conceitos bakhtin p25

165

Upload: murilo-cavagnoli

Post on 23-Nov-2015

140 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

  • 2SUMRIO / CONTENTSApresentao / Presentation ..........................................................................................................5Vnia Maria Lescano Guerra

    1. A variao lingstica no Brasil ....................................................................................................6Dercir Pedro de Oliveira

    2. Cruzando os fi os da histria com a historicidade do discurso ...................................................14Glucia Muniz Proena Lara

    3. O arsenal terico de Bakhtin: entre o estudo da linguagem e o ser social ...............................25Vnia M. Lescano Guerra & Jefferson Barbosa de Souza & Carlos Vinicius da S. Figueiredo & rica R. Dourado & Gislane P. Borges & Lorena A. da Cruz & Sandra R. Nia Mina

    4. A hora da estrela e o Brasil de 70 ...........................................................................................45Edgar Czar Nolasco & Carlos Vincius da S. Figueiredo

    5. A gramtica do confl ito numa perspectiva discursiva ................................................................52Marlon L. Rodrigues & Wedencley A. Santana

    6. O ritmo da palavra: questes sobre a oralidade ........................................................................63Joo Luis Pereira Ourique

    7. Representao social da voz do estado no discurso do desenvolvimento tecnolgico ............76Izabel E. de S. Oliveira dos Santos & Marlene Durigan & Vnia M. Lescano Guerra

    8. O lxico como brao da cultura regionalista sul-mato-grossense: Pouso Alto em questo ......88Maria Madalena da Silva Lebro

    9. A autobiografi a ps-modernista na literatura brasileira: uma anlise de A estratgia de Lilith, de Alex Aantunes ...........................................................................................................................95Rodolfo Rorato Londero

    10. Semitica e Rock: anlise de Palavras Erradas dO Bando do Velho Jack ........................105Vanessa Amin

    ENSAIOS / ESSAYS

    1. A viso eufrica do Brasil ........................................................................................................ 116Carlos Erivany Fantinati

    2. Vte! Existe produo literria em Mato Grosso! ....................................................................139Joo Mtzenberg & Franceli A. da Silva Mello

  • 3R G L, n. 5, jun. 2007.sumrio

    RESENHAS/REVIEWS

    1. MALDIDIER, Denise. A Inquietao do discurso: (Re) Ler Michel Pcheux hoje. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2003. ...............................................................................................152Resenhado por Janaina Nicola

    2. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Trad. Felipe B. Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004. .....................................................................................................................155Resenhado por Jefferson Barbosa de Souza

    BIBLIOGRAFIAS COMENTADAS /COMMENTED BIBLIOGRAPHIES

    1. Bibliografi a comentada sobre Anlise de Discurso Francesa .................................................158Vnia M. Lescano Guerra

    2. Bibliografi a comentada sobre Literatura Brasileira ..................................................................164Antonio Rodrigues Belon

  • 4EXPEDIENTE

    GUAVIRA LETRAS, Revista do Programa de Ps-graduao Mestrado em Letras do campus de Trs Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Volume 1, nmero 5, junho de 2007. GUAVIRA LETRAS, editada pelo Programa de Ps-graduao Mestrado em Letras do campus de

    Trs Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, uma publicao tcnico-cientfi ca que se defi ne como um veculo de difuso e debate de idias, estudos e relatos de experincias sobre os estudos lingsticos e literrios. tambm um espao aberto comunidade acadmica para manifestar-se sobre temas relacionados com a formao de recursos humanos de alto nvel. Aceita a contribuio de professores e pesquisadores do Brasil e do exterior. Prope discusses de interesse da comunidade acadmica e cientfi ca.

    NOTA: Todos os artigos assinados so de responsabilidade exclusiva de seus autores, no refl etindo, necessariamente, a opinio do Programa. Permitida a reproduo total ou parcial, desde que citada a fonte.Arte e diagramao: Eduardo Lus Figueiredo de Lima

    ISSN - 1980-1858

  • 5R G L, n. 5, jun. 2007.

    APRESENTAO

    Considerando que GUAVIRA LETRAS visa, fundamentalmente, promover a di-vulgao de trabalhos nas reas de Literatura, Lingstica, Lngua Portuguesa, Lnguas e Literaturas Estrangeiras, Estudos Culturais e Artes, o Volume 5 traz trabalhos inseridos na temtica LNGUAS, LITERATURAS E CULTURAS. A proposio do tema teve como objetivo estimular, por meio de artigos completos, ensaios, bibliografi as comentadas e resenhas de obras relevantes, a elaborao de refl exes voltadas para implicaes e res-ponsabilidades ticas e sociais, resultados desses juzos e condies.

    medida que fomos preparando os textos para esta edio, fomos nos dando conta de que perpassa os textos uma dialtica de confl itos propcios ao debate. De um lado a aparente fora da inrcia, querendo que as coisas permaneam como esto: do outro, a aparente insatisfao com as coisas que precisam mudar. Evolumos para garantir nossa existncia como seres humanos? Ou estagnamos e negamos a essncia de nossa natureza?

    Jos Luiz Fiorin (2005, p.01), em sua apresentao da Revista GUAVIRA LETRAS comunidade cientfi ca, por meio de um texto primoroso, afi rma que

    uma vez que inerente cincia a diversidade terica, o fazer cientfico implica necessariamente a polmica, o debate, a controvrsia, o questionamento, a dvida, a crtica. Por isso, em cincia, no existem dogmas, no h excluses, no existem verdades a que se adere pela crena, no h temas proibidos. Evidentemente, o fazer cientfi co regido pela tica, mas por uma tica que no se funda num programa de ao, como o apresentado pelo discurso religioso, mas se baseia no princpio da busca da verdade, o que signifi ca que a atividade cientfi ca no pode estar a servio da defesa de interesses comerciais, religiosos, polticos, etc., e sim na promoo do bem-estar, da igualdade e da liberdade dos seres humanos, o que implica, entre outras coisas, a preservao do meio ambiente e o respeito aos sujeitos da pesquisa.

    Esperamos que a diversidade de autores e a multiplicidade de pontos de vista articu-ladas aqui possam ser apreciadas como expresso da relevncia dos estudos de linguagem e do interesse que vm despertando na sociedade contempornea.

    Vnia M. L. Guerra(Responsvel pela organizao da Guavira Letras 5)

  • 6A VARIAO LINGSTICA NO BRASIL

    Dercir Pedro de OLIVEIRAa

    Resumen: El objetivo de este texto es ensear que la variacin en Brasil existe desde la formacin de la lengua y que las realizaciones lingsticas existentes actualmente tiene raices en la colonizacin del pas por los portugueses en el siglo XVI. Seala, igualmente, que la descripcin dialectolgica ha sido hecha desde la primera mitad del siglo XIX, y las anlisis sociolingsticas a partir de la dcada de 60 del siglo XX.

    Palabras-clave: Variacin, infl uencias, descripcin.

    Os estudos variacionistas no Brasil, com vestimentas diferentes, so resultados de pesquisas que datam da segunda metade do sculo XIX, j com alguma sistematicidade, pois, como afi rma Silva Neto (1976, p. 73), nossos fi llogos s se tm ocupado com pecu-liaridades regionais e comparaes entre as pronncias lusitana e brasileira.

    Este texto tem por objetivo mostrar que a diversidade lingstica est presente no portugus do Brasil desde a sua formao e que, h algum tempo, estudiosos se preocu-pavam em descrever as variaes, de forma genrica e, posteriormente, nos meados do sculo XX, as anlises j apareciam de modo sistemtico. Isto se d com a dialetologia e depois com a sociolingstica.

    A variao lingstica que foi, primeiramente, objeto de estudo da dialetologia e, muito mais tarde da sociolingstica, resultado de inmeras infl uncias de povos que para c vieram, e dos aqui habitam, aparece j na poca do descobrimento, pois os colonizado-res, segundo Silva Neto (1976, p.235), vinham de todas as partes de Portugal, de modo que refl etiam as vrias peculiaridades dialetais portuguesas, que no Brasil, em contato e interao se fundiram num denominador comum, de notvel unidade (...).

    A diversidade lingstica no fato de descoberta recente, embora haja, ainda, afi rmaes controvertidas com relao ao seu estudo. Alguns estudiosos, mesmo que com nfase no lxico j se preocupavam com aspectos dialetais no comeo do sculo XIX. Isto para voltar-se apenas para estudos da lngua portuguesa.

    De modo sistemtico, apesar de terem surgidos, no sculo XIX, os passos dos estudos dialetolgicos, a variao lingstica comea a ser objeto de investigao cient-fi ca com o advento da Dialetologia no Brasil com Rossi (1963) e seus colaboradores ao elaborarem o Atlas Prvios dos Falares Baianos. Posteriormente, na dcada de 60, surge a Sociolingstica. Ressalte-se que, j em 1958, Fischer discutia a correlao de variveis independentes para realizar pesquisas variacionais.

    Em afi rmao feita em 2003, p.73, o lingista Dermeval da Hora afi rma que:

    A variao lingstica agora ainda de interesse exclusivo dos sociolingstas, embora isto esteja rapidamente mudando. Outros campos da lingstica e particularmente da lingstica histrica tm-

  • 7R G L, n. 5, jun. 2007.

    se benefi ciado da aplicao sistemtica da noo de variao, ento, passa a ser vista no como algo aleatrio, mas como subsistemas em competio e heterogeneidade estruturada.

    Os estudos variacionistas, baseados na teoria laboviana, apesar de algumas crti-cas que tm recebido, o que tem permitido apresentar uma descrio mais estruturada da variao. O estudo tem sustentao na regra varivel em oposio categrica, nas variveis dependentes e independentes lingstica e extralingstica, e, por fi m, no trata-mento estatstico que permite a correlao entre as variveis. Ressalte-se que, nos estudos variacionistas, passar da variao para a mudana s uma questo de tempo. s vezes, muito tempo.

    Da Hora (2003), referindo-se a Weinreich, Labov e Hezgog (1968, p.23) afi rma que:

    Para os autores, uma teoria de mudana deve lidar com o modo como uma comunidade transformada no curso do tempo, de forma que, em algum sentido, tanto a lngua como a comunidade permaneam as mesmas, mas a lngua adquira uma forma diferente.

    A importncia de buscarmos a sistematizao dos estudos variacionais com esta-belecimento de teorias, com sustentao argumentativa a toda e qualquer prova, se deve origem da lngua portuguesa falada no Brasil, cujo trajeto histrico nos mostra uma fotografi a dos dialetos, falares, sotaques, espcies de linguagem, emprstimos, infl uncias indgenas e negras, e, ainda, da identifi cao das classes sociais e atividades profi ssionais, realando as relaes interpessoais por meio da lngua geral, dos crioulos, tudo com refl exo nas diferentes manifestaes lingsticas utilizadas atualmente. Acrescente-se tudo isso ao pas continental que o Brasil.

