsito, o seu De docta ignorantiaexprimiria precisamente uma tal ambivalncia: o doutointui aquilo que o princpio mais elevado de realidade,entretanto conhecendo igualmente a insuficincia de suacapacidade de expressar com exatido a essencialidadedessa mesma intuio como princpio original de todasas coisas. Por isso a tarefa do pensador consistir numatentativa de aproximao paulatina e gradual ante atraduo do que constituiria sua verdade primeira,sempre fugidia: no caso de Nicolau de Cusa, tamanhoempreendimento aponta para o encontro da maisprecisa denominao de Deus enquanto unidadeoriginria do mundo, bem como para o esclarecimentoda relao dessa mesma unidade ante a pluralidade emque se manifesta.7

    6 CUSA, Nicols de. Acerca de la docta ignorantia, pp. 37-38.7 Eis por que em sua introduo ao dilogo Directio speculantis seu

    de non aliud, traduzido para o espanhol como El No-otro (p. 5), AngelLuis Gonzlez afirma do cusano que [...] sua teoria filosfica geralpoderia entender-se como uma doutrina sobre os nomes de Deus,uma investigao das possveis frmulas de designao do Absoluto,que de seu inefvel.

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    08A busca de uma nomeao exata de Deus, para alm

    de qualquer teologia apoftica, leva o filsofo de Kues aouso contnuo de trs figuras lingsticas essencialmentecaras mstica em geral: referimo-nos hiprbole,anttese e metfora. A partir desses trs recursosprocuraremos desenvolver nossa abordagem da reflexocusana acerca do princpio divino. O uso dessas figurasno meramente estilstico, mas constitutivo daquiloque seria o cerne da filosofia mstica, conforme a viemosaqui apresentando: uma interpolao, um situar-sepositivamente entre o calar e o dizer. Nesse sentido que a intuio da realidade do ponto de vista de suaabsolutidade, no se esgotar jamais mediante alinguagem filosfica ordinria, devendo expressar-se apartir de imagens que suscitem por sua singularidade amesma singularidade a que se referem, ainda que estajamais se esgote por completo. Fica claro que alinguagem filosfica/teolgica necessita engrandecer-secom novos elementos a fim de potencializar seu poderde expresso se realmente pretende apreender o maiseficazmente possvel seu objeto mximo, este que inapreensvel por natureza. As figuras de retricafuncionaro em Nicolau de Cusa como elementospossibilitadores da constituio do prprio discursoacerca de Deus.

    A considerao da realidade una como intuioda qual se parte, conduz ao esforo de uma reproduointelectiva que, tendo em vista seu objeto, exige por suavez uma linguagem inovadora. A recorrncia hiprboleno De docta ignorantia exprime exatamente a compreensocusana de que o inaambarcvel s pode ser devidamente

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    dito, se o exageradamente. Ou seja, no h maiorproximidade do todo abrangente (se quisermos usarum conceito de Jaspers) que aquela alcanada pelademonstrao dos limites de tudo aquilo que ele no ; eesses limites sero ainda mais evidenciados, se atotalidade em sua desmesura apresentada a partir dorecurso hiperblico da linguagem. A finitude em seuconfronto com a totalidade unitria quedar ainda maisdemarcada se anteposta perante a abrangncia doconceito hiperbolizado do real como unidade: tal conceito o de Mximo Absoluto.

    O Mximo Absoluto a hiperbolizao de todarealidade porque se apresenta como denominao positivamaior de tudo aquilo que pode cair sob domnio do intelectohumano, mas que ultrapassa infinitamente esse domnio,por ser ele mesmo a prpria infinitude totalizante. ComoAbsoluto, o mximo totalizante ultrapassa infinitamentetodas as coisas que nele esto, mas sem o qual no podemsequer ser pensadas. O Mximo Absoluto o conceitohiperblico a partir do qual e somente a partir do qual podemos pensar a existncia das coisas finitas, em suma,o prprio fundamento destas. nesse sentido que se d aestreita relao entre o Mximo Absoluto como primadoontolgico maior da expressividade de toda a realidade, e acontradio dos opostos (a anttese como segunda figura).

