cirillo. crítica genética

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Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010 LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE Geografia íntima: um estudo dos documentos e arquivos nas artes visuais José Cirillo* Universidade Federal do Espírito Santo RESUMO – Os documentos e arquivos do processo de criação trazem em si evidências da interação da mente criadora: consigo mesma, com a matéria de sua construção, com o ambiente e com o público, revelando uma cartografia íntima desse espaço que é a criação nas Artes. Este trabalho tem por objetivo situar, sitiar e apresentar uma análise dos documentos de Shirley Paes Leme, materiais inestimáveis para a pesquisa genética sobre o processo de criação nas Artes Visuais no Brasil. Entendidos como sítio de armazenamento, reflexões e experimentações, esses documentos e arquivos de artista permitem a análise dos modos como o texto verbal e o texto visual fazem a mediação entre o plano das ideias e o plano material de elaboração da obra. Juntas, imagens e palavras permitem compreender os procedimentos gerais da investigação segundo um método próprio para os documentos de artistas, pautando-se na interação de metodologias da crítica genética e da história da arte de modo investigativo, crítico e flexível o suficiente para que os aspectos da diversidade de cada artista, de cada processo, sejam respeitados. Palavras-chave: Processo de criação; Artes visuais; Crítica genética; História da arte RESUMÉ – Les documents et les archives relatifs au processus de création portent en eux les évidences d’une interaction de l’esprit créateur avec lui-même, avec la matière de sa construction, avec l’environnement et avec le public. Cela révèle une cartographie intime de cet espace qu’est la création dans le domaine des Arts. L’objectif de cet article est de situer, circonscrire et présenter une analyse des documents de Shirley Paes Leme, matériel inestimable pour la recherche en critique génétique et sur le processus de création dans les Arts Visuels au Brésil. Compris comme lieu de stockage, de réflexions et d’expérimentations, ces documents et archives d’artistes permettent d’analyser comment le texte verbal et le texte visuel opèrent la médiation entre le plan des idées et le plan matériel de l’élaboration de l’œuvre. Ensemble, images et mots permettent de comprendre les processus généraux de l’investigation selon une méthode propre aux documents d’artistes, qui s’appuie sur l’interaction de méthodologies relatives à la critique génétique et à l’histoire de l’art de façon investigatrice, critique et suffisamment flexible afin que les aspects de la diversité de chaque artiste, de chaque processus, soient respectés. Mots-clé: Processus de création; Arts visuels; Critique génétique; Histoire de l’art O estudo da arte contemporânea, a partir dos do- cumentos e arquivos dos artistas, coloca-se em sintonia com investigações em diferentes campos do saber, os quais começaram, desde a década de 1980, a focar não somente o objeto concluído, mas também a sua tessitura. O processo de fabricação, de elaboração da obra passou a ser investigado, buscando revelar novas perspectivas dos fenômenos sensíveis, a partir desse compartilhamento com a mente no momento da criação, cujas marcas memoriais encontram-se grafadas nesses arquivos e documentos, muitas vezes condenados ao esquecimento. Heloisa Bellotto, na apresentação do livro Arquivos de Cientistas (SANTOS, 2005), afirma que: A profusão de anotações, rascunhos, relatórios par- ciais, cadernos de testes, cadernetas de campo, diários [...], enfim, de documentos produzidos, recebidos e acumulados por pesquisadores, constituem um universo documental frequentemente esmaecido, quando não apagado, diante do almejado produto final expres- sivo. 1 * É pesquisador e artista plástico, vinculado ao grupo de pesquisa em Processo de Criação do Programa de Mestrado em Artes da UFES. Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em processos criativos, Teorias e História da Arte. Desenvolve pesquisas sobre a Arte Contemporânea no Espírito Santo com apoio da FAPES e do CNPq. 1 BELLOTTO, apud SANTOS, 2005, p. 7.

