coleção rumos itaú cultural teatro 2010-2012

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Intitulada Encontro, a coleção traz em um dos livros as pesquisas desenvolvidas pelos 24 grupos brasileiros contemplados no Rumos Teatro, em uma continuação das discussões iniciadas, por meio de ensaios escritos por artistas, teóricos e curadores. O outro livro é um testemunho poético, escrito por Eleonora Fabião durante os nove dias de convivência com os cerca de 200 artistas participantes do programa na sede do Itaú Cultural, em São Paulo.

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São Paulo, 2013

Organização Cristina Espírito Santo, Eleonora Fabião e Sonia Sobral

Realização

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SUMÁRIO

Rumos Itaú CultuRal 2010/2012

COMEÇO DE CONVERSADas oRganIzaDoRas

12 ENCONTROS PRojetos

exeRCíCIos De FoRmação: CultuRa De gRuPo e os Rumos Do teatRo – KIl abReu

ReDe De enContRos – CeCílIa almeIDa salles

o ReFlexo e a meDusa – maRIa tenDlau

ENCONTROPaRa uma estétICa Do DesPeRtaR – josé FeRnanDo azeveDo

PolítICas Do FluIDo, híbRIDo e Flexível – suely RolnIK

enContRo − DesloCamento − exPeRIênCIa – matteo bonFIto

no metaPlano, o enContRo – anDRé lePeCKI

um bom enContRo? – josé gIl

UMA CARTADa natuReza Dos enContRos – CRIstIane PaolI QuIto

bIogRaFIas

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Rumos Itaú CultuRal 2010/2012

COMEÇO DE CONVERSADas oRganIzaDoRas

12 ENCONTROS PRojetos

exeRCíCIos De FoRmação: CultuRa De gRuPo e os Rumos Do teatRo – KIl abReu

ReDe De enContRos – CeCílIa almeIDa salles

o ReFlexo e a meDusa – maRIa tenDlau

ENCONTROPaRa uma estétICa Do DesPeRtaR – josé FeRnanDo azeveDo

PolítICas Do FluIDo, híbRIDo e Flexível – suely RolnIK

enContRo − DesloCamento − exPeRIênCIa – matteo bonFIto

no metaPlano, o enContRo – anDRé lePeCKI

um bom enContRo? – josé gIl

UMA CARTADa natuReza Dos enContRos – CRIstIane PaolI QuIto

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RUMOS ITAÚ CULTURAL 2010/2012

Rumos Itaú Cultural Teatro: Encontros de Pesquisa

“O teatro é um encontro.”Grotowski

O compromisso permanente do Itaú Cultural de gerar conhecimento a partir das artes brasileiras levou-nos a direcionar o Próximo Ato − Encontro Internacional sobre Teatro Contemporâneo, criado em 2003, para uma dimensão nacional.

Para tanto, em 2006, foram convidados como consultores Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, José Fernando Azevedo, diretor do Teatro de Narradores, e Maria Tendlau, codiretora do Coletivo Bruto, para que repensassem o conceito do programa junto ao Núcleo de Artes Cênicas do instituto.

O primeiro desafio foi definir um eixo de discussão que pudesse atravessar todo o país. O tema escolhido foi teatro de grupo, que pautou encontros e reflexões nas cinco regiões do Brasil. Representantes de 140 grupos de teatro (39 do Nordeste; 31 do Sudeste; 20 do Sul; 30 do Norte e 20 do Centro-Oeste) reuniram-se sob uma metodologia que organizava as discussões propostas pelos participantes.

Esse mapeamento gerou o livro Próximo Ato: Teatro de Grupo, que apresenta um dossiê histórico-geográfico do teatro de grupo no Brasil, além de textos dos profis-sionais da área que ministraram palestras durante os encontros. Ao todo, 26 autores discorrem sobre a ideia de grupalidade, como elaboração da experiência e dos mo-dos de produção dos coletivos teatrais.

Esse percurso favoreceu uma escuta das demandas de todas as regiões e municiou a criação de um programa Rumos* para a área de teatro, cujo enfoque não poderia ser outro senão o encontro, nesse caso específico para fins de pesquisa. Assim, em 2010, foi aberto um edital público nacional para inscrições de projetos compartilha-

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dos entre dois grupos que tivessem uma questão comum de estudo para desen-volver – fosse de prática artística, pedagógica, de reflexão teórica etc.

Uma comissão mista e independente formada por sete profissionais das cinco regiões do país [Fernando Villar (Centro-Oeste); Pita Belli (Sul); Olinda Charone (Norte); Hebe Alves (Nordeste); José Fernando Azevedo, Maria Tendlau e Antônio Araújo (Sudeste)] selecionou 12 projetos de pesquisa. Vinte e quatro grupos, de 12 estados brasileiros, receberam financiamento para os encontros, as viagens, as hospedagens e a manutenção das pesquisas durante um semestre. Entre 26 de agosto e 3 de setembro de 2011, cerca de 200 artistas de teatro se reuniram na sede do Itaú Cultural para com-partilhar entre si e com o público os resultados dos encontros de pesquisa.

A Semana Rumos Teatro apresentou seminários do professor de arte e cultura Laymert Garcia dos Santos e da pesquisadora de processos de criação nas artes Cecília Almei-da Salles. Os grupos mostraram os resultados ao público e, internamente, os artis-tas se encontraram para conversar sobre os seus procedimentos de trabalho, com o acompanhamento da diretora e professora Cristiane Paoli Quito e da performer e professora Eleonora Fabião. No encerramento, foi realizada uma avaliação pública de todo o processo; da abertura do edital à mostra de seus resultados.

Em 2012, os grupos viajaram para ministrar oficinas em São Luís, Blumenau, Brasília, Porto Velho, Guaçuí, Recife, João Pessoa e Belém. Cada uma das cidades recebeu a visita de uma dupla.

Institucionalmente, o programa, iniciado em 2010, conclui mais uma fase com o lançamento deste livro, que garante o compartilhamento dos resultados com um público maior. A publicação será distribuída gratuitamente a instituições culturais, educacionais e de preservação da memória artística.

Muita coisa aconteceu desde as propostas, as parcerias e os encontros entre os grupos e muito continua decorrendo dos diálogos, dos debates e dos embates que surgiram dentro e fora do instituto. E é justamente essa a potência do Rumos Itaú Cultural Teatro.

“[...] Um bom encontro é um multiplicador de singularidades. Dois homens que se encontram formam uma multidão.”

José Gil, no texto Um Bom Encontro?, publicado neste livro

*O Rumos Itaú Cultural, criado há 15 anos, tem como objetivo mapear, fomentar e difundir a produção artística no país e contribuir, assim, para a reflexão sobre a realidade cultural do Brasil. Este edital não trabalha com a lógica de prestação de contas e de contrapartidas.

Sonia Sobral Gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural

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COMEÇO DE CONVERSA

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COMEÇO DE CONVERSA

DAS ORGANIZADORAS

Para introduzir esta publicação, começaremos por apresentar a primeira edição do Rumos Itaú Cultural Teatro e seus movimentos:

Movimento #1:

Um edital lançado em março de 2010 solicita o envio de “projetos de pesquisa que vi-sem o convívio, a troca e o compartilhamento de formas de criação” entre dois grupos de teatro ao longo de um semestre. O edital não visa a criação de espetáculos, mas incentiva o encontro para pesquisa e experimentação entre grupos ou coletivos com práticas de investigação. Dos 228 projetos enviados, 12 são selecionados. Exemplos: a Cia. Brasileira de Teatro de Curitiba desenvolve com o grupo Espanca!, de Belo Ho-rizonte, o projeto Troca de Pacotes; o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz, do Rio Grande do Sul, desenvolve com os Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, o projeto Conexão Música da Cena − RN/RS. Os valores de apoio variam de acordo com a distância entre as cidades dos grupos parceiros (mesma ou distinta região do Brasil).

Movimento #2:

Cada duo realiza, no mínimo, dois encontros presenciais – nas sedes de cada um dos grupos. Esses encontros, dependendo das diretrizes do projeto, podem tam-bém se estender à cena artística local, por meio de workshops, palestras, seminários e apresentações. Além das experiências presenciais, cabe a cada dupla elaborar um blog ao longo do período. Os blogs são tanto espaços de encontro entre os grupos quanto portais abertos para que o público interessado possa acompanhar o desenvolvimento das pesquisas e interagir. Uma vez finalizado o projeto, os blo-gs permanecem on-line e tornam-se, assim, arquivos dos processos desenvolvidos para a memória do programa Rumos.

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Movimento #3:

Entre 26 de agosto e 3 de setembro de 2011, todos os participantes do Rumos Tea-tro – cerca de 200 pessoas dos 24 grupos envolvidos (além de consultores regionais, mediadores, palestrantes e equipe organizadora) – encontram-se na sede do Itaú Cultural, em São Paulo, para apresentar as pesquisas em andamento e trocar expe-riências. Na busca por equilíbrio entre as dimensões laboratorial e pública do evento, as apresentações são abertas ao público e as conversas entre os grupos são restritas aos participantes. Ao longo dos nove dias de encontro, uma equipe de vídeo docu-menta entrevistas, apresentações dos processos e palestras.

Movimento #4:

Depois do evento em São Paulo, os grupos viajam por 11 cidades brasileiras; cada dupla se desloca para uma cidade e ministra oficinas em forma de encontros. São elas: Cuiabá, Blumenau, Guaçuí (ES), Belém, Recife, entre outras.

Movimento #5:

Esta publicação é o quinto movimento da composição. Aqui reunimos textos e imagens que permitem conhecer a primeira edição do Rumos Teatro, bem como refletir sobre seus “comos e porquês”. Nosso objetivo é tanto apresentar elementos e reflexões sobre um processo vivido quanto dar continuidade ao percurso iniciado; seguir alimentando as discussões em pauta e imaginando os próximos caminhos do programa. Entendemos que a historiografia aqui proposta é necessariamente pro-positiva e projetiva; que tratar do que aconteceu é necessariamente criar presentes e desejar futuros. Para tanto, foi eleito como tema central o encontro, seja nas ex-periências de intercâmbio entre 24 grupos de teatro brasileiro seja como mote para reflexões filosóficas, estéticas, políticas e psicofísicas. A escolha reflete a recorrência do tema nos debates realizados em São Paulo. E não poderia ter sido diferente, uma vez que o cerne deste programa é mesmo promover compartilhamentos que contribuam para a articulação dos grupos de teatro e para o desenvolvimento de pesquisas na área. Teatro: um campo de encontros, de relações e de conflitos – consigo, com o outro, com o grupo, com o público, com materiais, com imateriais, com editais, com instituições, com políticas públicas, com a cidade, com o país, com a história, com a tradição.

Esta publicação se subdivide em quatro partes. A primeira seção – 12 Encontros – apresenta biografias dos grupos e resumos dos projetos desenvolvidos. Esses conte-údos remetem também aos blogs, cujos endereços são indicados, já que os consultar é imprescindível para conhecer o trabalho realizado por cada duo. Completando essa primeira parte do livro, três participantes do encontro coletivo em São Paulo discutem diferentes aspectos do evento. O crítico e pesquisador de teatro Kil Abreu mapeia três tendências distintas nos 12 projetos: se em alguns casos prima o interesse pela pesquisa de linguagem, em outros a troca baseia-se na exploração de temáticas co-muns ou na discussão sobre meios de produção em teatro. Cecília Salles examina as especificidades, a complexidade, os desafios dos processos de criação teatral, ou seja,

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aqueles em que um coletivo plural busca a concretização de um projeto comum. A artista e gestora Maria Tendlau reflete sobre espelhos e espelhamentos, sobre rela-ções de identificação, desidentificação, afirmação de identidade e desconstrução de identidade a partir dos encontros vividos e de suas manifestações.

Para compor a segunda parte – Encontro – foram convidados os artistas e teóri-cos da cena José Fernando Azevedo e Matteo Bonfitto; a curadora e psicanalista Suely Rolnik; o estudioso da performance e da dança contemporânea André Le-pecki e o filósofo José Gil. Informados sobre o contexto da publicação, cada autor criou seu próprio recorte para discutir o tema em questão. José Fernando Azevedo reflete sobre teatro de grupo e vida política brasileira para propor uma “estética do despertar”, pois “não basta repetir o clichê fundador segundo o qual o teatro é encontro”: “Se ainda falamos de encontro, trata-se de um encontro político media-do pela interrogação poética materialmente elaborada”. Matteo Bonfitto analisa o entrelaçamento encontro-confronto, as “fricções perceptivas”, a partir dos trabalhos de Jerzy Grotowski, Peter Brook e de sua experiência na performance The Artist Is Present, de Marina Abramović. Suely Rolnik propõe uma reflexão sobre políticas de criação, de relação com o outro, de subjetivação a partir do conceito de “subjetivi-dade antropofágica” num mundo “irreversivelmente globalizado”. André Lepecki se pergunta, por um lado, se encontros são possíveis e, por outro, se existe vida fora do circuito de encontros para convocar: “Importa desejar as inesperadas concórdias do encontro, importa ousar a improbabilidade do encontro, importa no encontro saber fazer o desdobrar do miraculoso”. E José Gil elabora uma filosofia da percepção e do encontrar explorando ideias como “síntese disjuntiva”, “zonas de indiscernibili-dade” e “corpo-espelho-de-forças”. Trata-se de textos importantes para seguirmos explorando poéticas e políticas do encontro, seja no cotidiano, nos dias de hoje ou no teatro do agora. Afinal, as questões mais básicas – O que é um encontro? O que move um encontro? O que um encontro pode mover? Qual encontro move o quê? – são radicais e desconcertantemente desafiadoras.

O livro encartado – 9 Dias, 89 Instantâneos – é a transcrição, porque em novo suporte, de uma apresentação em PowerPoint feita por Eleonora Fabião no último dia do en-contro coletivo. Para abrir a sessão de avaliação, Eleonora apresentou uma composição em processo, formada por séries de fragmentos coletados ao longo dos nove dias de convivência. Ela diz que precisou realizar esse trabalho para dar vazão ao que experi-mentava, para acompanhar os processos que presenciava; se todos faziam Viewpoints, ela ao menos faria um PowerPoint. É importante disponibilizar essa composição porque ela indica e afirma uma dimensão poética do que vivemos – a multiplicidade, a polifonia, a cacofonia, a coexistência de distintas visões, corporalidades, modos de resistência e de aderência, sotaques, cenas, necessidades, quereres, as linhas de força e as forças da vontade em um coletivo de grupos de teatro provenientes de 12 estados brasileiros.

O encerramento foi o momento de avaliar os caminhos e os descaminhos, disse-car encontros e desencontros, refletir sobre uma questão importante para todas as duplas: como apresentar uma pesquisa em processo? Como escapar do formato espetáculo quando se está diante de um público? Afinal, por que desformatar um

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espetáculo? Ou ainda, o que é um espetáculo? Que possibilidades dramatúrgicas estão em questão quando apresentamos processos? Que tipos de experimentos cênicos surgiram a partir deste edital, destes modos de encontro? Foi o momento de avaliar e, a partir daí, imaginar rumos para o Rumos.

Outro elemento desta publicação é um conjunto de DVDs. Essa mídia possibilita a ampla divulgação do evento (TV e internet) e a veiculação, na íntegra, das pa-lestras do professor de arte, tecnologia e cultura Laymert Garcia dos Santos e da pesquisadora de processos de criação nas artes Cecília Salles. O videodocumen-tário do evento mostra partes das apresentações das pesquisas e entrevistas com diversos participantes do Rumos. O livro, os DVDs e os blogs podem ser consulta-dos independentemente, porém, para aqueles interessados em de fato conhecer o programa é imprescindível acessar todas as fontes.

Antes de finalizar, é importante enfatizar o quanto esta publicação se articula com outra do Itaú Cultural, lançada justamente no encerramento do encontro coletivo em São Paulo. Trata-se de Próximo Ato: Teatro de Grupo, organizada por Antônio Araújo, José Fernando Azevedo e Maria Tendlau, depois de quatro anos no con-selho curatorial do Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo, projeto que antecedeu e preparou a primeira edição do Rumos Itaú Cultural Teatro. Só foi possível desdobrar a discussão, conforme proposto aqui, porque uma pesqui-sa sobre teatro de grupo e grupos de teatro foi intensa e extensamente elaborada naquele livro. São 28 ensaios sobre “história do teatro de grupo no Brasil”, “política da forma”, “configuração da experiência” e “formas de convívio”, escritos por pensa-dores de diferentes gerações e distintos contextos históricos e geopolíticos.

Por fim, resta dizer que o movimento #6 desta composição se faz com você. Trata-se do seu encontro com este trabalho e os desdobramentos que possam advir.

Cristina Espírito Santo, Eleonora Fabião e Sonia Sobral

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12 ENCONTROS

PROJETOS

CIATEATROAUTÔNOMO (RJ) E IRMÃOS GUIMARÃES (DF) ciateatroautônomo + irmãos guimarães

A investigação sobre a possibilidade de instauração de “territórios afetivos” por meio da cena constituiu um dos principais interesses das companhias ao longo do intercâmbio vivenciado. As relações entre experiência, memória e arte emergiram, primeiramente, do terreno de infinita fertilidade do romance Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, sugerido pela ciateatroautônomo.

A proposta deu ensejo a apropriações (apresentadas nos encontros presenciais) multi-plicantes, uma vez que desdobrou experiências e memórias − portanto, “performances” − em novas performances, numa sugestão de algo como uma “sala de espelhos”, onde a multiplicação se estende infinitamente. A ciateatroautônomo confessou sua franca con-taminação pela estilização e pelo acabamento sempre presentes nos trabalhos de Adri-ano e Fernando Guimarães. Estes, por sua vez, inseriram a experiência em cena e o as-pecto autoral dos intérpretes, sendo influenciados pela ciateatroautônomo. O resultado conduz a um híbrido que, mais uma vez, questiona os limites entre arte e vida, ao mesmo tempo que convida os espectadores ao paradoxal contato mediado pela tecnologia.

IRMÃOS GUIMARÃES/NÚCLEO RESTA POUCO A DIZER pergunta à CIATEATROAUTÔNOMO:

“Como a ciateatroautônomo poderia exemplificar, a partir das experiências de temporadas, a ideia do espectador como cocriador da cena? Em que

medida esse indivíduo pode ser mais que apenas uma interferência e, con-cretamente, assumir esse papel mais ativo, capaz de reconduzir a cena?”

Postado por ciaeirmaos emhttp://ciateatroautonomoirmaosguimaraes.wordpress.com.

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CAIXA DO ELEFANTE (RS) E PEQUOD (RJ) O Ator Animador e o Processo Criativo no Teatro de Animação

O teatro de animação no Brasil, a partir da década de 1980, começou a ganhar destaque no panorama nacional. Inúmeros festivais dedicados a essa arte surgiram e os grupos, as técnicas e as propostas estéticas ampliaram-se. No entanto, os tradicio-nais espetáculos de bonecos pouco a pouco foram sendo substituídos por inovações que influenciaram desde a concepção e a construção do boneco animado, ou mesmo sua supressão e a utilização de imagens virtualizadas, até a estrutura dramatúrgica das cenas e o(s) território(s) de atuação do ator. A arte da animação assume sua hibridi-zação, metamorfoseando-se: funde-se com a dança, o vídeo, o circo e tudo parece passível de ser experimentado. Nesse mar de infinitas possibilidades, o ator animador percebe a necessidade de uma nova formação que lhe permita transitar pelas diferen-tes linguagens com propriedade. Os grupos, então, começam a desenvolver metodo-logias de trabalho e pedagogias próprias que supram essa necessidade.

A presente proposta caracteriza-se pelo encontro de duas companhias brasileiras atuantes da área de teatro de animação realizado em duas etapas nas cidades onde os grupos estão sediados (Rio de Janeiro e Porto Alegre). Nessas etapas, ocorreu um processo de reconhecimento das metodologias e das pedagogias tácitas utili-zadas, por meio de trabalhos físico-práticos demonstrativos com os integrantes das duas companhias, da verificação dos resultados criativos e técnicos feita pela análise dos espetáculos dos grupos (por meio de vídeos) e, finalmente, de reflexões e con-clusões com a publicação dos resultados no blog do projeto. Essa experiência alme-jou, assim, contribuir para o preenchimento de uma lacuna na pesquisa em teatro de animação: o registro do desenvolvimento da sistematização na pesquisa cênica das montagens teatrais realizadas pelos grupos. Foram elencados os aspectos relativos à pedagogia do ator animador, o ensino-aprendizagem pertinente à montagem tea-tral e sua complexidade e seu processo criativo.

Da mesma forma, foram discutidos os elementos que alicerçam o trabalho de ani-mação de objetos, à luz das mudanças na linguagem ocorridas contemporaneamente,

CIATEATROAUTÔNOMO pergunta aos IRMÃOS GUIMARÃES/NÚCLEO RESTA POUCO A DIZER:

“O híbrido é uma ideia que tenho considerado desconfortante (Jefferson diz), pois pressupõe a ideia de pureza, que seria muito alheia a uma arte que se quer tão desfronteirizada, como a contemporânea. Tendo, ingenuamente, a aspirar a uma arte sem categorias. Como vocês se colocam diante disso?”

Postado por ciaeirmaos em http://ciateatroautonomoirmaosguimaraes.wordpress.com.

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pois desse reconhecimento básico partem o entendimento das características dessa arte e os pressupostos para o desenvolvimento de metodologias de trabalho. É im-portante salientar que, neste caso, a expressão “objeto animado” é entendida em seu mais amplo sentido, englobando bonecos, máscaras, formas animadas etc. Como tarefa, coube aos grupos analisar alguns dos procedimentos corriqueiros utilizados na interpretação do ator animador em relação ao objeto animado, dentro do pro-cesso de trabalho de cada um, levando em consideração as características híbridas que surgiram a partir do início do século XX e a exacerbação das formas heteróge-nas na poética cênica do teatro de bonecos brasileiro.

A troca de conhecimentos entre as duas companhias surge como uma oportuni-dade de discussão sobre as especificidades desse gênero teatral e, principalmente, aprofunda uma reflexão sobre as mudanças ocorridas nas últimas décadas.

“Fala-se muito, há muito tempo, em ‘ator animador à vista’. Muito do que se fala a esse respeito aponta a apresentação dessa corporalidade dividida/

sobreposta como sendo um elemento impulsionador do que se percebe das recentes transformações no teatro de animação. Como se a aparição do

operador de bonecos fosse responsável pelas mudanças vistas no teatro de animação contemporâneo, ou como se esse fosse o traço distintivo de nosso

tempo. Não chego a negá-lo, mas prefiro, no entanto, indagar sobre quais foram as vontades/necessidades que levaram ao crescente emprego desse

recurso. As questões a serem feitas seriam: quais as metáforas (do homem, do mundo) que estão sendo, neste momento, solicitadas ao teatro de animação;

e que alterações foram percebidas nos estatutos do teatro de bonecos e do boneco teatral, de modo que este se apresente agora sob a forma de uma

composição plural, instável, em constante diálogo consigo mesma?”Postado por Mario Piragibe em

http://caixadoelefantepequod2011.blogspot.com.br.

O IMAGINÁRIO (RO) E CIA. SERÁ O BENIDITO?! (RJ)A Oralidade e a Cameloturgia – uma Pesquisa Cênica do Porto ao Rio

A pesquisa cênica envolveu a prática de criação, de formação e de pesquisa histórica baseada na oralidade e na sistematização de processos dramatúrgicos. No Porto (menção ao Porto de Santo Antônio do Madeira, no início da construção da estrada

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de ferro Madeira−Mamoré e surgimento de Porto Velho) foram realizados um estu-do e uma pesquisa cênica que tiveram como foco narrativas e memórias, buscando na oralidade as crenças, os costumes e os traços culturais de diferentes tempos, a partir de fatos históricos e da importância da presença dos trabalhadores de diversas etnias (nacionalidades) no período da construção da ferrovia.

No Rio (menção à cidade do Rio de Janeiro) foram realizados um estudo e uma pes-quisa cênica que tiveram como foco a cameloturgia: a cena e o chapéu, tendo como base o camelô de rua e a dramaturgia popular, além de relacionar a cameloturgia à tradição milenar do “chapéu”. O roteiro, a dramaturgia fragmentada e de improviso dos camelôs é a mesma dos artistas de rua e da cultura popular. O cameloturgo é o dramaturgo das suas histórias e de sua arte, assim como os eternos e atraentes bor-dões, verbetes, brados e trovas dos feirantes. O encontro entre os grupos culminou na criação de um texto inédito construído para uma encenação/montagem.

“O cameloturgo é o dramaturgo das suas histórias e de sua arte/produ-tos. Com os eternos e atraentes bordões, verbetes, brados e trovas que soam pelas praças, pelas calçadas, pelas feiras, pelos camelódromos, pelos mercados centrais e nas ruas das cidades brasileiras que se repetem e se reinventam a cada instante e a cada relação estabelecida. Sendo com um roteiro pensado e elaborado com as características do produto que se oferta ou com um roteiro de ideias ou cenas que são criadas a partir de uma arte, o que se faz na rua é uma cameloturgia. Quando se tem na assistência uma plateia sempre participativa e próxima, vivendo ou com-prando a ideia ou a mensagem que está sendo transmitida diretamente e sem intermédios externos, se instaura a arte e a comunicação.”

Postado por Será o Benidito?! emhttp://oralidadecameloturgia.blogspot.com.br.

TEATRO EXPERIMENTAL DA ALTA FLORESTA (MT) E GRUPO DE TEATRO CELEIRO DAS ANTAS (DF)Florestas e Antas, Experiências Teatrais – em Busca de um Teatro Possível

O projeto teve como objeto a elaboração de estratégias de ação para o teatro do possível na produção artística e na manutenção de grupos. Isso foi feito por meio do estudo das experiências dos dois grupos, além de estudos dirigidos e de intercâmbios. As companhias entendem que a compreensão das condições de

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Foto Rubens Chiri Clowns de Shakespeare e Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz

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produção para desenvolver qualquer ação é primordial. A partir disso, os sujeitos, os grupos e outros fatores podem definir a postura política diante das condições. Para tanto, o teatro possível pode ser uma abordagem que permite uma postura proativa do que se apresenta como dificuldade. Para o intercâmbio, foram reali-zados encontros presenciais em Brasília e em Alta Floresta. Os estudos dirigidos aconteceram virtualmente e se tornaram momentos de exposição dos resultados dos trabalhos e também de debate. Os temas norteadores dos estudos e dos seminários foram o processo de formulação de hipóteses em experiências tea-trais − em busca de um teatro possível; o planejamento estratégico situacional; a radicalidade, a ruptura e a rigorosidade no trabalho de grupo; as necessidades de manutenção da obra artística e sua influência no processo de produção; e estudos sobre o conceito de dramaturgia e o teatro pós-dramático.

“De volta pra casa. Tomada a distância necessária de tempo e espaço. Agora consigo compreender que o Teaf é uma escola, aberta e livre, sem um mé-todo tradicional, uma escola construída informalmente, que vem passando

de mão em mão, mantendo-se viva. Quando da nossa primeira visita a Alta Floresta, discutíamos nas nossas mesas-redondas, literalmente redondas e democráticas; o que buscávamos não era uma crítica sobre o trabalho pro-duzido, mas o entendimento do processo vivido e em que estágio estamos dentro desse processo, o que temos em comum e o que pode ser compar-

tilhado e que atenda ao interesse de cada um.”Postado por José Regino em

http://teatroflorestaseantas.blogspot.com.br.

COMPANHIA SILENCIOSA (PR) E ERRO GRUPO (SC)Salsichão no Boquerão/Tainha na Prainha

O projeto é a deflagração da pesquisa artística entre os grupos, um processo investi-gativo inédito, construído a partir de compartilhamento técnico de convivência e de troca conceitual e artística entre os coletivos. Os dois eixos principais da pesquisa têm como foco a presença cênica, suas possíveis mediações e extensões e suas múltiplas relações estético-políticas com as três cidades cartografadas − Florianópolis, Curitiba e São Paulo –, por meio do uso de diversas tecnologias e de sua justaposição poética em espaços públicos e privados dessas cidades, criando, com isso, frestas, desloca-mentos e rupturas no mecanizado fluxo da malha urbana contemporânea.

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CIASENHAS DE TEATRO + NÚCLEO ARGONAUTAS DE TEATRONarrativas Urbanas na Terra sem Lei

A ideia do projeto, embora não seja a continuidade de um trabalho anterior, nasceu do desejo de ambos os grupos de continuar juntos no compartilhamento de formas e procedimentos de criação, além da percepção de que suas inquietações têm muito em comum. Em 2007 e 2008, as duas companhias estiveram juntas em várias situ-ações. O Núcleo Argonautas estava nos momentos finais de Terra sem Lei – projeto que recebeu o apoio do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo – e, então, a CiaSenhas o convidou para um compartilhamento do projeto Narrativas Urbanas, que naquele instante ainda estava em pleno andamento.