    A impossibilidade de uma apreenso da infinitudepor um pensamento linearmente lgico implica a adooda contradio como recurso (repetimos, mais do queretrico) filosfico somente mediante o qual asinconseqncias do real se deixam postular. A anttesemesma faz-se hiperblica to logo nos damos conta de

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    08que o Mximo Absoluto enquanto absolutamente mximo,

    deve contrair o finito e o infinito, deve hipostasiar-se noinfinitamente pequeno como no infinitamente grande; porser fundamento de cada coisa particular, particular semque se esgote na particularidade.

    Como unidade, deve o Mximo comprimir toda arealidade, sendo assim complicao de todas as coisas,complicatio. A infinita pluralidade do mundo, medidaque constitui a unidade de tudo mas dela sendodiferenciada, nada mais que desdobramento, explicatio.A relao dialtica entre complicatio e explicatio efetiva-se a partir da considerao de que a singularidade dascoisas do mundo no fornece explicao de si por si,inserindo-se numa totalidade que enquanto identidadeltima de toda pluralidade, a um s tempo fornece aunidade ontolgica na qual subjaz a diversidade, comose diferencia do mero conjunto de entes individuais. na realidade una que todas as coisas se apresentamenquanto explicatio, mas a considerao da complicatiopela qual todas as coisas aparecem implicadas jamaisse exaure na identificao de sua complicao. Oprincpio complicador sempre um para alm da meraconsiderao das singularidades conjuntamente: emboraimanente multiplicidade de seus desdobramentos, nose esgota quando pensado a partir de uma aglutinaodos seres diversos.

    Assim, posto que cada coisa em particular manifestao do Mximo Absoluto, como tambm umasua ocultao (j que o Uno jamais se complicariatotalmente no finito), a aventura lingstica pela qual omstico intenta expressar sua intuio original sempre

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    elptica, parablica. Esta talvez seja, dentre as trs figuras,a mais cara s origens da tradio neoplatnica e crista que se filia.8

    No De visione Dei encontramos grandeexemplificao da metfora como recurso imagticopara definio aproximativa do Absoluto. Ali a imagemdos olhos de Deus o smbolo pelo qual se estabelece ametfora plena responsvel por uma clarificao dacompreenso da essncia divina. A comparaorealizada entre o olhar do cone que se desloca conformeo ngulo do observador e a viso de Deus em tudopresente, parece ao cusano a ilustrao mais sensvelda unicidade e ubiqidade divinas. Mas no De doctaignorantia as metforas do-se principalmente sob oelenco de exemplos matemticos, pois precisamentena caracterizao do mtodo do uso simblico da

    8 Realmente, j no platonismo a alegoria cumpre a funo dealternativa ao discurso dialtico: ilustra o cerne da doutrina emquesto, sem que a esgote conceituamente; em Jesus o recurso parbola uma forma de fazer entender seus ensinamentos porparte daqueles que o ouvem, em geral ignaros. Por isso GianlucaCuozzo procura assentar em seu Mystice videre esperienzareligiosa e pensiero especulativo in Cusano (pp. 14-16), anecessidade de no se tomar a filosofia-teologia de Nicolau de Cusacomo simples antecipao do cartesianismo ou do kantismo (dadasua crtica original ao conhecimento) ou mesmo pensamento detransio; o pensamento do Cusano no pode ser entendido se nofor localizado no mundo imagstico medievo, alegrico, simblico,uma vez sua reflexo permanecer sempre entre a indagaoespeculativa e o mistrio da revelao. Jaspers tambm aponta (emNicols de Cusa a los quinientos aos de su muerte, p. 49) aimportncia da simbologia matemtica em Nicolau de Cusa, j queesse aspecto matemtico de sua descoberta a diretriz ou o smboloda coincidncia de todos os contrrios no Infinito, que Deus.

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    08matemtica que est a marca profunda da originalidade

    do Cusano e da novidade da sua filosofia interpretativa.9

    A adoo da simbologia matemtica coincide com apretenso de desenvolvimento de uma linguagem dotadade imagens as mais precisas do inimaginvel, ilustraesde um mtodo discursivo pelo qual so explicitadasaproximativamente as dobras do inefvel. Esse recurso simbologia matemtica oferece-nos a passagem parao momento seguinte de nossa discusso.