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Geografia íntima:um estudo dos documentos e arquivos nas artes visuais

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  • Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE

    Geografia ntima: um estudo dos documentos e arquivos nas artes visuais

    Jos Cirillo*Universidade Federal do Esprito Santo

    Resumo Os documentos e arquivos do processo de criao trazem em si evidncias da interao da mente criadora: consigo mesma, com a matria de sua construo, com o ambiente e com o pblico, revelando uma cartografia ntima desse espao que a criao nas Artes. Este trabalho tem por objetivo situar, sitiar e apresentar uma anlise dos documentos de Shirley Paes Leme, materiais inestimveis para a pesquisa gentica sobre o processo de criao nas Artes Visuais no Brasil. Entendidos como stio de armazenamento, reflexes e experimentaes, esses documentos e arquivos de artista permitem a anlise dos modos como o texto verbal e o texto visual fazem a mediao entre o plano das ideias e o plano material de elaborao da obra. Juntas, imagens e palavras permitem compreender os procedimentos gerais da investigao segundo um mtodo prprio para os documentos de artistas, pautando-se na interao de metodologias da crtica gentica e da histria da arte de modo investigativo, crtico e flexvel o suficiente para que os aspectos da diversidade de cada artista, de cada processo, sejam respeitados.

    Palavras-chave: Processo de criao; Artes visuais; Crtica gentica; Histria da arte

    Resum Les documents et les archives relatifs au processus de cration portent en eux les vidences dune interaction de lesprit crateur avec lui-mme, avec la matire de sa construction, avec lenvironnement et avec le public. Cela rvle une cartographie intime de cet espace quest la cration dans le domaine des Arts. Lobjectif de cet article est de situer, circonscrire et prsenter une analyse des documents de Shirley Paes Leme, matriel inestimable pour la recherche en critique gntique et sur le processus de cration dans les Arts Visuels au Brsil. Compris comme lieu de stockage, de rflexions et dexprimentations, ces documents et archives dartistes permettent danalyser comment le texte verbal et le texte visuel oprent la mdiation entre le plan des ides et le plan matriel de llaboration de luvre. Ensemble, images et mots permettent de comprendre les processus gnraux de linvestigation selon une mthode propre aux documents dartistes, qui sappuie sur linteraction de mthodologies relatives la critique gntique et lhistoire de lart de faon investigatrice, critique et suffisamment flexible afin que les aspects de la diversit de chaque artiste, de chaque processus, soient respects.

    mots-cl: Processus de cration; Arts visuels; Critique gntique; Histoire de lart

    O estudo da arte contempornea, a partir dos do- cumentos e arquivos dos artistas, coloca-se em sintonia com investigaes em diferentes campos do saber, os quais comearam, desde a dcada de 1980, a focar no somente o objeto concludo, mas tambm a sua tessitura. O processo de fabricao, de elaborao da obra passou a ser investigado, buscando revelar novas perspectivas dos fenmenos sensveis, a partir desse compartilhamento com a mente no momento da criao, cujas marcas memoriais encontram-se grafadas nesses arquivos e

    documentos, muitas vezes condenados ao esquecimento. Heloisa Bellotto, na apresentao do livro Arquivos de Cientistas (SANTOS, 2005), afirma que:

    A profuso de anotaes, rascunhos, relatrios par-ciais, cadernos de testes, cadernetas de campo, dirios [...], enfim, de documentos produzidos, recebidos e acumulados por pesquisadores, constituem um universo documental frequentemente esmaecido, quando no apagado, diante do almejado produto final expres- sivo.1

    * pesquisador e artista plstico, vinculado ao grupo de pesquisa em Processo de Criao do Programa de Mestrado em Artes da UFES. Doutor em Comunicao e Semitica pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2004). Tem experincia na rea de Artes, com nfase em processos criativos, Teorias e Histria da Arte. Desenvolve pesquisas sobre a Arte Contempornea no Esprito Santo com apoio da FAPES e do CNPq.