Perceber que as perguntas sobre a linguagem teatral, o desejo de um processo de criação com uma dinâmica coletiva e horizontal em suas relações, a vontade artística de lidar com o material/matéria-prima que viesse da cidade e da realidade, o forte interesse num fortalecimento da participação do ator como potente parceiro de criação eram conexões entre os grupos e foi o que motivou os encontros. Dessa forma, Francisco Medeiros e Lucienne Guedes (direção e dramaturgia, respectiva-mente) estiveram várias vezes em Curitiba, participando ativamente de determina-das fases do Narrativas Urbanas, “contaminando” o processo de criação. Duas cenas dos Argonautas foram apresentadas em Curitiba, na própria sede da CiaSenhas; isso se desdobrou em debates e encontros com o público também.

Tanto Terra sem Lei quanto Narrativas Urbanas eram projetos que tinham a cidade na mira de sua criação. O primeiro desenvolveu sua dramaturgia a partir de documen-

“Quais são os fios que nos ligam ou seremos wireless por natureza? Ainda há um encontro aqui (a desenrolar-se), ainda há um contraste: uma única e exclusiva chama sexual nos acenderá por alguns instantes, seja que tipo de entrada USB for, transformando-nos nos grandiosos bichos urrantes pelo que somos tão conhecidos internacionalmente, como país, como célula, como tecnologia malfadada ao eterno conhecimento que temos de nós mesmos, se tão edificantes por um lado, tão curiosamente inábeis que se nos deixam por outro. Se hoje me depilo aqui, amanhã não mais, o que é um pelo para quem está cagado? O que é o desejo, que nos une em eletricidade, identi-dade e nos separa em realização?”Postado por salsichaotainha emhttp://salsichaotainha.wordpress.com.

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Foto Ivson MirandaEspanca! e Cia. Brasileira de Teatro

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tos existentes, enquanto o segundo se interessou, como o próprio nome já diz, pelos acontecimentos urbanos veiculados pela mídia. O desenvolvimento dos dois projetos manteve um interesse na ação propositora do ator para a dramaturgia, radicalizada como jogo. Dessa forma, os atores se aproximaram daquilo que podemos chamar, a título explicativo, de posição performática. Podemos considerar que uma definição possível disso é a aproximação do intérprete daquilo que ele faz, sem mediações, ao menos num momento inicial, da dramaturgia ou da direção, comprometendo artista e arte no limite possível, expondo sua ação ao público, pedindo sua interferência.

Uma poderosa ferramenta para isso foi o treinamento de Viewpoints, sistema de-senvolvido por Anne Bogart, nos Estados Unidos, com o qual a CiaSenhas começa-va a trabalhar. O Núcleo Argonautas desenvolvia a mesma ideia, somada a outras técnicas, como o Círculo Neutro, a Coordenação Motora de M.M. Béziers, a técnica Alexander e o Kempo Indiano. Mas trabalhar com as proposições do Viewpoints possibilitou, sobretudo, o alargamento das possibilidades expressivas da ação física, relacionado ao espaço que se quer ocupar/revelar e aos outros intérpretes, agindo em conjunto. Nesse projeto, o desejo foi viabilizar um aprofundamento, desta vez comum aos dois grupos, no estudo de Viewpoints.

Depois dessa experiência, em que o cruzamento dos Argonautas com a CiaSenhas foi pontual, embora intenso, e que ocorreu depois do término do projeto dos Argonautas, foi proposto ao Rumos realizar um encontro presencial dos grupos para investigação conjunta, seguido de dois experimentos cênicos diferentes criados em simultaneidade e, por fim, um experimento comum aos dois grupos. Na segunda fase do projeto houve dois experimentos simultâneos, em que cada grupo era responsável por uma ação cênica em suas cidades de origem – CiaSenhas num espaço aberto/público e Núcleo Argonautas num espaço fechado. Na terceira fase houve o compartilhamento desses dois experimentos entre os dois grupos e a criação de uma terceira experiência, comum a todos. O mais importante desses experimentos foi a relação estabelecida com o públi-co. A ideia era colocar a obra em profunda relação com esse desejo, colocá-la no risco mesmo da experimentação da linguagem, aproximando o ator do performer e con-taminando a cena teatral com um acontecimento que se desejava não representativo.

“Estamos agora num momento delicado... Depois de inventar intervenções, coletar depoimentos, reações, imagens nas ruas, em elevadores, em diferen-

tes espaços públicos, em redes sociais, enfim, de ouvir, ver e narrar recipro-camente acontecimentos, é chegada a hora de nos confrontarmos com o

material. Ver que suco tiramos dessas polpas. Como disse Lucienne, é hora de a dramaturgia lançar-se na organização e na frutificação do material.”

Francisco Medeiros, postado por Lucienne Guedes emhttp://narrativassemlei.blogspot.com.br.

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LUME (SP) E OPOVOEMPÉ (SP)Composição de Matrizes ou Matrizes em Composição?

Desde a sua fundação, o objetivo primeiro do Lume foi proporcionar autonomia criativa ao ator, fazer com que ele descobrisse sua própria expressividade, sua própria arte, sua própria vida estética como presença, força cênica e organicidade de ações. A busca dessa “presença”, que gera uma força invisível no ator, sempre se baseou em pilares concretos de trabalho. O grupo busca trabalhar sobre uma força e não sobre elementos técnicos. Essa força (presença, organicidade, potên-cia) não é um elemento concreto e inteligível, mas um elemento afetivo que altera o estado dos corpos e somente é detectado por seu efeito sobre eles. Sendo essa força invisível, ela não pode ser trabalhada de forma concreta e consciente, mas deve ser gerada na fissura criada por elementos concretos. Para o Lume, o corpo é o elemento ao mesmo tempo concreto e intensivo e somente pode se poten-cializar em experiências-limite, pois nesse estado de fronteira tem como desmo-ronar os padrões conhecidos e gerar nesse processo não formas físicas mecânicas, mas sim de força ou, em outras palavras, matrizes.

Esses pilares de ação encontram pontos de contato com o OPOVOEMPÉ, que surgiu com um trabalho baseado na fisicalidade e no desenvolvimento do ator criador no contexto contemporâneo. O grupo pesquisa a criação de cor-pos coletivos, parte da conexão e da interdependência entre os atores para gerar o material cênico e as ações. Tem como pilar o “estado de resposta” e o apoio sobre o espaço, do ponto de vista das relações espaciais entre os corpos e destes com a arquitetura. Outro ponto fundamental que aproxima os dois grupos é a composição de suas obras realizadas a partir da criação dos atores.

Porém, nesse ponto, o grupo OPOVOEMPÉ utiliza um sistema de composição a partir desse corpo coletivo. A composição é um método para criar material cênico original, ar-ticular ideias, momentos e imagens que serão incluídos na produção de um trabalho tea-tral. É um processo de “escritura” colaborativa, que se faz em ação a partir de demandas específicas da direção. Apoiado na pesquisa prévia do tema a ser tratado, o elenco cria cenas curtas, específicas, referentes a um aspecto particular. Assim, estabelece-se o mate-rial bruto da linguagem que fará parte do trabalho, levantam-se princípios de encenação e elementos específicos com que se irá trabalhar (objetos, texturas, sons). É nesse ponto que as perguntas que nortearam a busca conjunta se colocam: como a sistemática de composição do OPOVOEMPÉ pode afetar e transformar no nível da ação as matri-zes de força (ação física) dos atores geradas pela sistemática do grupo Lume? Como a sistemática de composição do OPOVOEMPÉ pode compor no nível da cena com as matrizes de força (ação física) dos atores geradas pela sistemática do grupo Lume?

A apresentação traz de modo irreverente e simples uma composição com momentos, histórias, acontecimentos e desejos de continuidade que, de certa forma, não somente resume mas, principalmente, poetiza essa troca de trabalhos e vontades.

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ESPANCA! (MG) E CIA. BRASILEIRA DE TEATRO (PR)Um Outro Si Mesmo – Troca de Pacotes

Durante o projeto, as companhias se encontraram presencialmente para a criação de um experimento, gerado a partir desse intercâmbio: em março de 2011, na sede do grupo paranaense; em junho, na sede mineira; e, em julho, em São Paulo, para a mostra final dessa troca. Para gerar possibilidades de uma investigação mútua no tempo que permeia esses encontros, os grupos criam materiais provocativos para trocar entre si em forma de encomendas. Cada coletivo preparou pacotes com referências artísticas, propostas de trabalho ou qualquer outro material provocativo e enviou pelo correio ao outro. A partir dessa experiência, foram levantados questões e caminhos possíveis para uma criação compartilhada e nasceu o desejo de discutir os mecanismos de so-brevivência do ser humano e do próprio ofício teatral. O blog funcionou como fer-ramenta de compartilhamento do registro dos passos da criação: da publicação dos pacotes recebidos e enviados às reflexões e indicações de trabalho que surgiram desse processo [http://espanca.com/ciabrasileira/].

Troca de pacotes. Era um diálogo. Cuidar dele, alimentá-lo.DISCURSO SOBRE NADA

(uma mulher em um pequeno palco redondo; uma luz cafona sobre ela)

“Eu procurava um título pra começar. Algum nome, um pedaço de frase, uma palavra qualquer. Pra começar a dizer pra vocês. Ou melhor, pra começar a

escrever o que eu deveria dizer pra vocês. Ou melhor, pra começar a escrever o que eu deveria falar, não dizer, falar. Com vocês, não pra vocês. Isso. Eu pro-curava um título pra começar a escrever o que eu deveria falar com vocês esta noite. Eu imagino que vocês esperem alguma coisa de mim. Que, pelo menos esta noite, vocês esperem alguma coisa de mim. Sim, a expectativa. É sobre o que poderíamos falar esta noite. Não sobre esperanças, isso já é outra história.

Não sobre esperanças, isso… as esperanças (silêncio; ri).”Postado por Marcio Abreu em

http://espanca.com/ciabrasileira.

TEATRO DO CONCRETO (DF) E MAGILUTH (PE)Do Concreto ao Mangue, Aquilo que Meu Olhar Guardou pra Você...

O projeto desenvolvido teve como foco a criação de cenas a partir de olhares para as cidades envolvidas e da reflexão sobre as formas de gestão e organização em coletivos

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teatrais. As ações foram organizadas no blog www.doconcretoaomangue.blogspot.com em duas janelas. A primeira, intitulada “janela de criação”, possibilitava a troca mensal entre os grupos de três imagens de suas respectivas cidades e, a partir desse estímulo imagético, disparavam seus processos de criação. Na “janela de gestão”, mensalmente as companhias trocavam um relato sobre um desafio de gestão, administração e/ou convívio e pensavam em estratégias para o seu enfrentamento. Nos encontros presen-ciais, que tiveram a participação de Luiz Fernando Marques, diretor do grupo XIX de Teatro (SP), foram realizados uma mostra de cenas curtas, experimentos no espaço urbano e discussões sobre as questões levantadas nas duas janelas. Esse encontro triplo gerou ainda mais olhares para pensar o fazer coletivo e sua relação com a cidade.

Janela de Gestão N.4 – TEATRO DO CONCRETO

“Um grupo se faz de afinidades de toda espécie. Um grupo convive muito e passa a conhecer parte do infinito que é cada membro. Um grupo corre atrás de projetos, editais, parcerias. Um grupo cria vocabulário próprio. Um grupo tem muitos projetos e ações para administrar. Nesse cenário, como lidar com duas questões: Não deixar a relação afetiva, a intimidade se tornar permis-siva e condescendente com o trabalho de criação? Como extrair prazer da trajetória e dos compromissos/projetos conquistados?”Postado por Do Concreto ao Mangue emhttp://doconcretoaomangue.blogspot.com.br.

GRUPO BAGACEIRA DE TEATRO (CE) E COLETIVO ANGU DE TEATRO (PE)Conexões Coletivas: Angu e Bagaceira − Projeto Abuso

O projeto propôs o estudo de situações abusivas vivenciadas por membros de nossa sociedade. Sem um foco único, os temas relacionados pelo Coletivo Angu de Teatro e pelo Grupo Bagaceira de Teatro vão desde abusos comuns no nosso cotidiano até a forte questão do abuso sexual. Num processo que une teatro, vídeo e performance, os dois passearam pelo tema de forma não panfletária, tecendo uma teia que mostra as situações. Com momentos individuais de cada grupo e outros em que os integrantes se misturaram, o Projeto Abuso tornou-se semente para uma ideia maior.

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Foto Ivson Miranda Lume e OPOVOEMPÉ

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“Abuso”, segundo o dicionário Houaiss: Acepções: substantivo masculino

1. uso incorreto ou ilegítimo; abusão, excesso 2. uso excessivo ou imoderado de poderes

3. aquilo que se opõe aos bons usos e costumes 4. qualquer ato que atente contra o pudor; sedução, desonra

5. regionalismo (Brasil):aborrecimento, maçada

6. regionalismo (Brasil):enjoo, fastio a comida ou bebida

Locuções:a. de autoridade

Rubrica: termo jurídico.m.q. abuso de poder

a. de confiançaviolação da crença na probidade moral de outrem ou de compromisso

por ele assumido

a. de confiança públicaRubrica: termo jurídico.

m.q. peculato

a. de poderRubrica: termo jurídico.

abuso de direito praticado por autoridade pública; abuso de autoridadePostado por angu & bagaceira em

http://projetoabuso.blogspot.com.br.

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CIA. DOS ATORES (RJ) E OS FOFOS ENCENAM (SP)(Re)Soluções para Ontem: Inventar o Passado

Os encontros entre os grupos centraram-se em discussões sobre trajetórias artísti-cas, procedimentos de criação, principalmente voltados para as atuais pesquisas dos dois coletivos. Como interlocutora dessa troca estava a pesquisadora e atriz Berta Teixeira. Os Fofos Encenam pesquisou o pentateuco, um exercício cênico sobre o sagrado brasileiro por meio da sociedade da cana-de-açúcar. A Cia. dos Atores mergulhou na construção do Autopeças e na pesquisa do etos carioca, um estudo sobre o ser carioca em vários aspectos. Após trocas e negociações, o elemento ele-gido para aproximar as pesquisas foi o mote do sagrado.

Os temas foram: dramaturgia contemporânea, a perspectiva de um grupo que con-ta com um dramaturgo para organizar seus recursos técnicos e de outro grupo que organiza sua própria dramaturgia por meio de um encenador que ordena sentido e forma a partir das proposições dos atores; o campo sagrado/profano e como cada membro provoca a encenação, trazendo suas questões pessoais para a criação de linguagem; as idiossincrasias dos intérpretes, recortes de suas pessoalidades, res-pondendo a questão: “qual é o seu sagrado pessoal?”.

Não houve a busca pela criação de um espetáculo em conjunto, mas sim a divisão das angústias e alegrias das salas de ensaio; o pensamento nos mecanismos de construção e o entendimento do “colaborativo” que se dá em cada grupo. A mostra desse processo foi um recorte de alguns experimentos cênicos da sala de ensaio e uma conversa com o público presente sobre essas trocas.

“E o que fazer com isso tudo?As ideias agora surgem de outro manancial… De uma coisa sabemos: tem muito material para puxar o fio.Tem estilhaços de cenas para serem encaixados em outras frentes; cenas que renascem em outros universos e estilos. Tudo com frescor de uma ninhada de muitos cachorrinhos − não tenho como deixar de mencionar que minha fabulosa companheira acaba de dar à luz oito anjos caninos! Nada mais convidativo para seguirmos adiante com este material e fazermos nos-sas novas autopeças. Muito trabalho pela frente.”Postado por Cesar Augusto emhttp://atoresfofos.com.br.

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CLOWNS DE SHAKESPEARE (RN) E TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ (RS)Conexão Música da Cena

A partir da prática dos grupos, o projeto Conexão Música da Cena prevê uma série de atividades relativas à investigação da linguagem musical no teatro. Além da troca, em si, entre os grupos dos dois Rios Grandes – com encontros, seminários e oficinas programados no mês de abril em Porto Alegre e em agosto em Natal –, foi feito um mapeamento eletrônico dos profissionais ligados à música para cena no país. A partir do levantamento desses profissionais – músicos, compositores, arranjadores, di-retores musicais etc. – foi enviado um formulário com questões sobre a prática desses profissionais, no intuito de realizar um primeiro levantamento sobre quem trabalha nessa área no Brasil. O registro desse processo desenvolvido pelos grupos – tanto nas atividades à distância quanto nos encontros presenciais – pode ser acompanhado no blog e em edições especiais das publicações Cavalo Louco − Revista de Teatro da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e Revista Balaio, do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – com relatos detalhados dos processos vivenciados.

“Agora [em Natal] poderemos vivenciar a experiência de criação coletiva da forma como o Ói Nóis trabalha, na qual não há a figura do diretor − que

se diferencia do modo como nós trabalhamos, de como o Marco [Clowns de Shakespeare] conduziu o trabalho em Porto Alegre. Isso levantou uma

reflexão sobre essas diferentes formas de trabalho e o quanto esse encontro pode proporcionar uma construção de conhecimento na troca. Apesar de

ser um tema muito explorado nos espaços de pensamento, entendemos que a produção teórica sobre a questão acaba caindo num generalismo que não

contempla as reais diferenças e semelhanças entre as duas formas de criação, principalmente porque cada experiência de criação coletiva traz suas idios-sincrasias, assim como as experiências de criação com diretor também têm peculiaridades em cada grupo ou trabalho. Assim, o que vamos fazer é um

espaço de encontro entre essas duas experiências específicas, buscar pontos de convergência e divergência, o que todos acreditamos que será muito rico.”

Postado por Fernando Yamamoto emhttp://musicadacena.blogspot.com.br.

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Foto Rubens Chiri O Imaginário

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EXERCÍCIOS DE FORMAÇÃO: CULTURA DE GRUPO E OS RUMOS DO TEATRO

KIL ABREU

O eixo na pesquisa artística e no intercâmbio entre grupos com trabalho continuado levou à possibilidade, nesta edição do Rumos Teatro, de visualizar uma síntese dos processos formativos pelos quais passa a cena neste momento. São grupos que, assumindo a necessária permeabilidade que a proposta chama, se formam no mo-mento mesmo em que um novo teatro surge. Por isso, as experiências vividas nos meses do projeto indicam – lateralmente, que seja – algumas das expectativas da prospecção estética e também as direções que vem tomando a prática teatral entre nós nesse ambiente dos grupos.

Mobilizado pela cultura dos coletivos, que nos últimos anos ganhou raízes razoavel-mente firmes em vários lugares do país, o projeto acabou por oportunizar espaços em que foram reunidas (por vezes confrontadas) experiências criativas, impressões sobre o ofício e as suas circunstâncias. Por isso, a ideia de formação se estende aqui para além do seu sentido mais imediato – o de uma importante pedagogia que a reunião entre artistas sempre favorece. Artistas que se articulam para fazer e para ver, para falar e para ouvir, para pôr em andamento as tarefas do seu próprio labora-tório inventado – poético, estético, político.

Para além do processo pontual de troca e aprendizado, esta dinâmica é repre-sentativa do horizonte de uma geração inteira, que nos últimos anos vem as-similando com maior certeza – e em todas as direções ideológicas – o fato de que o ofício não é feito de pura intuição – requer tanto visão de mundo quan-to rigor e métodos de investigação, como qualquer outro: no campo artístico propriamente dito e também no campo da organização para a sobrevivência. Daí a necessidade do reconhecimento, da parceria e do escambo de saberes, materiais, feitiços e variantes.

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EXERCÍCIOS DE FORMAÇÃO:CULTURA DE GRUPO E OS RUMOS DO TEATRO

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CRIAR, FORMAR, RELACIONAR

Se tivermos interesse pelos recortes mais particulares que fundamentaram os encon-tros, e se seguirmos com essa ideia da formação, podemos indagar olhando, sobretu-do, para os relatos feitos nos blogs das companhias: o que, então, se experimentou? O que se ensaiou formar quando esses grupos se encontraram? Que perguntas foram lançadas, com quais materiais, com quais procedimentos? Que gênero de questões foi capaz de agregar os coletivos num mesmo processo formativo?

Nesta passagem talvez seja útil pensar um pouco nas ideias de forma e criação. Sob determinado ponto de vista da estética, criar é sinônimo de formar, de ordenar, de promover sínteses. E formar é, antes de tudo, relacionar (por continuidade, por extensão, por oposição, por contraste, por afirmação, por omissão). Mas relacionar e ordenar não são operações só da esfera da arte. Elas fazem parte da vida cotidiana, ainda que, sem dúvida, na arte essas formações se anunciem em estratégias singu-lares. É o que nos diz Fayga Ostrower. E é coisa que se assenta sobre uma necessi-dade orgânica, essencial. Ela defende:

Nessa busca de ordenações e de significados reside a profunda motivação hu-mana de criar. Impelido a compreender a vida, o homem é levado a formar. Ele precisa orientar-se, ordenando os fenômenos e avaliando o sentido das formas ordenadas; precisa comunicar-se com outros seres humanos através de formas ordenadas. Trata-se, pois, de possibilidades, potencialidades do homem que se convertem em necessidades existenciais. O homem cria não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa (Ostrower, 2009).

As características dessas criações e o seu trajeto experimental até a obra – a esco-lha dos materiais; dos temas a ser investigados; o lançamento às vezes mais, outras menos objetivo das demandas de sentido (quando elas existem); a preparação dos meios expressivos; o acento neste e não naquele aspecto do processo criativo; os modos, portanto, como a forma se forma e testa as estruturas sobre as quais se manterá a linguagem –, dizem respeito ao repertório do fazer com o qual, enfim, é tecida a teia de relações e a partir do qual o artista intui ou define posições frente ao mundo, em chave própria. Importante, no caso específico, é relevar que o Ru-mos procurou dinamizar o espaço laboratorial e não a finalização das parcerias em obra. Ensaios de formações, pois.

PESQUISA

Com base nas proposições iniciais feitas pelos grupos e nas visitas aos blogs, nos quais foram relatados os processos de trabalho, é possível afirmar que as motivações que mobilizaram os artistas são muito diversas. Dito que o projeto não demandou a criação de espetáculos, e sim o intercâmbio inspirado na pros-

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Foto Rubens Chiri Cia. dos Atores e Os Fofos Encenam

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pecção artística em área de interesse comum aos proponentes, é natural que o entendimento e a eleição dos pontos angulares do trajeto sejam variados.

Em alguns casos, ele não é mais que uma intuição fundamental e um chamado ao jogo, com grande espaço para a construção do corpo da investigação durante o próprio processo (como no intercâmbio dos grupos Espanca! e Cia. Brasileira de Teatro). Em outros, a intenção é estabelecer a troca de procedimentos, técnicas, treinamentos. O campo de possibilidades aparece, desde logo, razoavelmente de-terminado no repertório dos grupos (como no encontro entre o Lume e OPO-VOEMPÉ). Certas vezes, ainda, os temas disparadores antecedem a pesquisa de linguagem no sentido estrito (CiaSenhas e Núcleo Argonautas, por exemplo).

Na tentativa de organizar as recorrências, ensaiemos agrupar estas proposições em três campos. Trata-se de um relato que certamente não alcança todos os aspec-tos de cada pesquisa apresentada. Supõe apenas aqueles que parecem ser os mais salientes e indica algumas filiações – evidentemente parciais. O esquema sugere um quadro provisório, que não abarca toda a complexidade dos gestos criativos empenhados na experiência.

TREINAMENTOS, TÉCNICAS, LINGUAGENS

Pela própria vocação do projeto, tem-se em um primeiro movimento os grupos que propuseram o intercâmbio de treinamentos e a troca de percepções nas áreas da técnica e do vocabulário da cena. Pensemos o termo (técnica) no seu sentido mais imediato, como “meio de construção ou método específico” (Williams, 2007). São interlocuções bem assentadas na prática teatral, ora com foco nos treinamentos propriamente ditos, ora em questões mais determinadas de linguagem – ainda que um termo remeta, evidentemente, a outro.

Os grupos Caixa do Elefante (RS) e PeQuod (RJ) pautaram seus encontros em torno de O Ator Animador e o Processo Criativo no Teatro de Animação. A partir da relação ator/objeto, a questão de fundo é a especificidade de gênero frente às novidades técnicas e de linguagem. Supõe-se que isso remeta a certas tradições e práticas já consolidadas na animação diante do teatro contemporâneo e dos deslo-camentos que têm sido operados.

O Teatro Autônomo (RJ) e os Irmãos Guimarães (DF) dedicaram-se a pensar as pontes entre teatro, artes visuais e performance, claramente informados pela identi-dade subliminar que insinua o parentesco em ambas as trajetórias: o espaço, como um dos eixos fortes da encenação, o apelo plástico, as possibilidades da narrativa no contato com o público e o tema da presença performativa.

A música na cena foi o que motivou a proposta dos Clowns de Shakespeare (RN) junto à Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS). Com a realização de semi-

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EXERCÍCIOS DE FORMAÇÃO:CULTURA DE GRUPO E OS RUMOS DO TEATRO

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nários, oficinas e debates, firmou-se aqui o interesse pela compreensão do assunto e da sua aplicação em um viés ao mesmo tempo artístico e pedagógico.

A pergunta que pautou a convivência do Lume (SP) com OPOVOEMPÉ (SP) – Composição de Matrizes ou Matrizes em Composição? – também dá a medida, no panorama atual, do grande interesse dos grupos pelos aspectos técnicos do treina-mento, em especial na área das atuações. As ideias de composição e improviso − centrais, mas tomadas com propósitos diferentes no trabalho das duas companhias − foram objeto dos encontros e do cotejamento entre as perspectivas lançadas ao preparo psicofísico do ator. No blog do projeto, a diretora Cristiane Zuan Esteves registra o momento em que se afirma essa percepção na prática, a de que a arte de incorporar o acaso e as vozes múltiplas exige consciência formal aguda, seja nesta ou naquela direção (Carvalho, 2009). Diz ela:

A pesquisa do Lume – o ator que em seu corpo cria estados, associa significados, recria seres, figuras e singularidades – encontrava-se pela primeira vez com a do OPOVOEMPÉ – o ator invisível misturado aos pedestres, disponível a um coro urbano cotidiano, que borra a hierarquia arte-público [...]. Ao mesmo tempo, fica a certeza de que uma singularidade exacerbada impediria nossa coralidade in-visível. Precisávamos e precisamos ainda ir pra rua com um corpo pedestre. Só assim podemos criar o ato relacional não mediado que propomos.1

CIDADE E SUJEITO

Em um segundo bloco, propõe-se que estejam projetos nos quais os aspectos de linguagem, ainda que indispensáveis e devidamente pautados, não apareçam no primeiro plano da investigação. Os assuntos parecem anteceder os meios, que per-manecem em vista, mas em posição diferente dos aqui já relatados. Chama a aten-ção nesse campo dos assuntos o trânsito evidente entre indivíduo e sociedade ou, mais especificamente, entre sujeito e cidade.

O Erro Grupo (SC) e a Cia. Silenciosa (PR) se preocuparam com as mediações da presença no teatro e as relações destas com a cartografia das cidades. Do es-paço circunscrito da cena ao espaço sem bordas das ruas, o desafio foi testar, com apoio nas extensões tecnológicas, deslocamentos poéticos capazes de gerar ruídos na ordem mecanizada do cotidiano e promover o enfrentamento entre o público e o privado, o íntimo e o social. No trabalho dos dois grupos o experimento ganhou em iconoclastia, com gosto por imagens que remetem ao campo da sexualidade.

A cidade volta na parceria da CiaSenhas (PR) com o Núcleo Argonautas (SP). Narrativas Urbanas (Senhas) e Terra sem Lei (Argonautas) são investigações cênicas que têm em comum o interesse pela relação entre o sujeito e o meio e, ainda, pelo documental, seja no sentido literal do apoio em documentos como material de trabalho, seja no sentido da atitude performativa do ator diante da

1. Cristiane Zuan Esteves, no blog do projeto

Composição de Matrizes ou Matrizes em Com-

posição? (lumeopovoempe.wordpress.com/O

povo em pé/Lume), 24/06/2011.

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dramaturgia por ele convocada. O encaminhamento ao espetacular é reduzido em favor da ideia de intervenções, movimentos na direção do outro em espa-ços abertos ou fechados.