    Em seu livro Introduo ao estudo da lngua portuguesa no Brasil, Silva Neto (1976), passim, faz ponderaes sobre o incio da comunicao lingstica no Brasil. Trans-crevo, a seguir, alguns dados informativos a ttulo de exemplifi cao. Examine, pois:

    i. Como se v, h muitas semelhanas entre o portugus dos ndios e o portu-gus dos negros. Isso , alis, bem natural, pois tanto o ndio como o negro, em atrasado estgio de civilizao, aprenderam o portugus como lngua de emergncia (p.36).

    ii. A lngua geral, pelo contrrio, era simples e de reduzido material morfolgico; no possua declinao nem conjugao. Tinha o aspecto de lngua de necessidade, criadas para intercmbio p. 50 ... a lngua geral (ou seja o Tupi) usada pelos ndios que conviviam com os brancos e mamelucos em suas relaes com o gentio (p. 121).

  • 8iii. Na fontica, h dois exemplos expressivos. Um o caso da iotizao de / / (pronncias como mui, maiada) que igualmente se d nos crioulos de Cabo Verde, da Guin, nas Ilhas do Prncipe e de So Tom (...). No nosso caso particular e histrico, observamos que os aloglotas (mouros, ndios e negros) se mostraram sempre incapazes de pronunciar / /. O segundo caso o caso da no pronncia do /s/ fi nal, caracterstica dos falares rurais brasileiros: os livro, as mesa (falares rurais brasileiros: aldeias, acompanhamento militar, quilombo e fazendas). Vestgio do crioulo colonial.

    iv. Tambm no que refere a grande parte dos fatos fonticos existe unidade expressiva.

    >poco, compro

    Essa reduo comum aos dialetos de Damo, Goa, Ceilo, Macau, Cabo Verde, Guin, representa extenso de fato j conhecido no portugus lusitano. Observe:

    >bandera, berada > cui, atrapai

    Esse fato caracterstico dos crioulos. Por exemplo, ainda:

    > tomano, comeno - O desaparece como em: Fal, faz, am

    v. Na sintaxe, do mesmo modo, ocorrem fatos comuns a nossos falares rurais e ao linguajar das classes urbanas mais modestas. Entre os mais tpicos:

    a. ter no lugar de haver;b. preposio em com verbo de movimento;c. mim como sujeito de oraes infi nitas. (p.142)

    O exame do trecho transcrito nos mostra que, tomando a chamada norma culta como referncia, a modalidade falada do portugus do Brasil atual, no que respeita lin-guagem popular, muito semelhante ao crioulo colonial; remontando aos sculos XVI e XVII. Assim, as variaes e mudanas, ocorridas no portugus do Brasil, so motivadas, como j dito, pelas diferentes procedncias dos portugueses que para c vieram (Minho e Douro) e pela presena de diferentes raas que habitavam o pas nos primrdios como ndios, negros, rabes que necessitaram de uma lngua emergencial, com simplifi cao estrutural, para poderem comunicar-se. Alm disso, Lucchesi (2003, p. 281), na formao do PB, observa que:

  • 9R G L, n. 5, jun. 2007.

    O ponto de partida de todo processo de transmisso lingstica irregularb desencadeado pelo contato entre lnguas a perda da morfo-logia fl exional na aquisio inicial da lngua alvo por parte de falantes de outras lnguas.

    A sociolingstica tem mostrado ao longo dos anos que fortes argumentos para as variaes lingsticas do portugus do Brasil esto centradas na prpria constituio da lngua. Justifi cativas para uma ou outra realizao fazem parte da sua origem. As diferen-tes atualizaes da lngua, que, em muitas circunstncias batem de frente com as normas gramaticais, se devem como diz Cunha (1986, p.71) ao que segue:

    Foi pela organizao rural que comeou o Brasil; antes de possuir cidades possui engenhos fazendas, stios. A classe que tomou feio aristocrtica ou de nobreza situava-se no mundo rural; vinha dos engenhos, das fazendas, dos stios; e era ela que impunha as sedes ad-ministrativas, que vamos de vida, a prpria administrao, a formao dos conselhos e cmaras. Bahia, a velha capital da Colnia, e o Rio de Janeiro do domnio portugus jamais constituram centros irradiadores de culturas comparveis a Mxico e Lima, que, ento, rivalizaram em esplendor com Toledo Madrid ou Sevilha.

    Nesta passagem, Cunha nos encoraja ainda mais em aceitar o portugus do Brasil, com suas caractersticas fonticas, morfolgicas, lexicais e sinttica, at certo ponto in-dependentes do portugus europeu, portanto, com suas peculiaridades locais e distante da lngua dos acadmicos de Coimbra, dos escritores dalm mar, de membros mais sofi sti-cados da Corte, enfi m do purismo exacerbado, que, inegavelmente, impede a comunicao. Em decorrncia disso, pode-se deixar de lado o carter situacional da linguagem.

    A sociolingstica e a dialetologia tm-se debruado nos estudos variacionais, visando identifi cao e sistematizao dos fatos lingsticos, relacionados ao uso do por-tugus do Brasil. Dos estudiosos mais antigos (Paranhos da Silva (1879), Amaral (1922), Marroquim (1934) dentre outros, para os mais recentes Rossi (1963), Braga (1986), Tarallo (1983), Mollica (1989), apenas para citar alguns, pode-se dizer que a diversidade ling-stica do portugus est, de certo modo, bem descrita. Ressalte-se, porm, que a pesquisa lingstica como a verdade, deve-se busc-la sempre.

    Embora, constitucionalmente, o Brasil seja considerado um pas monolngue, pelo que j foi escrito neste texto e pelos trabalhos de dialetlogos e sociolingstas, a homo-geneidade lingstica brasileira, no por motivos bvios, corresponde realidade.

    No que respeita ao obrigatrio reconhecimento da diversidade dialetal, Matos e Silva (2004, p.69) diz que:

    So reconhecidas pelos brasileiros as entonaes tpicas de diver-sas reas do Brasil; as realizaes variadas das pretnicas que opem, grosso modo, Norte e Sul e do Brasil; marcam paulistas por oposio a cariocas as sibilantes implosivas, aqueles com realizaes predomi-nantemente sibilantes, e estes com realizaes chiantes; opem certas reas, sobretudo do Sul, em relao ao resto do Brasil, a inexistncia da

  • 10

    distino entre duas realizaes do r intervoclico, um anterior outro posterior e assim por diante.

    A exposio acima faz referencia s variaes fnicas, como diz a pesquisadora, de maneira nada sofi sticada. H que considerar, por outro lado, as variaes lexicais e sintticas, que, num estudo quantitativo, estaro centrados no cruzamento das variveis dependentes lingsticas e com as variveis extralingsticas, principalmente, escolaridade, faixa etria, origem, sexo e classe social.

    O estudo da variao lingstica, dadas as suas caractersticas continentais exige, no aspecto lexical, um estudo muito criterioso a partir das mltiplas infl uncias: portu-gus europeu, negros, ndios, no perodo de formao, e, italianos, espanhis, poloneses, alemes, no perodo da colonizao. Obviamente que, onde existem quilombos, aldeias e colnias, as infl uencias e os emprstimos tm alta freqncia. Apenas para exemplifi car, examine algumas manifestaes lexicais de algumas regies brasileiras.

    i. No Sul: galopito, ginete, changueiro, campeirao, gacho, tch, gaudrio, gaitero, china, pampa, coxilha, bergamota, caraf, muchacho, mirar, vaquejada, cincha, cochomilho, ilhapa, lonanco.

    ii. No Nordeste: aipim, macaxeira, baitola, chu, berimbau, tapioca, dend, ara, agog, acaraj, orix, caatinga, mugunz, cacimba, lapiana, pinchar.

    iii. No Centro-Oeste: matula, chamam, sesta, chalana, mangaba, siriema, mutum, guavira, piva, tuiui, gueirova, bolicho, curicaca, quebra torto, buenas, varadouro, tropim, tijuco, puti, piroga, gambira, funda.

    iv. Sudeste: marimba, quitanda, muxiba, boc, canind, pacaembu, bigu, maracan, gariroba, guariroba, tiririca, baguassu, cajuru, caipira, cachaa, bruaca, chupeta, cumbuca.

    Ressalte-se que se deve levar em conta, igualmente, a produtividade lexical oriunda de mecanismos de criao lxica, como os processos derivativos e compositivos, abreviaes, linguagem fi gurada etc.

    De outra parte, Marroquim (1996, p.122) afi rma que:

    A luta lngua culta e o dialeto se processam no campo da sinta-xe. A primeira recebe o lxico variadssimo de uso popular, como um enriquecimento vocabular aproveitvel e aproveitado. intransigente, porm, quanto sintaxe, pois ela a estrutura viva da lngua; na sua articulao que reside a alma e o carter do idioma (...) j algumas formas sintticas dialetais fi rmaram-se de tal forma na linguagem de todas as classes, que esto entrando na literatura.

    O portugus do Brasil tornou-se, na sintaxe, j h algum tempo, uma lngua de

  • 11

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    tpico, conforme Oliveira (1996), por meio do deslocamento do objeto ou do circunstante, e, ainda, pela reiterao do sujeito. A construo de tpico aparece com o mecanismo da topicalizao e do deslocamento esquerda. Observe, pois:

    A bicicleta eu comprei-a na loja.A bicicleta eu comprei na loja.O professor ele incompetente.

    Com a caracterizao do PB como lngua de tpico, sua classifi cao topolgica passaria a ser TSVO.

    Alguns aspectos sintticos, fazendo um contraponto com a gramtica tradicional, ressaltam a diversidade do PB, que, de certo modo, est presente em todo o pas. Veja:

    i. pronome reto como objeto:Chame ele pra mim.

    ii. Construo com objeto nulo: Comprei ontem cedo na quitanda.

    iii. O pronome mim como sujeito do infi nitivo: pra mim fazer o trabalho.

    iv. Seqncia lingstica com ter existencial:Tem reunio de departamento amanh cedo.

    v. A expresso a gente em substituio a pronome ns:A gente faz a proposta.

    vi. Comeo de frase com pronome obliquo:Me d um dinheiro a

    vii. Construo passiva com verbo no singular e sujeito no plural: Conserta-se relgios.

    viii. Sintagma nominal com pluralizao apenas do determinante: Os aluno estudioso.

    ix. Verbo de movimento com a preposio em: Cheguei na cidade.

    x. Enfraquecimento da fl exo:

    TuEle foiNsEles

    xi. Relativa com pronome lembrete:

    A aluna que eu falei com ela, mora no stio.

    Essas realizaes variacionais sintticas so mais presentes na modalidade falada,

  • 12

    observados contexto e situao. Uma ou outra forma faz parte, tambm, da modalidade escrita.

    Em Como falam os brasileiros, Leite e Callou (2002, p.57) afi rmam que:

    A variao existente hoje no portugus do Brasil, que nos per-mite reconhecer uma pluralidade de falares, fruto da dinmica popu-lacional e da natureza do contato dos diversos grupos tnicos e raciais nos diferentes perodos da nossa histria. So fatos dessa natureza que demonstram que no se pode pensar no uso de uma lngua em termos de certo e errado, bonita ou feia.

    De acordo com o trecho transcrito no existe na linguagem falada realizaes que no tenham uma trajetria histrica. Nada surge do nada e a sociolingstica e a gramtica histrica, principalmente, tm procurado mostrar isso. Assim que existem variantes de prestgio e variantes estigmatizados ou, ainda, as chamadas variantes padro e variantes no padro.