    1 BELLOTTO, apud SANTOS, 2005, p. 7.

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    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    Falando sobre o fazer dos cientistas, Bellotto parece estar se referindo tambm a uma prtica comum nas artes: a produo de arquivos e documentos do processo de criao. fato que o processo de criao nas artes visuais acompanhado pelo registro das reflexes da mente criadora em determinados suportes e arquivos (mveis ou no), os quais deixam acessveis alguns vestgios do ato criador. Porm, pode ser destacado que vrios artistas (ou pesquisadores) no guardam esses documentos ou no os geram, nesse caso, no podem ser objeto deste tipo dos estudos genticos ou documentais a no ser que se faa um estudo longitudinal, no qual o crtico do processo acompanha diariamente o processo de criao de um artista ou grupo.2

    No entanto, so incontveis aqueles produtores que originam essa profuso de documentos e anotaes apontadas por Bellotto. Estudar esses arquivos uma contribuio tanto para a crtica e histria da arte, quanto para a teoria da arte e, mesmo, para a sociologia da cincia. Para a teoria, crtica e histria da arte, ele abre caminho para um mapeamento e contato com as decises e incertezas do artista no seu processo de aproximao do objeto expressivo desejado, revela a obra a partir de seus procedimentos, diretrizes e encargos que envolveram o projeto em tela; tambm nessa mediao com as diretrizes e encargos (BAXANDALL, 2006) comeam a estabelecerem-se as contribuies para o entendimento da arte como um fenmeno em interao com o contexto social. Assim, para a sociologia da arte e da cincia, esse estudo revela as interaes com o outro socialmente institudo, com a sociedade em si e com a cultura, antes mesmo dela se manifestar como obra ou na obra.

    Apesar desta relevncia dos estudos do processo para a arte e para a cincia, no h, entretanto, uma poltica documental (mesmo nos estudos arquivsticos) clara que trate esses documentos e arquivos para alm de uma viso memorialstica ou de uma relao voyeuriste de acesso intimidade do artista. H, ainda, uma outra tendncia no trato com esses documentos e arquivos, comum em projetos curatoriais: atribuir-lhes o status de obra o que feito por meio de estratgias de emoldurao desses documentos, as quais os isolam de seu contexto e lhes colocam o atributo de obra-prima (vrios estudos de Rodin so hoje exibidos como masterpieces do arista que, apesar de sua genialidade, nunca lhes atribui outro valor que no o de estudo).

    Este trabalho tem por objetivo situar, sitiar e apre- sentar uma anlise geral dos documentos do processo da artista plstica brasileira Shirley Paes Leme, os quais tm sido material inestimvel para a continuidade de uma ao investigativa sobre o processo de criao nas Artes Visuais. Busca-se compreender os procedimentos gerais que possibilitam uma aproximao com o papel

    da memria e do espao como matria no projeto potico dessa artista.

    Shirley Paes Leme nasceu em 1955, em Cachoeira Dourada-GO. Vive e trabalha em Uberlndia-MG, e So Paulo-SP. Em 1978, graduou-se em Belas Artes (Desenho), pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte). Em 1983, co- mo bolsista da Comisso Fulbright (Estados Unidos), transferiu-se para aquele pas, onde iniciou o curso Master of Fine Arts (MFA) na University of Arizona at Tucson (Tucson), transferindo-se em seguida para a John F. Kennedy University (Berkeley), onde concluiu o doutorado em Artes em 1986. Segundo Paes Leme, em entrevista em 2002, essa transferncia foi uma sugesto de sua orientadora em Tucson:

    E chegando l, minha professora mesmo falou: no! Acho que quando a gente discutia... desenhava muito, ento ela falava que achava que eu j estava equivocada... que eu j era uma artista... que eu tinha que buscar novos horizontes, que eu tinha que ir pra um lugar melhor, ento eu tinha que ir pra Nova Iorque, a eu fui pra Nova Iorque... no gostei, achei muito... muito complicado assim, a situao de viver... um... e a eu fui conhecer Berkeley, me apaixonei por So Francisco, pela paisagem, por tudo e resolvi mudar pra So Francisco.3

    Entre 1984 e 1986, frequentou o San Francisco Art Institute, na University of California at Los Angeles e na University of California at Berkeley, onde tambm trabalhou no University Art Museum. Em 1999, participou do programa de artista residente no Knstlerhaus Bethanien (Berlim, Alemanha).

    De 1979 at 2003, lecionou na Faculdade de Artes da Universidade Federal de Uberlndia, sendo titular da cadeira de Mixed Media desde 1979. Integra tambm o corpo docente da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte) e da Faculdade Santa Marcelina (So Paulo), como professora visitante. De 1999 a 2000, foi diretora do Museu Universitrio da Universidade Federal de Uberlndia.