Uma pesquisa cênica do Porto (Porto Velho) ao Rio (Rio de Janeiro) foi o que reuniu os grupos O Imaginário (RO) e Será o Benidito?! (RJ) em torno da oralidade e da camelo-turgia. O ponto de chegada era a sistematização de dramaturgias inspiradas na narrativa popular. Os materiais de base foram memórias a respeito da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, especialmente aquelas colhidas no Porto de Santo Antônio do Madeira, em Rondônia, e as formas abertas de encenação observadas no dia a dia do camelô carioca. A aparente distância entre as fontes se estreita no apelo que ambas esta-belecem em direção ao meio (as ruas, a floresta, os rios) e os percalços da sobrevivência.

Nesse grande “teatro rústico” das artes de rua, três elementos sempre marcaram e delimitaram o acontecimento dessas performances urbanas. Tem-se “o que fala”, “o que para e escuta” e “o que se oferta”. Seja o camelô, o saltimbanco, o curandei-ro, o músico, o circense, o repentista, o capoeirista, o mágico ou um bom contador de histórias, haverá sempre uma linguagem estética de cena com base no camelô de rua e na dramaturgia popular. O roteiro, as cenas e a dramaturgia vão ser frag-mentados e de improviso.2

[...]

O povo beiradeiro3 é um povo que trilha caminhos. Pelo rio, pela mata e também pelos trilhos, quando do funcionamento da estrada de ferro. Caminhos de sobrevivência, a fim de continuar a viver, a ser, a existir. Resistindo às necessidades impostas pela natureza: épocas de chuva em abundância e de secas terríveis. Um solo frágil. Mas um lugar que também oferece muitas dádivas, como peixes, frutas e mandioca para farinha.4

A partir daqui, essas relações ganham outros direcionamentos, tendendo a acentuar questões da subjetividade, demonstrando interesse no ponto de vista do sujeito, no seu olhar sobre as questões apresentadas.

Quem parece mais francamente fazer essa passagem é o projeto Do Concreto ao Mangue – Aquilo que o Meu Olhar Guardou pra Você, que reuniu o Teatro do Concreto (DF) e o grupo Magiluth (PE). Na pauta, uma visada pessoal na direção das cidades e as formas de gestão do trabalho coletivo. Neste projeto, em que os assuntos também antecedem às formalizações, o ponto de vista sobre o meio social interioriza-se, ganha o espaço de territórios singulares (o que alimentou mais à fren-te a criação de um bonito espetáculo do grupo Magiluth).

Vindos de uma realidade em que a mercantilização do corpo, até mesmo o infantil, é um dos problemas sociais mais marcantes, o Coletivo Angu de Teatro (PE) e o

2. Blog do projeto oralidadecameloturgia.blogs-

pot.com.br. Postado por Será o Benidito?!, em

24/08/2011.

3. Referência aos povos que vivem às margens

dos rios na Amazônia, também chamados

ribeirinhos.

4. Idem, ibidem. Postado por O Imaginário, em

4/8/2011.

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grupo Bagaceira (CE) apresentaram o projeto Abuso − Conexões Coletivas. Mas a intenção foi ampliar o sentido da problemática social para outras direções, o que também resultou na busca de leituras mais particulares do tema.

Para a Cia. dos Atores (RJ) e para Os Fofos Encenam (SP) a questão lançada foi o sagrado pessoal. Com base em materiais que estão em processo (O Pentateuco, es-petáculo do grupo de São Paulo) ou já formalizados (Auto-Peças, do grupo carioca) o assunto é discutido pelas duas companhias a partir das abordagens em curso, que vão do sagrado brasileiro às leituras individuais que foram feitas sobre o assunto.

Em Um Outro Si Mesmo – Troca de Pacotes, projeto do mineiro Espanca! e da paranaense Cia. Brasileira de Teatro, o fomento ao acaso deu margem a um diálogo inicial razoavelmente improvisado, que seria capaz de fazer aparecer os temas: “ma-teriais provocativos, referências artísticas e propostas de trabalho”, enviados pelo correio. Posteriormente, foi a questão da sobrevivência, estendida ao próprio uni-verso do teatro, que pautou a experimentação. O interesse se volta então para as possibilidades de uma dramaturgia criada nessas bases.

*

Aparente exceção a todos esses quadros relatados, duas companhias propuseram investigar fundamentalmente questões relacionadas à sustentabilidade do teatro nos terrenos dos meios de produção. A pergunta lançada pelos integrantes do Tea-tro Experimental de Alta Floresta (MT) e pelo Grupo de Teatro Celeiro das Antas (DF) dizia respeito aos “teatros possíveis”, tendo como preocupação as formas de manutenção do trabalho artístico.

No encontro final realizado em São Paulo, o contraste com as demais proposições – em razão desse apelo, em princípio, “extraestético” – foi evidente. Mas não escon-deu também o fato de que, de alguma maneira, a mesma preocupação estava em pauta em vários dos outros projetos, às vezes de um modo explícito (como no en-contro do Magiluth com o Teatro do Concreto), outras subliminarmente, no corpo mesmo da narrativa (Cia. Brasileira de Teatro e Espanca!). Ficou claro que, apesar dos diferentes encaminhamentos, as relações de produção, determinadas com este ou aquele objetivo, alcançaram a coisa estética, mesmo que se tratasse de ensaios, de hipóteses de trabalho. As hipóteses, mesmo provisórias, são carregadas de inten-cionalidade e privilegiam aspectos particulares da experiência. Os modos de gestão do trabalho coletivo não estão, portanto, fora desse campo.

CRUZAMENTOS

Como já se disse, é evidente que o relato das pesquisas organizado desta ma-neira não define todos os seus termos, em geral mais dialéticos do que se pode supor a partir daqui. Para ficar em alguns exemplos, o trabalho dos Argonautas

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Foto Ivson Miranda Grupo de Teatro Celeiro das Antas e Teatro Experimental de Alta Floresta

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com a CiaSenhas previa, além dos temas apontados, procedimentos técnicos já em curso na experiência dos dois grupos, como o treinamento a partir da técnica de Viewpoints e do círculo neutro, entre outros. Assim como o encontro entre os Clowns de Shakespeare e o Ói Nóis Aqui Traveiz se desdobrava em interesses mais fundos, da ordem do rendimento estético e político mais ampliado, ainda que o centro do projeto tenha sido o lugar da música na cena. São casos que ilustram a complexidade produtiva que se pode intuir da maioria dos acordos criativos assimilados nesta edição do Rumos.

Ao acento na especialização dos meios corresponde, então, a pergunta pela sua finalidade e, portanto, pelo sentido que não se resume apenas à afinação dos instrumentos e das técnicas − olha para fora de si. Em outra frente, a reflexão em torno de assuntos específicos, que nem sequer intuíram ainda os instrumentos de trabalho que serão úteis à sua concretização, requer a escolha e o aperfeiçoamen-to dos meios sem os quais a experiência tende a se bastar em intenções soltas, sem o eixo formal que articula a linguagem.

De volta ao princípio desse quadro, talvez seja possível indicar alguns lances do processo de formação cultural que está em pleno movimento no teatro – o que seria objeto de outra reflexão mais detida. Por ora, retomemos Raymond Williams. “Formações são mais reconhecíveis como tendências e movimentos conscientes (literários, artísticos, filosóficos) que normalmente podem ser deduzidos de suas produções formativas” (Williams, 2011). Formações podem ser deduzidas de suas obras, sejam elas acabadas ou não. Ou podem ser deduzidas não apenas das obras acabadas, mas do próprio processo que as gera.

Entretanto, diz ainda Williams que um processo formativo, quando olhado vertical-mente, indica uma realidade ainda mais complexa, seja no sentido de afirmar valores de época (por vezes na contramão do desejo dos próprios artistas), seja no sentido de contestar as formações hegemônicas ou colocá-las em movimento. Não há dúvida de que os exercícios formativos levados a cabo nesta edição do Rumos Teatro são uma pequena e variada amostra de um processo cultural que se inscreve no teatro – e cer-tamente tem alcance para além dele –, invade a vida ordinária e provavelmente volta à cena, com os filtros da sensibilidade, das subjetividades em jogo.

Trata-se de uma teia de relações criativas nas quais grupos de artistas são convida-dos a pensar a sua arte – na escolha e na afinação dos meios expressivos (sempre emprenhados de decisões éticas, visões responsáveis sobre a vida); na discussão de assuntos que disparam a necessidade de investigar tais meios. Exercícios de forma-ção, portanto, que nos localizam em um lugar diante do mundo: aquele em que nós mesmos decidimos, provisoriamente ou não, estar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURGER, Peter. “O problema da Autonomia da Arte na Sociedade Burguesa”, em Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

CARVALHO, Sérgio. Introdução ao Teatro Dialético. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 2009.

WILLIAMS, Raymond. Palavras-Chave (um Vocabulário de Cultura e Sociedade). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

._______ Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

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REDE DE ENCONTROSCECÍLIA ALMEIDA SALLES

A proposta do programa Rumos Itaú Cultural Teatro 2010-2012 trouxe questões que parecem ser relevantes para a compreensão de algumas experimentações pe-las quais o teatro contemporâneo vem passando. O projeto tem como “finalidade promover um intercâmbio entre teatros de grupo de todas as regiões do Brasil, con-tribuindo para a articulação desses coletivos e para o desenvolvimento de pesquisa na área teatral”. Em uma perspectiva ainda bem ampla, é possível dizer que se trata de um estímulo que viabiliza o desenvolvimento da pesquisa em teatro, a partir do compartilhamento ou do encontro entre grupos. Está de algum modo implícito no dispositivo detonador das pesquisas uma aposta de que novas possibilidades tea-trais surgiriam da articulação entre coletivos que mostraram disposição para desen-volver um trabalho em parceria.

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O projeto gerou diferentes formas de apresentações públicas, com todas as difi-culdades de escolher recursos teatrais para mostrar pesquisas em andamento. Ao mesmo tempo, os relatos dos processos que vieram à tona em conversas posteriores às apresentações me fizeram pensar sobre o potencial dos encontros. Ao tentar compreender alguns dos desdobramentos de tal projeto, a partir das discussões so-bre processos de criação como rede, eu poderia localizar seu campo de atuação na ação geradora da interação entre os coletivos, mais especificamente, na expansão das redes de cada grupo a partir da relação com o outro.

Antes de entrar na especificidade do teatro, seria interessante entender melhor al-gumas características da interatividade, recorrendo a Morin (2002b, p. 72), quan-do ele discute a natureza de interações na cultura como ações recíprocas que mo-dificam o comportamento ou a natureza dos elementos nelas envolvidos. Supõem condições de encontro, agitação, turbulência e tornam-se, em certas condições, inter-relações, associações, combinações, comunicações etc., ou seja, dão origem a fenômenos de organização. Há algo nas propriedades associadas à interativida-de que parece ser importante destacar para compreender as conexões da rede da criação: condições de encontro, influência mútua, algo agindo sobre outra coisa e algo sendo afetado por outros elementos.

É interessante observar a consequência dessa ação de um elemento sobre o outro sob a forma de ramificação de novas possibilidades na rede de criação. Ao pensar a criação sob essa perspectiva, mesmo os processos individuais já são em rede. Em outras palavras, a criação se dá em meio a uma grande diversidade de interações: conversa com amigos, um livro, um filme etc. geram novas possibilidades que podem ser levadas adiante ou não. A rede ganha complexidade na medida em que novos nexos são estabelecidos.

A interatividade é, assim, uma das propriedades da rede, indispensável para falar-mos dos modos de desenvolvimento de um pensamento em criação, que se dá nas inter-relações. O processo de criação está localizado no campo relacional. Nos pro-cessos que se dão na coletividade, como ocorre com o teatro, há um natural ganho de complexidade. No caso do programa Rumos Itaú Cultural Teatro 2010-2012, essa questão se coloca mais intensa por se tratar da relação entre grupos.

Trago Eisenstein (1987) para esse diálogo. O cineasta, atraído pelo coletivismo do trabalho, fala no capítulo “Construção de Pontes” de seu livro Memórias Imorais so-bre colaborações, comandos e hierarquias e ressalta algo bastante interessante ao definir os processos em equipe: trata-se do entrelaçamento de atos individuais com a ação geral. Essa visão tem desdobramentos instigantes para refletir sobre o modo de ação do coletivo: são indivíduos ou sujeitos que viabilizam as produções em equi-pe que devem ser vistas como uma ação geral e comum a todos. Antônio Araújo (2011), diretor do Teatro da Vertigem, aborda essa questão ao discutir o processo colaborativo. Ele diz que se interessa particularmente pelo tensionamento dialético entre a criação particular e a total, na qual todos estão submersos.

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Foto Ivson MirandaEspanca! e Cia. Brasileira de Teatro

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Falemos um pouco mais sobre esse indivíduo imerso em uma coletividade que bus-ca a concretização de um projeto comum. Vincent Colapietro (1989 e 2003), filó-sofo norte-americano, afirma que o próprio sujeito não é uma esfera privada, mas um agente comunicativo. É distinguível, mas não separável de outros, pois sua iden-tidade é constituída pelas relações com outro. O sujeito não é só membro de uma comunidade, mas tem também a forma de uma comunidade. Sob essa perspectiva, consciência, engenhosidade, criatividade e outras características atribuídas a agen-tes criativos são sempre funções de sua constituição cultural e localização histórica.

A multiplicidade de interações não envolve, no entanto, absoluto apagamento do sujeito, e, ao mesmo tempo, o lócus da criatividade não é a imaginação de um indi-víduo. Ao longo das pesquisas sobre processos de criação individuais, convivemos com a materialidade desses sujeitos em comunidade nos relatos sobre as trocas que acontecem em meio a conversas, leituras etc. O escritor Italo Calvino (1990, p. 138), em seu livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, descreve esse ambiente de interações ao explicar que “cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos”. Ele continua enfocando aquilo que poderia ser visto como espaços de manifestação da subjetividade: “onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis”.

Os processos teatrais são, assim, constituídos de sujeitos dessa natureza de “comu-nidade” ou “bibliotecas”, pessoas comprometidas com uma “ação geral”, e as intera-ções geram um campo extremamente amplo de possibilidades de desenvolvimento dos projetos em construção.

Ainda na perspectiva da fecundidade propiciada pelas interações entre sujeitos, não podemos deixar de pensar que essas interconexões envolvem a relação do artista com seu espaço e seu tempo. Edgar Morin (2002), sociólogo francês, descreve a efervescência cultural, oferecendo um caminho interessante para observamos o artista inserido na cultura, onde há intensidade e multiplicidade de trocas, confrontos entre opiniões, ideias e conceitos. As inovações do pen-samento, segundo o autor, só podem ser introduzidas por este calor cultural, já que a existência de uma vida cultural e intelectual dialógica, na qual convive uma grande pluralidade de pontos de vista, possibilita o intercâmbio de ideias, que, por sua vez, produz o enfraquecimento dos dogmatismos e normalizações e o consequente crescimento do pensamento.

A dialógica cultural favorece o calor cultural que a propicia. Há uma relação recí-proca de causa e efeito entre o enfraquecimento do imprinting (normalizações), a atividade dialógica e a possibilidade de expressão de desvios, exploração de brechas que, para Morin, são os modos de evolução inovadora.

As redes dos processos ganham mais complexidade quando se pensa em cada um dos membros do grupo imersos e sobredeterminados por sua cultura. Atores, di-

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retores, iluminadores etc. interagem com seu entorno, alimentando-se e trocando informações; ao mesmo tempo, o projeto teatral em curso, um sistema aberto, age como detonador de uma multiplicidade de interconexões com a cultura. Essa ques-tão é, de algum modo, um dos focos do Rumos, pois o programa envolve encontros de grupos de diferentes regiões do Brasil. Estamos diante do poder gerador da “plu-ralidade de pontos de vista e intercâmbio de ideias” para explorações de desvios, entrada de novidades, expansões de limites etc.

Trago ainda Steven Johnson (2011), pensador norte-americano das mídias, para ampliar nossa discussão sobre o potencial das interações. No livro De Onde Vêm as Boas Ideias, ele parte de uma grande diversidade de análise de processos criativos em diferentes campos em busca dos modos como as novas ideias são formuladas. Ao procurar por “propriedades e padrões compartilhados que ocorrem reiterada-mente em ambientes de excepcional fertilidade” (Johnson 2011, p. 20), ele encontra aquilo que denomina “redes líquidas”. O autor relata descobertas no ambiente de um laboratório de pesquisa em biologia molecular. Ele parte da pesquisa que Kevin Dunbar, psicólogo na McGill University, fez sobre o trabalho nesse ambiente. Foi observado que a maioria das ideias importantes vinha à tona durante reuniões re-gulares de laboratório, nas quais vários pesquisadores se encontravam e, de maneira informal, apresentavam e discutiam seu trabalho mais recente.

Ao observar o mapa da formação de ideias criado por Dunbar, podia-se ver que o ponto de partida da inovação não era o microscópio, mas a mesa de reunião. O fluxo social da conversa em grupo transforma esse estado sólido privado numa rede líquida.

Conviver em ambiente de interações propicia a explicitação de problemas. Os re-sultados do raciocínio de uma pessoa podem tornar-se o input para o raciocínio de outra, podendo levar a descobertas importantes. A rede líquida impede que nossas ideias fiquem presas aos nossos preconceitos. É dado destaque também à interatividade, que envolve interdisciplinaridade, que leva à saída dos limites dos campos e olhares especializados, ampliando os modos de percepção. Para o autor, as interações entre os membros do grupo conduzem também ao enfrentamento da incerteza. As perguntas feitas por colegas forçam o repensar sobre o que estamos fazendo e abrem espaço para a dúvida.

Segundo Johnson, a pesquisa de Dunbar sugere uma ideia vagamente tranquilizado-ra: mesmo com todos os avanços tecnológicos de um dos principais laboratórios de biologia molecular, a ferramenta mais produtiva para gerar boas ideias continua a ser um círculo de seres humanos sentados em volta de uma mesa, discutindo questões de trabalho. A descrição desse espaço de encontros é bastante familiar para aqueles acostumados às trocas que o tempo de ensaio de peças permite.

É o potencial gerador das interações que Antônio Araújo (2011) discute, sob o ponto de vista do diretor, no caso dos processos que se propõem a ser colaborativos. Parece

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que nesse ambiente o potencial de uma rede fluida se amplia. Ao relatar o processo de O Paraíso Perdido, Tó diz: “Praticávamos uma criação a todo tempo integrada, com mútuas contaminações entre os artistas envolvidos” e convidados. Ele confessa ser bastante estimulado por leituras e discussões teóricas e, principalmente, pelo material sujo e impreciso que vai surgindo das improvisações dos atores em sala de ensaio. “Minha imaginação é como que provocada por elementos fora de mim e o corpo do ator, nesse sentido, funciona como uma espécie de gatilho. A experiência e a presença do outro são enzimas para meus mecanismos criativos.” A partir dessas reflexões, fica claro o quanto a interação como método é estimulante: supõe a turbulência dos en-contros e propicia a exploração de brechas e a expansão de limites.

Gostaria de pensar em alguns dos desafios envolvidos na proposta de encontros de grupos do programa Rumos.

Morin (2010) discute os campos de conflitos nas produções em equipe e, mais uma vez, amplia nosso olhar para além da aparente especificidade do teatro. Ao propor uma sociologia da ciência, afirma que muito do que acontece no universo acadêmi-co é mais geral do que se quer acreditar: “Como sabemos, o grande problema de toda organização viva – e, sobretudo, da sociedade humana – é que ela funciona com muita desordem, muitas aleatoriedades e muitos conflitos”. E dá o exemplo de Roma: conflitos, desordens e lutas que marcaram sua história não foram apenas a causa de sua decadência, mas também de sua grandeza e de sua existência. A interação entre sujeitos, conflitos e embates é, portanto, constituinte-chave da exis-tência social: causa de “grandezas e decadências”.

O autor também afirma que as relações entre cientistas são de natureza amigável e hostil, de colaboração e competição, regidas pelo jogo de verificação. Isso nos leva a um interessante questionamento que será discutido mais adiante: quais são as regras do jogo de outras atividades coletivas, como o teatro?

Voltando à ação geral de Eisenstein ou ao projeto teatral comum, no caso específico do Rumos, isso se concretiza naquilo que foi chamado de encontros entre grupos de teatro profissional “empenhados num projeto continuado de pesquisa”. O desen-volvimento de uma pesquisa envolve tomadas de decisão, entre uma diversidade imensa de questões. Nesses casos, quem é o guardião do sim e do não?

Essa discussão tem, a meu ver, dois desdobramentos que parecem estar intima-mente ligados: modos de trabalho e constituição de um projeto comum. Como se constrói o pacto relativo ao modo como o grupo ou os grupos, no caso, vão se organizar na construção de um projeto comum?

Vou discutir primeiramente a construção do projeto comum. Desse ponto de vista, o desafio talvez fosse tornar os encontros entre os grupos propícios ao contágio mútuo na busca pelo desenvolvimento de uma pesquisa. O teatro sempre lida com

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o potencial e as dificuldades da interação de projetos pessoais com um projeto co-mum; no caso da interação entre grupos, a complexidade é ampliada.

A interatividade gera diversidade, novas possibilidades, saída de zonas de confor-to, disponibilidade para troca etc. As interações, responsáveis pela proliferação de novos caminhos, provocam uma espécie de pausa no fluxo da continuidade, um olhar retroativo de avaliações. Em outras palavras, as possibilidades levam à neces-sidade de fazer escolhas e de tomar decisões e ao consequente estabelecimento de critérios internos ao processo. Seriam fragilidades que ganham consistência ao longo do processo e se tornam critérios no “jogo de verificações” teatrais. As interações são certamente um meio que viabiliza novas possibilidades; porém, não bastam. Para passar a integrar a obra em construção precisam ser desenvolvidas e ampliadas, testadas e avaliadas.

O desafio aqui se configura na determinação de princípios éticos e estéticos que direcionam as tomadas de decisão, que, por sua vez, dizem respeito à natureza da pesquisa que estava sendo desenvolvida nesses casos. Não há garantia de que as interações ganhem consistência, assim como que tragam resultados estéticos ava-liados como significativos e interessantes pelas pessoas envolvidas.

Ao mesmo tempo, caímos em questões ligadas ao modo de trabalho, que diz res-peito ao entrelaçamento de atos individuais com a ação geral em meio a colabora-ções, comandos e hierarquias, assim como desordem, muitas aleatoriedades e con-flitos. A possível falta de definição de funções no desenvolvimento do trabalho entre grupos pode acarretar dificuldades na definição desses critérios.

Nos processos colaborativos observamos a importância da existência e da manu-tenção das funções artísticas na constituição daquilo que Antônio Araújo chama de “conceito estruturador”. Fica evidente o poder criativo das interações. No entanto, parece que elas podem ser infinitas em uma rede que se amplia sem o encontro de contornos mais definidos. Nesses momentos seria possível afirmar que a interativi-dade pode ser excessiva?

Antônio Araújo (2011, p. 14) diz que “apesar de não comungarmos da filosofia da extinção dos papéis dentro de uma criação, acreditávamos em funções artísticas com limites menos rígidos, estanques, e praticávamos uma criação a todo tempo integrada, com mútuas contaminações entre os artistas envolvidos”.

Diferentemente da criação coletiva que pretendia uma erradicação desses pa-péis, no processo colaborativo a sua existência passa a ser garantida. “Dentro dele, existiria, sim, um dramaturgo, um diretor, um iluminador etc. (ou, no limite, uma equipe de dramaturgia, de encenação, de luz etc.), que sintetizariam as diversas sugestões para uma determinada área, propondo-lhe um conceito estruturador. Além disso, diante de algum impasse, teriam direito à palavra final concernente

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Foto Rubens Chiri Núcleo Argonautas e CiaSenhas de Teatro

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àquele aspecto da criação” (Araújo, 2011, p. 137). Acima de sua habilidade particu-lar, está o artista do teatro, criando uma obra cênica por inteiro e comprometido com ela e com seu discurso como um todo.

Acredito que optar por um processo colaborativo implica a adesão dos membros do grupo e a consciência da adoção de um modo de trabalho. Por outro lado, a falta de definição pode causar impasses e conflitos que venham a dificultar o andamento do processo. E, como vimos, a maneira como o grupo se organiza está estreitamente relacionada aos critérios das tomadas de decisão que tornam o processo viável.

A reflexão sobre os desafios envolvidos na proposta do Rumos Teatro 2010-2012 parece levar à constatação do quanto é promissora a constituição de um espaço experimental sustentado pelo potencial dos encontros. Grupos se formam, normal-mente, a partir de afinidades estéticas que sustentam a grande diversidade de esco-lhas que tornam um espetáculo possível, gerando aquilo que Morin chama de “fenô-menos de organização”. Ao propor parcerias pautadas provavelmente também por afinidades, os grupos apostaram na ampliação de possibilidades que um ofereceria ao outro, gerando experimentações do ponto de vista dos modos de trabalho e da pesquisa a ser desenvolvida.

A articulação entre coletivos mostrou-se, assim, uma expansão do campo de ação do processo colaborativo, que é uma das experimentações mais significa-tivas do teatro contemporâneo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Antônio. A Gênese da Vertigem: o Processo de Criação de O Paraíso Perdido. São Paulo: Perspectiva, 2011.

CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Le-tras, 1990.

COLAPIETRO, Vincent. Peirce’s Approach to the Self: a Semiotic Perspective on Human Sub-jectivity. New York: State University of New York, 1989.

_______________. “The Loci of Creativity: Fissured Selves, Interwoven Practices”. Em Ma-nuscrítica: Revista de Crítica Genética nº 11. São Paulo: Annablume, 2003.

EISENSTEIN, Serguei. Memórias Imorais. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

JOHNSON, Steven. De Onde vêm as Boas Ideias. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

MORIN, Edgar. O Método 1: a Natureza da Natureza. Trad. Ilana Heineberg. Porto Alegre: Sulina, 2002.

___________. Ciência com Consciência. 13ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

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O REFLEXO E A MEDUSAMARIA TENDLAU

Começo pelo empréstimo de uma imagem trazida na primeira noite do Rumos Itaú Cultural Teatro 2010-2012 pelo professor Laymert Garcia dos Santos, em sua fala sobre teatro, mito, história e tecnologia: a imagem do espelho que ajudou Perseu a matar a Medusa, impedindo-o de ficar petrificado ao olhar diretamente para seus olhos. Trata-se de uma referência ao espetáculo Los Santos Inocentes, do grupo Mapa Teatro da Colômbia. Laymert Garcia dos Santos fala do espelho mitológico como uma possível leitura da mediação por registros em vídeo de uma festa/massacre, utilizada no espetáculo do grupo colombiano. A sinopse do espetáculo diz: “Estamos em Guapi [...], celebra-se ali a Festa dos Santos Inocen-tes. Homens disfarçados com roupas e acessórios de mulheres, máscaras grotes-cas e chicotes nas mãos tomam as ruas e correm por elas dando chicotadas em quem encontram em seu caminho. Homens, mulheres, crianças, em sua maioria afrodescendentes, e alguns outros colonos que vêm de outro lugar, tentam fugir ou se evadir das chicotadas, mas, curiosamente, muitos deles se jogam no chão para recebê-las. Esta é uma festa, mas, para quem não sabe, bem poderia ser um massacre. Em toda festa está metido o inimigo”.

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Explico a partir do relato do professor: Guapi é um município litorâneo da Colômbia de onde se avista a Ilha de Gorgona. Essa ilha abrigava, até 1983, um presídio de se-gurança máxima, posteriormente desativado por denúncias de violação dos direitos humanos. Por sua história, foi apelidada de Ilha do Esquecimento. O presídio foi criado em um momento de crescente violência no país, principalmente nas áreas rurais, em razão das revoltas contra o governo opressor e arbitrário. Esses dados são conjugados no espetáculo, que mistura registros documentais e ficção. Os espelhamentos estão presentes o tempo todo e há, sobretudo, a presença do inimigo, como insinua a sinop-se. A mediação em vídeo de imagens reais da festa em Guapi também auxilia, como um instrumento de olhar oblíquo que se protege do afrontamento.