    Por fi m, o encerramento dessas consideraes sobre a variao lingstica no Brasil se d com o que diz Cunha (1986, p.79):

    Nenhuma lngua permanece uniforme em todo o seu domnio e ainda num s local apresenta um sem-nmero de diferenciaes de maior ou menor amplitude. Porm essas variedades de ordem geogrfi ca, de ordem social e at individual pois cada indivduo tem o seu idioleto, como hoje se diz, isto , procura utilizar o sistema idiomtico da forma que melhor lhe exprime o gosto e o pensamento essas variedades, re-prisemos, no prejudicam a unidade superior da lngua nem infl uem na conscincia que tem os que a falam diversamente de se servirem de um mesmo instrumento de comunicao, de manifestao e de emoo.

    Depois de tudo o que foi colocado ao longo do texto, imperioso afi rmar que as descries sociolingsticas, principalmente as que tm por base a Teoria da Variao Laboviana e as elaboraes dos Atlas lingsticos regionais e do Brasil, daro cabo das diversidades lingsticas do Brasil j em circunstncias bem avanadas.

    Referncias bibliogrfi casAMARAL, Amadeu. O dialeto caipira, 1920.2.ed. So Paulo: Anhembi, 1955.BRAGA, Maria Luiza. Construo de tpico de discurso. In: A.J. NARO. Relatrio fi nal de

    pesquisa: subsdios sociolingsticos do Projeto Censo educao. Rio de Janeiro, UFRJ, vol.1e2, 1986.

    CUNHA, Celso. Lngua Portuguesa e realidade brasileira. 9.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986.

    FISHER, John L Social infl uences on the choice of a linguistic variant. Word. 14(47-56), 1958.

    LEITE, Yonne e CALLOU, Dinah. Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

    LUCCHESI, Dante. O conceito de transmisso lingstica irregular e o processo de formao do portugus do Brasil. In: RONCARATI, Cludia e ABRAADO, Jussara (orgs.). Portugus

  • 13

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    brasileiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.MARROQUIM, Mrio. A lngua do Nordeste. 3.ed. Curitiba: HD Livros, 1996.MATOS E SILVA, Rosa Virgnia. O portugus so dois: novas fronteiras, velhos problemas.

    So Paulo: Parbola Editorial, 2004.MOLLICA, Maria Ceclia. Estudo da cpia nas construes relativas em portugus. Disser-

    tao de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1977.NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca em 1922. ed.Rio,1953.OLIVEIRA, Dercir Pedro de. O tpico em lngua escrita. In: Letras & Letras. V.12,n.2,

    jul/dez. Uberlndia: Ed. da UFU, 1996.PARANHOS DA SILVA, Jos Jorge. O idioma do hodierno Portugal comparado com o do

    Brasil. Rio de Janeiro, 1879.ROSSI, Nelson. Atlas Prvio dos falares baianos. Rio: INL, 1963.SILVA NETO, Serafi m da. Introduo ao estudo da lngua portuguesa no Brasil. 3.ed. Rio

    de Janeiro: Presena; Braslia, INL, 1976.TARALLO, Fernando. Relativization Strategies in Brasilian Portuguese. PHD Dissertation.

    Philadelphia, 1983.(mimeo).WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Empirical foundations for a theory

    of language change. In: Winfred P. Lehmann & Yavov Malkiel (eds.). Directions for Historical Lingistics. Austin: UniversitY of Texas Press, p.97-195.

    Notas.a Professor titular de Lingstica e Lngua Portuguesa, do Departamento de Educao, do Cmpus de

    Trs Lagoas, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil.b O conceito de transmisso lingstica irregular aqui tomado para designar processos de contato

    massivo c prolongado entre as lnguas, nos quais a lngua do segmento que detm o poder poltico tomada como modelo de referncia para os demais segmentos. (...) Quando uma grande populao de adultos em muitos casos falantes de lnguas diferenciadas e mutuamente ininteligveis forada a adquirir uma segunda lngua emergencialmente (...)

  • 14

    Cruzando os fi os da Histria com a historicidade do discurso*Glucia Muniz Proena LARA**

    Abstract: In the present work, we take as analysis object the speech of ownership to 1 mandate of Jose Orcrio dos Santos (Zeca of the PT), former-governor of Mato Grosso do Sul (MS), searching, to the light of the DA (French school of Discourse Analysis), to study the discursive and ideological formations that cross the cited speech, as well as apprehending the game of images (image of the I/enunciator, articulated to the notion of ethos, image of other/enunciatary, image of MS) that in it constitutes. In this manner, we cross the historicity of the text (the tram of felt that in it constitutes) with History (the relation with the exteriority), as it considers the DA.

    Key-words: historicity, politics discourse, History, Discourse Analysis.

    IntroduoO discurso poltico tem atrado vrios pesquisadores e estudiosos ao longo do tempo. A

    escola francesa de anlise do discurso (AD), por exemplo, privilegiou, nos seus primrdios, esse tipo de discurso como objeto de estudo. Pcheux, em prefcio a trabalho de Courtine (1981, p. 5), constata que tal disciplina parece ter experimentado, desde suas origens, um pendor irresistvel, na Frana, para eleger como objeto de estudo os discursos polticos (de esquerda, mais freqentemente), para escrutar suas especifi cidades, suas alianas e suas demarcaes.

    No Brasil, muitos so os trabalhos que, orientados por perspectivas tericas distintas e por diferentes objetivos, tm-se debruado sobre o discurso poltico, buscando desven-dar seu funcionamento e refl etir sobre seus efeitos de sentido. Entre eles, podemos citar as pesquisas de Souza (1987), que procura examinar a relao entre lngua e ideologia no discurso sindical de Lus Incio da Silva; de Fiorin (1988), que estuda as invariantes do discurso do golpe de 1964; de Pinto (1989), que analisa a fala do Presidente Jos Sarney sobre o Plano Cruzado; de Lima (1990), que empreende a anlise discursiva do termo povo nos discursos de 1 de Maio de Getlio Vargas; e de Cazarin (1998), que examina a heterogeneidade discursiva mostrada no discurso poltico de L. I. Lula da Silva, no perodo compreendido entre 1978 e 1995.

    O presente trabalho elegeu como objeto de estudo o discurso poltico, mais especi-fi camente o discurso de posse (proferido em 1o de janeiro de 1999) referente ao primeiro mandato do ex-governador de Mato Grosso do Sul doravante MS Jos Orcrio dos Santos, o Zeca do PT. Lembramos que Jos Orcrio foi reeleito em 2002, cumprindo um segundo mandato no perodo de 2003 a 2006.

    A escolha desse discurso e no de outros, que estariam igualmente disponveis tem sua razo de ser: a vitria de Jos Orcrio na eleio governamental de 1998 signifi cou a ruptura no plano poltico, no apenas porque um candidato de esquerda assumiu, pela primeira vez, a funo mais relevante de MS, mas tambm porque sua ascenso ps fi m a um ciclo que se repetia desde a diviso do Estado (Lei Complementar n 31, de 11 de outubro de 1977), com o revezamento de trs governadores Marcelo Miranda, Wilson Barbosa Martins e Pedro Pedrossian no poder.

    Nosso objetivo , em linhas gerais, verifi car como essa ruptura se d no plano dis-cursivo. Para tanto, propomo-nos cruzar, no discurso escolhido, a historicidade do texto (a trama de sentidos que nele se constitui) com a Histria (a relao com a exterioridade).

  • 15

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    Pressupostos tericosNo quadro da AD francesa, pretendemos, num primeiro momento, analisar as forma-

    es imaginrias que interagem no discurso de posse de Zeca do PT, articulando a imagem do eu noo aristotlica de ethos, a fi m de mostrar como a imagem do enunciador est atrelada prpria imagem do outro (povo, polticos em geral, ex-governadores) e pr-pria imagem do objeto (MS) que ele constri. Assumimos, nesse caso, com PCHEUX (1990, p. 79-87), que o discurso no deve ser entendido como simples transmisso de informaes, mas como efeito de sentidos entre A e B, que so lugares determinados na estrutura de uma formao social, lugares esses que esto representados por uma srie de formaes imaginrias: a imagem que o falante tem de si, a que tem do seu ouvinte, a que tem do referente etc.

    Quanto ao ethos, afi rma Maingueneau (2001, p. 97-98) que esse tipo de fenmeno permite revelar, por meio da enunciao, a personalidade do enunciador. Pontuando que o discurso inseparvel daquilo que se poderia designar, de forma muito grosseira, como uma voz, o autor destaca que essa era uma dimenso bastante conhecida da retrica an-tiga, que entendia por eth as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, atravs de sua maneira de dizer: no o que diziam a propsito deles mesmos, mas o que revelavam pelo prprio modo de se expressarem (grifos do autor). Nesse sentido, Aris-tteles distinguia: phrnesis (ter o aspecto de pessoa ponderada), aret (assumir a atitude de um homem de fala franca, que diz a verdade crua) e eunia (oferecer uma imagem agradvel de si mesmo) (MAINGUENEAU,1993, p. 45-46; grifos do autor).

    Num segundo momento, luz da concepo de heterogeneidade constitutiva, buscare-mos apreender as formaes discursivas que atravessam o discurso em exame, tanto aquelas pertencentes ao campo discursivo poltico quanto a outros campos (como o religioso, por exemplo), examinando as relaes de aliana ou de confronto que as FDs estabelecem entre si, a fi m de desvelar a formao ideolgica (FI) que rege essas relaes.

    Lembramos que as noes de formao discursiva (FD) e de formao ideolgica (FI), originrias, respectivamente, dos trabalhos de Foucault e de Althusser, so (re)formuladas no quadro da AD. Nessa perspectiva, uma formao ideolgica, defi nida como um conjunto de representaes que no so nem individuais nem universais, mas se rela-cionam mais ou menos a posies de classe em confl ito umas com as outras, comporta necessariamente, como um de seus componentes, uma ou vrias formaes discursivas interligadas que determinam o que pode e o que deve ser dito a partir de uma posio dada numa conjuntura, isto , numa certa relao de lugares, no interior de um aparelho ideolgico, e inscrita numa relao de classes (PCHEUX & FUCHS, 1990, p. 166-167; grifos dos autores).

    Cabe, fi nalmente, explicitar o que entendemos por discurso e, mais especifi camente, por discurso poltico. Souza (1987, p. 29), citando Courtine, concebe o discurso como um espao em que se imbricam o ideolgico e o lingstico. A relao lngua/discurso/ideolo-gia tambm abordada por Bakhtin (1990, p. 96-113). Entendendo o discurso como tudo aquilo que se constri no momento da enunciao e que resulta, portanto, da interao de indivduos socialmente organizados, o autor afi rma que a lngua (atravs da qual o discurso se realiza) inseparvel de seu contedo ideolgico. Assim, enquanto noo intermediria entre a lngua (geral) e a fala (individual), o discurso implica lugar social, interao.

    Quanto noo de discurso poltico, alguns autores, como, por exemplo, Lima (1990, p. 20), afi rmam que a distino discurso poltico versus outros discursos constitui um engodo, j que em qualquer discurso podemos encontrar a instncia poltico e que, inversamente, podemos no encontrar elementos polticos em um discurso dito pol-tico. Entretanto, falar de um discurso x ou y implica considerar que temos um conjunto de enunciados que se relacionam entre si de alguma forma mais ou menos garantida, seja porque se produzem numa mesma instncia, seja porque relativos a um mesmo referencial.