    No incio desta tentativa de reconstruir o artista e seu processo de criao, a partir dos documentos da gnese de suas obras, vale relembrar uma advertncia de Valry (apud SALLES, 1998, p. 101): preciso estar consciente de que se est fabricando uma personagem imaginria.

    2 Sobre esses estudos longitudinais ver o estudo realizado por Ceclia Almeida Salles na reflexo sobre seu trabalho de acompanhamento de um grupo de bal em So Paulo, in SALLES, C. Crtica gentica, 2008.

    3 Transcrio de trecho da entrevista realizada com a artista em dezembro de 2002. Os demais fragmentos dessa entrevista que aparecem neste texto no sero indicados novamente, pois fazem parte de um mesmo depoimento. Assim, somente quando no se referirem a essa entrevista que outras notas sero inseridas.

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    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    Cadernos e anotaes

    A produo de Paes Leme ininterrupta desde os tempos da Faculdade de Artes na UFMG. Entretanto, o hbito de anotar ideias e imagens geradoras que poderiam desdobrar-se em obras posterior sua ida para os Estados Unidos, muito embora tenha ganhado, ainda em Belo Horizonte, nos tempos da Faculdade de Artes, o seu primeiro caderno de artista.

    [...] um professor da Escola de Belas Artes, que foi o nico assim... que de fato abriu o conceito pra mim... que o Eduardo Lupi, ele falava ... falou assim comigo: voc trabalha com linhas, tudo o que voc faz com linhas... ... A ele me deu um scketch book, um livro de rascunhos, e falou comigo: vai pensando, o que for pensando vai escrevendo aqui.

    Shirley mesma escreveu na capa interna desse livro: de Lupi para Shirley, 1980. Essa data no corresponde ao seu perodo como aluna da UFMG. Tudo indica que foi escrita posteriormente. Independente dessa questo de datao, no incio da dcada de 1980 que Paes Leme inicia o uso de suportes fixos para anotao de informaes sobre seus projetos. Muito embora este no seja o caderno mais utilizado pela artista, nem o que contm informaes mais pormenorizadas das obras em estado embrionrio, ele preserva muito do frescor do pensamento criador de Paes Leme no incio de sua carreira.

    No seu conjunto, os documentos de Paes Leme compem 10 cadernos de formatos (entre 20 x 26 cm e 22 x 32 cm) e encadernaes variadas, alguns com capa dura e outros com encadernao do tipo brochura comprados prontos ou fabricados por ela mesma. Esses 10 cadernos, que funcionam como suportes para registros de toda a ordem, envolvem o perodo entre 1980 e 2003. Alguns so datados, porm a ordem e numerao dos cadernos seguem uma classificao feita por Paes Leme, a qual foi respeitada. Entretanto, vale destacar que essa ordenao no corresponde s informaes dadas por algumas datas presentes no interior de alguns deles o que caracteriza a lgica cronolgica no cartesiana que envolve o movimento criador, sendo um ndice, assim, da grande mobilidade do seu uso como suporte de registros assistemticos. Alm desses cadernos, pode-se contar com algumas folhas avulsas e arquivos digitais com projetos e/ou memoriais reflexivos sobre o trabalho da artista, bem como entrevista informal realizada em dezembro de 2002. Ainda foi disponibilizado um conjunto de textos originais de curadores e crticos de arte que buscaram uma anlise de sua produo nos ltimos 20 anos.

    Quando a leitura percorre os cadernos de Paes Leme, eles impelem ao leitor realizar dois movimentos: de um lado, uma apreciao voyeurista da geografia ntima da artista, o que permite uma viagem silenciosa pelos segre-

    dos da sua memria, levando-o a penetrar territrios que, sombra do passado, revelavam ambientes quase sempre ocultos, cujas fronteiras vo sendo (des)construdas pelo e no processo de criao; de outro lado, a senhora dos siln-cios para usar uma expresso grafada nesses cadernos, avisando que navegar preciso, se pe ao olhar investi-gativo e, com uma velocidade lacerante, as suas anotaes comeam a desvelar uma certa ordenao catica que se dispe incompletude da elucidao investigativa.