A Medusa morta por Perseu era chamada também de Górgona, mesmo nome da ilha-presídio, que pode ser vista desde Guapi e que se posiciona de modo especular diante do vilarejo. Mas seria possível olhar sua história de frente, sem o auxílio do espelho? Neste caso, como no mito, a visão pode ser petrificante, paralisadora. A simples negação do que é visto − reação possível diante das visões terrificantes − pode interferir no reconhecimento desse “monstro”. Para olhar e matar a Medusa é necessário o artifício. A história da ilha não figura diretamente na peça, apenas a história da Festa dos Santos Inocentes e a violência vivida na Colômbia. A ilha e o seu passado, como Medusa, não são encarados e o espelho, nesse caso, opera um ensinamento sobre a necessidade de não esquecer. Cabe lembrar do significado mais óbvio do espelhamento, que é o do próprio reconhecimento. Rever-se, ver-se, lembrar-se. A Festa dos Santos Inocentes remete aos anos de opressão do povo negro e, de uma forma carnavalesca (no sentido medieval do Carnaval, em que os papéis são invertidos), opera como uma lembrança na carne para a população de Guapi que se oferece ao chicote. Mas, no festejo, as chicotadas são desferidas por homens negros vestidos, na maioria, com saias, como mulheres. O exercício do não esquecimento é comandado pelos “oprimidos” como tirocínio necessário aos descendentes daqueles que, de fato, foram chicoteados. E, aqui, apenas a retóri-ca não dá conta desse passado. É preciso lembrar, espelhar/mimetizar, no corpo. Resta a pergunta: com quem devemos nos identificar? É esse o jogo de reflexos que permite acertar o inimigo. Enfim, tomo emprestada essa imagem para falar de alguns aspectos do programa Rumos Teatro para compartilhamento dos processos de desenvolvimento das pesquisas.

O edital do Rumos Teatro foi escrito a partir de uma experiência ampla, da qual fui convidada a participar do conselho curatorial: a realização de sete edições do Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo pelo Itaú Cultu-ral, especialmente nos últimos anos, quando o encontro passou a focar o teatro de grupo no Brasil. Percorrendo alguns centros regionais e tentando agrupar coletivos teatrais de diferentes partes do país para o debate a respeito de um teatro criado e gerido em grupo, fomos, coletivamente, delineando um possí-vel denominador para esses agrupamentos e talvez uma ideia de país que os acompanhava. O que nos aproximava e o que nos separava em nossas práticas

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poéticas e atuações políticas? A precariedade como elemento constitutivo des-sas práticas nos deu norte para buscar o que unia coletivos tão diversos. O olhar para a identidade, para o que evocava o termo “teatro de grupo”, e mesmo o que definia, a partir do interior dos coletivos, seu pertencimento a esse “tipo de fazer”, acompanhou todos os encontros.

Partimos de um alinhamento determinado por um fazer que responde às necessi-dades de sobrevivência desses grupos. E a proposição do conselho curatorial do Próximo Ato era discutir como as formas de produção adotadas e o engajamento desses artistas se refletia na produção poética, constituindo algo que não seria o fazer deste ou daquele grupo, mas um fazer do teatro de grupo. Evidentemente, vivendo todos na urgência cotidiana de suas criações, a discussão tendia a recair sobre a política cultural. Durante os encontros, diversos impulsos no sentido de sair desse debate (extremamente necessário, mas ocupante de outros fóruns já existentes) e adentrar na sala de ensaio, no espaço da troca, para compartilhar o processo das construções poéticas como elementos desse engajamento, foram elaborados e propostos. A discussão assumia o lugar da política na cena e não de uma política que atendesse à categoria.

Em 2010, o edital da primeira edição do programa Rumos Itaú Cultural Teatro foi lançado, propondo que os grupos se encontrassem em seus espaços de trabalho para uma troca mais efetiva. A troca oferece o espelho, esse primeiro a que me refiro: penso-o como o artefato de reconhecimento, como o olhar mediado para si mesmo.

Naquele momento, o programa objetivava “promover intercâmbios entre tea-tros de grupo em todas as regiões do Brasil, incentivando o convívio, a troca e o compartilhamento de formas coletivas de criação, contribuindo para seu amadu-recimento, formação e articulação no cenário cultural brasileiro”. E acrescentava a esse enunciado: “Teatro de grupo compreendido como comunidade ou coletivo artístico empenhado num mesmo projeto de caráter investigativo com práticas de pesquisa continuada. O teatro de grupo difere do teatro comercial, empresarial ou institucional”. Uma nota que, se por um lado pretende defender o edital de pos-síveis leituras oportunistas, por outro demonstra que ainda é necessário demarcar uma identidade. O empenho era, portanto, viabilizar, pela troca, um amadureci-mento e uma articulação. Ainda que fosse um texto institucional, ele trazia grafada uma expectativa real dos seus propositores: que o encontro entre dois coletivos operasse como instrumento de maturação, não apenas de seus fazeres, mas desse tipo de fazer ao qual nos referimos. O intercâmbio e o convívio assumem assim uma espécie de função associativa, empenhada no reconhecimento de semelhan-ças e pautado por uma ideia de nacionalidade, ou seja, desse teatro de grupo en-tendido no contexto brasileiro. A ideia de troca avançava para o espaço da prática, fosse de criação, de formação, de pesquisa ou de sistematização desses fazeres, e o intuito era que esse espaço de troca pragmática entre grupos viabilizasse certo despojamento, um retirar-se do foco para focar o outro, a fim de que esse olhar

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para o outro refletisse o olhar para si. E não caberia, nesse caso, apenas a retórica. Seria preciso viver o reflexo no corpo, na prática da construção poética, sob o risco do enfeitiçamento por nossa própria imagem.

O segundo espelho ao qual me refiro é o que espelha a mim como indivíduo his-tórico. É como o espelho/escudo convexo de Perseu – reflete minhas feições, mas também a Medusa e todos os heróis que restaram petrificados. É o espelho da iden-tificação e não da identidade.

Supondo que os que se encontraram naquela semana representem de certa forma o teatro de grupo no Brasil, proponho agora que olhemos o espelho de maneira mais coletiva, não grupo a grupo, mas o teatro de grupo como um ajuntamento mais am-plo. Como fazedores desse tipo de teatro, compartilhamos um horizonte que nos é dado pelas condições com que nos inserimos em um sistema de produção precário. O teatro de grupo profissional, esse do qual falamos, inexiste se não viabilizado por um sistema público de custeamento. Sendo assim, vivemos muito marginalmen-te como categoria e muito da nossa força de trabalho é usada exclusivamente em nossa tentativa de sobreviver, como artistas e como grupo. Por outro lado, sendo o teatro uma arte essencialmente pública – em especial o teatro que fazemos, que não visa lucro –, lutamos para garantir essa veiculação com as verbas públicas e nisso reside nossa força e não nossa fraqueza.

Tudo isso parece óbvio. Mas a questão que coloco é: quanto da consciência des-se lugar limítrofe que ocupamos e quanto da consciência sobre nossa arte como pública se espelha na cena que produzimos? Na quinta edição do Próximo Ato, o conselho curatorial propôs uma provocação vinda da tese-manifesto “Uma Estética da Fome” (1965), de Glauber Rocha. Nenhuma defesa de Glauber, em si, mas a utilização de sua perspicácia para pensar a cena. Segundo Glauber, por condicionamento econômico e político, chegamos a um raquitismo filosófico e nos tornamos impotentes. O resultado da impotência para ele seria, por um lado, a esterilidade e por outro a histeria. A esterilidade seria caracterizada pelos exercícios formais vazios que não alcançam, nas palavras dele, a plena possessão das formas. E a histeria apareceria de três maneiras: nos discursos inflamados, nas reduções políticas por intransigência e nos apelos paternalistas de uma arte dita popular. Para Glauber, a originalidade de uma arte brasileira (refere-se, no caso, ao cinema novo) seria “nossa fome” e a miséria dessa fome é que, embora fosse sentida, não era compreendida.

A fome, em nosso caso, aparece na cena de muitas maneiras – sendo algumas cor-respondentes à sintomatologia apontada pelo cineasta –, mas, para além do seu sur-gimento, nos resta a tarefa de sua compreensão. E como compreendê-la a não ser por sua conformação no discurso poético que produzimos? O amadurecimento da cena, desse ponto de vista, se daria pela identificação de três elementos. Primeiro, a identificação de nossa inserção social, seja como reconhecimento de nossa própria

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Foto Rubens Chiri Ciateatroautônomo

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precariedade, seja como percepção da correspondência com outros grupos sociais (talvez vislumbrássemos que o alinhamento político do teatro de grupo não se en-cerrava na viabilidade ou não de sua existência, mas na sua correspondência com um extrato social com quem compartilha a precariedade – buscamos identidade a partir de que espelho?). Segundo, na identificação de uma radicalidade poética que fuja da timidez formal que acomete algumas experiências desse teatro. E, em terceiro, como apreensão das dinâmicas sociais nefastas que modelam nosso fazer, como o vento modela a costa, sem que disso nos apercebamos.

Penso agora na Medusa e revejo aquela semana de compartilhamento. A questão é a da paralisia, da petrificação. A Medusa, nesse meu jogo metafórico, pode assumir o papel de minha própria imagem paralisadora ou das contingências reais das quais fazemos parte e que tentamos mediar na cena. No caso de minha própria imagem, retomo o paradoxo do reconhecimento de uma identidade. A identidade do grupo opera muitas vezes como um impedimento ao avanço. Isso fica muito claro nos casos em que o compartilhamento trouxe à luz uma necessidade de se afirmar em razão das expectativas, fossem elas expectativas de uma representação regional, expectativas de fazer jus a um nome construído, expectativas de ser como eu acho que o outro é. Esse anseio também pôde ser percebido em certas idealizações que um grupo faz do trabalho do outro. Em alguns casos, como se o outro fosse gêmeo a si e não influísse neste assemelhar-se às histórias, aos contextos e às conjunturas de lugares, às vezes tão distantes como Norte e Sul, floresta e litoral do país. Será que a maneira de sobreviver e se engajar tem uma só face? Também como resul-tado dessa idealização, incluo uma cordialidade excessiva, que impede uma mirada mais investigativa por um lado e gera um olhar autocontemplativo por outro (talvez pudéssemos trocar o mito de Perseu aqui pelo de Narciso). E não posso deixar de reconhecer a legítima expectativa que envolvia o compartilhamento dos resultados: os grupos em seus relatos e suas apresentações e a arena de pares, esperando reci-procamente um reflexo límpido e potente nesse encontro.

Relembro momentos em que os relatos se esmeravam para trazer aos demais gru-pos uma planificação de suas pesquisas, saindo de seu ambiente para entrar em um campo por vezes estéril de uma apresentação formal de objetivos, métodos e dificuldades, como se isso fosse ser o mais preciso e inequívoco possível. Também houve relatos que se contentaram em explanar o fazer de cada grupo, esquecendo em diversas ocasiões que o passo adiante deveria ser o “entre dois”. Mas espelho é espelho, e, vez ou outra, nos escapa da face um sinal, uma expressão, que nos repre-senta mais que tudo. Curioso como podíamos ver, mesmo que contradizendo as fa-las, os momentos em que o risco se apresentava e que o desvio pareceria mais forte. Saboreei especialmente os silêncios do encontro, como quando um grupo se atinha diante, talvez, de sua inviabilidade, de seu fim iminente ou de um desacordo interno qualquer, e ali apareciam as razões e desejos mais originais dos artistas. Como me referi, a paralisia da identidade, em nosso caso, às vezes é mais potente quando per-dida por alguns instantes. Também foram especiais os momentos de honestidade

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cortante, como quando um grupo disse do outro: éramos próximos demais e isso fez com que ultrapassássemos certos limites. Não deu, brigamos.

No caso da Medusa como metáfora para o que nos cerca, relembro experimenta-ções formais que trouxeram para o discurso poético, o que me pareceu uma espé-cie de necessidade de novos espaçamentos, fossem proximidades ou separações (quem sabe em paralelo às distâncias e às aproximações que envolviam a troca entre grupos de lugares diferentes). Espaçamentos que anunciavam uma neces-sidade de chegar ao outro, de ir até ele, de não esperar que ele viesse até si. Uma invasão de fronteira para fora do espaço protegido e idealizado do “teatro”, espe-lho convexo e não plano. Onde o que me é mais íntimo se torna público e onde o que é mais público invade minha intimidade? Mencionaria os experimentos que envolveram espaços urbanos e espaços privados ou confinados. Essa troca de lu-gares foi vivida esteticamente de várias maneiras: num elevador, num quarto de hotel televisionado, numa barraquinha para uma pessoa, mas que acolheu umas sete, num banheiro. Confidências foram para uma faixa de pedestres, vibradores para o hall de uma instituição, lençóis para um jardim. Às vezes estávamos muito longe, outras, próximos demais. Nesses novos espaços, um jogo de assumir o lugar do outro, repetir ações, imitar, falar de novo. O público ora é incitado a falar, ora é abandonado na observância – jogo de assunção de lugares. Onde você se poria? O inimigo lá – muito perto de mim e de você.

Agora, passado quase um ano, no momento desta escrita, imagino que uma de-cantação do que realmente aconteceu naquela semana intensa tenha sido ope-rada em cada um dos que dela participaram. Tenho de dizer que foi maravilhoso estarmos todos juntos – único. Mas me interessa (descontados os excessos cau-sados por uma idealização que me acomete) que esse compartilhamento tenha favorecido a formação de um substrato fértil para a continuidade de cada uma das práticas dos grupos, sejam elas ligadas aos modos de criar, sejam elas ligadas às formas de se organizar. Mas, sobretudo, que sejam elas a conjugação do que vejo no espelho sobre mim e a potência da espada de Perseu ao matar a Medusa, na cena, na minha atuação política, no meu estar coletivo. Interessa, sobretudo, o que este exercício de mirada ao espelho mobiliza como avanço crítico nas construções do discurso poético. Esta, a potência política da troca para além da real força de uma articulação nacional.

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70Foto Rubens ChiriCaixa do Elefante e PeQuod

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PARA UMA ESTÉTICA DO DESPERTAR(NOTAS PARA UMA PLATAFORMA PARA A NOVA TEMPORADA)

JOSÉ FERNANDO AZEVEDO

Para Renan Trindade e Danilo EricMas eis que o tempo é de inquietude e de melancolia; de entusiasmos nervosos que

se gastam por nada; de desesperos bruscos que quebram uma vida.[...] Porque há para todos nós um problema sério, tão sério que nos leva às vezes a

procurar meio afoitamente uma “solução”: a buscar uma regra de conduta, custe o que custar. Este problema é o medo...

[...] esse combate a todas as formas de Reação... nos ajudaria a ficar livres dele...Antonio Candido, “Plataforma da Nova Geração”

Mas aqui, onde o encontro era como uma clareira no asfalto... aqui, onde nossos corpos não substituem outros corpos, era de outra ordem o vínculo que imaginávamos:

era mais que vínculo – poderíamos dizer: era uma aliança. Levamos tempo demais para entender que a cena era um apelo. Levamos tempo demais ensaiando aproxi-

mações, com medo das distâncias, e sequer percebemos a conversão do tempo e essa presença tão intimamente odiada do medo. Adiamos como quem desafia o acaso,

como se a cada abrir de olhos pudéssemos reordenar os fatos. Com um ímpeto infantil de encurtar caminhos, desviando sempre. Mas não há desvio que não nos devolva

àquilo que somos. Não se trata de falar como quem desenha labirintos, mas forjar, no choque das palavras, outros encontros: com quantas vozes se faz um coro? Não há,

no tempo que é nosso, mais do que somos. Não há, nas esperas que vivemos, mais do que queremos. Não há, no tempo que virá, mais do que fizemos...

Teatro de Narradores, trecho de “Cidade Fim”

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I

Uma operação ideológica sem precedentes está ocorrendo no Brasil, uma espécie de mutação social e mesmo antropológica e cultural. A julgar pelos jornais e por certa “crítica”, toda uma classe, em menos de uma década, desapareceu. Ope-rários, trabalhadores das mais diversas categorias e seus filhos foram, por assim dizer, abduzidos pela “nova classe média brasileira”, e esta seria a grande novidade de uma sociedade sempre à espera do futuro. O fundo falso dessa operação é a própria nota estatística, que revela o absurdo da conta. O fato é que uma espécie de conversão imaginativa se opera no seio da sociedade brasileira, de modo que pensar assim, a partir dessa novidade – a considerar o significado da classe média entre nós, aqui em São Paulo em particular (plataforma de onde falo), mas não apenas, é certo –, não deixa de configurar uma reação. Vivemos um tempo de reação. Estamos todos em perigo.

Em meio a tudo isso, o oxi do otimismo social entorpece o sentido do combate, e uma espécie de pesadelo abarca a vida social do país. Para o teatro dos grupos, a questão não é sem importância, tanto mais que sua tendência tem sido ir de encon-tro a esse movimento.

Nesse sentido, já não basta repetir como bordão o clichê fundador segundo o qual o teatro é encontro, nem mesmo entoar o mantra característico de certa fenomenolo-gia da cena e sua metafísica das presenças, segundo a qual o teatro não é uma, mas duas atividades – fazer/ver;1 ideias que têm servido para as mais fundas mistificações e que, não sendo falsas, servem todavia à dissimulação da impotência diante de uma exigência cada vez mais incontornável: para além do consumo de formas ou da vivência mística do outro, o teatro se impõe como uma espécie de comunidade imaginada2 que se quer efetiva. Não se trata de retomar o mito da comunidade per-dida; longe de qualquer utopia regressiva, a expressão aqui designa antes um tipo de aliança, ou mesmo a capacidade de imaginá-la.

II

A cena dos grupos fez, nos últimos 15 anos, a crônica do desmanche sociopolítico-econômico-cultural empreendido de maneira programática desde o final dos anos 1980. Paralelamente a isso, a sociedade fazia uma espécie de conversão. O primeiro movimento levou os grupos a projetarem um vínculo de imaginação com a parte da sociedade interessada na transformação social, em muitos casos, pressupondo esse campo sem ter dele a experiência efetiva. Dos grupos então se exigia clareza de posição, uma vez que o passo seguinte deveria implicar radicalização. Do que se vê, a radicalização não veio, ou veio imaginária e estetizada, ou parcial e tomada por um esquerdismo localizado, ou deflagrada em consequência do movimento anterior, mas movida por um ressentimento cifrado na falsa oposição centro-periferia.

1. Por exemplo, Denis Guénoun, O Teatro É Ne-

cessário? Trad. Fátima Saadi. São Paulo: Editora

Perspectiva, 2004.

2. Faço aqui um uso remanejado do conceito ela-

borado por Benedict Anderson, Comunidades

Imaginadas: Reflexões sobre a Origem e a Difu-

são dos Nacionalismos. Trad. Denise Bottman.

São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Foto Rubens Chiri Cia. Irmãos Guimarães

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Ocorre que, precisamente aí, um dado surpreendente e talvez novo se produziu. Os grupos, que por susto ou inércia, ou as duas coisas, pareciam estar um passo atrás – em parte recuo, em parte compasso de espera –, veem converter essa posi-ção numa plataforma insuspeitada de trabalho. E em que consiste essa plataforma? Ali, onde a cena dos grupos parece ir na contramão do estado geral da sociedade integrada à felicidade a crédito; ali, onde a cena dos grupos continua a desenhar a fisionomia mórbida de um processo em fim de linha e a contabilizar as promessas não cumpridas – é precisamente ali que o teatro de grupo preserva sua atualidade. E isso porque essa cena permanece descrevendo a realidade como um sonho ruim do qual precisamos acordar.

O resultado, portanto, é um desencontro histórico entre a cena e o “público”.

III

Em 1974, Vianinha falava da necessidade de olhar no olho da tragédia e dominá-la.3 A sua fala vinha como uma “revisão crítica” do empenho dos anos imediatamente anteriores ao golpe, em particular a ação de núcleos como o Centro Popular de Cultura, o CPC. Mesmo em divergência prática e teórica em relação àquela revisão, não se pode negar a força da intuição de Vianinha: se no período pré-golpe de 1964, dez anos antes, o encontro ou o contato entre as classes definia o campo próprio de ação e a potência da imaginação política, os dez primeiros anos da ditadura militar fizeram já esvaziar o sentido de ideias como “o povo”, ou “o popular”, de modo que ao artista era colocada a tarefa de redirecionar sua ação. Mesmo sem entrar aqui numa discussão sobre a questão do popular e sua eventual atualidade, interessa ain-da considerar a percepção de que o movimento da sociedade brasileira sempre foi oposto à direção daquele encontro entre as classes. Com efeito, o teatro, em seus momentos de inflexão à esquerda, sempre se pôs na contramão do alinhamento social, vislumbrando com isso alianças com campos específicos em luta.

A tragédia para Vianinha era o subdesenvolvimento. Quase 40 anos depois, como explicita Roberto Schwarz, somos hoje uma “sociedade que já não é sub-desenvolvida, não porque se desenvolveu, mas porque deixou de ser tensionada pelo salto desenvolvimentista; e que não é desenvolvida, pois continua aquém da integração social civilizada”.4

No Ato I de sua Ópera dos Vivos, intitulado “Sociedade Mortuária: uma Peça Cam-ponesa”, a Companhia do Latão (SP) conquista uma espécie de vitória da imagina-ção. Em cena, um grupo de teatro ensaia uma peça em que vem ao primeiro plano o processo de formação das Ligas Camponesas. A vitória está na capacidade que o grupo tem de imaginar o teor de um encontro – o encontro entre intelectuais, artistas e, no caso, os camponeses –, impulso que foi o emblema de uma época; processo violentamente interrompido.

3. Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), “Entrevista

a Luis Werneck Vianna”, “Entrevista a Ivo Car-

doso”. Em: Teatro, Televisão, Política: Artigos,

Entrevistas e Textos Inéditos. Seleção, organi-

zação e notas de Fernando Peixoto. São Paulo:

Brasiliense, 1999.

4. Roberto Schwarz, “Agregados Antigos e Mo-

dernos”. Em: Martinha Versus Lucrécia. São

Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 174.

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NARRADORA – O teatro está em obras.Os atores encenam uma peça sobre conflitos no campo.Estudam o tema da arte do passado à procura do próprio tempo.

[...]

NARRADOR – Os atores procuram um realismo que seja ruptura. Discutem se é possível imitar um mundo que desmorona. Experimentam com formas populares e descobrem novas relações de trabalho em arte.5

Um novo programa, agora, traz inescapavelmente à ordem do dia a necessidade de produzir novos encontros.

IV

Se ainda falamos de encontro, trata-se de um encontro político mediado pela inter-rogação poética materialmente elaborada.

O teatro é uma prática e, enquanto tal, sua realidade é a de uma produção. Aquele ver e aquele fazer conformam relações de produção, de modo que o estágio do “consumo” (ver um espetáculo), quando criticamente projetado, subverte-se em novo estágio de produção. Foi com Brecht que compreendemos: “pela contradição que é constitutiva da mediação do capital, no mesmo movimento em que o fluxo da produção industrial se universaliza, ganhando valor determinante, ele universaliza também a separação. Vale dizer: no mesmo passo em que se impõe a produção como condição inescapável para o trabalho da obra, impõe-se, contraditoriamente, também a separação entre produção e consumo, criando-se no fluxo da produção a ilhota de não produção, [...] para a esfera artística [...]: ‘Não há direitos fora da pro-dução’. [...] Se produzir torna-se condição para o próprio conhecimento, o exercício pro-dutivo, inescapável, deve necessariamente processar-se, assim, como enfrentamento contínuo da separação entre produção e consumo. [...] Se a luta pelo ultrapassamento da dicotomia produção-consumo se fará [...] na direção predominante de um au-mento do fluxo produtivo, o empuxo mesmo nesse rumo implicará fazer passarem um no outro produção e consumo [...]”.6

V

No campo da política, trata-se de um programa antimimético ou, se quisermos, de um programa de esquerda. Como escreve Beatriz Sarlo: “Uma esquerda é, por defi-nição, antimimética. E uso a palavra para afastar-me de todas as práticas de mimese que hoje caracterizam a política: as pesquisas, a construção de uma opinião pública que reproduza as condições existentes, o alinhamento político, conservador, a todos os medos sociais, a aquiescência automática diante das relações de poder estabe-

5. Trecho de Ópera dos Vivos, “Sociedade Mortu-

ária: uma Peça Camponesa”.

6. José Antonio Pasta, Trabalho de Brecht: Bre-

ve Introdução ao Estudo de uma Classicidade

Contemporânea. São Paulo: Editora Ática, pp.

222-223.

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Foto Rubens Chiri Cia. dos Atores e Os Fofos Encenam

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lecidas. Ser hoje de esquerda é intervir no espaço público e na política. É refutar os pactos miméticos. É negar os acordos de cumplicidade e de resignação”.7

No campo teatral: é preciso devolver ao teatro sua capacidade de ser teatro. A ênfase no processo – na produção – não nos salva, mas impõe exigências. Agora, já não se trata de reproduzir processos, mas de torná-los visíveis em sua totalidade. “A totalidade remete não a um modelo teórico, abstrato e formal, mas a uma realidade histórica em construção. Ela é um processo contínuo. O sujeito que faz questão de ‘construir’ teoricamente essa totalidade é ele próprio um momento desse processo: dele participa plenamente. Daí um princípio fundamental que separa radicalmente o procedimento dialético de qualquer outra forma de pensamento, a saber, a impos-sibilidade de ter um olhar externo em relação à totalidade”.8

VI

A cena dos grupos tem oscilado entre o luto e a melancolia. Bastaria repassar alguns títulos das últimas temporadas em São Paulo para intuir o movimento: Quem Não Sabe Mais Quem É, O que É e Onde Está, Precisa se Mexer (2009) e Barafonda (2012), da Companhia São Jorge de Variedades; Êxodos – o Eclipse da Terra (2010) ou A Saga Musical de Cecília desde Priscas Eras Até os Dias de Hoje no Pedaço de Terra Dividida que Carrega o seu Santo Nome (2012), do Grupo Folias; de Nonada (2006) a Enxurro (2011), da Companhia do Feijão; Ópera dos Vivos (I – Sociedade Mortuária: uma Peça Camponesa, II – Cinema, Tempo Morto: um Filme sobre o Gol-pe, III – Música Popular, Privilégio dos Mortos, IV – Televisão, Morrer de Pé) (2011), da Companhia do Latão; Orfeu Mestiço, uma Hip-Hópera (2011), do Núcleo Bartolo-meu de Depoimentos; Marcha para Zenturo (2010), parceria entre o paulista XIX e o mineiro Espanca!; Cidade Desmanche (2009) e ainda Cidade Fim Cidade Coro Cidade Reverso (2011), do Teatro de Narradores – são apenas alguns dos títulos que não escondem as marcas do processo. Entre o luto e a melancolia, crônica de um percurso na desagregação, a cena depõe sobre limites e dificuldades de projeção, configurando um tempo de impasse.

Mas, se há o trabalho de luto, a ele deve somar-se o esforço do despertar.

VII

Por um lado, em alguns casos, pode tratar-se de simples recuo, quando não, uma fixação pela imagem já ultrapassada de um país desmanchado. Por outro, e este, sem dúvida, o caso que interessa, talvez se desenhe aí a plataforma para a crítica efetiva de uma sociedade que sempre esteve no futuro, não porque trazia em seu funcionamento as marcas de uma felicidade nova e cabocla, mas porque nunca sou-be esconder a fisionomia real do progresso e da modernidade – dissimulados em liberalismo e democracia na metrópole do capitalismo. Esse encontro marcado com

8. Michel Löwy e Sami Naïr, Lucien Goldmann: ou

a Dialética da Totalidade. Trad. Wanda Caldeira

Brant. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 23.

7. Beatriz Sarlo, “Contra as Mimeses: Esquerda

Cultural, Esquerda Política”. Em: Tempo Pre-

sente: Notas sobre a Mudança de uma Cultura.

Trad. Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José

Olympio, 2005, p. 236.

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a verdade, tudo indica, nunca esteve tão próximo. E o teatro dos grupos, a julgar pela cena que produz, intuiu os termos desse encontro.

Por isso, entre tantas outras razões, não nos interessa mais certa historiografia que ten-de a abordar a trajetória do teatro brasileiro na chave dos ciclos e seus turning points: o espetáculo da vida das companhias, dos grupos dos anos 1960, dos grupos dos anos 1970, da década do diretor, da retomada dos grupos... O outro lado dessa história é que cada um desses momentos cifra uma inflexão no interior de um processo que, pelo menos desde 1948, se faz constante e agravado: um esforço de modernização e simultânea integração da cena local a um circuito mundial. As viradas ou interrupções foram sempre determinadas por transformações produtivas (na sociedade, no teatro).

O que talvez devamos de uma vez por todas ressaltar é que o “teatro brasileiro moderno” já nasce mundial, precisamente porque é moderno. Nosso teatro, ali-ás, “galho secundário” desde a origem, já nasce mundial e moderno naquilo que apropria e empenha. Mesmo se o parâmetro histórico é o romantismo, não será menor e menos importante o fato da apropriação deslocada de formas e proce-dimentos e o esforço de ajustar o foco face ao “assunto nacional”. Quase dois séculos depois, continuamos levados pela mesma oscilação, em tudo ideológica, entre um certo cosmopolitismo sempre renovado, de um lado, e, de outro, um empenho por inscrever-se nas nossas contradições, nem sempre com escuta para o significado efetivo destas.