  • 16

    isso que nos permite, por exemplo, falar de discurso poltico, discurso sindical, discurso mdico ou discurso de esquerda (POSSENTI, 1990, p. 45-59).

    No se trata, porm, de formaes discursivas estanques, defi nidas de uma vez por todas. O discurso do sujeito se tece polifonicamente, num jogo de vozes cruzadas, com-plementares, concorrentes, contraditrias; seu discurso , pois, atravessado por vrias FDs, cujos limites podem romper-se ou embaralhar-se.

    Diante do que foi exposto, falar de discurso poltico implica, no nosso modo de en-tender, considerar que temos um discurso caracterizado, predominantemente, por deter-minadas especifi cidades, mas que pode ser atravessado por elementos oriundos de outros discursos ou de outras FDs. No podemos perder de vista que todo e qualquer discurso , por excelncia, heterogneo e o discurso poltico no foge regra.

    De acordo com Pinto (1989, p. 56), o discurso poltico necessita, como nenhum outro, interpelar, pois seu xito depende de sua habilidade de construir sujeitos com a mesma viso de mundo que defende, na qualidade de guardio das idias e valores da classe do-minante. , portanto, um discurso persuasivo, por natureza, cujo objetivo vencer a luta (poltica), atravs do jogo da desconstruo e reconstruo de signifi cados. Comparando o discurso poltico ao cientfi co, a autora aponta que, enquanto neste a nfase no objeto do discurso (o enunciado) apaga as marcas do sujeito (o enunciador), criando um efeito de sentido de saber objetivo, naquele h um sujeito presente, explcito que se instaura completamente no discurso.

    Entretanto, se a primeira luta do discurso poltico a de instaurar sujeitos que o enunciam, essa luta no se esgota a: ela ganha novos contornos quando o foco analisar os sujeitos que so enunciados pelo enunciador. Um discurso dirigido aos trabalhadores ordeiros e leais s tradies crists e um outro direcionado aos trabalhadores maltrata-dos, explorados, sem habitao digna, sem direito escola para seus fi lhos constituem diferentemente o sujeito-trabalhador. Ou, em outras palavras, constroem desse sujeito imagens completamente distintas (PINTO, 1989, p. 53-54).

    Da a importncia de analisarmos a imagem do eu/enunciador que se mostra no discurso tanto no nvel do enunciado (aquilo que o enunciador diz de si mesmo) quanto no da enunciao (o que est ligado noo aristotlica de ethos) e de articularmos essa imagem s outras (imagem do outro/enunciatrio, do objeto etc) que o discurso cons-tri. Vamos, portanto, anlise do discurso de posse do primeiro mandato de Jos Orcrio dos Santos o Zeca do PT que, como se viu, tem nos conceitos propostos pela AD seus princpios norteadores.

    Analisando o discurso

    1.As condies de produo e o jogo de imagensJos Orcrio dos Santos (o Zeca do PT) assumiu o governo no dia 1 de janeiro de

    1999 (1o mandato), depois de uma vitria expressiva nas urnas, que o levou a derrotar, j no 1 turno, o candidato apoiado pelo ento governador Wilson Barbosa Martins: o en-genheiro Ricardo Bacha. Essa vitria mais signifi cativa ainda quando se considera que Jos Orcrio havia tentado, dois anos antes, tornar-se prefeito de Campo Grande, capital do Estado, tendo sido derrotado por Andr Puccinelli por uma margem mnima de votos, o que levou o PT a questionar a lisura e s transparncia do processo e acusar o prefeito eleito de compra de votos. Foi, portanto, a primeira vez em que o PT, partido tradicional-

  • 17

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    mente de esquerda, assumiu a funo poltica mais relevante de MS, rompendo o ciclo de governadores que, at ento, dominava inconteste na administrao do Estado. Esse fato ser relembrado por Jos Orcrio no seu discurso, atravs da insistncia na idia de mudana, como mostra o trecho abaixo:

    O propsito de mudana que fi rmei durante a trajetria de minha vida poltica, foi o credencial para que a populao sul-mato-grossense, tambm movida por esse sentimento, acreditasse na alternativa de um governo popular e realizasse a mudana na conduo poltica do nosso Estado. (p. 2; grifos nossos)

    Esse , em rpidas pinceladas, o contexto histrico-social em que se constri o dis-curso. Quanto situao mais imediata de interao verbal, o governador eleito, como de praxe no dia da posse, fala na Assemblia Legislativa, mas seu discurso se dirige, funda-mentalmente, ao povo, o que compatvel com a postura de um governo que se intitula popular (vide trecho acima). importante nos determos aqui para estabelecer o jogo de imagens que se institui entre enunciador e enunciatrio(s).

    O governador eleito constri uma imagem de si como um homem forte, atribuindo-se qualidades morais elevadas (nvel do enunciado), e refora essa imagem tambm no nvel da enunciao (ethos). Assim, pelo tom forte de uma enunciao que vai direto crtica, recusando o uso de meias palavras o que remete a aret Jos Orcrio cria um discurso efi caz, mostrando que a palavra vem de algum que, por meio dela, demonstra possuir as qualidades (coragem, fi rmeza, determinao) necessrias implementao das mudanas que permitiro a construo de um Estado solidrio. Vejamos:

    Quis Deus, pelas mos do povo, que eu assumisse a responsabilidade de conduzir o Estado para o novo milnio.Os desafi os enfrentados s fi zeram fortalecer o meu carter e minha vontade de mudar as regras do jogo. Por isso, assumo hoje, sem medo, com fi rmeza e determinao, o governo de um Estado economicamente falido e socialmente fracassado, resultado do descompromisso daqueles que, eleitos pelo povo, foram incapazes de retribuir-lhe a confi ana. Exerceram o poder com egosmo e ingratido (...) S conheceram suas prprias satisfaes, sua prpria felicidade, pelas quais zelaram com avareza at o ltimo dia, esbulhando os ltimos centavos do cofre pblico. (p. 3)

    Esse retrato discursivo favorvel que o governador eleito constri de si mesmo (tanto no nvel do enunciado quanto no da enunciao) contrasta, no outro extremo, com a imagem, digamos, fragilizada (mas ainda assim positiva) que o discurso institui do outro/povo. Nesse sentido, o povo , em geral, caracterizado como sofrido, maltratado, injustiado, ludibriado (pelos governos anteriores em que acreditaram), endividado (os devedores do Estado so os devedores do povo), embora se constitua de homens e mulheres de bem.

    Percebemos, assim, como se d, via jogo de imagens, a instaurao do sujeito-enunciador e a do sujeito que enunciado pelo enunciador (PINTO, 1989). Jos Orcrio ocupa, pois, o lugar de poltico de esquerda, adepto, pelo menos teoricamente, de um sistema de governo de forte participao popular, e o povo, apesar de ser quem detm e delega o poder numa democracia, acaba ocupando, no discurso em questo, um lugar menor, o que justifi ca a necessidade de um lder poltico corajoso e determinado, a

  • 18

    quem caber sobretudo reorganizar a casa, j que a imagem que se constri do referente MS a de um Estado economicamente falido e socialmente fracassado, conforme se viu no trecho reproduzido acima. apenas a partir da recuperao da ordem, da volta ao equilbrio, comprometido pelo fazer dos governos anteriores, que ser possvel promover o desenvolvimento econmico e social de MS.

    Nesse sentido, a imagem positiva que o governador eleito se atribui tambm contrasta com os simulacros dos ex-governadores que so construdos no/pelo discurso. Estes, na sua condio de enunciatrios indiretos, so caracterizados de forma extremamente negativa: so egostas, ingratos, avarentos, descomprometidos com o povo.

    Enfi m, as respostas s perguntas quem sou eu para lhe falar assim, quem ele para que eu lhe fale assim e de que eu lhe falo, que confi guram, respectivamente, os pontos de vista de Jos Orcrio sobre si mesmo, sobre o(s) outro(s) tanto o enunciatrio maior povo quanto os enunciatrios indiretos e sobre o referente (MS) permitem-nos, chegar s formaes imaginrias que esto na base do discurso e que, juntamente com as variveis scio-histricas apontadas anteriormente, interferem, a ttulo de condies de produo, na construo do sentido.

    2.As formaes discursivas e ideolgicasExaminaremos aqui a fala de Jos Orcrio (o intradiscurso) por meio do seu inter-

    discurso (o espao de troca ou de interao entre vrias FDs), tal como prope Main-gueneau (1991).

    Admitindo que uma formao discursiva aparece como o lugar de um trabalho no interior do interdiscurso, o autor considera o interdiscurso como a unidade de anlise pertinente, na medida em que permite apreender no uma FD, mas a interao entre FDs, o que implica que a identidade discursiva se constri na relao com o Outro. Assim, todo discurso mantm relao com outros discursos (os quais inclui, exclui, pressupe etc.), relaes essas determinadas pelo interdiscurso (MAIGUENEAU, 1991, p.160-163).

    Entretanto, por tomar interdiscurso como um termo bastante vago, o estudioso busca refi n-lo e torn-lo mais operatrio, introduzindo trs conceitos complementares: o de universo discursivo, o de campo discursivo e o de espao discursivo. a partir do universo discursivo, enquanto conjunto de enunciados de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada, que so recortados os domnios suscetveis de ser estudados pelo analista: os campos discursivos. Estes podem ser defi nidos como um conjunto de FDs que se encontram em concorrncia (afrontamento aberto, aliana ou neutralidade aparente) e se delimitam, portanto, a partir de uma posio enunciativa numa regio dada. (MAIN-GUENEAU, 1991, p. 157-158).

    Fazendo uso das duas noes defi nidas acima, podemos dizer que temos, no interior do universo discursivo, um campo discursivo poltico, em que vrias FDs se encontram em concorrncia, delimitando-se reciprocamente. Dentro do campo, podem ser isolados

  • 19

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    espaos discursivos, isto , subconjuntos que ligam ao menos duas FDs que mantm re-laes privilegiadas, relaes essas que o analista julga pertinentes para o seu propsito. Isso quer dizer que o espao discursivo no dado a priori, resultando de uma escolha do pesquisador (MAINGUENEAU, p. 1991:163).

    Nessa perspectiva, vemos que a o discurso de posse de Jos Orcrio atraves-sado por vrias FDs, mostrando, dessa forma, a heterogeneidade que est na base de sua constituio (e que, num outro plano, se mostra atravs de marcas especfi cas, sejam ela unvocas ou no). Se, utilizando a noo de espao discursivo, fi zermos um recorte dessas FDs, situadas no campo poltico, no sentido de estabelecer relaes que sejam cruciais para a compreenso do discurso em questo, constatamos a existncia de pelo menos dois espaos discursivos.

    No primeiro plano, um discurso situacionista (atribudo, portanto, situao, ao governo que ora assume o poder) estabelece uma relao polmica com um discurso oposicionista (relacionado aos governos anteriores). Isso porque cada uma dessas FDs defi ne sua prpria identidade pela negao das unidades de sentido construdas pela outra (MAINGUENEAU, 1991, p.165). Num outro plano, um discurso de cunho populista, que prega o compromisso com o social, articula-se contraditoriamente com um discurso tradicionalista, que prega a austeridade e a moralizao no nvel econmico e administrativo, ou seja, essas duas FDs partilham o mesmo espao discursivo sem que a presena de uma implique necessariamente a rejeio ou a negao da outra.