    3 GEOMETRIA E METAFSICA

    Essas longas cadeias de razes, todas simples e fceis,de que os gemetras costumam servir-se para chegars suas mais difceis demonstraes, haviam-me dadoocasio de imaginar que todas as coisas possveis decair sob o conhecimento dos homens seguem-se umass outras da mesma maneira e que, contanto que nosabstenhamos somente de aceitar por verdadeiraqualquer que no o seja, e que guardemos sempre aordem necessria para deduzi-las umas das outras, nopode haver quaisquer to afastadas a que no se cheguepor fim, nem to ocultas que no se descubram.10

    No Discurso do mtodo, obra publicada em 1637,Ren Descartes (1598-1650) lana as bases doracionalismo moderno: o alicerce do pensamento alipostulado d-se a partir da aceitao do que h de maisprprio s matemticas, isto , o encadeamento de idiasutilizado por essas cincias que so, enfim, as nicas a

    9 Cf. a Introduo de Joo Paulo Andr ao De visione Dei, p. 95.10 DESCARTES, R. Discurso do mtodo, p. 40.

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    oferecerem concluses indubitveis. No se trata daaprendizagem particular de todas as matemticas(geometria analtica, lgebra ou aritmtica), mas do qued azo certeza de suas proposies. E a utilizao domtodo dedutivo matemtico em Descartes adescoberta de um caminho pelo qual podemos vir aatingir a ordem necessria das coisas, nada havendo todistante que no seja alcanado, nem to escondido queno seja descoberto.

    A confiana na possibilidade de descoberta do quesubjaz escondido, eis o que poderamos alicerar comotpico do cartesianismo: no estamos mais perante aposio de suspeio e suspenso segundo a qual ofundamento ltimo das coisas permanecer velado adespeito do muito nomear; mas o prprio deslocamentodo problema de uma via discursiva para uma viaprimacialmente cognitiva instaurar o otimismocientfico moderno. A matemtica guia veraz porque alinguagem do mundo matemtica: assim o afirmaraGalileu,11 assim o assinalara tambm Descartes. Uma vezo entendimento guiado com seguridade atravs da retavia de um bom mtodo que se lhe adeque, nada devemostemer: estar o erro afastado, e o mundo perfeitamentepassvel de traduo.

    11 GALILEI, Galileu. O Ensaiador (p. 119): A filosofia encontra-seescrita neste grande livro que continuamente se abre perantenossos olhos (isto , o universo) que no se pode compreender antesde entender a lngua e conhecer os caracteres com os quais estescrito. Ele est escrito em lngua matemtica, os caracteres sotringulos, circunferncias e outras figuras geomtricas, sem cujosmeios impossvel entender humanamente as palaavras; sem elens vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto.

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    08Nas Respostas s segundas objees, o filsofo

    francs far uso daquela que viria a consagrar-se comoforma demonstrativa por excelncia da filosofiaespinosana: a demonstrao sinttica. Enquanto aanlise consistiria na exposio do discurso de acordocom sua prpria gnese, apresentando assim a gestaomesma pela qual um dado pensamento se dera, a sntesetrataria de desenvolver-se a partir do resultado dainquirio, no seguindo a ordem de nascimento dasconcluses, mas sim uma ordem mais apropriada demonstrao dos resultados alcanados. esse o mtodoexpositivo adotado por Espinosa em sua obra mxima, aEthica ordine geometrico demonstrata.

    inegvel que a ordem geomtrica de exposioseja a mais correspondente pretenso espinosana dedemonstrao da unidade substancial da realidade: ageometria funciona a nosso ver como a mais adequadaexposio da unicidade universal em sua concatenaointrnseca pela qual se vinculam singularidade etotalidade, a saber, em termos espinosanos, modalidadee substancialidade. A organicidade do sistema geomtricode Espinosa expressa exemplarmente sua tentativa deultrapassagem dos limites de um discurso que tomassecomo pressuposto a impossibilidade de esgotamento mesmo que em suas linhas gerais da trama interna darealidade. A articulao entre as definies, axiomas,proposies e demonstraes de sua obra magna atestama certeza da eficcia da tessitura matemtico-dedutivacomo reprodutora da ordem do mundo, igualmente inter-relacionada em sua teia de causalidades a ligar asubstancialidade originria s suas manifestaes