Moderno, “mundial”, esse teatro é também o depositário de impasses modernos e mundiais. A cena dos grupos entranhou sua “modernidade” num espaço vazio, cuja certidão de nascimento, se não cifrou um desencontro, cifrou, no entanto, os termos de um encontro adiado.

Um exemplo nessa trajetória é o capítulo da escravidão. Sendo um país de escravos, o público não estava ali, à frente, mas a ser socialmente inventado – e, com isso, a cena se convertia em vitrine a refletir os anseios de cosmopolitismo e a fisionomia cínica da classe de mando no país. Recentemente, os grupos têm se esforçado para reelaborar essa história: assim, a escravidão entre nós – que é um arcaísmo e uma re-gressão – foi também a fisionomia mais crua e dura da modernidade europeia – seu pressuposto e garantia, já que sem esse “atraso” na colônia não existiria o “avanço” da metrópole, duas faces de uma mesma moeda.

Mais uma vez, a Companhia do Latão deu forma àquele adiamento, em cenas anto-lógicas de seu O Nome do Sujeito (1999), intuição primeira de elaborações cênicas que atravessariam a cena dos grupos na primeira década do século. Essa cena, em seus melhores momentos nos últimos 15 anos, tem sublinhado as linhas desse pro-cesso, num trabalho de formalização radical de nossa formação supressiva (para usar a expressão crítica de José Antonio Pasta). Um caso exemplar nessa direção é o Frátria Amada Brasil (2006), do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP).

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VIII

Mas, no momento, é na chave da circulação que essa “modernidade” parece se con-firmar – situação da qual os projetos bilaterais têm sido a maior expressão. Esse talvez seja o outro lado de um processo que se vai definindo entre nós. Desde o final da última década do século passado, os grupos têm vivido um acelerado processo de sedimentação de práticas, de tal modo que, na falta de um processo maior que as abarcasse, tais práticas acabaram por conformar um campo, por assim dizer. Há, hoje, um campo teatral que se define pela reposição mais ou menos continuada de meios, formas e procedimentos. A dimensão corporativa se afirmou. O ponto que interessa é que, apesar disso, e por ser o teatro uma arte que se quer pública, os encontros nem sempre são marcados. E mesmo alguns desses encontros se dão por conta de um impulso que vai na contramão da rua de mão única que é a via da arte no Brasil. Essa já era a tensão interna a um movimento como o Redemoinho, morto por falência múl-tipla dos órgãos, em março de 2009, dividido entre duas perspectivas: uma, afirmar-se como uma rede de espaços de criação, compartilhamento e pesquisa teatral; outra, um movimento de grupos de teatro afirmando-se como “teatro de grupo”. Neste últi-mo caso, “teatro de grupo” designaria a política dos grupos. O que restou? Em parte, o teatro de um mundo reiterativo, cifrado no plano da circulação – mesmo que de formas e procedimentos.

IX

Já Acordei que Sonhava (2003), também do Núcleo Bartolomeu de Depoimen-tos, elaborava para nós o teor sinistro de um sonho do qual não sabíamos acordar. A projeção do príncipe a um campo novo da sociedade, como uma aposta, mo-bilizava nossa imaginação no sentido de uma vinculação que resistia à estetização – tão potente no caso, face ao encontro programado entre teatro e hip-hop.

Mas foi certamente Amores Surdos (2006), do Espanca!, o espetáculo que, se não trouxe mais claramente o sentido desse sonho, ao menos flagrou as idas e vindas de seu movimento. A figura de um narrador sonâmbulo cuja narrativa emoldurava a cena fazia a alegoria de um desejo de despertar, quando ao final a cena era tomada pela lama espessa de uma história que insiste em atravessar o sonho, impondo ao corpo que sonha sobressaltos, espasmos de olhos abertos que não se confundem com acordar:

JOAQUIM: Boa noite. Obrigado por terem vindo. Desculpem começar assim, cortando o sonho de vocês, mas para que tanto suspense? Todas as histórias do mundo já foram contadas.

Essa é só mais uma história de uma família comum, que toma café, em que um briga com o outro, em que um adoece, enfim: com nossos problemas cotidianos. No começo, o telefone vai tocar, porque meu irmão, que mora longe, está com mui-

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tas saudades de nós. Depois nós vamos ficar aqui, convivendo com nossos hábitos particulares; até que, no final, o telefone vai tocar novamente, nós vamos atender e receber a notícia de que meu irmão se suicidou. A nossa história é essa.

Vocês são grandes, eu sou grande, ninguém aqui é pequeno... todo mundo aqui sabe onde está. Todos sabem que amanhã eu vou repetir as mesmas coisas que eu estou falando agora. Todos sabem que amanhã eu vou entrar nesse lugar e dizer:

Boa noite. Obrigado por terem vindo, mas todas as histórias do mundo já foram contadas... Essa é só mais uma história de uma família, assim como a de vocês. No começo, o telefone vai tocar, porque meu irmão está com muitas saudades de nós, depois nós faremos algumas coisinhas comuns do dia a dia de uma família, até que, no final, o telefone vai tocar novamente, nós vamos atender e receber a notícia de que meu irmão se suicidou. A nossa história é essa.

É isso: todas as histórias do mundo já foram contadas... Vocês sabem: em algu-ma hora, um telefone vai tocar aqui, algumas pessoas vão pensar: “nossa, que falta de educação deixar o telefone ligado!”. Aí o dono ou vai desligar seu tele-fone para ser fiel à educação que sua família lhe deu, ou vai, sem culpa, atender, falando baixo: “Oi, tô em outra realidade! Depois te ligo!”. Alguns de nós vão pensar: “será que desliguei meu telefone?”. E nós vamos continuar nossa histó-ria, nossos dias comuns... Para alguns esta história vai se passar rapidamente, para outros ela pode demorar, sua vida inteira.

No final, haverá aplausos. Minha família vai abrir as portas desse lugar para que vocês possam continuar suas vidas, continuar regando suas plantas, continuar criando seus animais de estimação...

(Corre os olhos pela plateia.)

Meus avós disseram que viriam hoje aqui...

Tenho certeza que ao final, durante os aplausos, eles vão se levantar, fixar o olhar em mim, olhar para minhas roupas para ver se estou bem, fazendo ques-tão de mostrar que estão aqui, presentes, que fazem parte de mim, que não importa esses outros que estão aplaudindo e sim a “nossa ligação”, que me querem bem, apesar de qualquer coisa, apesar de qualquer porta que não te-nham aberto para mim.

Nós vamos colocar uma música para que vocês saiam daqui com uma sensação agradável. Nós aqui temos o hábito de colocar uma música para suportar a rotina, preencher o silêncio com competência e ajudar a expressar nossos sentimentos.

Com música tudo é mais fácil.9

9. Texto de Grace Passô, dramaturgia elaborada

no processo de criação do espetáculo do grupo

Espanca!. Belo Horizonte, maio de 2009, não

publicado.

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Foto Rubens Chiri Clowns de Shakespeare e Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz

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X

Num encontro promovido pelo Tablado de Arruar (SP), em 2008, sobre as relações entre o teatro e a cidade, Reinaldo Maia10 falava algo mais ou menos assim: a gen-te se trata mal! Falta entre nós afeto político! Afeto político não é condescendência compassiva de comunidade eclesial de base, não! Afeto político: eu tenho de saber quem é a minha história.11 Quem conheceu o Maia reconhece o tom, mas pode es-tranhar o tema. Ao menos o modo como o enunciara. Mas a questão parece cen-tral. Esquecemos cedo demais. Entre as gerações de grupos houve, por assim dizer, transições canceladas, de modo que o teor próprio de um movimento como o Arte Contra Barbárie12 não é assimilado senão de forma mítica. E isso porque esquecemos o sentido daquele encontro que foi o movimento. É, sem dúvida, sinal de um tempo, por exemplo, uma plenária que efetive um encontro de gerações (as do Arte Contra Barbárie juntavam gente como José Renato Pécora,13 Fernando Peixoto,14 César Viei-ra,15 Ilo Krugli,16 Eduardo Tolentino,17 Luíz Carlos Moreira18 e o próprio Maia para citar alguns e já indicar o atravessamento de décadas, além de toda a “galera nova” que chegava e ia se formando), num processo mais que acelerado de formação política. A questão era essa: o encontro como formação política. O grupo implicava então um duplo movimento: internamente, formação estética, no confronto diário com meios e formas de produção; externamente, formação política, um abrir-se ao aprendizado de uma luta que se revelava eficaz na medida em que alimentava o trabalho em sala de ensaio. Foi da imbricação desses movimentos que se produziu o melhor da cena naqueles anos. Houve, por assim dizer, naquele momento, uma aposta tácita: as vozes em cena deveriam dar corpo às posições públicas, não como mera transposição, mas como mediação para novas formas, novas percepções. Estavam aí muitas de nossas contradições. Mas, ainda assim, era uma aposta clara. A Oresteia – o Canto do Bode (2007), do Folias, talvez seja o último capítulo desse processo.

Essa experiência do encontro trazia consigo um aspecto decisivo. Não se tratava naquele momento de um “mero” caso de “troca estética”, mas, efetivamente, de um processo de formação. Uma dimensão esvaziada: agora, há como que uma ansieda-de por essa troca estética, mas se negligencia o fato de que ela só acontece como consequência de um encontro anterior. Quando dois ou mais grupos se encontram há, ou deveria haver, a ampliação de um campo público de pensamento e criação – a não ser que se entenda a sala de ensaio como um espaço íntimo, privado: mais que um mero compartilhamento, deveria ser já uma intervenção.

XI

Em São Paulo, entre 2008 e 2009, alguns grupos se encontraram quase semanal-mente, cada vez numa sede, para compartilhar ideias, conversar sobre os espetá-culos, as dificuldades e, de uma maneira mais aberta, visitar a “cozinha” do outro (a expressão era do Marco Antônio Rodrigues19 e isso, em geral, acontecia literalmen-te). Encontros para jantares coletivos depois dos espetáculos ou às vezes em ma-

10. Dramaturgo, diretor e ator, um dos fundadores

do Grupo Folias (SP), foi um dos articuladores

do Movimento Arte Contra Barbárie, partici-

pou da redação da lei de fomento e integrou o

conselho nacional do Redemoinho; faleceu em

abril de 2009.

11. Tablado de Arruar, Teatro sobre a Cidade: Deba-

tes e Conversas 2005-2009. São Paulo: Hedra,

2010, p. 94.

12. Movimento surgido a partir do lançamento de

um manifesto com o mesmo nome, em 1999,

articulado por artistas e grupos de teatro da ci-

dade de São Paulo.

13. Diretor e ator, fundador do Teatro de Arena

(SP), em 1953. Faleceu em maio de 2011.

14. Ator, tradutor, escritor e diretor, esteve ligado

ao Teatro Oficina (SP) nos anos 1960.

15. Nome adotado por Idibal Piveta durante a dita-

dura, quando, como advogado, defendeu pre-

sos políticos. É diretor e dramaturgo, fundador

integrante do grupo Teatro União e Olho Vivo,

Tuov (SP), atuante desde 1969.

16. Diretor, dramaturgo e ator do grupo Teatro

Vento Forte (SP).

17. Diretor do grupo Tapa, fundado em 1979 no Rio

de Janeiro, e que migrou para São Paulo em 1986.

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nhãs de domingos, para cafés. Os grupos puseram-se a rever trajetórias e a refletir sobre o que vínhamos fazendo, sobre o estágio em que nos encontrávamos, para muitos já um limite. Mas a percepção mais interessante ali foi a seguinte: o trabalho dos grupos tornou-se, sem dúvida, uma referência; é possível que alguém nascido em 1990 não tenha visto mais que espetáculos de grupos. Ocorre que um aspecto desse trabalho ressaltava aos olhos. Em meio a experimentações dramatúrgicas e remanejamentos do trabalho de encenação, essa trajetória dos grupos acabou por se definir numa fisionomia nova da cena, cifrada, sem dúvida, na figura do ator. O ator não como a estrela, nem mesmo o mito do ator como o elemento último do teatro, mas o ator como um mediador.

Dos anos de aprendizado dos grupos – que em São Paulo, para a maior parte desses grupos, surgidos desde o final dos anos 1990, coincidiu com os anos de implantação da lei de fomento – resultou a formação de uma geração de atores definitivamente significativa. E em que consiste o trabalho desse ator mediador? Ele é o portador não apenas de uma identidade poética, mas sua voz tende a definir a fisionomia de uma fala, é coro. Aí, a evidência de que os processos de criação são processos emi-nentemente públicos, processos de formação explicitados no corpo presente desse portador que é o ator.

XII

Esboços de uma plataforma para uma nova temporada que, tudo indica, ainda será no inferno? Sem dúvida, a pergunta formulada cenicamente em 2009, pela Com-panhia São Jorge, se politicamente dimensionada nestes tempos em que ameaça a reação, permanece.

Um núcleo incandescente. Porque a pergunta que quero fazer agora e que muito me agrada saber é a seguinte: nestes tempos em franco declínio, em que estamos nos suicidando sem perceber, haverá um núcleo de homens capazes de impor algo superior? Um núcleo forte, e não só forte, mas um núcleo que se pulverize, que se amplie, que se expanda... um grupo que, poeticamente falando, se polinize.20

XIII

“Os primeiros estímulos do despertar aprofundam o sono.”

“O despertar iminente é como o cavalo de madeira dos gregos na Troia dos sonhos.”21

20. Trecho de Quem Não Sabe Mais Quem É, o

que É e Onde Está, Precisa se Mexer, da Com-

panhia São Jorge de Variedades, a partir de

textos de Heiner Müller, 2009.

18. Diretor e dramaturgo do grupo Engenho Te-

atral, fundado em 1979 (inicialmente com o

nome Apoena).

19. Diretor teatral, articulador do movimento Arte

Contra Barbárie e do Redemoinho, foi um dos

fundadores do grupo Folias, do qual afastou-se

em 2010.

21. Walter Benjamin, Passagens. Org. da edição

brasileira Willi Bolle, trad. Irene Aron e outros.

Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/Imprensa

Oficial, pp. 436-437.

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POLÍTICAS DO FLUIDO, HÍBRIDO E FLEXÍVELEVITANDO FALSOS PROBLEMAS

SUELY ROLNIK

Cartografias culturais mistas de toda espécie vêm sendo traçadas, ao mesmo tempo que a complexa criação dos novos territórios existenciais, que se fazem e se desfazem no mundo irreversivelmente globalizado. Perguntar-se se universos marcados pela hibridação, pela flexibilidade e pela fluidez devem ser recusados ou celebrados é falso problema: estes apenas caracterizam nossa realidade atu-al, que, como toda forma de realidade, se produz no embate entre as diferentes políticas de sua(s) construção(ões). É disso que pretendo tratar aqui, percorren-do a trajetória dessa questão em meu próprio trabalho, no qual ela aparece nos anos 1980, com a formulação do conceito de subjetividade antropofágica – ins-pirado, em parte, no movimento modernista.1 Evidentemente, minha intenção, aqui, não é falar sobre “meu” trabalho, mas, sim, de como esse estado de coisas apresenta-se em meu corpo e o inquieta, obrigando-me a enfrentá-lo e torná-lo sensível dentro dos limites do que posso.

Desde então, venho retomando e reelaborando este conceito – evidentemente, não para “corrigi-lo”, mas para dar voz à singularidade do processo que o con-voca e o constitui mais uma vez –, em função do contexto em que ele volta a ser operatório. Suas reaparições mais recentes foram mobilizadas pelo cenário da arte contemporânea que, a partir de meados dos anos 1990, tornou-se uma arena privilegiada de confronto entre as forças que delineiam a(s) cartografia(s) do presente transnacional.

ENTALHA-SE O OUTRO NA CARNE

A noção de antropofagia proposta pelos modernistas remete originalmente, como sabemos, a uma prática dos índios Tupinambás:2 um complexo ritual de morte e devoração dos inimigos, cativos de guerra. O que em geral não sabe-mos, a não ser que estejamos familiarizados com os estudos antropológicos, é que esse ritual podia durar meses e até anos, sendo o canibalismo apenas uma de suas etapas – a única (ou quase única) registrada no imaginário ocidental, provavelmente pelo horror que terá causado ao colonizador europeu. Embora,

3. Assim os autores descrevem o ritual: “Um prisio-

neiro, após ter vivido alguns meses ou até alguns

anos entre seus captores, era abatido em praça

pública. Decorado de plumas e pintado, travava

com seu matador, também paramentado, diálo-

gos cheios de arrogância [...] Deveria ser ideal-

mente morto com uma só pancada de Ibirape-

ma, que lhe deveria esfacelar o crânio”. Depois

disso, é que se devorava seu corpo seguindo um

rigoroso ritual de distribuição de suas partes, e

o matador retirava-se para seu resguardo. (Cf.

Manuela L. Carneiro da Cunha e Eduardo B.

Viveiros de Castro, “Vingança e Temporalidade:

os Tupinambás”. Em: Anuário Antropofágico 85,

1986. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro.)

2. A designação de Tupinambá recobre uma

grande variedade de grupos indígenas que ha-

bitavam o vasto território do qual apropriou-se a

colonização portuguesa, nele “fundando”o Brasil.

1. A forte singularidade do movimento antropofá-

gico no contexto internacional do modernismo

ainda é relativamente ignorada fora do Brasil. O

Manifesto Antropófago, lançado em 1928, escri-

to por Oswald de Andrade – poeta, autor tea-

tral e romancista experimental – é a referência

mais conhecida do movimento.

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mais curiosamente ainda, esta também tenha sido privilegiada pelos modernistas na construção de seu argumento, uma outra etapa, descrita e pensada por Vi-veiros de Castro, parece fornecer uma chave importante para as questões que pretendo abrir aqui. Segundo o autor, após ter sido capturado, o prisioneiro era entregue às mulheres da tribo e com elas permanecia por alguns meses ou até alguns anos. Mas o prisioneiro não era maltratado pelas mulheres; pelo contrário, conviviam amistosa e divertidamente. Ao longo desse período, elas iam prepa-rando e decorando o ibirapema, bastão de madeira com o qual ele seria morto. No dia da execução, toda a tribo reunia-se na praça pública. Levado para a praça, “decorado de plumas e pintado, o prisioneiro travava com seu matador, também paramentado, diálogos cheios de arrogância [...]. Tinha que ser idealmente morto com uma só pancada de ibirapema, que lhe deveria esfacelar o crânio”. Depois disso, é que se devorava seu corpo seguindo um rigoroso ritual de distribuição de suas partes, e o matador retirava-se para seu resguardo. Aqui vem o ponto que mais nos interessa: “após ter matado o inimigo, o executor mudava de nome e era marcado por escarificações em seu corpo durante um prolongado e rigoroso resguardo”.3 E assim, com o decorrer do tempo, nomes iam se acumulando, a cada incorporação do confronto com um novo inimigo, acompanhados de seus respectivos desenhos entalhados na carne: e, quanto mais nomes gravados em seu corpo, mais prestigiado seu portador. A existência do outro − não um, mas muitos e diversos – era assim inscrita na memória do corpo, produzindo impre-visíveis devires da subjetividade. Não por acaso, o único aspecto de sua cultura que os Tupinambás recusaram-se ferozmente a abandonar foi a antropofagia:4 esse ritual de iniciação ao fora e ao princípio heterogenético da produção de si e do mundo que ele implica. Mantê-lo a qualquer custo – não seria uma forma de exorcizar o perigo de contágio pelo princípio identitário e a dissociação do corpo que o caracteriza, o qual regia a subjetividade e a cultura do colonizador?

Ao propor a ideia de antropofagia, a vanguarda do modernismo brasileiro extra-pola a literalidade da cerimônia indígena para dela extrair a fórmula ética da exis-tência de uma incontornável alteridade em nós mesmos que preside esse ritual e fazê-la migrar para o terreno da cultura. Com esse gesto, a presença atuante desta fórmula num modo de criação cultural praticado no Brasil, desde sua fun-dação, ganha visibilidade e se afirma como valor: a devoração crítica e irreverente do outro sempre múltiplo e variável. E, se agregarmos à fórmula modernista o que nos indica a etapa do ritual indígena antes mencionada, definiríamos a mi-cropolítica cultural antropofágica como um processo contínuo de singularização, resultante da composição de partículas de inúmeros outros devorados e do dia-grama mutável em função de suas marcas na memória do corpo. O mais óbvio é entendê-lo como uma resposta poética − e com sarcástico humor – à necessi-dade de afrontar a presença impositiva das culturas colonizadoras (o que torna patético seu mimetismo deslumbrado pela intelligentzia local); mas, na verdade, é também e talvez, sobretudo, uma resposta à exigência de assumir e positivar o processo de hibridação trazido por sucessivas ondas de imigração que configura, desde sempre, a experiência vivida no país.5

4.Segundo os mesmos autores, os portugueses

queriam usar a prática de captura de inimigos

para fazer escravos, mas os índios resistiam.

Quando não dava para escapar às ordens dos

colonizadores, eles preferiam oferecer-lhes

seus familiares para a escravidão, em vez de

entregar-lhes seus inimigos e abrir mão do ritu-

al antropofágico, com a matança em terreiro e

suas demais etapas.

5. Assim o descreve o antropólogo brasileiro

Darcy Ribeiro: “A colonização no Brasil se fez

como esforço persistente de implantar aqui

uma europeidade adaptada nesses trópicos e

encarnada nessas mestiçagens. Mas esbarrou,

sempre, com a resistência birrenta da natureza e

com os caprichos da história, que nos fez a nós

mesmos, apesar daqueles desígnios, tal qual

somos, tão opostos a branquitudes e civilida-

des, tão interiorizadamente deseuropeus como

desíndios e desafros”. (Em: O Povo Brasileiro.

A Formação e ou Sentido do Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1995.)

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Foto Rubens Chiri Será o Benidito?!

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S U E LY RO L N I K

KNOW-HOW ANTROPOFÁGICO

Nos anos 1960 e 1970 culmina, em vários países do Ocidente, um longo processo de absorção e capilarização das invenções do modernismo: estas transbordam o território restrito das vanguardas artísticas e culturais e tomam vulto numa ampla e ousada experimentação cultural e existencial de toda uma geração, no contexto do movimento que se designou “contracultura”. Este consistiu numa reação epidérmica à sociedade disciplinar, que acompanha o capitalismo industrial, com sua subjetivi-dade e cultura identitárias, que compunham a figura do assim chamado burguês em sua versão hollywoodiana do pós-guerra.

Assim, também no Brasil, reatualizou-se, naquele período, o ideário antropofá-gico da vanguarda local. Reavivado e transfigurado, este foi um aspecto crucial da originalidade desse movimento no país em diferentes campos da cultura. Isso dava aos brasileiros um certo know-how para a experimentação de outras políticas de subjetivação, de relação com o outro e de criação que se buscava internacionalmente na contracultura.

Foi certamente meu intenso envolvimento com a experiência contracultural, e a necessidade de atualizá-la em conceito de modo a integrá-la à cartografia do pre-sente, o que me levou alguns anos depois a conceber a noção de “subjetividade antropofágica”. Assim, eu a descreveria em linhas gerais: a ausência de identifi-cação absoluta e estável com qualquer repertório e a inexistência de obediência cega a qualquer regra estabelecida, gerando uma plasticidade de contornos da subjetividade (no lugar de identidades); uma fluidez na incorporação de novos universos, acompanhada de uma liberdade de hibridação (no lugar de atribuir valor de verdade a algum em particular); uma coragem de experimentação levada ao limite, acompanhada de uma agilidade de improvisação para criar territórios e suas respectivas cartografias (no lugar de territórios fixos com suas representa-ções predeterminadas, supostamente estáveis).

Utilizei este conceito pela primeira vez em 1987, em minha tese de doutorado, publi-cada em 19896 – exatamente o ano do fim da ditadura no Brasil7 e da queda do muro de Berlim. Se destaco esses fatos, é porque naquele contexto tratava-se de nomear e reafirmar este modo de subjetivação que havíamos inventado nos anos 1960 e início dos 1970, no bojo do movimento contracultural. É que tal modo havia sido alvo da truculência da ditadura militar ao longo dos anos 1970 e início dos 1980, que reativara e enrijecera o princípio identitário – como sói acontecer do ponto de vista micropolítico nesse tipo de regime.8 Alguns anos depois, em 1994, quando escrevi Esquizoanálise e Antropofagia,9 ainda se fazia necessário afirmar esse modo de subjetivação, mas o foco então era compreender a ampla recepção do pensamento de Deleuze e Guattari no Brasil, desde sua primeira obra conjunta, O Anti-Édipo, no campo da saúde mental, com o qual eu estava envolvida naquela época. Isso se verificava em várias práticas e vertentes teóricas da clínica, até mesmo na psicanálise (o que, aliás, continua vigente

6. Cartografia Sentimental. Transformações Contem-

porâneas do Desejo (São Paulo: Estação Liberdade,

1989, esgotado). 2a ed; revisada com novo prefácio

(Porto Alegre: Sulinas / UFRG, 2006); 5a ed; 2011.

7. Um golpe de Estado em 1964 submeteu o Bra-

sil a uma ditadura militar que durou até 1985,

quando – ainda indiretamente – foi eleito o

primeiro presidente civil do país. As primeiras

eleições diretas ocorreram em 1989.

8. A contracultura e a militância, dois polos do movimento da geração dos anos 1960−1970,

foram ambos objetos do terrorismo do Estado

durante a ditadura no Brasil.

9. Schizoanalyse et Anthropophagie. Em:

ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze. Une Vie

Philosophique (Paris: Synthélabo, col. Les Em-

pêcheurs de Penser en Rond, 1998. p. 463-476).

Trad. brasileira: Esquizoanálise e Antropofagia,

Gilles Deleuze. Uma Vida Filosófica. São Paulo:

Editora 34, 2000. pp. 451-462.

10. Na América Latina em geral – e mais ampla-

mente no Brasil –, as obras de Guattari, Deleuze,

Foucault e de toda uma tradição filosófica em

que estas se inserem (Nietzsche, em particular)

tiveram forte influência no campo psiquiátrico,

o que resultou numa postura crítica, interessada

em problematizar as políticas de subjetivação

no contemporâneo e fazer face aos sintomas

que delas decorrem. No Brasil, essa singulari-

dade alastrou-se pelas práticas terapêuticas em

instituições públicas e em consultórios privados

(até mesmo entre os psicanalistas), bem como

na formação universitária (há programas de

doutorado nessa linha de investigação em várias

universidades). Para dar uma ideia da extensão

desse movimento, os integrantes do grupo de 30

profissionais que assumiu o Ministério de Saúde

no primeiro mandato do governo Lula situam-se

todos neste background.

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ENCONTRO

ainda hoje, redescoberto e reinventado a cada geração).10 Um fenômeno que também aconteceu, mesmo que com menor intensidade, em outros países da América Latina. Pude então elaborar neste texto a ressonância que eu constatava entre a teoria do desejo, proposta por esses autores, e o modo de subjetivação predominante no Brasil que eu havia qualificado como “antropofágico”. Essa parecia ser a razão pela qual a esquizoanálise se havia revelado fecunda para o exercício da clínica no país.

Em 1998, quando retomei esse conceito,11 já era outro o problema que eu me sentia convocada a enfrentar: a política de produção de subjetividade e de cultura inventada pela geração dos anos 1960/1970 passava a predominar sob o regime do capitalismo financeiro transnacional, que então se estabelecia por todo o planeta. Transfigurada nesse seu desdobramento, tal micropolítica tornava-se dominante (daí a já consagra-da ideia que qualifica o novo regime de “capitalismo cognitivo” ou “cultural”12). Em-bora essa mudança tivesse começado já no final dos anos 1970, na Europa Ocidental e na América do Norte e, a partir de meados dos anos 1980, na América Latina e na Europa do Leste (com a dissolução dos regimes totalitários, em grande parte engen-drada pelo próprio neoliberalismo), demorou pelo menos duas décadas para que seus efeitos perversos se fizessem sentir e se colocassem como problema – como acontece com toda mudança histórica de tal envergadura. Só agora se tornava possí-vel percebê-los, o que impunha a necessidade de distinguir políticas da plasticidade, da fluidez de hibridação e da liberdade experimental de criação que caracterizam o que eu havia chamado de subjetividade antropofágica. Descrevi essas diferenças, na época, propondo os conceitos de “baixa” e “alta antropofagia”, inspirada no próprio manifesto, no qual encontrei a noção de “baixa antropofagia”, definida como “pes-te dos chamados povos cultos e cristianizados”.13 Designei também tais diferenças como “antropofagia ativa” e “reativa”, evocando Nietzsche.