    Isso mostra que as FDs estabelecem entre si relaes dialgicas, que tanto po-dem ser confronto quanto de aliana, revelando, em ltima anlise, que a constituio dos discursos, assim como a dos sujeitos, se d de forma contraditria. A contradio, que une e divide ao mesmo tempo os discursos, , pois, algo inerente s FDs e FIs, sendo a prpria individuao de um discurso um processo contraditrio (COURTINE, 1981, p.29).

    A FD situacionista que atravessa o discurso de Jos Orcrio pode ser apreendida atravs de enunciados que valorizam o fazer (futuro) do governador do PT e as intenes que o iluminam. Isso ocorre, por exemplo, quando se diz que os salrios sero pagos em dia e que se buscar o fortalecimento das relaes com os servidores pblicos, como forma de valoriz-los e motiv-los, ou quando se afi rma que o repasse constitucional de verbas aos Municpios ser garantido e honrado e que se lutar em defesa do pacto federativo.

    J a FD oposicionista pretende mostrar que o fazer dos outros (sobretudo dos diri-gentes anteriores) foi danoso ao povo. assim que os atrasos no pagamento dos servi-dores pblicos e a falta de repasse do dinheiro dos Municpios so caracterizados como completa ausncia de sensibilidade e de solidariedade humana dos dirigentes pblicos. So, pois, FDs cuja identidade se defi ne por oposio identidade da outra. Assim, todo enunciado narrativo e todo tema do discurso situacionista negam o enunciado e o tema correspondentes do discurso contrrio (o oposicionista) e vice-versa.

    Alm disso, cada uma das duas FDs que caracterizam essa troca polmica compre-ende os enunciados (e o fazer) do outro, traduzindo-os em sua prpria grelha semntica.

  • 20

    assim, por exemplo, que os gastos empreendidos pelos governos anteriores so tradu-zidos no discurso situacionista como esbulhamento dos cofres pblicos, motivado por interesses particulares e de grupo.

    Se a relao entre a FD situacionista e a FD oposicionista nitidamente polmica, o mesmo no ocorre quando se trata do segundo espao discursivo que recortamos. Nele, busca-se uma espcie de harmonizao entre a FD de cunho populista e a FD tradicional. Essa convivncia, at certo ponto pacfi ca, entre as duas FDs (j que a presena de uma no implica a rejeio ou a negao da outra), manifesta-se, com clareza, no seguinte trecho:

    Infelizmente no poderei apresentar aqui apenas as aes para a implantao das po-lticas democrticas e populares de nosso governo. A grave situao fi nanceira do Estado obriga-me a apresentar, tambm, medidas para garantir, de forma mnima, a administrao dos primeiros cem dias de governo.

    Este documento resume nossa interveno emergencial nos rumos da administrao pblica sem, contudo, esquecer de reafi rmar nosso compromisso de campanha.

    Como governador empossado, assino hoje 16 decretos que consolidam as promessas de austeridade administrativa e implantao de polticas pblicas voltadas ao bem-estar da populao. (p. 7)

    Assim, enunciados que pregam a moralizao das fi nanas, a racionalizao das des-pesas, a reviso dos incentivos fi scais concedidos, o cancelamento de regimes tributrios especiais, o incremento da fi scalizao preventiva, com punio severa para a corrupo e a sonegao (FD tradicional) convivem com aqueles que pertencem a uma FD de cunho populista e que anunciam, por exemplo, a valorizao do ser humano e o compromisso com o bem-estar da populao, acima de tudo, o que implica a no-aceitao de polti-cas fi nanceiras impostas, que maltratam nossa gente, ou ainda, a defesa de aes que benefi ciam nosso povo sofrido. O trecho que reproduzimos abaixo ilustra claramente a fi liao do discurso em questo a uma FD de cunho populista:

    Nosso objetivo e compromisso a construo de um Estado solidrio que, alm de combater as mazelas e desigualdades sociais, atravs de programas voltados distribuio de renda e valorizao do ser humano, como a bolsa-escola, o banco do povo, o mdico de famlia e o oramento participativo, possa incentivar a construo de novas relaes entre as pessoas, onde o respeito, o auxlio e o convvio harmonioso com o prximo sejam a regra e no a exceo. Um Estado onde homens e mulheres possam partilhar os sonhos e as conquistas, onde o que seja permitido a um no seja vedado a outro. Um Estado que permeie suas aes contemplando as polticas de gnero. Um Estado que inclua e valorize o ser humano. (p. 13)

    Assim, o complexo das FDs, em seu conjunto, defi ne o universo do dizvel. No podemos perder de vista, no entanto, que embora a interao entre as quatro FDs mencio-nadas seja bastante equilibrada, no discurso em questo, diramos que predominam as FDs situacionista e populista sobre as outras duas, o que compreensvel, uma vez que se trata

  • 21

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    do discurso de um governo que se diz popular e que pretende, acima de tudo, valorizar seus prprios compromissos, aes e atitudes.

    Para alm do campo poltico, podemos resgatar ainda duas FDs, oriundas de outros campos discursivos (o religioso e o ldico) que atravessam o discurso do sujeito e que estabelecem relaes de aliana com as FDs polticas situacionista e populista. Trata-se da FD crist, que atribui a Deus a responsabilidade maior pela conjuno do ento candidato com o poder, e uma espcie de FD do jogo (perceptvel quando se fala, por exemplo, em mudar as regras do jogo).

    O que j foi dito permite-nos concluir que o discurso heterogneo por natureza, pois sempre comporta, constitutivamente, em seu interior, outros discursos. O que importa para a AD , ento, romper a aparente homogeneidade discursiva e fazer vir tona sua heterogeneidade fundante, mobilizando, para tanto, a categoria da memria discursiva (INDURSKY, 1992, p 285-302).

    Uma vez apreendidas as FDs que interagem no espao interdiscursivo em que se inscreve a fala de Jos Orcrio, resta-nos buscar a FI em que essas FDs se inscrevem, uma vez que, como vimos, o discurso constitui o ponto privilegiado de encontro entre o lingstico e o ideolgico. Propagandas televisivas que comemoraram, poca, os 21 anos de fundao do PT, partido a que se vincula o governador eleito, insistiam no lema: combater a corrupo e melhorar a vida do povo. Esse bordo est em sintonia com o que prope o discurso de posse de Jos Orcrio, inscrevendo-o, portanto, numa FI que defende as idias, os valores e os interesses do povo.

    Considerando que a anlise no se interessa pela verdadeira posio ideolgica do enunciador real, mas pelas vises de mundo do(s) enunciador(es) inscrito(s) no discurso (FIORIN, 1988, p. 51), afi rmaramos, ento, que o discurso de Jos Orcrio atravessado por FDs que materializam, atravs da linguagem, uma FI das classes populares. Isso se d, evidentemente, no nvel do parecer. Como o que importa a verdade interna do texto, o discurso convence, persuade o interlocutor a que se destina porque parece verdadeiro.

    Nesse sentido, o povo, enunciatrio maior a quem o discurso se dirige, tomado como uma massa homognea movida pelos mesmos interesses. O governo, que dirige o Estado, passa, assim, a justifi car suas aes em nome de uma vontade nica: o bem-estar comum, o que implica, atravs de um mecanismo semntico bsico de universalizao abstrata, negar as diferenas em nome de uma unidade superior, que engloba contrrios e contraditrios. Essa relao natural, que v a sociedade organizada como um pacto em funo de interesses maiores que pertencem a todos, serve, na realidade, para ocultar a existncia de classes em confronto numa FS (formao social). Tal estratgia, observada por Fiorin (1988a) nos discursos do regime militar, tambm se manifesta no discurso de posse de Jos Orcrio.

    No podemos perder de vista, alm disso, que a instncia do poder est inexora-velmente ligada aos interesses da classe hegemnica, pois esta, em ltima anlise, que sustenta aquela. E, embora haja numa FS tantas FIs quantas forem as classes sociais, a FI dominante a da classe dominante. Essa conjuntura nos levaria a afi rmar que um discurso

  • 22

    que institui o povo como seu enunciatrio maior, atribuindo-lhe um querer nico, serviria, na realidade, para escamotear a relao classe hegemnica/instncia do poder. Com isso, manter-se-ia o status quo, mas se negaria essa manuteno sob um aparente processo de mudanas, cujos benefcios seriam estendidos a todos.

    Resta saber at que ponto, em sua essncia (nvel do ser), o discurso de Jos Orcrio mantm o comprometimento, observado no nvel da manifestao (nvel do parecer), com a FI das camadas populares. No buscaria ele, como os discursos polticos em geral, ocultar a relao com a FI das elites, que constituem, em ltima anlise, a fonte do poder, atravs da idia de um Estado que paira acima das diferenas e interesses de classe? Fica a questo em aberto para novas e mais profundas investigaes.

    Referncias bibliogrfi cas

    AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingsticos. Campinas, n. 19, jul./dez. 1990, p. 25-42.

    BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e fi losofi a da linguagem. 5. ed. So Paulo: Hucitec, 1990.

    BENVENISTE, mile. Problemas de lingstica geral I. Campinas: Pontes: 1991.

    CAZARIN, Erclia A. Heterogeneidade discursiva: relaes e efeitos de sentido instaurados pela insero do discurso-outro no discurso poltico de L. I. Lula da Silva. Iju: Ed. Uniju, 1998.

    COURTINE, J-J. Quelques problmes thoriques et mthodologiques en analyse du discours propos du discours communiste adress aux chrtiens. Langages, Paris, n. 62, juin 1981.

    FIORIN, Jos Luiz. O regime de 1964: discurso e ideologia. So Paulo: Atual, 1988.

    INDURSKY, Freda. A fala dos quartis e as outras vozes. Campinas: Ed. UNICAMP, 1992. (tese de doutorado).

    LIMA, Maria Emlia A. T. A construo discursiva do povo brasileiro. Campinas: Ed. UNICAMP, 1990.

    MAINGUENEAU, Dominique. LAnalyse du Discours: introduction aux lectures de larchive. Paris: Hachette, 1991.

    ________. Novas tendncias em anlise do discurso. Campinas, Ed. UNICAMP/Pontes, 1993.

    ________. Anlise de textos de comunicao. So Paulo: Cortez, 2001.

    PCHEUX, Michel. Anlise automtica do discurso. In: GADET, F. & HAKS, T. (orgs.) Por uma anlise automtica do discurso. Campinas: Ed. UNICAMP, 1990.

  • 23

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    *O presente artigo parte da pesquisa As imagens de Mato Grosso do Sul no discurso de seus gover-nantes, que foi desenvolvida por ns no perodo de 1999-2002, quando ainda atuvamos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), da qual aposentamos em fevereiro de 2004. Foi apresentado no III Encontro Nacional do GELCO II Simpsio de Lngua de Sinais e Bilingismo I Colquio Regional da ALED no Brasil, triplo evento realizado pela UnB, em Braslia, DF, em outubro de 2006.

    **Docente da FALE/UFMG.

    Docente da FALE/UFMG.