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    modais mais particulares. A ordenao logico-matemtica mediante a qual de definies iniciais soextradas conseqncias que reverberaro ao longo detoda a concatenao do discurso uma ordenao talnada seno a formulao na esfera do pensamentodaquilo mesmo que se passa na ordem do real, em suamais intrnseca nervura.

    A recorrncia por Espinosa geometria surge comoestatuto ontolgico, primado de exposio da intuio deuma ordem nica de mundo graas qual possvelfinalmente alcanar a unio da mente e da Naturezaestipulada no 14 do Tratado da emenda do intelecto. Amathesis universalis perde aqui o carter simblico (qualem De Cusa) e assume a configurao da prpria realidadea ser exposta em sua deduo contnua, ininterrupta.

    4 ESPINOSA E A SUBSTNCIA NICA

    Os requisitos, porm, da definio da coisa incriada soos seguintes: I. Que exclua toda causa, isto , que oobjeto no exija nada mais que seu prprio ser parasua explicao. II. Que, dada sua definio, no restelugar para a pergunta: Existe ou no? III. Que nocontenha, no sentido real, substantivos que possam seradjetivados, ou seja, que no possa ser explicada emtermos abstratos. IV. Exige-se, por ltimo (embora istono precise muito ser anotado), que de sua definiose concluam todas as suas propriedades. Tudo isso socoisas manifestas a quem prestar bem ateno.12

    12 ESPINOSA, B. Tratado da correo do intelecto, p. 65. Todas ascitaes da obra de Espinosa far-se-o a partir da edio Abril Cultural,1983 (Col. Os Pensadores). Para a tica, utilizamos como cotejo aedio bilnge latim-francs das edies Seuil: apresentada,traduzida e comentada por Bernard Pautrat.

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    08A definio inicial da Ethica a de causa sui:

    aquela que implica necessariamente a existncia, aquelaque no pode ser pensada seno como existente. Esseconceito a formulao mesma da idia de que se devepartir, e da qual se deve deduzir o contedo subseqenteda realidade. Na verdade, com as dedues extradas aolongo da Parte I da Ethica, chegamos ao conhecimentode que na definio da causa de si est j posta aidentificao da realidade como unidade ontolgica(conforme prescrito j na emenda do intelecto). A causasui expressa toda a realidade possvel porque nada alm deDeus (ens realissimum) pode ser dito causa de si mesmo.Sendo a substncia (pela definio III) aquilo que em si ese concebe por si, os atributos (def. IV) aquilo que oentendimento percebe da substncia, os modos asafeces da substncia (def. V), Deus o ente absolutamenteinfinito, isto , substncia que consta de infinitos atributos(def. VI)13 e dada enfim a impossibilidade (pela proposioXIV) da existncia de outra substncia alm de Deus, todaa infinita diversidade no pode ser tomada seno comoexpresso de atributos divinos e, portanto, comomanifestao da substncia nica: a saber, comoexpresso de uma mesma realidade unitria. Os atributos

    13 Conforme o original latino: III. Per substantiam intelligo id, quodin se est, & per se concipitur: hoc est id, cujus conceptus non indigetconceptu alterius rei, quo formari debeat. IV. Per attributumintelligo id, quod intellectus de substanti percipit, tanquam ejusdemessentiam constituens. V. Per modum intelligo substantiaeaffectiones, sive id, quod in allio est, per quod etiam concipitur. VI.Per Deum intelligo ens absolut infinitum, hoc est, substantiamconstantem infinitis attributis, quorum unumquodqueaeternam, &infinitam essentiam exprimit. ditions du Seuil, p. 14.