POLÍTICAS DA CRIAÇÃO

O critério que adotei para distinguir essas políticas da subjetividade antropofágica foi da reação ao processo que dispara o trabalho de criação. Referia-me à dinâmica pa-radoxal entre dois vetores concomitantes: de um lado, o movimento em direção ao plano extensivo, perceptível, com seu mapa de formas e representações vigentes e sua relativa estabilidade; de outro, o movimento em direção ao plano intensivo, impercep-tível, e as forças do mundo que não param de afetar nossos corpos, uma alteridade que nos habita na qual se redesenha, constantemente, o diagrama de nossa textura. Tal dinâmica tensiona os territórios em curso e seus respectivos mapas e acaba colocando em crise nossos parâmetros de orientação no presente. É nesse abismo e na urgência de produzir sentido que se convoca o trabalho do pensamento, entendido aqui como criação e não como revelação, explicação ou ilustração. Já no momento desse impul-so inaugural do trabalho de criação se definirão suas diferentes políticas – em função do quanto se toleram os colapsos de sentido, o mergulho no caos, nossa fragilidade. Apontei dois polos opostos neste processo, embora eles não existam como tais, pois na realidade muitos são os matizes entre eles, e sempre cambiantes.

11. Subjetividade Antropofágica/Anthropopha-

gic Subjectivity. Em: Herkenhoff, P. e Pedro-

sa, A. (Edit.). Arte Contemporânea Brasileira:

um e/entre Outro/s, XXIVa Bienal Interna-

cional de São Paulo. São Paulo: Fundação

Bienal de São Paulo, 1998. pp. 128-147. Edição

bilíngue (português/inglês).

12. As noções de “capitalismo cognitivo” ou “cultu-

ral”, propostas a partir dos anos 1990, principal-

mente por pesquisadores atualmente associa-

dos à revista francesa Multitude, são em parte

um desdobramento das ideias de Deleuze e

Guattari relativas ao estatuto da cultura e da sub-

jetividade no regime capitalista contemporâneo.

13. Cf. “Manifesto Antropófago” [1928]. Em: A Uto-

pia Antropofágica, Obras Completas de Oswald

de Andrade. São Paulo: Globo, 1990.

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Criar a partir do mergulho no caos para dar corpo, de imagens, palavras ou gestos, às sensações desta tensão entre os dois vetores, participa da tomada de consistên-cia de uma nova cartografia de si e do mundo que traz as marcas da alteridade que conturba seus atuais contornos. Um processo complexo e sutil que requer um longo trabalho. Não seria algo assim o que faziam os Tupinambás em seu prolongado e rigoroso resguardo no ritual antropofágico?

Contudo, a criação pode resultar de uma denegação da escuta do caos e dos efeitos da alteridade em nosso corpo, em vez de fazer-se a partir dela. Neste caso, a cartogra-fia se realiza por meio do mero consumo de ideias e imagens prêt-à-porter. A intenção é recompor rapidamente um território de fácil reconhecimento, na ilusão de silenciar as turbulências provocadas pela pulsação deste duplo vetor a borrar nossos contornos. Produz-se assim uma subjetividade aeróbica, portadora de uma flexibilidade acrítica, adequada ao tipo de mobilidade requisitada pelo capitalismo cognitivo.

Pois bem, ambas as políticas de criação que acabo de descrever trazem todas as características que enumerei anteriormente daquilo que chamei de subjeti-vidade antropofágica. No entanto, elas resultam da ação de forças totalmente distintas, as quais se diferenciam essencialmente por incorporar ou não os efei-tos disruptivos da existência viva do mundo em nosso corpo, como propulsora do trabalho de reinvenção do presente.

Em suma, estava claro naquele momento que, se nos anos 1960/1970 era pertinente opor ao capitalismo industrial (com sua sociedade disciplinar e sua lógica identitária) uma lógica híbrida, fluida e flexível, agora se havia tornado um equívoco tomar esta última como um valor em si – já que esta passara a constituir a lógica dominante do neoliberalismo e sua sociedade de controle. É, portanto, no próprio interior dessa lógica – entre diferentes políticas da flexibilidade, da fluidez e da hibridação – que passavam a se dar os embates no traçado das cartografias de nossa contempora-neidade globalizada.14

ANTROPOFAGIA REATIVA

Mais recentemente, em um ensaio que escrevi a esse respeito,15 senti necessidade de criar uma nova noção, a partir da ideia de subjetividade flexível16 proposta por Brian Holmes, para evidenciar o contexto histórico que eu tinha em mente – a política de subjetivação dos anos 1960/1970 e seu destino capitalístico – e deixar a qualificação de “antropofágica” para sua versão brasileira. Problematizo o processo que levou a esse desdobramento da política contracultural de subjetivação e de criação e a des-crevo mais precisamente. Aponto ainda a confusão que muitos da geração dos anos 1960/1970 fizeram entre essas duas políticas da subjetividade flexível e o estado de alienação patológica que tal confusão provocou. Examino, por fim, a especificidade de tais efeitos em países recém-saídos de regimes ditatoriais, particularmente aque-les cujo passado fora marcado por um singular e ousado experimentalismo – como é

14. É evidente que o foco aqui abrange apenas

parte das políticas de produção de subjetivida-

de e cultura em confronto na atualidade. Ou-

tras forças participam desse confronto, entre as

quais os novos fundamentalismos que surgiram,

exatamente, com a instalação do neoliberalis-

mo e sua flexibilidade capitalística. Nesse tipo

de regime, o princípio identitário reatualiza-se

em suas formas mais extremistas.

15. “Zombie Anthropophagy”. Em: Curlin Ivet, Ilic

Natasa (org.), Collective Creativity Dedicated

to Anonymous Worker. Kunsthalle Fridericia-

num: Kassel, 2005. Edição bilíngue (alemão/in-

glês). Em francês (versão reduzida): “Anthropo-

phagie Zombie”. Em: Mouvement: “L’Indiscipline

des Arts Visuels”, nº 36-37, pp. 56-68. Paris:

Artishoc, sept-décembre 2005. Em espanhol:

Antropofagia Zombie. Em: Brumaria 8: “Arte

y Revolución. Sobre Historia(s) del Arte”, Docu-

menta 12 Magazine Project, 2007.

16. A noção de subjetividade flexível inspira-se

parcialmente na “personalidade flexível” su-

gerida por Brian Holmes, a qual desenvolvo

da perspectiva dos processos de subjetivação

(V. Holmes, Brian, “The Flexible Personality”.

Em: Hieroglyphs of the Future. Zagreb: WHW/

Arkzin, 2002).

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ENCONTRO

o caso de muitos países da América Latina e da Europa do Leste. Nesses contextos, paralisado pela micropolítica das ditaduras, tal experimentalismo teria sido reativa-do com a instalação do capitalismo cultural, mas, para ser diretamente canalizado para o mercado, sem ter passado pela elaboração da ferida da potência de criação, condição para reativar sua vitalidade poético-política. Isso fez com que o advento do novo regime tendesse a ser vivido nesses países como uma verdadeira salvação. O capitalismo cultural parecia liberar as forças de criação de sua repressão por um regime tacanha e, mais do que isso, as celebrava e lhes dava o poder de exercer um papel de destaque na construção do mundo que então se instalava. Esse fato agra-vou a confusão entre o modo contracultural e sua versão capitalística, bem como os efeitos nefastos daí decorrentes.17

No Brasil, um terceiro fator somou-se ainda a essa complexa situação: precisamente, a presença da tradição antropofágica. Se esta havia desempenhado um papel na ra-dicalidade crítica da experiência contracultural dos jovens brasileiros nos 1960/1970, agora, ao contrário, ela tendia a contribuir para uma adaptação soft ao ambiente neoliberal (inclusive de boa parte dessa mesma geração, já entre seus 35 e 45 anos). O país provou ser um verdadeiro campeão atlético da flexibilidade a serviço do mercado. Alguns dos sinais desse fenômeno: as agências brasileiras costumam ven-cer todos os concursos internacionais de publicidade; as novelas da Rede Globo de Televisão são difundidas em mais de 200 países; a mulher brasileira, segundo as es-tatísticas, é a que mais se identifica e se submete aos padrões ideais do corpo femi-nino estabelecidos pela mídia, o que coloca o Brasil no topo do ranking do consumo de cosméticos, de remédios para emagrecimento e de cirurgias plásticas. Aliciada, sobretudo, em seu polo mais reativo, essa tradição produziu um tipo de figura que chamei então de “zumbi antropofágico”.

Neste texto, considero o destino capiltalístico da contracultura como um “clone”, de-corrente da instrumentalização desse movimento pelo capital – uma operação perversa que chamei de “cafetinagem”. Só mais tarde me dei conta de que esse destino havia sido produto de uma das forças em jogo nos desdobramentos da própria contracultura, inventado, portanto, por uma parte de seus protagonistas. Por último, menciono ainda neste texto um movimento crítico que começava a tomar corpo internacionalmente numa nova geração no fim dos anos 1990 – especialmente entre jovens artistas.

E O QUE A ARTE TEM A VER COM ISSO TUDO?

Não é coincidência que tal movimento se manifeste com especial veemência no terreno da arte: a situação anteriormente descrita o afeta diretamente. É que a arte é o terreno onde mais se exerce a força de trabalho de criação, a qual constitui hoje, como mencionado, uma fonte privilegiada de produção de capital. Talvez essa seja a razão pela qual as artes plásticas nunca tenham tido tanto poder no traçado da cartografia cultural do presente, como nos últimos 10 ou 15 anos. Para ficar apenas no mais óbvio, além da proeminência que a imagem em geral adquiriu nesse traçado

17. O leste da Europa compartilha com a América

Latina situações que fizeram com que a instala-

ção da flexibilidade capitalística gerasse efeitos

similares aos sugeridos no texto (o que merece-

ria ser objeto de uma pesquisa em comum). No

entanto, há um fenômeno totalmente distinto

que entra em jogo em alguns países do leste

europeu, nesse mesmo contexto, que é justa-

mente o surgimento dos fundamentalismos de

toda espécie, tal como mencionado na nota 14.

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ao longo do século XX, no campo específico da arte, as exposições internacionais converteram-se num dispositivo privilegiado para o desenvolvimento de narrativas planetárias. Elas concentram e compõem, num só espaço e tempo, o maior número possível de universos culturais – tanto do lado das obras, como de seu público.

No início deste texto, apontei como falso problema perguntar-se se cartografias marcadas pela hibridação cultural, pela flexibilidade e pela fluidez devem ser recu-sadas ou celebradas. Pois bem, é tão falso quanto perguntar-se sobre a pertinência do papel da arte na invenção de tais cartografias. Também aqui, o que importa são as forças em jogo em cada proposta artística: daquelas em que a criação parte das turbulências da experiência contemporânea até as que, ao contrário, as denegam. Tais turbulências resultam dos inevitáveis atritos, tensões, impossibilidades que a complexa construção de uma sociedade globalizada implica singularmente em cada contexto e a cada momento.

No campo das artes plásticas, essas forças tomam corpo não só nas próprias obras, mas em suas exposições e nos conceitos curatoriais que expressam, nos textos crí-ticos que as acompanham e nas diretrizes dos museus ou outros espaços institucio-nais que as acolhem – e, por fim (ou início?), em todas as práticas artísticas que se fazem numa deriva para além do terreno institucional da arte, na qual tem embarca-do parte da produção contemporânea.

A força que predomina hoje nesse território é, sem dúvida, a da denegação de tais turbulências, própria de uma flexibilidade reativa: a baixa antropofagia, como acima descrito. A arte, na qual se confina em nossa cultura a insistência do corpo no pensa-mento e do pensamento no corpo, é a fonte privilegiada pelo capitalismo cognitivo, para extrair energia de invenção para a produção de suas cartografias prêt-à-porter, vazias e sem relevo, adaptáveis para o consumo em qualquer ponto do planeta.

Entretanto, paralelamente, a contrapelo e em atrito com o mainstream, agitam-se outras forças que, de diferentes maneiras, trabalham na construção de cartografias a partir das tensões da experiência contemporânea e não de sua denegação. Por meio delas, afirma-se o poder poético da arte: dar corpo às mutações que se ope-ram nos afetos do presente. Torná-las sensíveis participa da abertura de possíveis na existência individual e coletiva – linhas de fuga de modos de vida estéreis que não sustentam coisa alguma a não ser a produção de capital. Não será esta precisamen-te a potência política própria da arte?

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ENCONTRO

Foto Ivson MirandaTeatro do Concreto

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ENCONTRO

ENCONTRO − DESLOCAMENTO − EXPERIÊNCIAMATTEO BONFITTO

Este ensaio, ainda que breve, pode ser visto como o compartilhamento de uma refle-xão específica, em processo, cujo ponto de partida é o encontro. O gatilho de uma reflexão pode levar muitas vezes a desdobramentos imprevisíveis; ele pode viabilizar a percepção de especificidades ou construir ampliações de ordem associativa. Nesse caso, percorrerei um caminho de mão dupla: mesmo considerando o ponto de partida em questão por meio do território em que atuo – as artes da cena –, buscarei conside-rar diferentes implicações que emergem do tema “encontro” a fim de problematizá-lo.

Nas artes da cena o encontro representa um termo familiar, que permeia há séculos esse campo artístico. Desde a sua origem no Ocidente − talvez essa observação possa ser generalizada −, os espetáculos e manifestações cênicas são relatados como eventos que marcaram fatos e mudanças de várias naturezas e que se tor-naram possíveis primeiramente por meio de uma condição que, até pouco tempo, era considerada sine qua non nas artes da cena: a relação presencial entre artista e público. É possível reconhecer aqui uma primeira implicação que emerge da noção em exame, que vê o encontro como relação presencial.

Essa primeira implicação representa a communis opinio, ou seja, a maneira como a noção de encontro foi e é usualmente percebida em muitas culturas, sobretudo, as ocidentais. De acordo com essa implicação, um encontro, para se dar, necessita simplesmente da presença de pessoas que ocupam um mesmo espaço físico. O encontro é percebido aqui como algo corriqueiro e recorrente em nosso dia a dia. É comum relatarmos o fato de ter encontrado alguém em determinada situação e isso nos parece suficiente.

ENCONTRO E CONFRONTO

Mas, se considerarmos outros âmbitos, como aquele das artes da cena, é possível perceber a parcialidade da implicação referida; ela se revela claramente insuficiente. Apesar de a relação presencial ainda ser vista como condição necessária para o

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ENCONTRO

estabelecimento do encontro nas artes da cena,1 esse âmbito envolve muitos ou-tros aspectos, dentre os quais aqueles colocados por Jerzy Grotowski. De fato, o diretor polonês, no final da década de 1960 do século XX, reitera o encontro como o traço pertinente mais importante do teatro. Ele diz: “O teatro é um encontro”.2 Para Grotowski, naquele momento, o teatro representava um dispositivo por meio do qual um encontro particular entre atores e espectadores se daria e, nesse caso, tal termo adquire conotações específicas. Aqui a noção de encontro envolve a pro-dução de uma série de ocorrências expressivas, entre elas, uma espécie de choque perceptivo desencadeado pelo ator, que, a partir da exploração de uma gama de procedimentos,3 irradia sobre o espectador emanações sensíveis constitutivas de suas “ações paradoxais” e, ao envolvê-lo, convida-o tacitamente a fazer o mesmo.

Independentemente da apreciação crítica que pode ser feita hoje sobre essa abordagem artística, vários aspectos podem ser apontados a partir da noção de encontro proposta por Grotowski. O diretor polonês, ao elaborar essa noção nos termos mencionados, além de torná-la específica, contradiz de certa forma o que ela pode sugerir a priori. Impregnado de conotações provenientes de diversos contextos e esferas de conhecimento, o encontro parece sugerir em muitos casos certa convergência, uma sintonia entre olhares, um contato que afirma e reforça pressupostos. Essa conotação emerge, sobretudo, de certos discursos religiosos que fazem do encontro um meio de divulgação e imposição da própria visão de mundo: o fiel garante a própria salvação na medida em que sela seu encontro com um ser supremo e aceita seguir os preceitos de sua doutrina. Em vez disso, de ser geradora de um processo apaziguador, que de maneira assertiva agrega semelhanças, a noção proposta pelo diretor polonês parece propor a instauração de fricções: sensíveis, emocionais e intelectuais.

O encontro, visto como instaurador de fricções perceptivas, pode ser reconhecido também no trabalho desenvolvido por diferentes artistas da cena, entre eles Peter Brook. Através da sua concepção de contador de histórias, é possível perceber uma relação intrínseca entre exposição da própria subjetividade e a busca de um exercí-cio de alteridade. Ao colocar o público como parte integrante do processo criativo e fazer com que o seu contador de histórias percorra diversas etapas criativas, Brook associa a escavação da própria subjetividade por parte do ator a um deslocamento do que lhe é imediatamente familiar. Tal associação funciona como um eixo dos processos criativos e é incorporada nos seres ficcionais atuados pelos atores.4

Independentemente das especificidades que permeiam o trabalho de Grotowski e Brook, é interessante notar como as noções de encontro propostas por eles re-cuperam de certa forma o sentido originário do termo em latim − incontrare − que remete ao mesmo tempo a um encontro e a um confronto, ou a um encontro entre adversários. Nesse sentido, as proposições feitas pelos diretores mencionados pa-recem se alinhar ao paralelismo psicofísico apontado por Espinosa, assim como ao seu conceito de encontro, central em suas elaborações sobre a ética.5 Para o filó-

1. Digo “ainda” em função do fato de muitas ma-

nifestações cênicas contemporâneas ocorre-

rem virtualmente, dispensando assim a relação

presencial com os espectadores.

2. Grotowski, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

3. Desde a via negativa, que envolve a eliminação

de obstáculos e resistências, até o “ato total”

em que a transparência das reações mentais e

físicas do ator se manifestaria diante do público.

Ver Grotowski (1971), op. cit.

4. Ver Bonfitto, Matteo; A Cinética do Invisível.

Processos de Atuação no Teatro de Peter Brook.

São Paulo: Perspectiva, 2009.

5. Espinosa, Baruch; Ética. São Paulo: Ed. Autên-

tica, 2008.

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Foto Ivson Miranda Lume e OPOVOEMPÉ

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M AT T EO B O N F I T TO

sofo holandês, corpo e alma são compostos da mesma substância e, portanto, são indissociáveis. Eles se manifestam como uma totalidade, de maneira semelhante, Grotowski, em sua concepção de “ato total”, e Brook, por meio da exploração dos “centros humanos”, propõem a materialização de uma totalidade psicofísica.

No que diz respeito à concepção de encontro, pontos de contato entre eles são passíveis de reconhecimento. Espinosa se refere ao encontro como um fator de po-tencialização da vida em muitos sentidos, que remete a uma capacidade que deve ser cultivada de constante afetação, que emerge por sua vez do estabelecimento das relações. Ao explorar, no caso de Grotowski, a via negativa e as práticas de auto-penetração e, no caso de Brook, o que chamou de “centelhas de vida” e “momento presente”,6 ambos colocam em relevo exatamente a capacidade de irradiação e de afetação que envolve a relação entre ator e público. Essa capacidade, mesmo emer-gindo de procedimentos diversos, representa um aspecto fundamental do fenôme-no teatral visto como encontro, tal como proposto por eles.

A potencialização proposta por Espinosa pode remeter, assim, ao encontro buscado, ainda que de maneiras diferentes, por Grotowski e Brook. Além disso, os dois direto-res, cada um a seu modo, de certa forma recuperam o sentido originário do encontro, que abarca em seu horizonte as tensões geradas pelo entrelaçamento entre as noções de encontro e confronto. Tal operação, de ampliação dialética, implica por sua vez o reconhecimento de um processo que não se conclui, mas que se dá como manuten-ção de um estado, “de vida”, uma espiral em constante movimento.

Considerando os modos pelos quais o entrelaçamento referido se deu em Grotowski e Brook, uma segunda implicação da noção de encontro pode ser reconhecida: sem cancelar a primeira, que coloca como necessária a presença de seres humanos em um mesmo espaço físico, o encontro é visto nesses casos como gerador de uma verticalização, ou melhor dizendo, de um adensamento perceptivo.

O entrelaçamento entre encontro e confronto foi até esse ponto do ensaio visto por meio de referências que podem ser relacionadas ao teatro, assim como ao cha-mado teatro performativo.7 Desse modo, a fim de ampliar o horizonte de reflexão proposto aqui, cabe considerar igualmente o campo da arte da performance. Tal campo, acredito, pode oferecer especificidades ainda não examinadas e que estão profundamente relacionadas com o entrelaçamento em questão. Para adentrar esse campo, utilizarei como estudo de caso uma performance de Marina Abramović da qual tomei parte intitulada The Artist Is Present.

FLUXO E DESLOCAMENTO

Essa performance se deu no Marron Atrium, localizado no primeiro andar do MoMA. A mesa e as cadeiras foram posicionadas no centro do átrio. Quatro tor-res que emanavam intensamente uma luz branca delimitavam o espaço. Na aber-

6. Ver Grotowski (1971), op. cit; e Bonfitto (2009),

op. cit.

7. A noção de teatro performativo, tal como pro-

posto por Josette Féral, é como um campo hí-

brido de manifestações cênicas que assimilaram,

em termos expressivos, aspectos provenientes

da performance artística. Ver Féral, Josette. “Por

uma Poética da Performatividade: o Teatro Per-

formativo.” Em: Sala Preta, no 8, 2008, pp. 197-210.

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ENCONTRO

tura do museu, Marina já estava sentada em uma das cadeiras, e lá permaneceu, sem pausa, até o seu fechamento, por várias semanas.

Quando entrei no átrio, me deparei com uma situação que me causou um impacto imediato e gerou muitas impressões e sensações ambíguas. Da maneira como se encontrava, esse átrio − enorme em suas dimensões e praticamente vazio, ocupado somente por uma mesa e duas cadeiras, invadido por luzes brancas, frias, e utilizado como espaço de passagem que dava acesso a outras exposições, assim como à li-vraria − havia se tornado absolutamente dispersivo. Centenas de pessoas circulavam livremente, conversando, pedindo informações, fazendo comentários em voz alta; muitas delas observavam com curiosidade aquela situação estranha na qual vemos uma mulher com um vestido longo azul, sentada de frente para outra pessoa, ambas se olhando, em silêncio, por um tempo imprevisível.

Apesar de perceber a intensidade que emergia do contato entre Marina Abramović e a pessoa sentada à sua frente, a quantidade de estímulos que acon-teciam ao redor comprometia seriamente a qualidade de recepção da performan-ce que estava ocorrendo a poucos passos. Tal percepção se transformou somente quando participei dessa performance.

Poucos instantes antes da entrada no espaço fui instruído a não falar; o conta-to com ela deveria ser somente visual. Entro caminhando e sento na cadeira em frente a Marina. Como já mencionado, há uma mesa entre nós. Eu a observo, ela está com o rosto direcionado para baixo, como se estivesse se recompondo ou se preparando para o estabelecimento do contato comigo. Ela ergue o rosto e estabelecemos contato pelo olhar. A descrição e a análise a partir desse momento tornam-se, uma vez mais, complexas, sobretudo em função da simultaneidade de percepções, sensações, visualizações e associações que emergem nesse momen-to. Embora permanecendo a certa distância, há muitas pessoas em volta, obser-vando, comentando, tirando fotos. Quatro câmeras, fixadas nos quatro lados do espaço, ficam permanentemente ligadas. A luz branca das torres incide sobre o espaço tornando-o ainda mais claro e dispersivo.

Ao estabelecer um contato visual com Marina, a simultaneidade mencionada emer-giu de forma potente. Conhecia seu percurso e já havia visto vários vídeos de suas performances. Mas a admiração nesse momento é entrelaçada por sensações am-bíguas provocadas pelas percepções que tive durante a observação que precedeu minha participação nessa performance. A dispersão provocada pelas condições existentes ali provoca um choque que se contrapõe ao contato direto com Marina. A sua imagem real, viva, é sobreposta dinamicamente por imagens de suas perfor-mances, dela e de Ulay, e os sons produzidos naquele ambiente, naquele instante, eram por sua vez entrelaçados em minha memória com falas ditas por ela em en-trevistas, assim como pelas sonoridades produzidas em alguns de seus trabalhos. Talvez somente uma operação de montagem-colagem possa resgatar a simulta-

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neidade que permeou esse instante. Escrever sobre essa experiência se revela uma tarefa ainda mais árdua que as descrições anteriores; é como tentar capturar um furacão com um cata-vento.

O olhar de Marina não é investigativo, nem questionador. Nesse primeiro momento é um olhar acolhedor, que reage aos estímulos gerados pelo contato direto. Algo, então, gradualmente, é processado. Percebo, lentamente, a progressiva relativiza-ção das percepções que havia tido ao observar essa performance como espectador. Percebo, assim, aos poucos, que o olhar pode ser extremamente enganador.

O contato com os seus olhos gera, com o passar do tempo, uma espécie de afunila-mento do espaço e uma diluição do tempo cronológico. Seus olhos já não são mais seus olhos, são caminhos, portais que permitem o acesso não mais a imagens ou falas, mas a qualidades. Ao mesmo tempo, as sonoridades produzidas pelo ambiente vão se tornando cada vez mais distantes, até se transformar em uma frequência quase contínua.

Há uma imersão mais e mais profunda em um fluxo muito diferente daquele inicial. Não o “fluxo-turbilhão”. Não um fluxo, mas diferentes fluxos, que podem gerar ou não um percurso. Percebo-me em um “fluxo-exploração”, como se esse contato nos guiasse por caminhos desconhecidos e imprevisíveis, onde cada micromovimento é percebido e absorvido pelo outro. As quase imperceptíveis mudanças de inclinação da coluna, as quase imperceptíveis mudanças de eixo da cabeça são aqui bifurca-ções, atalhos que abrem possibilidades. Percebo-me agora em um “fluxo-navega-ção” que, apesar de uma aparente estabilidade, pode ser interrompido a qualquer momento e que é permeado por diferentes intensidades de olhar, do extremo olhar exterior que colhe cada estímulo e se transforma a partir disso ao extremo olhar in-terior, que funciona como uma isca para outras inesperadas realidades. Percebo-me, então, em um “fluxo-expansão” gerado por esse circuito, que alarga o horizonte per-ceptivo e que, por meio do contato direto, dissolve as fronteiras entre o eu e o outro.

Percebo-me nesse território, criado pelo entrelaçamento desses fluxos, não sei exata-mente onde termino e onde começa o outro, que é permeado por forças não contro-láveis intelectualmente que me carregam para um lugar no qual os sentidos emergem de diferentes lógicas, não explicáveis, não traduzíveis em fórmulas ou modelos.

Os fluxos que formam esse território são interpostos, por sua vez, por oscilações. Mas tais oscilações, em vez de fazerem com que o processo retorne ao ponto zero, abrem espaço para novos percursos. Essas oscilações não levam à circulari-dade do eterno retorno, mas a labirintos de espirais. Em alguns instantes, me vejo em um lugar no qual todos os estímulos gerados pelo ambiente e pelo contato direto com Marina parecem convergir para um amálgama, em que os seus mate-riais constitutivos não podem ser dissociados. Em outros, me noto em um lugar no qual já não há cadeiras, mesa, atrium, museu, pessoas ou cidade de Nova York. Somente intensidades. Experiência profunda, concentrada, vida em estado sólido.

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Estou novamente sentado na cadeira. Mas agora é como se as fronteiras tivessem se diluído também nesse caso. Percebo uma fusão, como se estivesse completamente enterrado nela, como se fosse “corpo-cadeira”. Percebo que poderia ficar ali indefini-damente e, ao ter essa percepção, tomo consciência que concluí a minha participação.

Levanto-me da cadeira como se lidasse com um obstáculo quase impossível de ser superado. Não tenho a menor ideia de quanto tempo se passou. Mesmo depois, quando me informam, percebo que não importa absolutamente sabê-lo. Dentre as consciências que emergiram após a participação nessa performance, cabe ressaltar algumas. Uma percepção, mencionada brevemente acima, está relacionada ao po-der enganador da visão; outra, com um fluxo não mencionado que, de certa forma, envolve aqueles apontados acima.