    Esses cadernos permitem o acesso s marcas do ato criador, as quais, materializadas, preservam um pouco do frescor da criao. So marcas indiciais, signos cuja incompletude e vagueza apontam alguns modos de funcionamento da mente criadora, meandros do processo de criao da artista que, como uma espiral, se movimenta em contnuo alis, a imagem da espiral comum nos documentos de Paes Leme.

    Como sistema de signos, os cadernos so possuidores de certa ordenao.

    Porm, essa ordenao catica, posta a no-li- nearidade desse sistema complexo que so os documentos do processo. Assim, a sua anlise envolve primeiramente a definio artificial de um ponto zero de investigao a ser definido pelo crtico gentico dentro do recorte realizado para a determinao do prototexto. esse recorte que definir os prximos captulos que buscam a especificidade de algumas anotaes de Paes Leme, quanto a alguns aspectos que envolvem o processo de criao, especificamente o seu, no que ele tangencia os meandros da comunicao e do desvelar de algumas recorrncias que se estabelecem no percurso gerativo da artista.

    A natureza das anotaes

    A natureza das anotaes presentes nestes documentos (cadernos e arquivos avulsos) varia desde breves notas esquemticas sobre um determinado fenmeno, algumas contendo imagens geradoras, at complexos sistemas conceituais e construtivos de uma obra j em avanado estado de maturao; o que vale salientar, no se d em uma sequncia nos cadernos. Estados distintos de uma mesma obra encontram-se em dois ou mais cadernos, o que faz pensar que seu uso para alm de um dirio, cronologicamente constitudo dos procedimentos de uma obra.

    Retomando Hay, se os dirios so obras do tempo, esse tempo no o mecnico dos relgios, est mais prximo do tempo corporal expresso nos humores e desejos, nas batidas do corao, na taquicardia ofegante, no sentimento e no calor das decises tomadas no corpo enquanto avana pela existncia (CIRILLO, 2004). Os cadernos da artista se apresentam como uma extenso da mente criadora que grafa a idia e os seus desdobramentos em algum lugar

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    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    da memria, no espao vivencial da memria, o qual [...] representa, portanto, uma ampliao extraordinria, multidirecional do espao fsico natural. Agregando-se reas psquicas de reminiscncias de intenes, forma-se uma nova geografia ambiental, geografia unicamente humana (OSTROWER, 1997, p. 18). Nesse local que podem ser localizadas as imagens geradoras que sero agrupadas pela artista, quando isso for necessrio, e do modo que o for.

    Tal procedimento afasta a possibilidade de uma compreenso linear tanto do seu processo criador, como do uso dos cadernos. Assim, os vestgios apontam os rumos e procedimentos da mente criadora da artista e suas estratgias estticas e ticas para a materializao da obra em busca de uma recompensa material.

    O desejo do artista pede uma recompensa material. Sua necessidade o impele a agir, gerando um processo complexo de materializao, no qual todas as questes que envolvem essas tendncias, discutidas at aqui, interferem continuamente. O propsito , deste modo, transformado em ao.

    A concretizao uma ao potica, ou seja, uma operao sensvel ampla no mbito do projeto do artista.4

    O que se coloca nos documentos de processo so fragmentos que, por uma ao de ir e vir constante, so revisados, adaptados, transformados para estabelecerem uma relao de cumplicidade dos desejos da artista com as marcas que envolvem o manuseio dos elementos que buscam uma ao potica de corporificao da obra a ser apresentada.

    Diferentes sistemas semiticos: verbal e visual

    Como stio de armazenamento das informaes que se pem no entorno sensvel nos documentos de Paes Leme, a presena de palavras e imagens uma constante, embora, como comum nas artes visuais, haja a predominncia de imagens sobre as palavras. Juntas, imagens e palavras referem-se captura da impresso deixada pelos fenmenos do mundo em volta da artista, bem como do seu mundo interior composto de sonhos e devaneios da imaginao; e, no obstante, informaes e discusses sobre projetos em andamento ou no.

    O carter das palavras

    Na leitura desses cadernos, interessante observar que os textos verbais se estabelecem em funes diferenciadas.