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    no so distintos, em ltima instncia, da substncia:so a substncia mesma, mas a partir da diferenciaoocasionada pela percepo por parte do entendimentohumano. Assim, pensamento e extenso expressam umas substancialidade: e suas modificaes particulares nadaso seno individuaes imanentes a uma mesmarealidade singular.14 A intuio inicial do princpiooriginrio da realidade como causa sui, e acorrespondncia direta deste a Deus, implicam aaceitao de que em Deus se d a identidade entre o ser eo existir pelo fato de que do ponto de vista da substncianica como nica realidade, tudo aquilo que , nasubstncia. Tudo que existe, existe na substncia e deveser concebido a partir desta (e esta meramente a partirde si): logo, a substncia como causa de si exprime jdesde seu inicial despontar como definio primeira, omximo absoluto de fora ontolgica.

    14 O elenco da extenso e do pensamento como dois dos infinitosatributos que constituem o ser da substncia, ao mesmo tempo quevisa em Espinosa uma maior determinao daquilo que constitui aessncia de Deus, enfrenta a aporia do conflito unidade-diversidadelegado por Maimnides, a quem o filsofo parece responderdiretamente quando no esclio da Proposio X da Parte I afirma:[...] embora dois atributos sejam concebidos como realmentedistintos, isto , um sem contributo do outro, nem por isso se podeconcluir que constituam dois entes, isto , duas substncias, porser da natureza da substncia que cada um dos seus atributos sejaconcebido por si; [...] Por conseqncia, est longe do absurdo aatribuio de vrios atributos a uma substncia. Para um confrontoEspinosa-Maimnides, cf. BENSUNSSAN, Grard. Spinoza lisantMaimonide: antifinalisme et contingence, in: Les tudesPhilosophiques, octobre-dcembre. Paris: Presses Universitairesde France, 1995, pp. 441-455.

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    08O que fornece garantia verdade da unidade de

    mundo aqui apresentada precisamente sua reproduolgica e matemtica: a validao das dedues, medidaque estas se desenvolvem, d-se pelo seu prprio feixede entrecruzamentos. A auto-referncia alcanada peladisposio geomtrica procura atestar a impossibilidadedo equvoco, posto que todo o edifcio conceitual foraconstrudo pari passo, reproduzindo na ordem dodiscurso e das idias aquela ordenao originria,ontolgica, de causa e efeitos entrelaados. Por isso aParte V da Ethica (da potncia do entendimento ou daliberdade humana) finalizada com o reenvio do homema Deus, mediante o amor Dei intelectualis (o amorintelectivo de Deus). Se a causa sui como princpiomximo de realidade implica a conteno de todo existir,ento o homem no pode ser seno modificao da e nasubstncia infinita, Deus: e o conhecimento humano domundo conhecimento de Deus. Amar intelectivamentea Deus no quer seno dizer que o homem j integradona ordem total da Natureza exprime agora como desejomaior o conhecimento gradual dessa mesma ordenaona qual se insere. Assim, o tecido constitutivo que seestende das primeiras definies da Parte I s ltimasdemonstraes da Parte V da Ethica explicita em linhadiscursiva a srie nevrlgica das causas e efeitos queunem o indivduo como modalidade da substncia a Deuscomo totalidade, como unidade substancial.

    Estamos aqui j distantes daquela perspectivacom que iniciamos nosso estudo, e segundo a qual claraa aceitao do Uno como estatuto ontolgico primeirode realidade, mas indevida ou insuficiente sua traduo

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    positiva como discurso. Em Espinosa, a inteligibilidadeda unidade do mundo garantida pela prpria viaexpositiva dessa unidade, a via geomtrica.15

    GUISA DE CONCLUSO

    A Teologia Negativa, aqui apresentada a partir dasreflexes de Maimnides em seu Guia dos perplexos,postula os limites do dizer acerca de Deus. Deste nopodemos dizer o que , sob o risco de trairmos suaidentidade unitria; podemos dizer apenas aquilo que Eleno , e tanto mais rico ser nosso discurso quanto maisdeterminaes negativas houvermos elencado. Nessesentido o direcionamento filosfico de Maimnides podeser caracterizado como meio-termo entre o dizer e ocalar absoluto. Propriamente, o silncio absoluto seria aexpresso mais adequada para aqueles que pensam acompleta impossibilidade de se comunicar a experinciada unidade divina. Este no o caso de Nicolau de Cusa,para quem a comunicabilidade aparece como insuficiente(dado o inefvel do Absoluto) mas no de todo equvoca. Ateologia mstica de Nicolau de Cusa atesta o

