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Túlia Saldanha por Luísa Saldanha a partir de uma conversa com Celina Brás Fotografia: Luísa Saldanha.

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Túlia Saldanha por Luisa Saldanha_ a partir de uma conversa com Celina Brás_ http://contemporanea-jornal.org/entrevistas/especial-entrevistas/

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Túlia SaldanhaporLuísa Saldanhaa partir de uma conversa com Celina Brás

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Por que é quehá algo em vezde nada?E vice-versa

Géraldine Gourbe

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Túlia Saldanha(1930-1988, Peredo, Macedo de Cavaleiros)

A obra da minha mãe continua a ser um grande mistério para mim. Questiona-me sempre que reflicto sobre ela ou sempre que penso nas acções que ela precisou desenvolver. Esse questionamento deve-se ao facto de a ter conhecido desde o meu momento inicial e ter vivido com ela num espaço de intimidade. Essa proximidade não contribui para que possa exercer um olhar distanciado e crítico da sua obra. Apenas me quero pronunciar aqui sobre a particularidade, a intensidade, a autenticidade e a convicção do seu exercício de vida.

Cresci num ambiente familiar muito afastado desse que constituiu os últimos vinte anos da vida de Túlia, durante os quais se dedica por inteiro a construir a sua obra, a qual não se esgota na sua produção autoral, mas também na criação e promoção de condições e meios para a divulgação, ensino, produção e conhecimento artísticos. Verdadeiros projectos de missão, colectivos e colaborativos, de divulgação e acção. Actividades que decorrem simultaneamente e, por vezes, se confundem com a própria obra.

Período 1930-1959

Casou muito nova, com quinze anos apenas, e viveu onze anos com uma pessoa que, de certa forma, lhe foi estranha. Foi um casamento imposto, não voluntário. Teve mais tarde a oportunidade de se afastar do marido por uma questão de infidelidade da parte dele e penso que foi durante esse processo que reflectiu, pela primeira vez, sobre a sua identidade: o desejo de viver a sua vida de forma autónoma, poder ser e poder estar.

Túlia Saldanha. 240.180.180 dissimetria mater, 1980.Fotografia: Making Art Happen.

Túlia Saldanha. 240.180.180 dissimetria mater, 1980. Fotografia: Making Art Happen.

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Não teve uma vida nada fácil. Estava interna num colégio quando a vão buscar para um casamento forçado. Não teria ainda quinze anos.

O meu pai, com vinte anos de diferença, já formado em advocacia, era também o seu encarregado de educação, primeiro em Bragança, onde em internato ela foi estudar e depois no Porto, no Colégio interno das Irmãs Doroteias, já isolada da família e amigos.

O marido era uma figura distante, estranha, castigadora e autoritária.

Viveram juntos onze anos, inicialmente em Vila Nova de Gaia, onde era Secretário da Câmara Municipal e, posteriormente, em Macedo de Cavaleiros, local onde voltaria para exercer a profissão de notário e de advogado. Ao fim de alguns anos ela toma conhecimento da relação extraconjugal do marido que, perante a incomodidade social, se sente obrigado a sair do país com a amante, primeiro para Espanha e depois para Angola.

A minha mãe aproveita esta situação para exigir a separação judicial. Na altura, não havia divórcio, a condição feminina desenrolava-se em balizas censórias, de género, políticas e morais, de todos conhecida.

Existia uma figura jurídica para estes casos: separação de pessoas e bens. Este processo judicial leva quase doze anos a concluir e só em 1966 o tribunal lhe concede inteira autonomia em relação ao marido: a posse dos seus bens e a confirmação da tutela maternal.

Entretanto, decide responsabilizar-se sozinha pela educação das duas filhas e inicia actividades que vão

Vista da Exposição Túlia Saldanha. CAM – Fundação Calouste Gulbenkian. Fotografia: Making Art Happen.

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contribuir para a sua independência: aprende a conduzir automóvel, línguas, aprofunda competências. Estabelece contactos em Coimbra e, com o objectivo de as filhas acederem ao ensino universitário, toma decisões que a afastarão do ambiente familiar e macedense. Em 1959, aluga um apartamento em Coimbra e aí reside desde então. Começa a construir, finalmente, o seu espaço de liberdade.

Período 1959-1967

Enquanto adolescente procuro a minha autonomia e distância familiar. A vida da minha Mãe acompanhará esse movimento de libertação e de afirmação.

EM 1966 inscrevo-me no CAP - Círculo de Artes Plásticas e no CITAC - Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra.

Minha Mãe, com o objectivo de conhecer o irrequieto, contestatário e transgressivo circuito social que eu frequentava, e de também assim me proteger, inscreve-se no CAP, onde passa a ser uma associada permanente, atenta e muito curiosa sobre o que se passa no Círculo e na cidade. Este é o seu primeiro contacto com o meio artístico.