    PCHEUX , M. & FUCHS, C. A propsito da anlise automtica do discurso: atualizao e perspectivas. In: GADET, F. & HAK, T. (orgs). Por uma anlise automtica do discurso. Campinas: Ed. UNICAMP, 1990.

    PINTO, Clia Regina J. Com a palavra o senhor presidente Jos Sarney. So Paulo: Hucitec, 1989.

    POSSENTI, Srio. Apresentao da anlise do discurso. Glotta, S.J. do Rio Preto, n. 12, 1990, p. 45-59.

    SOUZA, Pedro de. A imbricao dos aspectos lingsticos e ideolgicos na enunciao do discurso poltico. So Paulo: PUC/SP, 1987 (Dissertao de mestrado).

  • 24

  • 25

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    O ARSENAL TERICO DE BAKHTIN: ENTRE O ESTUDO DA LINGUAGEM E O SER SOCIALA*

    Vnia Maria Lescano GUERRAbJefferson Barbosa de SOUZAc

    Carlos Vinicius da Silva FIGUEIREDOd rica Roberta DOURADO Gislane Pedroso BORGES

    Lorena Adami da CRUZ Sandra Regina Nia MINA

    Abstract: Our objective in this study is to refl ect on some Bakhtins concepts, from his conception of language as an abstract system and as a collective, integrant creation of a cumulative dialogue between I and the other, between many Is and many others. We understand our goal does not constitute simple task, in result of the amplitude and the complexity of its workmanship, discussion around the attributed authorship the texts signed with other integrants names of the Bakhtins Circle, and unfamiliarity that still its verifi ed in totality of his ideas and the object diver-sity of authors refl ection. From a preliminary inquiry, we verify that the current publications are innumerable which, of different and until paradoxical forms, appeal to Bakhtin to try the validation of extremely disparate hypotheses between itself. It is possible to fi nd the Bakhtins thought since in dedicated works of semiotics to the study of the cinema, of the painting, even in literature works whose emphasis falls again into aesthetic questions of the literary texts, and of linguistics whose focus is on the process of subjectivity constitution.

    Key-words: dialogism; ideology; subjectivity.

    IntroduoEstudar a obra de Bakhtin uma tarefa difcil em decorrncia da amplitude e da

    complexidade do seu pensamento, da discusso em torno da autoria atribuda a textos assinados com nomes de outros integrantes do crculo de Bakhtin, do desconhecimento que ainda se verifi ca da totalidade de suas idias e da diversidade de objetos de refl exo do autor. Inmeras so as publicaes atuais que, de formas diferentes e at paradoxais, recorrem a Bakhtin para tentar a validao de hipteses extremamente dspares entre si. possvel encontrar o pensamento bakhtiniano desde em trabalhos de semitica dedicados ao estudo do cinema, da pintura, at em trabalhos de literatura cuja nfase recai em questes estticas dos textos literrios, e de lingstica cujo foco est no processo de constituio da subjetividade.

    Mikhail Mikhailovitch Bakhtin fi lsofo, historiador da Cultura, Esttica e Filologia nasceu na Rssia, em 1895, e viveu o conturbado perodo da revoluo, da possibilidade de uma nova sociedade e das impossibilidades ditadas pelo governo stalinista. Sua extensa obra caracterizada por uma concepo dialgica da linguagem, da vida e dos sujeitos. Ele um dos maiores pensadores do sculo XX e um terico fundamental da lngua. Em Marxismo e fi losofi a da linguagem est sua teoria da linguagem e do dialogismo em que

  • 26

    ele enfatizou a heterogeneidade concreta da parole, ou seja, a complexidade multiforme das manifestaes de linguagem em situaes sociais concretas, diferentemente de Saussure e dos estruturalistas, que privilegiam a langue, isto , o sistema abstrato da lngua, com suas caractersticas formais passveis de serem repetidas.

    Nosso objetivo neste ensaio refl etir sobre alguns conceitos bakhtinianos, a partir de sua concepo de linguagem como um sistema abstrato e como uma criao coletiva, integrante de um dilogo cumulativo entre o eu e o outro, entre muitos eus e muitos outros.

    A fi m de que os conceitos por ns eleitos possam ser elucidados ao longo deste trabalho, trazemos algumas anlises que dizem respeito ao estudo que fi zemos sobre o pronunciamento do Primeiro Comando da Capital (PCC) mdia televisiva, a partir de um discurso sobre identidade transgressora (ser social). Esclarecemos, ainda, que a trans-crio desse discurso foi publicada na Revista ISTO , de 24 de maio de 2006, peridico de grande circulao nacional.

    CarnavalizaoUm conceito que nos interessa mobilizar o de carnavalizao, termo decorrente

    de anlises bakhtinianas acerca da produo literria de Rebelais e Dostoievski, e que se modifi ca ao longo desse percurso terico: de simplesmente adereo e mobilizao popular passa ao grotesco e descomunal, proporcionados pela ruptura no furor de uma sociedade totalmente ofi cial. Conceitualmente, ento, carnavalizao, como o prprio termo sugere, advm de carnaval, cuja imagem de celebrao, durante a Idade Mdia e Renascimento, estava intrinsecamente ligada comemorao do incio do ano ou renascimento da natu-reza.

    Aqui no Brasil, toma-se a comemorao popular do carnaval como uma representa-bilidade da cultura brasileira (austral), de que decorre a aplicabilidade conceitual do termo na contemporaneidade brasileira. Mscaras, fantasias, pinturas, pardia constituem o uni-verso carnavalesco que, para Bakhtin, caracteriza a instaurao da liberdade ou ruptura em relao s restries promulgadas pelas leis que determinam uma sociedade organizada. Nosso pas, por excelncia, apresenta toda uma genealogiae conservadora perpetuante em seu discurso. Esse um trao gentico que se adquiriu no instante do processo coloniza-dor. Portanto, melhor lugar no h, a no ser a periferia ou, por extenso, a colnia, para a ao carnavalesca.

    A carnavalizao, ento, aquilo que se inverte, que desloca e que provoca tenso entre os mundos ofi cial e popular. Bakhtin (1987, p.5), da perspectiva do texto literrio, diz que

    Os ritos e espetculos carnavalescos oferecem uma viso de mundo, do homem e das relaes humanas totalmente diferentes, deliberadamente no ofi cial, exterior, Igreja e ao Estado, pareciam ter constitudo, ao lado do mundo ofi cial, um segundo mundo e uma

  • 27

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    segunda vida... Essa segunda vida da cultura popular constri-se como pardia da vida ordinria, como um mundo ao revs.

    A construo de um segundo mundo ou de uma segunda imagem do mundo ofi cial evidencia o desvirtuamento da cultura como um padro essencialmente determinante. no instante da encenao - momentnea e restrita data comemorativa - e da galhofa que a cultura popular subjugada produz sua leitura e sua crtica cultura ortodoxa das leis, invertendo o discurso pedaggicof estatal.

    Ao contrrio da festa ofi cial, o carnaval era o triunfo de uma espcie de liberdade temporria da verdade dominante e do regime vigente, da abolio provisria de todas as relaes hierrquicas; privilgios, regras, tabus (BAKHTIN, 1987, p.8).

    A carnavalizao, mesmo estando relacionada aos textos literrios, pode ser visvel em outros suportes, como no discurso, na materializao de vozes suprimidas que se fazem ouvir apesar da rigidez do Estado. Um caso exemplar de carnavalizao o comunicado do Primeiro Comando da Capital (PCC) redigido, pronunciado e, em especial, gravado, para ser ouvido por nossos governantes. A enunciao do comunicado interrompeu a programao normal da emissora Rede Globo, chocando os seus enunciatrios, os governantes do pas, encarregados de tomar decises polticas e jurdicas em relao ao grupo.

    A afronta e a reversibilidade caracterizam a ao do PCC. Embora incontido do riso da ironia e do sarcasmo da galhofa, o pronunciamento do grupo pautou-se em recursos da lei, o que, em outras palavras, caracteriza a inverso de valores e papis que defi ne a carnavalizao, segundo Bakhtin.

    Signifi cao e temaPara estudiosos das competncias semnticas dos enunciados e, por extenso, dos

    discursos, os conceitos de signifi cao e tema oferecem suporte quanto anlise que se pauta no intra e no interdiscursog.

    Para Bakhtin, a signifi cao essencialmente arquitetada no signo lingstico, pois, em um enunciado, cada signo se vale de seu repertrio semntico, espcie de arquivo dis-cursivo historicizado. Embora aambarque dimenses de signifi cao contempladas pela histria, a signifi cao , para o estudioso, um estgio inferior no que tange capacidade de signifi car.

    Dessa forma, o fi lsofo atribui ao tema a possibilidade de referir-se ao sentido como resultado da conjuno da signifi cao das categorias lingsticas com a situao de enun-ciao (contexto). Tema, portanto, equivale nesse sentido ao signo ideolgico, proposto pelo mesmo autor em outra ocasio:

    Todas as palavras evocam uma profi sso, um gnero, uma tendncia, um partido, uma obra determinada, uma pessoa defi nida, uma gerao, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras so povoadas de intenes; [...] (BAKHTIN, 2004, p.100).

  • 28

    O modo como expomos pode sugerir que os dois conceitos funcionem isoladamente, o que na verdade no acontece. O sistema que confi gura a signifi cao jamais fi xo e biunvoco. O tema um alamento que se incorpora signifi cao, permitindo sempre a possibilidade de renovar, fl exionar ou mutabilizar os sentidos. justamente nesse ponto que se verifi ca a articulao entre os discursos constitudos historicamente, ou seja, o trao da interdiscursividade.

    Para exemplifi car o exposto, tomemos o enunciado proferido pelo PCC em gravao enviada Rede Globo: O RDD inconstitucional. Nesse enunciado apresentam-se sig-nos que possuem uma signifi cao prpria, como o caso de RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), uma sigla substantiva, que designa modalidade de pena destinada somente a infratores que representam verdadeira ameaa sociedade como um todo; regime em que no se admite qualquer tipo de regalia e o sentenciado passa, ao todo, 22 horas dirias encarcerado. Inconstitucional, por sua vez, refere-se, como adjetivo a contrrio ao dis-posto na constituio do Estado (SACCONI, 1996, p.389). A signifi cao do enunciado , portanto, que o regime de encarceramento disciplinar contrrio aos preceitos previstos na constituio brasileira. No entanto, analisando o contexto no qual o pronunciamento produzido, chegar-se- ao tema desse discurso. Esse pronunciamento surge trs meses aps os ataques do PCC capital paulista, ataques que conferiram periculosidade a Marcola e demais lderes do grupo que, em decorrncia disso, foram imediatamente transferidos para o Presdio de Presidente Bernardes, onde vigora o RDD. Portanto, o tema desse enunciado remete-se Constituio, ao Cdigo Penal e Lei de Execuo Penal a fi m de produzir efeitos de sentido de ilegalidade, crueldade, contradio no discurso do Estado. A adoo de medidas punitivas no previstas na Constituio gera esses efeitos de sentido, traduzindo como marca ideolgica de luta pela preservao da integridade e chefi a do prprio PCC.