    Assim, as palavras desempenham um papel bem definido (no rgido e nem fixo) no procedimento da artista e tm um carter que pode ser: imperativo, indicativo-descritivo, contrastivo, narrativo e/ou potico-reflexivo. Esses usos podem ser observados simultaneamente nos vrios documentos, porm possvel estabelecer categorias para cada conjunto de texto verbal, assim, buscou-se identificar e classificar tais ocorrncias.

    Paes Leme faz uso do carter imperativo de palavras que funcionam como coeres de possveis aes; em alguns casos, definindo movimentos e decises que envolvem a execuo de determinada parte da obra: aquilo que observado como deve permanecer como tal (Fig. 1).

    Fonte: anotaes e cadernos da artista (C3:35)

    Figura 1 Shirley Paes Leme, Detalhe da pgina dos cadernos da artista

    Essa pgina detalhe de um estudo para a instalao Pela Fresta, de 1998. Algumas constataes do espao especfico so definidas com os verbetes: parede brancas, e so acompanhadas de uma ordenao: sero brancas, a qual reforada numa inflexo imperativa: (ficaro). No h espao aqui para a dvida, esse elemento do trabalho j est definitivamente resolvido.

    As palavras aparecem, tambm, como se pode perceber na imagem anterior, com um carter indicativo-descritivo. Com essa funo, eles indicam materiais (mesmo transitrios em alguns casos), definindo detalhes da forma, ou dimenses: tela de galinheiro, por exemplo; ou descrevendo alguma caracterstica imediata do objeto ou da forma: parede brancas indicando uma caracterstica do espao da galeria. Em outra pgina dos cadernos de Paes Leme (Fig. 2), tem-se mais um exemplo desse uso indicativo e descritivo: so estudos preliminares para as instalaes Fogo Fel e So ambas 4 SALLES, 2008, p. 52.

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    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    do mesmo perodo que Pela Fresta, nos quais a artista desenha tridimensionalmente, com galhos de eucalipto, formas indiciais das marcas deixadas na sua memria por objetos de sua infncia. Alis, esses desenhos reforam a tendncia para o uso da linha, caracterstica inerente ao projeto potico da artista que enfatiza sua interface com esta linguagem das artes visuais.

    Outra funo, ainda verificada, dada pelo carter contrastivo das palavras escolhidas, indicando relaes de oposio entre os elementos de um projeto: cheio/vazio,janela/coluna oposio. Isso pode ser visto na Figura 3, que um estudo das relaes de verticalidade e horizontalidade do espao especfico da instalao Pela Fresta (1998). Na tentativa de apreender as relaes do espao com a obra, caracterstica recorrente em grande maioria da produo dessa artista, principalmente nas suas obras tridimensionais, Paes Leme identifica as oposies primeiras presentes no local da instalao.

    Assim, uma noo de verticalidade e horizontalidade estabelecida por meio de oposies semnticas que so indiciais da relao que a artista estabelece com o espao (galeria em que a obra ser montada) no projeto em curso: passivo esttico, em contraposio com ativo, dinmi- co = chama. Essas relaes indiciais da experimenta- o conceitual do espao sero detalhadas em captulo posterior. Por ora, limita-se anlise da natureza das palavras que se apresentam nos documentos anali- sados.

    O carter narrativo se d principalmente no registro de sonhos, ou nos memoriais descritivos. Paes Leme narra esses sonhos, como para evitar que eles caiam no esquecimento e assim garantir o carter gerador que eles tm no seu processo de criao. Muitos desses sonhos, no descritos aqui por solicitao da artista, desdobram-se e, se no se constituem obras posteriores, ao menos so campos de reflexo e construo de um outro vivido que se constituir como matria no seu projeto criativo.

    A observao dos documentos permitiu, ainda, desvelar os procedimentos da artista para a elaborao de seus memoriais, e mesmo para a escolha dos ttulos. Essas escolhas parecem decorrer de uma ao de carter potico-reflexivo. A reflexo sobre os ttulos, escolhidos aps uma sucesso de palavras simples ou compostas, as quais vo sendo pinadas por meio de uma comparao reflexiva, culmina em combinatrias para a determinao do ttulo alis, essa uma prtica comum da artista. A funo potico-reflexiva tambm observada nas reflexes conceituais sobre o processo ou elaborao de experimentaes conceituais, como the wire means power, bem como nos poemas-conceito que desenvolve, os quais visam materializao do conceito que ela constri para o trabalho. Neste ltimo caso, pode-se transcrever o poema O Cubo, reflexo a respeito dessa

    Fonte: anotaes da artista (C3:11).