Não tendo um percurso artístico de formação, começa bastante tarde, aos 37 anos, a tomar conhecimento das questões, dos processos e das formas de relação que este novo mundo lhe poderá proporcionar.

Período 1967-1988

O CAP inicia, nesta altura (1965-67), um novo ciclo.

Desliga-se das técnicas de aprendizagem tradicionais associadas à pintura, ao desenho e à cerâmica até então orientadas por Waldemar da Costa e, pela iniciativa de nova direcção, com a criatividade dos seus associados e sob o estímulo dos novos orientadores, aproxima-se mais de práticas contemporâneas, criando uma atmosfera muito participativa e de afirmação na diferença mas, também, de amizade e cumplicidade.

Esta abertura do Círculo a um campo mais experimental da arte, coincide com a sua entrada. E é no Círculo, que Túlia encontrará o campo para essa confirmação, lembrando a sua obra, que toda a emergência humana é social, ao mesmo tempo que é individual.

Desde os finais dos anos sessenta que a arte se refere a outra arte, encontra expressão e caminho na experiência de novos suportes e expressões, em novas formulações, rupturas, apropriações, discursos, expansões e interacções. A Arte encontra-se em processo ou em acção relacional em todos os campos do humano. As curadoras, nesta exposição do CAM, que até Março se encontra em itinerância no MVM - Museo Vostell Malpartida, invocam um termo que me parece expressar da melhor forma a experiência relacional mais efectiva, ao mesmo tempo que não deixa de ser, potencialmente, afectiva: ‘projectos colectivos e colaborativos’. A obra de Túlia é uma obra relacional, em todos os sentidos.

Não me é de todo estranha a forma como a minha Mãe inicia este processo porque eu própria nele participei desde o início. Era um meio formativo muito aberto e experimental, conduzido por jovens professores ligados à Escola de Belas Artes do Porto: Nuno Barreto, João Dixo, Júlio Bragança, Ângelo de Sousa e, mais tarde,

Túlia Saldanha. Projecto desejo azul, 1981.Fotografia: Making Art Happen.

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Alberto Carneiro. As viagens de estudo organizadas então anualmente pelo CAP, a cidades e museus na Europa e outras por sua iniciativa (Paris, Londres, Madrid, Amsterdão, Bruxelas, Berlim), proporcionavam-lhe contacto directo com as obras históricas e as correntes mais contemporâneas. Complementavam as aulas teóricas e de ateliê, que os novos orientadores trouxeram para o Círculo. Para alguns dos seus associados, entre os quais minha Mãe, o CAP tornou-se residência artística em permanência, campo e laboratório para todas as experiências e projectos. É esse espírito que ela, com convicção, potencia e que sempre defenderá para a instituição.

A vinda de Túlia para o Círculo é marcada e irá marcar um período em que se começa a fazer o uso de todos os meios e métodos experimentais e operativos, numa exploração de possibilidades transversais e múltiplas, num processo que parece ser único e exemplar no meio artístico português.

Logo se inicia também a configuração programática que fez do CAP-CAPC, na Castro Matoso nº 18, durante as décadas de setenta e oitenta, o ponto de encontro, de intersecção e de confronto de artistas, críticos, ensaístas e amadores, nacionais e internacionais, de gerações e tendências artísticas.

A história do CAP-CAPC, em meu entender, está ainda mal documentada e sustentada e com muito ainda por descobrir, escrever, analisar e reflectir, pese embora terem surgido ultimamente alguns trabalhos académicos dedicados.

Robert Schad e Túlia Saldanha. Para Lisboa (intervenção nos dias 13,14 e 15 de abril de 1983) (pormenor) Realizado durante a performance “33 horas a desenhar”.Fotografia: Making Art Happen.

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O que nos comove, o que nos estimula a mudar, a maneira de ver, a Vida - é o que a Arte tem de revolucionário. A sua acção potenciadora e libertadora de transformar a Vida.

A Arte, gradativamente, encontra-se dependente de um sistema mercantil, com o qual por vezes se funde e confunde. Num sentido que aparece, cada vez mais, com uma clara evidência: entre a pura monetarização, por um lado, e as chamadas indústrias culturais, sobrevivendo pelo espectáculo.

Na sua missão, em que permanece durante 20 anos na acção, orientação e direcção do Círculo de Artes Plásticas - de Coimbra, Túlia não se compraz com programas culturais estratégicos de promoção, visibilidade e sucesso para a instituição, mas com projectos e acções de existência inclusiva e libertadora fundada em processos humanos que se inscrevem e revelam no tempo. Para Túlia é necessário reivindicar a autonomia da cultura e é necessário defendê-la como um direito. Conforma assim, por sua vez, uma acção política. Um direito à vida, um direito de vida. Um direito devido cuja importância tem de ser reconhecida.