De fato, tendo participado de The Artist Is Present, constatei que minha impressão inicial como observador-espectador dessa performance não havia absolutamente colhido o seu potencial. Tive uma impressão genérica e, nesse sentido, me deixei cair na armadilha criada pelas próprias condições em que a performance foi proposta. Desse modo, a opção por tais condições revela, dentre outras implicações, uma, a meu ver, fundamental: a visão, sentido mais cultivado e privilegiado nos dias de hoje, não necessariamente funciona como veículo de experiências, não garante a vivência de experiências, não necessariamente as captura. Não se trata aqui de enfatizar sim-plesmente a correlação entre o ver e o saber ou entre o ver e o não saber. Aqui, tal aspecto está relacionado com a distância existente entre visão e participação direta, considerados como fatores constitutivos da experiência. Nesse caso, essa distância se revelou como um abismo intransponível.

Após a participação em The Artist Is Present, percebo que a questão do desloca-mento dos próprios pressupostos, do próprio horizonte perceptivo, das próprias hipóteses e certezas, todas elas, estão contidas no percurso descrito, que envolve diferentes noções de fluxo. Tais noções podem, por sua vez, ser vistas como com-ponentes de um fluxo mais abrangente, o fluxo-deslocamento. Tal fluxo, que me co-locou em um presente contínuo, me fez perceber de maneira mais clara a existência de aspectos que permeiam o entrelaçamento entre encontro e confronto.

INICIAÇÃO E EXPERIÊNCIA

Dentre os aspectos captados pela participação nessa performance, um deles, que representa uma espécie de desdobramento do entrelaçamento entre encontro e confronto referido neste ensaio, merece destaque. Trata-se de um segundo entrela-çamento, dessa vez entre iniciação e experiência.

Composta do prefixo latino ex – para fora, em direção a – e da palavra grega peras – limite, demarcação, fronteira –, o termo “experiência” remete a um sair de si rumo ao exterior, a uma viagem e aventura fora de si. Ao discorrer sobre a segunda implicação

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Foto Rubens Chiri Núcleo Argonautas e CiaSenhas de Teatro

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e sobre o adensamento perceptivo que emerge do entrelaçamento entre encontro e confronto, tais aspectos ligados à experiência são reconhecíveis. De fato, a fricção entre encontro e confronto abre muitas vezes espaço para um “sair de si”, gerando assim a necessidade de ir além dos próprios pressupostos, crenças e hábitos.

Já a participação na performance referida fez com que eu percebesse a existência ao mesmo tempo de um outro processo, que remete a uma dimensão que pode ser relacionada com a iniciação. Termo composto do prefixo latino in – em, para dentro, em direção ao interior – e do verbo latino eo, na forma composta ineo – ir para den-tro de, ir em – e dele derivando-se initium – começo, origem –, a iniciação remete a um mergulho, ao ir para dentro de um mistério. Por mistério, entende-se aqui não um dispositivo religioso especificamente, mas algo mais abrangente, que envolve a constatação de estar diante daquilo que não é imediatamente apreensível, e que instaura, portanto, a necessidade de um desvendamento. Ao refletir sobre o pro-cesso de iniciação nesses termos, abre-se a possibilidade de reconhecer a iniciação não como uma negação da experiência, mas como uma de suas possíveis camadas “latentes”, que pode surgir em situações particulares.

A percepção do entrelaçamento entre iniciação e experiência, por meio da partici-pação dessa performance, gera o reconhecimento de uma implicação ulterior rela-cionada ao encontro. Assim, como apontado em Grotowski e Brook, as explorações artísticas feitas por Marina Abramović – no caso a performance The Artist is Present – revelam como a noção de encontro pode adquirir novas potencialidades a partir dos modos de sua exploração nas artes da cena.

O encontro, considerado em seu senso comum, pode implicar simplesmente a pre-sença mais ou menos casual de seres humanos que ocupam um mesmo espaço físico. No entanto, a partir de explorações feitas por artistas da cena, as suas impli-cações se ampliaram significativamente. Duas dessas implicações foram apontadas neste ensaio: o encontro visto como instaurador de fricções perceptivas geradoras de possíveis adensamentos perceptivos; e o encontro como catalisador das dimen-sões de iniciação e experiência.

Em um estudo mais aprofundado, outros aspectos podem ser apontados; cada artista da cena por meio de seu trabalho pode desdobrar de maneira específica essas implicações. De qualquer forma, mesmo se propondo como uma primeira reflexão sobre o encontro nos termos propostos aqui, este ensaio buscou colocar em relevo um aspecto significativo: o papel exercido pelas artes da cena como instauradoras de experiências específicas, geradoras de diferentes modos de existência.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONFITTO, M. A Cinética do Invisível. Processos de Atuação noTeatro de Peter Brook. São Paulo: Perspectiva, 2009.

FÉRAL, J. F. “Por uma Poética da Performatividade: o Teatro Performativo”. Em: Sala Preta, no.8, 2008. p. 197-210.

GROTOWSKI, J. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

ESPINOSA, B. Ética. São Paulo: Ed. Autêntica, 2008.

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NO METAPLANO, O ENCONTROANDRÉ LEPECKI

É Michel Serres quem, contemplando o plano do mundo e atentando a uma dura-ção histórica multimilenar, faz o diagnóstico: “estamos soterrados em nós mesmos; emitimos sinais, gestos e sons indefinida e inutilmente. Ninguém escuta ninguém. Todo mundo fala; ninguém ouve; a comunicação direta ou recíproca está bloque-ada”. O seu relato é cruel. Mas não é pessimista. Em vez disso, a crueldade do filósofo descrevendo a cacofonia ruidosa do humano deve ser entendida no sen-tido que Artaud deu ao termo, ou seja, como afeto, simultaneamente denotando lucidez e vida. Pois não é assim que a vida é? “Este aqui fala com instrução; ele é tão chato quanto o último curso que lecionou. Aqueloutro, mais jovial, representa um papel ao qual se agarra com unhas e dentes: ele espalha seu bom humor com seu discurso. O terceiro, um pentelho irritante e sempre arvorando um ar superior, terroriza os que o rodeiam. Todos tocam seu instrumento favorito, cujo nome é: eles mesmos.” Cacofonia egoica do mundo, fazendo um mundo de paupérrimas afetações, cujo nome é humanidade.

“No entanto”, diz-nos Serres, pois teria que o dizer, uma vez que a vida também nos demonstra isso mesmo, “por vezes, há concordância”. E essa concordância só pode ser entendida como pertencendo dupla, simultânea e paradoxalmente à ordem do incrível e à ordem do mundano. Aliás, é a improvável mundanidade da concordância que transporta o mundo para além do seu plano corriqueiro e assim fabrica, entre-tece ou faz um metaplano para a existência. Poderíamos chamar-lhe o metaplano do miraculoso, do acontecimento, ou do encontro: “A coisa mais incrível no mundo é que por vezes concordância, compreensão, harmonia, existem. Leibniz supôs Deus por via desta Lei-Milagre”, conclui Serres, não sem certo espanto.1

1. Michel Serres, The Parasite (Minneapolis: Uni-

versity of Minnesota Press, 2007), p. 121, tradu-

ção minha do inglês.

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A primeira vez que se viram, a improbabilidade do que se desenrolava ali mesmo, no entre-eles, criou, antes de mais, uma não-visão.

Suponhamos, como agentes desse incrível, improvável, porém muito real acon-tecimento de uma provisória harmonia emergindo por entre o bafafá do mundo (acontecimento cujo outro nome, para Serres, é “milagre,” e para nós “encontro”), não Deus, como queria Leibniz, mas dois seres humanos. Mas de-ontologizemos logo esses seres. Retiremos mesmo deles a categoria de “ser” e o gênero “humano”. O que nos sobra? Dois modos de individuação. Ou melhor: duas vidas. No plano cacofônico do mundo, suponhamos essas duas vidas circulando por entre a orques-tra de “eus” alardeando suas identidades. E não sejamos ingênuos: essas duas vidas também participam da proliferação do mundo-ruído, também elas, volta e meia, têm de martelar convictamente no instrumento chamado “elas mesmas” – sob pena de ser soterradas pela falação dos outros.

Assim, vislumbravam apenas o que o clarão que tudo encobria, ou melhor dizendo, que todo o entre-eles preenchia, deixava entrever: uma mão esquerda, forte; uma linha de braço, decidido; um modo geral de inclinação do tronco; tecelares cabelos; uma orelha; lábios movendo-se em autonomia; uma perna de um, uma perna de ou-tro; um olho talvez míope outro talvez não. E pouco mais. Mais tarde, na memória de ambos, essa entrevisão era já só amálgama de brilho puro, áureo azul, como em algumas obras de Yves Klein.

O mundo mundano então como plano composto principalmente, majoritariamen-te, de uma cacofonia infinita e uma circulação sem-fim. Falação que nada diz, nem deixa dizer; circulação que nunca faz passar nada; e movimento que nunca chega a lado nenhum senão à sua própria inquietação e agito. Todo mundo falando sem pa-rar; todo mundo circulando sem parar: dois modos perfeitamente complementares de criar o mais puro bloqueio. Encontramos esses dois modos de bloqueio (o ruído falante e a circulação compulsiva) representados no belo filme de Agnes Varda, Cléo de 5 a 7, de 1962. A linha dramática é tão simples como comovente. Agitada pelo medo objetivo de um possível diagnóstico de câncer, que será confirmado ou não no fim do dia, o filme segue Cléo entre as 17 e as 19 horas, quando ela final-mente receberá os resultados do exame médico. Cléo circula por Paris, incapaz de permanecer num só lugar (apesar de ir de lugar em lugar) ou de entrar em diálogo (mesmo rodeada por conversas). Ela é linda, jovem, popular, famosa. A voz dela entra no mundo via rádios, discos, jukeboxes e se multiplica nas vozes de outros que cantam as suas canções. Mas apesar da imagem de juventude no agito urbano, da sua plurivocalidade multilocal, a morte interiorizada faz dela uma tristeza em movi-mento. Cléo ou fala ininterruptamente ou é rodeada de palreares incessantes; segue de lugar a lugar, porque toda ela é pura angústia. Dentro dela, rege a morte anteci-pada, a morte interiorizada, a morte ainda em vida – mesmo se o diagnóstico médi-co ainda está por ser entregue. Refrão implícito do filme, cuja narrativa se desenrola em tempo real, é a pergunta que angustia Cléo: “Quanto tempo tenho para viver?”.

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Foto Rubens ChiriGrupo Bagaceira de Teatro e Coletivo Angu de Teatro

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Coup de foudre, diz-se em francês ao brilho súbito e estonteante-cegante que recobre e define o metaplano do encontro enamorado. A enciclopédia esclarece que o relâm-pago é um fenômeno eletromagnético que deriva da diferença de potencial que se estabelece entre dois corpos em relação. Uma singularidade se define aí. Porém, para dois seres humanos (sem ontologia e sem gênero) que se encontram verdadeiramente, na mais raríssima improbabilidade, a questão não é mais a de uma física do relâmpago, mas de uma metafísica diferencial do encontro – como compor para o encontro um metaplano que receba e prolongue o desejo em seu desdobrar singular-relacional.

O brilho indicia a textura subtil do metaplano do milagre, do acontecimento, ou do encontro (os planos de dourados e ouros na Anunciação, de Fra Angelico, recobrin-do e reluzindo o mais mundano dos objetos, tornando-os nuvem, ou melhor, mani-festando, ou catalisando, o seu já-ser nuvem; a lâmina dourada em forma de coração que emoldura os rostos enamorados naquele “beijo extraordinário”2 que retrata a Saudação de São Joaquim e Sant’Ana de Giotto...). Não há evento sem encontro; e não há encontro que não seja o advento de um milagre. Mas será mesmo? Nem todo encontro é bom, adverte-nos Espinosa. Há os encontros péssimos, mortíferos, ressentidos. Encontros que são puro veneno, que fazem relação por via de decom-posições, remorsos, traições, vampirismos – mesmo que “amorosos”. Se Serres vê no encontro o milagre, a expressão raríssima de uma harmonia “altamente improvável”3 no meio do ruído egoísta, Espinosa, por seu lado, vê encontros em toda parte. Para Espinosa, o pleno do mundo não é mais do que um campo de encontros sem fim. Trata-se, então, e antes de mais, de uma questão de tipologia: “Quando um corpo ‘encontra’ outro corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes”, esclarece Deleuze, escrevendo sobre a filosofia de Espinosa.4 Ou seja, o mundo é o plano composto por encontros infinitos que se distribuem alegre ou tristemente de acordo com a natureza relativa de cada parte e o modo relacional de cada encontro. Mas reparemos nas aspas que Deleuze utiliza quando escreve a palavra encontro, na frase citada. Essas aspas, curiosas, discretas, mas, sem dúvida, operantes, já tornam a palavra que delimitam numa representação dela mesma.5 Curiosa operação diacrítica que Deleuze opera: um esvaziamento de potência significante e intrigante da palavra “encontro”. Será que, com essas aspas, Deleuze pretende indicar a possibilidade de que há outra ordem do encontro, uma ordem outra em que o encontro possa ser escrito, ou expresso, plenamente, sem as-pas, ou seja: sem recorte, resguardo ou esvaziamento da sua conotação mais direta e expressiva? Uma ordem do encontro que exista plenamente para além da coin-cidência de afetações num determinado espaço-tempo e num modo de relação entre individuações? Essas questões talvez se resolvam da seguinte maneira: retire-mos de “encontro” as aspas e reescrevamos então a frase de Deleuze começando agora assim: “Quando um corpo encontra outro corpo...” Sugiro que esse encontro, reescrito e expresso agora em grafia enfática, sem aspas (ou seja, sem resguardos, sem representação), é o ponto de contato entre o plano do mundano e o plano de

2. Peter Sloterdijk. Bulles. Sphères I. (Paris: Pau-

vert, 2002), p. 162, tradução minha do francês.

3. Serres, ibidem.

4. Gilles Deleuze. Espinosa. Filosofia Prática. São

Paulo: Editora Escuta, 2002, p. 25.

5. Jacques Derrida, a propósito de Heidegger,

nos fala de uma “Lei das aspas: duas as duas

elas montam guarda”. A sua suspensão causaria

uma “liberação do espírito” da letra, uma pre-

sentificação desguardada e não representacio-

nal da palavra. Ver Derrida, Of Spirit (Chicago:

University of Chicago Press, 1991), p. 31, tradu-

ção minha do inglês.

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transcendência. Ou seja, é o ponto de diferenciação de um tipo muito específico de encontro, num mundo feito deles. Esse ponto de contato e de diferenciação não se reduz ao espaço infinitesimal de sua geometria, mas é antes um ponto proliferante que se espraia como metaplano singular, em que o encontro pode expressar os seus mais puros devires, a sua consistência singular. Encontro de matéria com matéria (todos os atuais, todos os virtuais se entrelaçando no encontro) ressoando numa cocomposição mútua o que ainda não existia, nem se imaginava existível.

Seguem pela cidade, mal se conhecem, mas sob o fulgor do brilho amoroso entram em concórdia e em movimentação. O perambular agora, apesar de se dar em cami-nhos, veredas e carris, não é mais um agito, mas antes condensação e distensão de tempos insuspeitados no pleno do mundano. Coisas do coração, sístole e diástole. Concórdia. Tudo se ralenta. Param em frente à água; ou quem sabe é um jardim. Pou-co importa. A água adensa o tempo e o jardim liquefaz as durezas dos egos. Interessa a criação de um vácuo pleno de existência no plano do mundo buliçoso. Metaplano. No encontro, acha-se um entrelugar que apesar de flutuante é totalmente localizável e feito de elementos bem enraizados e corpóreos. No jardim ou praia descobrem em silêncio a ressonância harmônica improvável.

Estamos agora no final do filme. Faltam poucos minutos para as 7 horas da noi-te. A angústia de Cléo chega ao paroxismo. E então, o encontro. Nele, tudo no mundo permanece o mesmo. As árvores, os jardins e, durante bastante tempo, mesmo o modo de ser de Cléo, sua singularidade, seu modo de individuação, suas angústias. Mas, o encontro sendo encontro, é a própria substância corporal que se rearranja, num realinhamento energético. Tudo é igual, menos o modo de distribuição de forças, que rearranja molecularmente a carne, fazendo-a brilhar e vibrar de modo mais alegre. O encontro tendo acontecido, trata-se agora de outra questão. A de “não ser indigno com relação àquilo que nos acontece”, na fórmula que Deleuze usa parafraseando os estoicos.6 Ou seja, trata-se, antes de tudo, de saber como não ser indigno perante o acontecimento, trata-se de saber fazer o acontecimento acontecer e desdobrar-se em mais acontecimento. Pouco importa que não saibamos de antemão como fazê-lo. O que importa é o desejo de querer fazê-lo pleno, mesmo que nunca se saiba de antemão o que virá a ser. Não se trata mesmo de construir algo sob espécie de alguma imagem do desejo que o preexistiria e o amarraria. Trata-se de ousar fazer com o outro o fazer-se do encontro. Agarrar o evento e com ele entretecer o metaplano.

Entrelaçam-se. Enamoram-se. Não há um beijo, nem qualquer imagem reconhe-cível que signifique ou represente “paixão”. Há, ao invés, algo mais importante: o olhar no olhar fissionando no entre-eles o infra-fino azul-aúreo. O médico passa finalmente, de carro, apressado, finalizando seu dia de trabalho certamente árduo, com mortes, dores, erros, radiações, remédios e venenos. Numa quase indiferença polida, solta a frase, já acelerando: “Segunda-feira começamos, dois ou três meses de radiação e deve ficar tudo bem”.

6. Gilles Deleuze, Logic of Sense. New York:

Columbia University Press, 1990, p. 149, tra-

dução minha do inglês.

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Por que privilegiar o encontro amoroso? Porque ele não tem de ser, antes de mais nada, um encontro de paixão. A paixão é descabelada, agitada, egoica. O encontro amoroso é o encontro cordial, ou seja, etimologicamente, o que é relativo ao cora-ção. O encontro de coração a coração, ressoa e reecoa as fibrilações singulares do cada qual numa disritmia plena, porém concordante na diferença: “A diferença na intensidade é ao mesmo tempo o objeto do encontro e o objeto para o qual o en-contro aumenta a sensibilidade. Não são os deuses que são encontrados; estes não são mais do formas para o reconhecimento. O que é encontrado são os demônios, potências de salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, que preenchem a dife-rença com o diferente”.7 O que Serres chama de “harmonia”, Deleuze de “intensivo”, eu chamo de concórdia: fazeres do entre-corações. Tem de ser assim o encontro miraculoso e raro: nasce de si mesmo por via da ousadia de desejar fora de quais-quer planos preconcebidos de desejo; por via da ousadia de escapar às coreografias sociais que alinhavam desde sempre as possibilidades de diálogos entre as partes. Ao contrário, trata-se de uma coreografia incalculável8 de gêneros, afetos, toques, trocas já fazendo o impossível.

O câncer existe, mas Cléo já não tem a morte interiorizada. Em poucos minutos, no me-taplano do encontro, ela entra num movimento de devir enamorado onde sua boca ganha uma outra voz e onde encontra por fim a resposta certa à pergunta angustiante. E a res-posta é sem esperança − e por isso mesmo plena de alegria: é a única que faz o meta-plano brilhar no coup de foudre diferencial do encontro pleno. À questão, “quanto tempo tenho para viver?” o metaplano do encontro responde, sem angústia: “Toda a nossa vida”.

IINo entanto...No entanto, o encontro comporta também choques, colisões, esbarros. Esses en-contrões nos revelam a dureza no mundo, dureza que não deve deixar de ser con-siderada, mesmo em teorias e práticas que associam a potência do devir ao puro fluxo.9 Por mais que consideremos a fluidez dos sólidos e suas modulações físicas e semânticas, as suas capacidades “acontecimentais”, não se pode negar que um dos acontecimentos inescapáveis da matéria é a sua capacidade de se opor, de resistir, de comprimir, de bloquear, de ir-contra. É por isso que, quando o iniciado se encon-tra no mais profundo transe meditativo, já em pleno devir-molecular, entrando na duração e se fundindo com a matéria do mundo, o Mestre Zen deve chegar por de-trás dele, silenciosa e sorrateiramente, e fustigar brutalmente suas costas com varas de bambu. A vergastada no lombo é a necessária lição de dureza no meio do fluxo da matéria, a lição do enrijecimento que o corpo-em-devir deve receber de modo a saber agenciar o fluxo da matéria na direção do metaplano (que, lembremo-nos, é sempre mundano e supraordinário).

Tal como o movimento e a circulação podem ser (contraintuitivamente) forças de bloqueio, é a capacidade de dureza da matéria, seu ir-contra, que paradoxalmente possibilita a construção de fluências verdadeiras, circulações energéticas potentes.

7. Gilles Deleuze, Difference et Répétition. Paris:

PUF, 1993, pp. 188-9, tradução minha do francês.

8. Jacques Derrida, “Incalculable Choreogra-

phies”, Bodies of the Text. Eds. Ellen W. Goell-

ner e Jacqueline Shea Murphy. New Bruns-

wick: Rutgers University Press, 1995, tradução

minha do inglês.

9. Encontramos tal associação (com nuances es-

pecíficas, obviamente) em todo Gilles Deleuze

e em Henri Bergson, mas também em Alfred

N. Whitehead e William James. Para sua ver-

são mais recente e potente, veja o livro de Brian

Massumi Semblance and Event (Cambridge,

Mass: MIT Press, 2011).

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ENCONTRO

Lembremo-nos de que o corpo-sem-órgãos de Deleuze e Guattari comporta mes-mo a necessidade de criar sistemas de fluxo por via de agenciamentos de nódulos duros, de modo que se façam circular as intensidades. Uma coisa é a dissolução da matéria. Outra coisa é desejar o acontecimento do devir por via de todos os atribu-tos da matéria – incluindo sua capacidade de diferir, de ir contra, de se opor.

O desejável instrumento de fluxo – que não é mais do que o conglomerado fei-to por miraculosas combinações improváveis derivadas do encontro-milagre entre virtualidades infrafinas (isto é, fulgurante relampejar do entre-eles) e matéria dura (condensação da carne-duração) – faz o metaplano do encontro. Pouco importa se as matérias de fluxo sejam sutis ou densíssimas, fluxo do rarefeito ou refluxo no duro. Importa desejar suas inesperadas concórdias (mesmo se arrítmicas), importa ousar a improbabilidade do encontro, importa no encontro saber fazer o desdobrar do miraculoso. Pode se chamar esse desdobrar e essa ousadia de amor. Porém, pode--se chamar também de política, arte, ou vida: sem esperança porque plenamente enamorada, densa porque fluida, azul porque áurea, concordante porque alegre.

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A N D R É L E P EC K IFoto Ivson Miranda Erro Grupo

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ENCONTRO

UM BOM ENCONTRO?JOSÉ GIL

Louis-Ferdinand Céline perguntava, um dia, “o que é que procuravam duas pessoas que se encontravam pela primeira vez ao balcão de um café e começavam a conversar uma com a outra?” E ele próprio respondia: “Não era conhecerem-se, não eram gos-tos comuns, afinidades. Não, o que eles procuravam era o mesmo tom”. Imaginemos, pois, dois desconhecidos que se põem a falar um com o outro sobre coisas anódinas, sobre o tempo ou sobre o tráfego daquela rua. Falando disto e daquilo, não são as mensagens que contam, mas o “tom”, diz Céline. E o que procuram, buscando o tom adequado, o tom que convém a ambos? Procuram encontrar-se, diria eu.

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O que é o tom? É o que se transmite por debaixo das mensagens, através da voz. É a tonalidade das palavras, seu ritmo, sua velocidade e sua lentidão, sua altura, sua aspereza ou seu aveludado, o espaço sonoro que ali se abre e afasta ou aproxima, entrava ou estimula a voz do outro. Mil determinações não verbais compõem o tom da fala. Se as duas falas têm tons que se ajustam, então acontece o encontro. Mas o que significa aqui “ajustar”? E um encontro não é muito mais do que a possibilidade de efetuar uma boa conversa? O que se tece e entretece num encontro não se joga só através da ou com a linguagem: porque há encontros não apenas entre indivíduos, mas também entre seres e coisas. Sucedem bons encontros com livros, com uma obra de arte, com cidades ou paisagens. Com uma sensação, com pensamentos, com meu próprio corpo.

O que é interessante no exemplo de Céline é que são as palavras que recobrem o não verbal que, mais do que uma intencionalidade consciente, as determina. As palavras abrem o espaço da emissão de todos esses elementos do tom e os dois que falam, tateiam-se subverbalmente com pseudópodes, tentam, não acertam, erram, recome-çam, atraem-se, tocam-se. Até que pode acontecer que essas tentativas e erros se cruzem subitamente num mesmo regime de intensidade e ritmo. Diríamos então que “a conversa pegou”. O que quer dizer “pegou”? Que encontraram o tom que permite a um e a outro conversar como se de amigos há muito conhecidos se tratasse. Podem agora dizer o que quiserem que o seu diálogo funciona, a troca de fluxos de fala circula num plano contínuo que reúne os dois corpos num laço afetivo permanente, aparen-temente durável. Esse laço compõe a textura do plano: independentemente das pa-lavras ditas, forças mais fortes do que as que drenam as mensagens mantêm a ligação dos corpos. Se a conversa “pegou” foi porque as palavras, as mensagens, as significa-ções verbais são agora levadas por uma força mais forte que dá outro nexo (que não o lógico e o semântico) à troca dos fluxos verbais. Essas forças emanam dos corpos e da linguagem, alargam-se para além deles, para além dos seus atributos empíricos e dos significados das mensagens: são a-significantes e a-subjetivas. Pertencem e formam o que poderemos chamar de o inconsciente do corpo e o inconsciente da linguagem. No entanto, são elas que provocam novas conexões de palavras de um e outro falante que vão conversando sempre, no movimento da onda.

Psicanalistas e psicólogos (como Françoise Dolto e Daniel Stern) mostraram que a lin-guagem, para o bebê, se forma, desde o nascimento, a partir do sentido que tomam os fonemas que produzem sensações subtis no cavum, nos tecidos da boca, quando expirados ou inspirados; que são acompanhados de afetos que formam um sentido que se confunde com o ritmo dos movimentos-signos dos efeitos corporais. Assim se cons-trói um inconsciente da linguagem, na medida em que a criança passa dos fonemas aos morfemas e às sequências mais complexas da linguagem verbal (correspondentes a “fases” – por exemplo, erógenas – da sua evolução). A linguagem verbal inscreve no corpo e guarda em si os estratos mais arcaicos das primeiras fases do sentido do prazer ou desprazer corporal ligado à repetição dos fonemas ouvidos pelo bebê. Por isso a lin-guagem se encontra literalmente inscrita no corpo. E também por isso o inconsciente da linguagem recobre parcialmente o inconsciente do corpo.

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Foto Ivson Miranda Cia. Silenciosa

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Compreendemos como o movimento de procura do “mesmo tom”, num diálogo en-tre desconhecidos, compromete o corpo e traços não linguísticos inscritos na própria linguagem. É com o inconsciente do corpo e com o inconsciente da linguagem que os dois falantes lançam os seus pseudópodes para ver se se encontram.

Quererá isso dizer que um encontro é um contato ou uma comunicação entre in-conscientes? E que, quando as duas falas “pegam”, é porque os dois inconscientes se fundiram um no outro? Se tal sucedesse, a continuação da conversa seria inconcebí-vel: a “fusão” das duas falas as afogaria numa sopa amorfa, em que as suas singula-ridades se perderiam. Por definição, deixaria de haver “encontro” – por desapareci-mento da individuação dos que se encontraram-fundiram. O encontro supõe, então, ao mesmo tempo qualquer coisa como uma osmose entre os que se encontram e a conservação da sua plena singularidade. Uma “síntese disjuntiva”, na terminologia deleuziana. É assim que o laço que nasceu tece o plano da circulação das forças (das falas) na medida em que estas se desenvolvem. O laço forma-se antes do plano e os seus movimentos formam o plano.