    Sujeito e conscinciaArticulamos os conceitos de sujeito e de conscincia, importantes construtos do amplo

    legado de Bakhtin no bojo das Cincias Humanas. Ele formula seu conceito de conscin-cia a partir do conceito de ideologia. Para ele, a construo do inconsciente humano est relacionada situao de classe ocupada pelo indivduo; necessrio que o homem tenha um segundo nascimento: o nascimento social. A conscincia do indivduo , assim, uma conscincia com dimenso coletiva e no individual. O nascimento biolgico no sufi -ciente para o homem, pois que ele um ser social. O objeto da psicanlise esse ser social e, portanto, seus parmetros de anlise no devem ser os biolgicos, diferentemente do que ocorria nos estudos freudianos. Bakhtin prope o estudo da palavra como instrumento de anlise da dimenso ideolgica da conscincia humana. Segundo ele, o signo lingstico construdo socialmente e evidencia uma ideologia, presente de sua constituio, o que vai confl itar com os estudos lingsticos centrados na idia de constituio fsica do signo

  • 29

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    lingstico defendida por Saussure. Segundo Guerra (1999), Bakhtin desenvolveu uma teoria da linguagem na qual o

    que de fato existe o processo lingstico, pois a lngua constitui um processo de cria-o contnua que se realiza pela interao verbal social dos locutores. Nessa teoria, a intersubjetividade antecede subjetividade; logo, a linguagem vai alm de sua dimenso comunicativa, pois considera-se que os sujeitos constituem-se por meio das interaes sociais. O reconhecimento do sujeito e do sentido crucial para a constituio de ambos. Bakhtin coloca em crise a unicidade do sujeito falante, atribuindo ao sujeito um esta-tuto heterogneo. O sujeito modifi ca seu discurso conforme as intervenes dos outros discursos, sejam elas reais ou imaginadas. Portanto, o sujeito no a fonte primeira do sentido: o sujeito emerge do outro. O sujeito bakhtiniano dialgico e seu conhecimento fundamentado no discurso que ele produz: no podemos perceber e estudar o sujeito enquanto tal, como se ele fosse uma coisa, j que ele no pode permanecer sujeito se ele no tem voz; por conseguinte, seu conhecimento s pode ser dialgico (Bakhtin, apud TODOROV, 1992, p.34).

    Pode-se verifi car que o eu, para Bakhtin, no mondico e nem autnomo uma vez que no se trata do cogito autocriador de Descartes. Ele existe a partir do dilogo com os outros eus e precisa de outros para poder defi nir-se e ser autor de si mesmo. Assim, o sujeito dialgico bakhtiniano vem abalar a concepo clssica do sujeito cartesiano, circunscrito em uma identidade permanente porque o sujeito baktiniano solidrio das alteridades de seu discurso ao ser concebido numa partio de uma multiplicidade de vozes concorrentes. Diante disso, podemos afi rmar que a idia de sujeito uma negao do sujeito pensante de Descartes, j que a palavra do outro se transforma, dialogicamente, para tornar-se palavra alheia com auxlio de outras palavras do outro, e, depois, palavra pessoal. A palavra j tem, ento, um carter criativo (BAKHTIN, 2003, p. 405-6).

    Essa teoria do sujeito de Bakhtin, na crtica radical do sujeito coisa, aponta para uma nova e relevante perspectiva de conhecimento para a lingstica, pois prope que o sujeito s pode ser teorizado como objeto de teoria, se for reconstrudo como tal, a partir da realidade das outras vozes de seu discurso. O sujeito bakhtiniano marca sua originali-dade epistemolgica por meio de um duplo deslocamento: um que ancora a conscincia na palavra: a conscincia de si sempre verbal (BAKHTIN, 2004, p.183); outro que ancora o sujeito na comunidade, isto , o eu s pode se realizar no discurso, apoiando-se em ns (Bakhtin, apud TODOROV, 1992, p.68).

    Dessa perspectiva, a conscincia individual um fato social e ideolgico. Em outros termos, a realidade da conscincia a linguagem e so os fatores sociais que determinam o contedo da conscincia: do conjunto dos discursos que atravessam o indivduo ao longo de sua vida, que se forma a conscincia. O mundo que se revela ao ser humano mostra-se pelos discursos que ele assimila, formando seu repertrio de vida. Pelo fato de a conscincia ser determinada socialmente, no se pode pensar que o ser humano seja meramente reprodutivo; o que se enfatiza , portanto, a criatividade do sujeito humano, que infl uenciado pelo meio, mas se debrua sobre ele para modifi c-lo.

  • 30

    Verifi ca-se, ento, que o homem nasce duas vezes: fi sicamente (o que no implica que esteja inserido na histria) e socialmente, determinado pelas condies sociais e eco-nmicas. A partir disso, no se pode sustentar a idia to propalada pelo idealismo e pelo positivismo psicologista de que a ideologia deriva da conscincia. apenas sob a forma de signos que a atividade mental expressa externa e internamente para o prprio indivduo (sem os signos a atividade interior no existe). O enunciado no s meio de comunicao, mas tambm contedo da prpria atividade psquica. Bakhtin aborda em seus trabalhos, a linguagem como constituidora do sujeito; para tanto, focaliza a relao pensamento e linguagem, chave para a compreenso da natureza da conscincia humana. Partindo do pressuposto de que pensamento e linguagem tm razes diferentes, o fi lsofo russo constatou que o pensamento e a palavra, apesar de no serem ligados por um elo primrio, no podem ser considerados como dois processos independentes.

    Em Marxismo e Filosofi a da Linguagem (BAKHTIN, 2004), o terico russo critica duas posies tericas, ambas reducionistas e mecanicistas: o subjetivismo-individualista e o objetivismo-abstrato. Por um lado, o subjetivismo-individualista pensa a produo do sentido como algo que deriva da conscincia do sujeito. Desse prisma, o sujeito seria a instncia fundadora do sentido e a linguagem representaria a expresso da mentalidade subjetiva. A identidade do sujeito forma-se a partir da negao de tudo o que no idntico a si mesmo, ou seja, a negao da diferena, do coletivo e a afi rmao do individual. Por outro lado, o objetivismo-abstrato nega a subjetividade em prol da afi rmao de que tudo o que o sujeito pensa/faz resulta das determinaes sociais e apenas o outro se afi rma como constituinte da formao do sujeito.

    Bakhtin utiliza o materialismo-dialtico do pensamento marxista para elucidar essa questo e assevera que ambas as formas de pensamento esto equivocadas. O sujeito nem o total responsvel pela produo do sentido, nem totalmente reprodutor de discursos cristalizados e no passveis de nova signifi cao. O sujeito estaria no intervalo (entremeio) dessas duas concepes. Desse ponto de vista, o individual produto da interao social e coletiva. Para se constituir como sujeito, necessrio que o indivduo interaja com outros sujeitos (BAKHTIN, 2003, p. 21-22):

    Essa distncia concreta s de mim e de todos os outros indivduos - sem exceo - para mim, e o excedente de minha viso por ele condicionado em relao a cada um deles (desse excedente correlativa uma certa carncia, porque o que vejo predominantemente do outro em mim mesmo s o outro v, mas neste caso isso no nos importa, uma vez que na vida a inter-relao eu-outro no pode ser concretamente reversvel para mim) so superados pelo conhecimento, que constri um universo nico e de signifi cado geral, em todos os sentidos totalmente independente daquela posio nica e concreta ocupada por esse ou aquele indivduo.

    O sujeito, conforme prope Bakhtin, constitudo na interao e seu espao o inter-valo formado entre conscincia e determinao social. O sujeito est, portanto, atravessado por outras subjetividades pois se localiza nessa linha tnue e decisria. Assim se localiza o sujeito social do PCC. Ao mesmo tempo em que luta em prol de restringir condies limitantes no sistema penitencirio, transforma-se em sujeito poltico, de direito e trans-

  • 31

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    gressor em um comunicadoh feito na TV, como no seguinte enunciado

    O Regime Disciplinar Diferenciado agride o primado da ressocializao do sentenciado [...] Queremos um sistema carcerrio com condies humanas [...] No estamos pedindo nada mais do que est dentro da lei [...] Apenas no queremos e no podemos sermos [sic] massacrados e oprimidos [...] pois no vamos aceitar e no fi caremos de braos cruzados pelo que est acontecendo no sistema carcerrio.

    Nesse excerto, o locutor do PCC fragmenta-se em posies sujeito, em decorrncia do fato de o signo ser ideolgico e, portanto, investir-se do papel social em que os eus desempenham prticas discursivas, para lembrar Foucault, co-relacionadas s modalidades enunciativas. Afi rmar que o RDD invivel ressocializao e pedir que se cumpra o que determina a lei faz do sujeito transgressor um sujeito de direito; reivindicar melhores condies carcerrias e tratamentos intersubjetivos transformam-no em sujeito poltico; ao passo que afi rmar uma atuao no fi caremos de braos cruzados traz a marca do sujeito da ao, o sujeito transgressor.

    Autor e Autoria Sem dvida, a fi gura de Mikhail Bakhtin aparece hoje como uma das mais fasci-

    nantes e enigmticas da cultura europia do sculo XX. Em Esttica da criao verbal, ao refl etir sobre a relao entre o autor e seu heri, o fi lsofo russo constitui de forma nica a questo do autor e da autoria. Esse tema envolve uma extensa elaborao de natureza fi losfi ca, j que, desde cedo, Bakhtin esteve empenhado em construir uma esttica geral, que o levou a diferentes desdobramentos ao longo de sua produo intelectual.

    Na viso de Faraco (2005), Bakhtin assinala a distino entre o autor-pessoa e autor-criador. O autor-pessoa visto como o criador, o artista, enquanto o autor-criador exerce a funo esttico-formal engendradora da obra, ou seja, que compe o objeto esttico.

    O autor-criador, de acordo com Bakhtin, aquele constituinte que d forma ao objeto esttico, materializa certa relao axiolgica com o heri e seu mundo em suas diferentes facetas (simpatia ou antipatia, distncia ou proximidade, alegria ou amargura), respeitan-do-se aqui a clareza de que uma efetiva posio axiolgica nunca um todo uniforme e homogneo, mas vem aglutinar mltiplas e heterogneas coordenadas.

    Dessa forma, o posicionamento valorativo, que d ao autor-criador a fora para cons-tituir o todo, materializa escolhas composicionais e de linguagem resultantes tambm de um posicionamento axiolgico, uma vez que, a partir dela se criaro, tanto o heri e o seu mundo, quanto a forma composicional e o material.

    importante ressaltar que, de acordo com Bakhtin, em todo ato cultural assume-se essa posio valorativa diante de outras posies valorativas. No ato artstico, por exemplo, a realidade vivida transposta para outro plano axiolgico (o plano da obra), por diferentes valoraes sociais, em que os aspectos do plano da vida so destacados (isolados) de sua eventicidade, sendo organizados de um modo novo, e o autor-criador (materializado)

  • 32

    que realiza essa transposio de um plano de valores para outro. Em outras palavras, o autor-criador quem d forma ao contedo. Com isso, o ato criativo envolve um complexo processo de transposies refratadas da vida para a arte, em que o autor-criador uma posio refratada e refratante. Refratada, pois trata-se de uma posio axiolgica confor-me recortada pelo vis valorativo do autor-pessoa; refratante porque a partir dela que se recortam e se reordenam esteticamente os eventos da vida.