Reconhecemo-nos nas Obras de Arte. Mas sempre de uma maneira diferente. Túlia coloca-nos perante essa experiência. Não só pela natureza e referência autobiográfica das suas obras, como pela inscrição de si (do ser).

O aspecto autobiográfico, performativo e de afirmação de si, de ser-aí, característico da obra artística de Túlia, aspecto que as curadores Liliana Coutinho e Rita Fabiana bem fizeram surgir na exposição agora

Túlia Saldanha. Sem título, s.d. Fotografia: Making Art Happen.

Túlia Saldanha. Sem título, 1986. Fotografia: Making Art Happen.

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organizada no CAM e ainda a decorrer no MVM-Museo Vostell Malpartida; ou então, como Geraldine Gourbe, no seu texto de catálogo, anuncia - ‘como desprender-se de si própria?’ ou ‘na pergunta subsidiária Por que é que há alguma coisa em vez de nada?’ - é também evidenciado como propósito transmitido pela sua prática pedagógica, operativa e pela sua inscrição relacional e afectiva.

Esse aspecto que me chega através do testemunho de tantas pessoas que a conheceram, seus companheiros, parceiros, amigos, artistas ou alunos, torna evidente a sua convicção no poder e no carácter transformador da arte, que acaba por ser fio condutor de todo um processo de afirmação de singularidade e vontade humana. Demonstrando como o estar aqui, face à adversidade e ao pavor, pela consciência de si e por escolhermos ser próprios, com o outro, apesar do outro, a autenticidade da vida pode emergir do nada, da incerteza e da injustiça.

Cito, livremente, as palavras de um Amigo, Ernesto de Sousa, escritas em 1986, aquando da sua exposição ‘Travelling’, na Galeria Quadrum: ‘Não me interessa. Só o que interessa é esclarecer as coisas, para um saber absoluto. De qualquer maneira, não te poderia dizer senão: Sê Outro, Outra, a Diferença. Do lado da loucura... como ferida jamais suturada, incomodidade jamais sossegada: estar no mal-estar...’ assim, ‘...Então tudo, até a Alegria. será possível...’

Túlia Saldanha, O Banquete, instalação, 1076-1979. Fotografia: Luísa Saldanha.

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Período 1988-2015

Passaram vinte e seis anos até ser realizada esta exposição em Portugal – houve outras exposições pontuais, decisivas para a recente emergência da sua obra, mas não com este carácter de antologia – dou aqui testemunho do desejo e satisfação que a minha Mãe teria tido ao ver a sua obra, assim, em contacto outra vez com o público e os seus amigos. Foi exemplar, em todos os sentidos. Não sendo uma exposição exaustiva - foi mostrada apenas uma pequena parte da sua obra, a investigação das curadoras, a colaboração escolhida e a edição do magnífico catálogo, conduziram a uma compreensão bastante aproximada do seu carácter e do contexto em que a obra se produziu. Complementada ainda com a itinerância da exposição a um dos seus lugares de incidência e de afeição, desde o início da sua fundação na Extremadura pelos seus amigos Wolf Vostell e Mercedes Guardado, o MVM - Museo Vostell Malpartida.

Uma exposição difícil, mas ao mesmo tempo desafiadora, pois quem nela trabalhou teve de partir do quase nada haver e do quase desconhecimento da obra (com a escassez documental, própria da época, muita documentação encontra-se em parte incerta, nomeadamente a que fixei em fotografia (1975-1988) e a que sempre atribuí, na altura, conscienciosamente a devida importância de registo).

Sempre mantive a expectativa, que esta mostra fosse realizada no CAM - Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Aconteceu agora realizada de forma tão generosa, competente e plena de sentido, sendo colocada, assim, à fruição e compreensão dos públicos. Foi realizada numa instituição de inicial referência para a Túlia, pois o CAP - CAPC, que foi sua missão durante duas décadas, manteve historicamente um diálogo e uma colaboração constante com a Fundação no sentido de congregarem esforços para a possibilidade da realização das suas actividades, irrealizáveis sem o seu constante e complementar apoio financeiro.

Agradeço, também em nome de Túlia, à Fundação Calouste Gulbenkian, nomeadamente à direcção do CAM, na pessoa de Isabel Carlos e à dedicação de toda a sua equipa.

Resgata-se assim esta obra entre tantas, de artistas que ainda esperam o seu tempo merecido, obras que em conjunto nos confortam na nossa história comum e no reconhecimento da nossa singularidade.

Fico grata a todos, instituições e pessoas, que generosamente contribuíram para este momento tão particular de transmissão e reconhecimento de um legado que acredito continuará a significar no tempo.

Túlia Saldanha. Sem título, 1985. Fotografia: Making Art Happen.