    15 Nesse sentido, assinalamos nossa concordncia com asconsideraes de similitude entre as metafsicas cusana eespinosana, desenvolvidas por Jos Gonzlez Rios (em Lacoincidencia de los opuestos: actus et potencia en Nicolas de Cusa yBaruch de Spinoza), segundo as quais a indeterminao dasubstncia de Espinosa como pura potncia em ato coincidiria como possest de Nicolau de Cusa: mas a diferena radical aqui apontada, medida que remete prpria intuio da unidade comodiferenciada nos dois filsofos, parece instaurar um distanciamentomaior que qualquer proximidade doutrinal.

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    08empreendimento de uma busca sempiternamente

    renovada em funo da correta nomeao de Deus,princpio complicador de todas as coisas. O Cusano aceitaser apenas aproximativo o seu esforo, posto que ummuro h de sempre inderditar a passagem direta aoParaso em que se poderia ver Deus face a face. Por issoa denominao tardia de Deus tambm como um No-Outro que h de permanecer naquilo que se no nomeia:dizer algo deixar de dizer o no-algo, nomear deixarde nomear. O No-Outro como si-mesmo escapa a todasas definies por ultrapassar o domnio da mens em sua(dele) imensurabilidade. Por isso ainda o socratismocusano pelo qual o douto irremediavelmente ignorante:sabe que sabe da unidade, mas ignora como exprimi-laplenamente.

    No gratuitamente a reflexo posterior deEspinosa haver de aproxim-lo daquela empreendidapelo Cusano: partem ambos da possibilidade deexpresso do Uno primordial, diferentemente embora.Se em relao a Maimnides Nicolau de Cusa pode servisto como dotado de um otimismo lingstico, em relaoa Nicolau de Cusa o mesmo pode ser dito do filsofoholands. A pretenso de traduo do mundo a partir deseu estatuto ontolgico mais elevado como unidade levaEspinosa formulao de uma filosofia ordenadageometricamente, intrinsecamente concatenada. esseprimado da mathesis universalis (que j aqui no seconfigura como metfora, mas a prpria essncia domundo em sua identidade como ordem de idias e ordemdas coisas) o responsvel pelo distanciamento daperspectiva moderna ilustrada por Espinosa, daquela

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    medievo-renascentista ilustrada pelo Cusano. Fiel aootimismo cartesiano de assuno da matemticauniversal (mas infiel no concernente a quase todo orestante cartesianismo), Espinosa desenvolve suadoutrina sem maior desconfiana frente linguagem queemprega: pois acredita ser esta a correspondenteadequada do mundo que quer traduzir. Esse ainda oelemento que nos permite afastar Espinosa da alcunhade mstico, a despeito de alguns como Novalis o definiremcomo um homem embriagado de Deus. A geometria,ainda ela, a marca secular de um racionalismo sbrioque se impe sobretudo como afirmao do intelecto e,assim, a prpria intuio primordial da unio mysticareveste-se aqui do carter de intuio matemtica,scientia intuitiva: aquele nvel de inteleco que seapropria imediatamente de seu objeto, prescindindoportanto de qualquer clculo antecedente. A causa sui talcomo definida na Parte I da Ethica a traduo mximado Absoluto como unidade primria de mundo: mas suaclareza e evidncia j no implicam mistrio; suaformulao enquanto definio explicada pela potnciado prprio entendimento daquele que intelige e, nessesentido, humana, demasiadamente humana, secular. Eesse mesmo processo de secularizao do saber pelo qualEspinosa buscou desvelar o oculto no sculo XVII haveria,em nossa contemporaneidade, de desconfiar de todopalavra acerca de Deus que se pretenda fundada racionale ontologicamente, devolvendo assim o discurso acercado Uno sua impossibilidade originria, ao seu silncio.

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