    Bakhtin afi rma que, no estudo esttico, no interessam os processos psicolgicos envolvidos na criao ou no depoimento do autor-pessoa sobre seu processo criador, por-que este no experiencia os processos psicolgicos criativos como tais, mas apenas sua materializao na obra. A esse respeito, de fato, Bakhtin professa uma abordagem que ultrapassa a abordagem marxista da lngua e da lingstica, combinando-a com um novo olhar diante das experincias culturais humanas.

    Atribuir, por exemplo, autoria ao comunicado do PCC passa pelo crivo de uma re-gra imposta pelo grupo, inscrita na prpria materialidade Como integrante do Primeiro Comando da Capital, o PCC, venho pelo nico meio encontrado por ns para transmitir um comunicado. No se trata de um pr-conceito que antecede ao processo discursivo, mas de condies histricas e sociais que determinam uma regularidade sobre as prticas do grupo - mais voltadas ao que a comunicao propriamente - que interferem nesse processo de reconhecimento autoral. Outro fator a formao discursiva do grupo, que se torna hbrida, a ponto de projetar desconfi ana do sujeito-autor (autoridade legal?) da carta: A introduo do Regime Disciplinar Diferenciado [RDD] pela Lei 10.792/2003, no interior da fase de execuo penal, inverte a lgica da execuo penal.[...] conferindo pena de priso o ntido carter de castigo cruel. O autor-criador , portanto, aquele construdo pela discursividade, que est submetido posio sujeito heterognea e fragmentada, ao passo que o autor-indivduo um dado emprico, o PCC.

    DilogoComo mostramos nos conceitos anteriores, aqui articulados, o dilogo entendido

    como interao verbal (realizado, portanto, por meio de signos ideolgicos) entre um eu e um outro ocupa um lugar fundamental nas pesquisas bakhtinianas. Ele a base para a concepo de sujeito (formado a partir do dilogo com outro sujeito e com o meio scio-cultural em que est inserido), de discurso (formado a partir do dilogo com outros discursos e com a(s) sociedade(s) em que esses discursos so veiculados), de signo (entendido a partir da relao com outros signos sociais), entre outras concepes que norteiam o pensamento bakhtiniano a respeito das cincias humanas modernas.

    Sob essa tica, entendemos que os estudos de Bakhtin visam a um relacionamento entre o individual e o coletivo, pois os discursos formados por signos e utilizados sub-jetivamente co-existem dialogicamente em uma estrutura social. Bakhtin (2003, p. 30) afi rma que h, por parte do sujeito, um querer dizer que tem ampla infl uncia na formao

  • 33

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    do enunciado:Em qualquer enunciado, desde a rplica cotidiana monoleximtica at as grandes obras complexas cientfi cas ou literrias, captamos, compreendemos, sentimos o intuito discursivo ou querer dizer do locutor que determina o todo do enunciado: sua amplitude, suas fronteiras. [...] O intuito, o elemento subjetivo do enunciado entra em combinao com o objeto do sentido objetivo para formar uma unidade indissolvel, que ele limita, vincula situao concreta (nica) da comunicao verbal, marcada pelas circunstncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenes anteriores: seus enunciados.

    A relao contedo e forma est sempre indissociada, uma vez que a inteno do autor objetivada no discurso sob determinada forma, que no poderia ser outra e que constitui o momento do refl exo, isto , a marca da individualidade no real. Na verdade, h um du-plo aspecto a ser considerado: todo processo de objetivao do fazer humano orientado pelo momento subjetivo que pressupe leitura do mundo, intencionalidade, conhecimento tcnico e, ao mesmo tempo, todo resultado obtido possui pretenso de validez objetiva.

    necessrio o esforo do refl exo para captar o objeto, em conexo com a subjeti-vidade humana em geral (universal), e, ao mesmo tempo, observar como esse todo se apresenta, manifesta-se, na imediaticidade histrica (singular); em outros termos, um refl exo da realidade que seja capaz de impor as impresses e vivncias da cotidianidade e, simultaneamente, estar impregnado de subjetividade como elemento insupervel de seu ser-assim. A realidade apresenta-se ao homem na sua forma particular; as coisas tm sempre ontologicamente uma caracterstica que as torna, ao mesmo tempo, universais e singulares, e por isso, particulares. Para que haja apreenso do real pela subjetividade, h necessidade de, a partir da particularidade, captar a singularidade e a universalidade.

    Seguindo essa abordagem, possvel asseverar que nenhum discurso pode ser es-tudado sem o auxlio da Histria. No histria porque o sujeito resolveu contar o seu tempo, mas porque ele refl ete no e sobre o seu tempo. Em consonncia com essa forma de apreender o sujeito do discurso, pode-se tambm afi rmar que toda a objetivao discursiva possui um ponto de vista autoral. Na verdade, estamos nos referindo ao posicionamento do sujeito sobre a realidade refl etida no discurso, a marca de sua intencionalidade, ao escolher aquele conjunto de cdigos e no outro para refl etir sua fala. Reforando essa argumentao, Bakhtin (2004, p. 32), no estudo que faz da relao entre subjetividade e objetividade, afi rma:

    Um signo no existe apenas como parte de uma realidade; ele tambm refl ete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fi el, ou apreend-la de um ponto de vista especfi co, etc. Todo signo est sujeito aos critrios de avaliao ideolgica.

    Nessa perspectiva, o dilogo, tanto exterior (na relao com o outro), como no interior da conscincia (ou escrito), realiza-se na linguagem. Refere-se a qualquer forma de discurso, sejam as relaes dialgicas que ocorrem no cotidiano, sejam textos artsticos ou literrios. Bakhtin considera o dilogo como as relaes que ocorrem entre interlocutores, em uma ao histrica compartilhada socialmente, que se realiza em um tempo e local especfi cos, mas sempre mutvel, em decorrncia das variaes do contexto. Segundo Bakhtin, o dialo-gismo constitutivo da linguagem, pois mesmo entre produes monolgicas, observamos

  • 34

    sempre uma relao dialgica; da podermos dizer que todo gnero dialgico.Por todas essas consideraes, pode-se observar por que o dialogismo vital para a

    compreenso dos estudos de Bakhtin e das questes referentes linguagem como cons-titutiva da experincia humana e seu papel ativo no pensamento e no conhecimento. Do ponto de vista comunicacional, a importncia desse conceito reside no fato de ratifi car o conceito de comunicao como interao verbal e no verbal e no apenas como trans-misso de informao. A contribuio complexidade desse conceito tambm se verifi ca por implicar outros: interao verbal, intertextualidade e polifonia.

    Esses termos parecem designar um mesmo fenmeno com pequenas variaes entre si. So essas especifi cidades que vo estabelecer as diferenas entre eles, aproximando-os ou distanciando-os em graus diferenciados. O mais importante verifi car que todos eles, independentemente de suas particularidades, rompem com a arrogncia e a onipotncia do discurso monolgico. O ser social nasce com o exerccio de sua linguagem.

    O dialogismo, como o prprio termo sugere, uma espcie de dilogo ao qual os dis-cursos esto submetidos pelo seu carter simultaneamente interior e exterior linguagem. No comunicado do PCC, por exemplo, o transgressor diz Queremos um sistema carcerrio com condies humanas, no um sistema falido, em que condies humanas e sistema falido estabelecem dilogo com o discurso do Estado. O sujeito do enunciado inscreve-se como denunciante e desconstri as enunciaes do Estado nas leis. O dilogo do PCC com o Estado ocorre por meio da aluso aos seguintes artigos: Art. 12 - A assistncia material ao preso e ao internado consistir no fornecimeno de alimentao, vesturio e instalaes higinicas (suprimento de fi nalidades materiais) e Art. 1 - A execuo penal tem por objetivo efetivar as disposies de sentena ou deciso criminal e proporcionar condies para a harmnica integrao social do condenado e do internado [suprimento de fi nalidades sociais], prescritos na Lei de Execuo Penali. Ento, o dialogismo inevitvel em qualquer produo humana, porque pressupe seu outro a partir do qual se encontram articuladas as causas de uma necessidade de se posicionar, de discursar, jamais de somente informar.

    Posto isso, importa mobilizar o conceito de polifonia, a fi m de que possamos refl etir sobre o legado bakhtiniano a partir de um dos seus conceitos mais utilizados na literatura e na lingstica.

    PolifoniaO grande eixo temtico de todas as ramifi caes do pensamento bakhtiniano est na

    prosa artstica, mais especifi camente no romance. Em sua obra mais famosa, Problemas da Potica de Dostoivski (1997), embora o tema central seja a literatura de Dostoivski, a discusso sobre o romance como gnero aparece em vrios momentos, sempre relacionada discusso sobre a natureza da linguagem, literria ou no, como, alis, foi a marca de todo o trabalho de Bakhtin. Parte substancial de suas categorias encontra-se neste livro, em particular o conceito de polifonia, que fi caria clebre pelo mundo inteiro como uma

  • 35

    R G L, n. 5, jun. 2007.

    das marcas maiores do pensamento bakhtiniano.No livro sobre Dostoivski, que foi preparado durante a dcada de 20 e que teve a

    primeira edio em 1929, e a segunda, reelaborada, em 1963, o pensador russo observa que o romancista estabelece uma relao nica com suas personagens, as quais tm voz prpria e o mnimo de interferncia da parte dele como autor, criando, assim, um novo gnero, denominado por Bakhtin de polifnico, porque apresenta muitos pontos de vista, muitas vozes. Para o estudioso, Dostoivski foi o criador de um novo gnero literrio, o romance polifnico, cuja caracterstica marcante (entre outras exigncias) estaria no fato de que, na obra do romancista russo, as vozes que ressoam no texto no se sujeitam a um narrador centralizador (como em geral acontece no romance considerado tradicional); elas se relacionam umas s outras em condies de igualdade.

    Bezerra (2005, p. 191) estudando as obras de Bakhtin ressalta que o fi lsofo russo distinguiu duas tendncias para o romance: o monolgico e o polifnico; no romance monolgico o processo de criao centrado no autor; assim, o outro sempre objeto da conscincia de um eu que controla as aes. No romance polifnico, por sua vez, a au-toconscincia o trao dominante da personagem ao construir sua imagem; dessa forma, o autor age como um regente das vozes que participam do processo dialgico.

    A polifonia pode ser defi nida a partir da interao de diferentes vozes e conscincias dentro de um mesmo espao do romance; essas vozes e conscincias so sujeitos de seus prprios discursos. No romance polifnico, o autor no explica as personagens e suas conscincias, uma vez que elas mesmas se defi nem no dilogo como conscincias infi ni-tas e inacabadas. Na polifonia, o dialogismo deixa-se entrever por meio de muitas vozes polmicas; j na monofonia, h apenas o dialogismo, que constitutivo da linguagem, porque o dilogo mascarado e somente uma voz se faz ouvir; as demais so abafadas. Verifi ca-se, portanto, que h distino entre a polifonia (dialogismo polifnico) e a dialogia (monofonia ou dialogismo monofnico). Na tica de BEZERRA (2005, p. 199), Bakhtin caracteriza a polifonia no romance a partir da relao que se estabelece entre o autor e a personagem; para o fi lsofo russo necessrio que se enfatize a relao dialgica entre autor e personagem, em qu