Suponhamos um diálogo que funciona: ao receber a fala de um, este capta os elementos, que evocamos, da voz do outro. O laço que une os dois, am-bos locutores e receptores, é uma dupla captura. De quê? De forças invisíveis, imperceptíveis, mas que têm efeitos macroscópicos, molares. Chamemo-lhes “partículas virtuais” (Deleuze). São elementos mínimos que cada corpo emite e que são ditos “virtuais” porque já são passados, não presentes e atuais, mas que pertencem plenamente ao corpo atual que as emite. De tal maneira que esse corpo seria impossível se o seu presente atual não contivesse todas as imagens virtuais que lhe são próprias e que a ele se colam. Como poderia eu percepcio-nar um copo se a sua percepção não encerrasse virtualmente a imagem da água, do beber, do ser agarrado pela mão etc.? Posso mesmo imaginar um encontro (ponhamos, estético) com um copo. Quando o percepciono, ele envia-me uma série de partículas virtuais, enquanto o meu corpo lhe envia outros feixes de outras partículas do mesmo tipo. É bem possível que os dois tipos de partículas não se misturem, mas se afastem um do outro (são, afinal, “partículas virtuais e não ‘pseudópodes’ que, tateando-se, procuram ‘encontrar-se’”). As forças que o copo emite não convêm ao meu corpo (esteticamente, esse afastamento seria suscetível de se expressar num juízo de gosto: “aquele copo é feio!”). Mas para o saber é preciso que tentem misturar-se e de tal modo combinar-se que se não saberia já se eram imagens virtuais do copo ou imagens virtuais do meu corpo. Numa palavra, a dupla captura que acontece num diálogo ou numa percepção supõe um duplo devir: o devir-outro recíproco no diálogo, o devir-copo do meu corpo e o devir-corpo do copo na percepção. Ela forma uma “zona de indis-cernibilidade”, um meio de osmose em que um e outro, o corpo e o copo, se misturam sem perder sua distinção. Mais: as trocas constantes entre as imagens atuais e virtuais do corpo e do copo – um tornando-se o outro e reciprocamente – fazem surgir uma terceira imagem virtual (inconsciente) paradoxal: não sendo

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um híbrido, resultado do enxerto de uma parte da imagem noutra parte da outra imagem, essa imagem inconsciente é como o seu avesso vazio, o espaço vazio que toda a hibridação produz.

Gregório Samsa, na Metamorfose de Kafka, transformou-se parcialmente numa ba-rata. No entanto, essa barata é um híbrido pois, apesar do seu corpo de inseto, fala e pensa como um homem. Se bem que no devir-animal (como em todo o outro tipo de devir) não seja o resultado que interessa, mas o processo de devir, se consi-derarmos a zona das forças indiscerníveis como um espaço povoado de partículas, a imagem do seu avesso aparece vazia e, contudo, poderosamente potenciadora dessas mesmas forças indiscerníveis. No devir-barata da Metamorfose, o híbrido compõe-se de duas partes. Entre elas, nasceram forças que confundem Gregório e a barata, ao mesmo tempo que as distinguem. À imagem dessas forças chamamos um híbrido virtual. O avesso dessa imagem que ocupa uma zona comum, forma um espaço vazio onde podem surgir singularidades. É desse espaço que Gregório Samsa continua a falar e a barata a mexer-se como um inseto.

Se todo o encontro implica devires, todo o devir é um encontro de forças heterogêne-as. Quando converso com um desconhecido com quem descubro um “tom comum”, isso implica que entrei em devir-ele e ele em devir-eu. Atou-se um laço imperceptível entre nós, e a continuação da conversa, o tecer do laço, foi construindo um plano único de intensidades variáveis. Nesse plano, criaram-se zonas de mistura das nossas forças, de tal modo que aí eu já não sei se as minhas forças vêm do meu interlocutor ou se vêm de mim. Mas se o encontro “pegou”, é porque cada fala desenrola em si própria o seu espaço de singularidade que nunca perdeu. Um bom encontro não conjuga ape-nas forças. Antes, faz crescer em cada indivíduo seu espaço único, só dele, que o outro não ocupa. Uma amizade, um amor, só realizam bons encontros se proporcionam o desenvolvimento, em cada um, desse espaço inocupável, singular, absolutamente va-zio que o define na sua diferença do outro. Se este o vem a ocupar, então o encontro destrói-se e torna-se um mau encontro, um falso encontro, talvez um encontro perver-so. E o que é o espaço da singularidade de cada um que o bom encontro desenvolve? É o avesso da zona de indiscernibilidade como espaço comum.

É paradoxal que o espaço vazio nasça da própria indiscernibilidade das forças: estas compõem microcaos que tendem a autonomizar-se, mas que produzem ao mes-mo tempo o esboço de um diagrama de forças, quer dizer, o traçado de uma linha de fuga. Porque, ao atrair as forças, o microcaos intensifica-as, o que as faz tender para o movimento inverso: a singularização, por meio do ritmo. E o movimento que tende a reunir as forças mantendo a sua singularidade no meio do microcaos traça um diagrama. Este, impedindo as forças de se homogeneizar no caos, leva-as a uma individuação maior, na direcção de um “fora” (no seio mesmo da singulari-dade). Ora, elas só podem ganhar um maior espaço de singularização a partir de um campo vazio de forças. O diagrama traça o trajeto que vai de uma singulari-dade a outra, de uma força singular a outra, que as liga e as faz escapar do caos. E,

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escapando ou “saltando por cima do caos”, atam o laço que vai tecer o plano de imanência em que as forças singulares se vão desenvolver ao mesmo tempo que desenvolvem o que as permite comunicar (o plano). O diagrama é a figura ou o mecanismo do laço que prende as forças no encontro. Mas como é que o traçar do diagrama cria e amplifica simultaneamente o espaço vazio – se é verdade que esse mesmo movimento liga forças a outras forças? As forças são tensões, intensidades e estas nascem de diferenças. O diagrama permite ligar forças diferentes através das suas diferenças (e não das suas semelhanças). Como é isso possível? Porque as diferenças se convêm. Porque, num amor, o que vincula é aquilo que do outro me vem (através do diagrama) e aumenta a minha singularidade (multiplica as minhas forças que brotam dos espaços vazios aumentados), isto é, o que do outro mais me diferencia: eis o que a ele me une e o que prende às dele as minhas diferenças. “Gosto dela [da pedra] por ela ser uma pedra […] / Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.”, diz Alberto Caeiro (Fernando Pessoa).1

O que me convém é a força da diferença que desenvolve as minhas diferenças internas, o espaço das minhas próprias forças diferenciais que fazem proliferar em mim outros afetos, pensamentos, criações de possibilidades, heterogeneizações de sensações. Outros espaços internos e externos, outros ritmos e plasticidades tem-porais. Por isso eu posso ter encontros com sensações minhas e com outros corpos virtuais meus que se expressam, se actualizam e que eu descubro pela primeira vez. Um bom encontro é aquele que, como dizia Espinosa, aumenta a minha potência de agir e, portanto, a minha alegria. E a minha potência de agir é tanto maior quanto maior for a minha capacidade de ser afetado. O bom encontro alarga em quantida-de, diversidade e intensidade o campo da minha experiência.

Referimo-nos, sobretudo, a encontros através da linguagem; mas remetemo-los sempre para o ser inteiro e, essencialmente, para o corpo. De tal modo que é possível indicar um agente particular dos mecanismos detectados no encontro: no devir-outro, na captura das forças, na sua osmotização, na formação do mi-crocaos e do seu avesso, o espaço vazio onde se engendram as forças singula-res. Esse agente é, precisamente, o corpo, mas como operador de forças. Não o corpo fenomenológico (nem de Husserl, nem de Merleau-Ponty, nem mesmo o de Maldiney), mas aquele que, para além (ou aquém) do visível e do sensível, por assim dizer “nas costas” da intencionalidade da consciência ou do corpo próprio (o “Eu posso”, de Husserl), lida com as forças do mundo, recebe-as, transforma-as, transduze-as, reemite-as, distribui-as pelo corpo e novamente pelo mundo. Neste corpo tão complexo destacamos um mecanismo axial: o espelhar as forças que recebe. Desde Espinosa, com sua “imitação afetiva”, que se procurou conceptualizar este fenômeno de espelhamento de forças, sempre de todos conhecido: ver chorar ou rir provoca o choro e o riso, a alegria é con-tagiante, a violência sofrida tende a ser expulsa e infligida identicamente pela vítima etc. Daniel Stern chama esse fenômeno de “concordância afetiva”, atri-buindo-lhe uma importância de raiz, vendo nele um mecanismo presente já no

1. Alberto Caeiro, Poemas. Lisboa: Ed. Ática,

1963, p. 82.

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ENCONTRO

recém-nascido.2 É ainda possível atestar o seu carácter “originário” associando-o aos “neurônios-espelho” das neurociências.

Ao corpo capaz de todas estas funções chamaremos corpo-espelho-de-forças (CEF). Distingui-lo-emos, assim, do corpo que espelha formas que descreveu Merleau-Ponty. A expressão que o designa não é muito feliz, já que obriga a insistir nas características particulares deste “espelhamento” (que Stern também sublinha): não se trata de uma relação entre original e cópia, nem de uma relação de imitação de intensidades ou de formas, nem de uma fusão de afetos, nem de empatia ou simpatia; nem de semelhança ou de analogia entre forças que se recebem e que se emitem. Se é possível falar de “espelhamento” é porque entre a mãe e o bebê passa um mesmo ritmo. Assim, o espelhamento de forças é, antes de mais, uma concor-dância de ritmos, na expressão afetiva. Mas nós sabemos que o ritmo, ao contrário da cadência que repete o mesmo, traduz o diferente.3

(Talvez o termo corpo-espelho-de-forças não seja tão inadequado como parece. Talvez seja o nosso desconhecimento ainda da natureza dos espelhos que nos leva a crer que eles refletem uma cópia fiel da forma original.)

Como age o CEF no encontro? Em todo o encontro há uma parte, maior ou menor, de acaso. Este constitui essencialmente o encontro (pois a sua abolição total implicaria a abolição de todo o elemento diferente: nada se encontraria com nada, pois tudo seria já conhecido, “encontrado”). O fortuito traz uma perda dos quadros de referência (espácio-temporais, relacionais, cognitivos, afetivos, corporais) daquele que encontra inesperadamente um outro ou outra coisa. Isso induz imediatamente um microcaos perturbador desses quadros, o qual, por sua vez, se pode manifestar ao nível macro: não se sabe o que dizer, que postura adotar, tem-se gestos embaraçados ou hesitan-tes. Para sair do microcaos procura-se o “tom”, isto é, o diagrama de que poderá sair o trajeto do desejo em adequação com o desejo do outro.

O contato primeiro que provocou o microcaos pôs em atividade o CEF: a emitir partículas virtuais que são reenviadas pelo CEF do outro. Não como cópias-re-flexos idênticas às imagens virtuais compostas de partículas, mas como reflexos diferenciais, metabolizados pelo CEF, em que se misturam partículas do emissor e do receptor-espelho. No próprio seio da imagem que me é refletida, viajam distâncias diferenciais que separam as minhas partículas das do outro corpo, a minha imagem virtual daquela que ele me reenvia. Entre A emissor e B receptor (-emissor), o vai-vem, ao mesmo tempo que aumenta o caos (pela indiscernibi-lidade que cria entre as imagens de A e B), alarga o espaço vazio das diferenças. A zona em que a imagem de A tende a confundir-se com a de B intensifica-se (e o deslize para um espelhamento psicótico é sempre possível), enquanto as forças de singularização se agudizam. Aqui pode nascer o perigo do bom en-contro se tornar um mau encontro, destruidor. Uma paixão oscila sempre entre a fusão psicótica e a ruptura por intensificação excessiva da singularidade derra-

3. Deleuze, Guattari, Mille Plateaux. Paris:

Minuit, 1980, p. 385. Cf. em Stern, op. cit., o

exemplo da mãe que entra em concordância

afetiva com o bebê que vocaliza sons do grave

ao agudo, levantando e baixando o braço com

o mesmo ritmo.

2. Ver D. Stern, Le Monde Interpersonnel du Nour-

risson. Paris: PUF, 1999.

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ENCONTRO

Foto Rubens Chiri Grupo Bagaceira de Teatro e Coletivo Angu de Teatro

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pando para a constituição do indivíduo (por narcisismo especular: a imagem que o outro reflete é um outro “eu”, capto o outro como imagem de mim). Nos dois casos arruína-se o encontro: no primeiro, o caos afunda-se num buraco negro; no segundo, o espelhamento tende a abolir as diferenças, na própria diferencia-ção numérica: 1+1=1.

Mas o efeito maior do espelhamento está por referir: a emissão de vida que se projeta e depois se reflete no corpo-espelho. A esse fenômeno, psicólogos e etnólogos chamaram “antropomorfização” e “animismo”, termos mal escolhidos porque não se trata de transferência de formas, mas de forças; nem resulta de um juízo atributivo, mas de uma projeção real de forças. O CEF, ao emitir partículas virtuais, comunica vida aos seres e às coisas. Acorda nestes a vida que as atravessa e reflete-a, para o corpo emissor, transformando-o. Nesse sentido, o espelhamen-to supõe não só a emissão de partículas virtuais, mas toda uma “subjectividade do meio”4 própria do meio-mapa que reflete o desejo emitido. O mundo, como a paisagem, é um meio de forças de vida em que o CEF mergulha e encontra outros corpos que reenviam a todos a vida que os atravessa. A força que o CEF lança “levando” as partículas é a vida. A palavra trocada é “levada” pelo incons-ciente da linguagem que drena uma força vital (por isso, há palavras que matam literalmente, como o sabe bem a feitiçaria; ou se mata pela “honra” – que contém, no sangue, a força da vida –, como bem o sabem os etnólogos).

Forma-se então um plano de vida. Aí se conectam os corpos – e o encontro resulta e pega com o vínculo mais forte (a vida) que liga um homem a outro. Que uma pessoa se prenda a outra pela vida que transmite e recebe (e se entretece com a sua), implica um campo de experiência aquém do verbal e do não verbal. O que aí se transmite é o substrato que permite a troca da fala, das partículas virtuais e mes-mo dos elementos dos inconscientes dos corpos. O plano da vida não é molar nem molecular, está num outro espaço sem escala.

Ao refletir as forças do mundo transformando-as em forças vitais, o CEF anima o espaço, criando possibilidades infinitas. O bom encontro abre o espaço do corpo em todas as direcções, porque as forças vitais se espelham por todos os corpos. Abre-se o espaço e os corpos: os vazios multiplicam-se, porque cada corpo, que encerra múltiplos corpos virtuais, se multiplicou.

O acaso rasga o espaço à volta e dentro do corpo. Quanto mais fortuito for o encon-tro, mais necessariamente será um bom encontro. Para tanto, convém desejar o acaso. Eliminar a razão suficiente e o princípio de causalidade. Dispor-se a acolher o acaso no caos e microcaos que temos sempre em reserva. Quanto mais espaços vazios nasce-rem, mais encontros se tornam possíveis, porque maior é a margem do acaso que os acompanha. Um encontro extremamente fortuito multiplica-se em múltiplos encon-tros fortuitos – e assim indefinidamente. Um bom encontro – que aumenta a alegria a potência de agir – é um multiplicador de encontros. Um bom encontro é um mul-

4. Deleuze, Critique et Clinique. Paris: Minuit,

1993, p. 81.

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ENCONTRO

tiplicador de singularidades. Dois homens que se encontram formam uma multidão.Porque todas as coisas se animam e proliferam, os seres elevam-se, entram na ima-nência da terra ao ar, do exterior ao interior, da consciência ao inconsciente, do um à multiplicidade, do corpo ao espírito. O bom encontro aumenta a potência do mun-do fazendo os corpos levitarem. Da sua leveza irradia o máximo poder de devir. O devir-mundo dos que tiveram a sorte de se encontrar.

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Foto Ivson Miranda Grupo Magiluth

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ENCONTRO

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C R I S T I A N E PAO L I Q U I TO

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UMA CARTA

UMA CARTA

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C R I S T I A N E PAO L I Q U I TO

UMA CARTA

DA NATUREZA DOS ENCONTROSCRISTIANE PAOLI QUITO

Agosto, São Paulo,

2011, Avenida Paulista,

Itaú Cultural, Rumos Teatro

ansiedade das resultantes

de experiências inusitadas

geradas por encontros desejados, esperados,

sonhados

outros nem tanto,

apenas encontros fabricados

por oportunidades de um interessante edital

para amostragem de processos teatrais/cênicos

do convívio criativo

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139DA N AT U R E Z A D OS E N CO N T ROS

UMA CARTA

entre grupos vindos de todo o Brasil

um grupo já traz em si a coragem,

ou intenção, da disponibilidade para a entrega,

troca

no encontro das ideias, dos tempos, do espaço

das flexibilidades da recepção da aceitação

e certamente do confronto

teatro conflito!

já dizia um grande sábio

do atrito nasce a luz!

o coletivo formado por indivíduos

de repente se torna ele mesmo uma unidade

que se intersecta a outra que

também é formada por múltiplos pensamentos

claro que existem os líderes,

mas a administração de vontades, opiniões, emoções

egos, nem sempre é fácil

sabemos ser delicada a tarefa para uma verdadeira escuta

a aceitação das nossas diferenças

de nossas identidades, espelhamentos

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C R I S T I A N E PAO L I Q U I TO

fantasmas

limites, julgamentos, admiração, intolerância,

paixão, deslumbramento, frustrações, alegrias...

além do momento de cada grupo e cada um

a fricção

e o espaço modificado, não só pela presença de novos elementos

humanos, culturais, físicos, regionais

como pelo deslocamento das vivências

um na sede de outro

ou mesmo num terceiro lugar

retira a experiência do confortável e

a coloca no imprevisível, instável

risco

certamente muitos viveram esse risco

durante a “viagem” processual

(outros, talvez, nem saíram do chão)

mas no momento do processo/palco/apresentação

do jogo vivido “entre” eles

muitos deixaram de se arriscar em processo nas apresentações

agarrando-se em formas e fórmulas

talvez por conta de um outro e forte encontro

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UMA CARTA

a plateia

o espaço formal entre palco/plateia acentua tradicionalismos,

mas que também foram quebrados com simplicidade e com beleza

a proposta do edital era o experimental no palco (tudo valia)

ou em qualquer outro canto da cidade

desde que muito antecipadamente proposto

São Paulo não é fácil,

mas é incrível

o pressuposto de mostrar experimentos à plateia

muitas vezes nos engole em ansiedade e angústia, em sermos entendidos

e o público mais desatento ou desacostumado sobre a realidade do que está vivenciando se impacienta querendo resultados,

então invariavelmente processos são atropelados

boas e corajosas exceções também existem e existiram

a nós, Eleonora Fabião e eu,

cabia entender ou nos aproximarmos das naturezas dos encontros,

que com certeza se mostravam filtrados em palco,

mas transparentes (mesmo que escondidos)

na pequena sala de discussões de todas as manhãs

tarefa difícil entrar na intimidade de relacionamentos de criação

o que verdadeiramente viveram, apreenderam e quais as resultantes

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C R I S T I A N E PAO L I Q U I TO

deve ainda reverberar por recepção e absorção

assim como por resistência e repulsa

ou simplesmente um momento bom de compartilhamento em torno

do universo teatral

com certeza rico, pois refletido, questionado

algumas emoções vieram à tona, intensidades, revelações...

como é borbulhante o envolvimento nas relações teatrais,

nas buscas do entendimento, da metodologia, da comunicação,

da ruptura, do viver

para o encontro de novos ou outros caminhos

Rumos

naquele momento me sentia privilegiada por

assistir e discutir com tantas pessoas e

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UMA CARTA

“escolas” diferentes do fazer teatral

sei o quanto fiquei impregnada daqueles instantes

tenho imagens e sensações

daquelas noites, manhãs e poucas tardes

algumas perguntas jamais respondidas

intuições e inspirações lúcidas

certezas abaladas,

história do teatro presente,

muita clareza de gosto pessoal rompida,

para a entrada de outros panoramas,

acolhendo diferenças e

semelhanças

intensas

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I N S T I T U TO I TAÚ C U LT U R A L

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BIOGRAFIAS

André Lepecki é professor associado do departamento de estudos de performance da Universidade de Nova York. Doutor pela mesma universidade, atua como curador, ensaísta e dramaturgo. Autor do livro Exhausting Dance: Performance and the Politics of Movement (Routledge, 2006 – traduzido atualmente em sete línguas), também editou as publicações Of the Presence of the Body (Wesleyan UP, 2004), Planes of Composition (Seagull Press, com Jenn Joy, 2009) e Dance (Whitechapel/MIT Press, 2012), entre outras. Trabalha no momento com as relações entre a escultura e a dança.

Cecília Almeida Salles é professora do programa de pós-graduação em comuni-cação e semiótica da PUC/SP. Coordenadora do grupo de pesquisa em processos de criação, foi curadora do evento Redes da Criação (2008), no Itaú Cultural. É au-tora dos livros Gesto Inacabado (1998), Crítica Genética (2008), Redes da Criação (2006) e Arquivos de Criação: Arte e Curadoria (2010) e atualmente dirige a editora e o espaço cultural Intermeios: Casa de Artes e Livros, em São Paulo.

Cristiane Paoli Quito é atriz, produtora, sócia fundadora da Pimba Produções Artísticas e diretora da Cia. Nova Dança 4. Projetou-se na cena teatral paulista nos anos 1990, por seus espetáculos recheados de técnicas e referências da commedia dell’arte. Na segunda metade da década, voltou-se para a dança e desenvolveu uma linguagem própria, voltada para a pesquisa sobre a dramaturgia do intérprete em im-provisação. Foi diretora da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD/ECA−USP) entre 2005 e 2009, na qual leciona e monta espetáculos desde 1996. Foi professora do curso comunicação das artes do corpo da PUC/SP de 2001 a 2004. Entre 1996 e 2007, foi diretora e professora do Projeto Estúdio Nova Dança.

Cristina Espírito Santo é gestora cultural e coordenadora do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural, no qual atua desde 2000. Formada em história pela USP e pós-graduada no curso de especialização em gestão cultural/Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Universidade de Girona. Organizou o livro Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2009/2010, em parceria com Sonia Sobral e Christine Greiner.

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Eleonora Fabião é atriz, performer e teórica da performance. Professora adjunta e coordenadora do curso de direção teatral da Escola de Comunicação da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na qual leciona desde 1997, é doutora em estudos da performance pela Universidade de Nova York e mestre em história so-cial da cultura (PUC/RJ). Suas últimas performances investigam relações pessoais em escala pública. Lecionou recentemente na Universidade de Nova York, na Freie Universität Berlin e na Norwegian Theater Academy, entre outras instituições. Con-duziu workshops e palestras no evento Próximo Ato: Encontro Nacional de Grupos Teatrais, promovido pelo Itaú Cultural em diferentes regiões do Brasil.

José Fernando Peixoto é dramaturgo e diretor do Teatro de Narradores, além de pro-fessor da EAD/ECA−USP, pela qual se formou doutor em filosofia. Foi editor da Revista Camarim e tem artigos publicados nas revistas Reportagem e Vintém, entre outras.

Jose Gil é filósofo, nascido em Moçambique. Em 1957, passou a estudar ciên-cias matemáticas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Em 1958, mudou-se para Paris, onde percebeu que preferia filosofia à matemática. Em 1968, concluiu a licenciatura na Faculdade de Letras de Paris, na Universidade Sorbonne e, no ano seguinte, fez mestrado em filosofia. Em 1982, concluiu o doutorado com a tese Corpo, Espaço e Poder, editada em livro, em 1988. Foi coordenador do depar-tamento de psicanálise e filosofia da Universidade de Paris VIII. Em 1976, regressou a Portugal para ser adjunto do secretário de Estado do Ensino Superior e da Inves-tigação Científica. Cinco anos mais tarde passou a ser professor auxiliar convidado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Em 2004, publicou Portugal, Hoje. O Medo de Existir, sua primeira obra escrita direta-mente em português.

Kil Abreu é jornalista, crítico e pesquisador de teatro. Pós-graduado em artes pela USP, foi curador dos festivais de teatro de Curitiba e de Recife e crítico do jornal Folha de S.Paulo e da revista Bravo!. Dirigiu o departamento de teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e é membro e jurado do Prêmio APCA (As-sociação Paulista de Críticos de Arte). Mantém estudos sobre dramaturgia e teatro brasileiro contemporâneo.

Maria Tendlau é atriz, encenadora, educadora e gestora cultural. Dividiu o conselho curatorial do Próximo Ato − Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo, do Itaú Cultural, com José Fernando Azevedo e Antonio Araújo por quatro anos. Atual-mente é curadora de teatro do Centro Cultural São Paulo. Integra o Coletivo Bruto da Cooperativa Paulista de Teatro.

Matteo Bonfitto é ator, diretor e pesquisador teatral. Formado pela EAD/ECA−USP, pelo DAMS, da Universidade de Bologna, na Itália, e pela Royal Holloway Uni-versity of London, na Inglaterra, atuou em espetáculos no Brasil e no exterior, como Em Lugar Algum, Silêncio, All Scars Are Nice and Clean, Descartes e Nativo. Além de

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vários artigos sobre o trabalho do ator, publicou os livros O Ator Compositor (2002) e A Cinética do Invisível (2009), ambos pela Editora Perspectiva. Desenvolveu pes-quisas sobre o trabalho do ator e do performer junto ao The Graduate Center (Cuny), em Nova York, e à Freie Universität de Berlim. Leciona no departamento de artes cênicas da Unicamp e é um dos fundadores do Performa Teatro − Núcleo de Pesquisa e Criação Cênica (www.performateatro.org).

Sonia Sobral é gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural, desde 1999. Participou da criação de diversos projetos, entre os quais se destacam o Rumos Dança, mapeamento e fomento nacional de dança contemporânea; o Próximo Ato – Encontro Internacional de Teatro Contemporâneo e o Rumos Teatro, encon-tro nacional de teatro de grupo. Entre os projetos que coordena estão a Enciclo-pédia Virtual de Teatro, a Enciclopédia Virtual de Dança e a Ocupação – programa com exposições e tratamentos de acervos de artistas brasileiros, como José Celso Martinez Corrêa, Flávio Império, Ballet Stagium e Nelson Rodrigues. Organizou a coleção Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2006−2007 e a coorganizou no biênio 2009−2010.

Suely Rolnik é psicanalista, crítica de arte e de cultura e curadora. É professora titular da PUC/SP e fundadora do núcleo de estudos da subjetividade na pós-graduação de psicologia clínica. É membro do corpo docente do Programa de Estudios Inde-pendientes (PEI), no Museo d’Art Contemporani de Barcelona (MacBa), desde sua fundação, em 2007. Entre suas publicações, escreveu em coautoria com Félix Guattari Micropolítica − Cartografias do Desejo (Vozes, 1986; 11ª ed. 2011), cuja sétima edição revista e ampliada (2005) foi publicada em sete países. Autora de mais de 80 ensaios publicados em vários países em coletâneas, em revistas de arte e de cultura e em catálogos de exposições.

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FICHA TÉCNICA LIVRO

OrganizaçãO

Cristina Espírito SantoEleonora FabiãoSonia Sobral

COOrdenaçãO geral

Núcleos de Artes Cênicas e Comunicação

direçãO de arte

Jader Rosa

PrOjetO gráfiCO

LuOrvat Design

PrOduçãO editOrial

Lívia G. Hazarabedian

ediçãO

Roberta Dezan

COOrdenaçãO de revisãO

Polyana Lima

revisãO

Ciça Corrêa (terceirizada)Karina Hambra (terceirizada)

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FICHA TÉCNICA DVD

direçãO

Cassandra Mello

COOrdenaçãO geral

Núcleo de Artes Cênicas OrganizaçãO de COnteúdO

Cristina Espírito SantoEleonora FabiãoSonia Sobral

Câmeras

Cassandra MelloFred SteffenPaulo Plá CaPtaçãO de sOm

Cauê DokCristina RangelDipa

PrOduçãO

Débora Carillo Rafael GhirardelloRodrigo Faria assistênCia de Câmera e lOgger

Alexandre Turina

ediçãO

Cassandra MelloFred Steffen finalizaçãO

Fred Mauro

mixagem

Estúdio Audiorama (Dipa) trilha sOnOra (abertura e CréditOs)Estúdio Audiorama | Márcio Arantes

after effeCts

Marina Hiromi

autOraçãO dO dvdErika Togniolo equiPe dO núCleO audiOvisual dO itaú Cultural

Paula BertolaKarina FogaçaRodrigo Lorenzetti

PrOduçãO

Ateliê EletrônicoItaú Cultural

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Centro de Documentação e Referência Itaú Cultural Catalogação na publicação (CIP)

Rumos Itaú Cultural Teatro 2010-2012 : Encontro / organização Cristina Espírito Santo, Eleonora Fabião, Sonia Sobral. – São Paulo : Itaú Cultural, 2013. 156 p. ; + 2 DVDs

Acompanha encartado 1 livreto

ISBN 978-85-7979-039-3 1. Artes cênicas. 2. Companhias de teatro. 3. Teatro contemporâneo. 4. Rumos Itaú Cultural Teatro. I. Título. CDD 792

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tipografia Verlagpapel alta alvura 90g/m2

impressão Gráfica Editora Aquarela S/Atiragem 2000

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Realização