    Figura 3 Shirley Paes Leme, Uso contrastivo do texto verbal

    Figura 2 Shirley Paes Leme, Estudos preliminares da instalao Fogo Fel, 1998.

    forma geomtrica que foi utilizada na elaborao de um conjunto de obras, caixas que contm matria:

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    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    A forma-contedo. A caixa. O abrigo

    A caixa smbolo do corpo materno recebe,Transforma, cria algo novo [...]o galho o que preenche o vazio conhecimento o que muda o mundo.So parecidos mas no so iguais4

    Essa ao reflexiva pode tambm ser vista nas figuras 4 e 5. Esse exerccio reflexivo sobre as formas e conceitos que envolvem o trabalho de Paes Leme d-se tanto de modo mais complexo e potico, como no caso do Cubo, ou de modo mais simplificado, e no menos reflexivo como nas imagens a seguir. Na Figura 4, a artista parece tomar para si a fenomenologia do redondo bachela- riano.

    O redondo unidade (unity), o princpio (the origin). Na Figura 5, essa reflexo sobre a redondez encontra no Sol (chama) sua sntese: a transcendncia de si mesma. Pode-se perceber que, nessas reflexes, poticas ou no, o uso da palavra em Paes Leme tende para um certo determinismo facilitado pelo carter aparentemente mais restritivo do signo verbal. O recorte feito por ela parece reduzir a um signo, o Sol, todo o contedo da ideia geradora. A imagem do Sol parece ser ndice da qualidade daquilo que redondo: a redondez transcendente (BACHELARD, 2000). O redondo unidade, origem, Sol.

    Apesar desse aparente determinismo no uso que Paes Leme faz da informao verbal, importante ressaltar que esses conceitos so mveis, visto que, em termos semiticos, a prpria vagueza e falibilidade do signo o colocam num estado sempre em movimento. So, portanto, definies transitrias que, no desenvolvimento do raciocnio da mente criadora, vo encontrando outras solues e relaes que completam essa indeterminao do projeto como signo. Essa transitoriedade aparente encon- tra seu estado relativamente esttico na obra termina- da depara-se a, entretanto, com sua incompletude, pois mente criadora foge-lhe dar por encerrada a sua ao, pois o signo carrega consigo o falvel e o inaca- bado.

    Desse modo, a obra terminada (um signo) determina, detona uma outra pesquisa esttica em busca incansvel por seus desdobramentos possveis, o que estabelece outros signos que juntos navegam comandados por um projeto potico tambm vago e indeterminado.

    Essa vagueza e indeterminao caracterizam o processo de criao como signo (SANTAELLA, 1998).

    Fonte: anotaes da artista (C3:10).

    Figura 5 Shirley Paes Leme, Detalhes de reflexes con- ceituais: a chama e o fogo.

    4 Trecho extrado do poema O cubo, no qual Paes Leme indica para um curador o que ela pensa sobre o cubo, parte de um trabalho exposto em So Paulo no MAM.

    Fonte: anotaes da artista (C3:09).

    Figura 4 Shirley Paes Leme, Reflexes conceituais sobre o redondo.

    a chama significa transcendnciadela mesmo. Luz significa o efeito da transcendncia no ambiente.Elemento do fogo o sol

    A funo das imagens

    Quanto s imagens, textos visuais, esto em esta- do provisrio na maioria das anotaes. Pode-se dizer que so imagens geradoras que [...] funcionam, na ver- dade, como sensaes alimentadoras da trajetria, pois so responsveis pela manuteno do andamento do

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    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    processo e, consequentemente, pelo crescimento da obra (SALLES, 2008, p. 57). So como anotaes da sua experincia vivida; imagens que se constituem como instrumentos de rememorao e/ou reoperao do vivido. Tais imagens, em sua maioria, podem ser definidas como imagens-lembrana, as quais tm por funo estabelecerem-se como insights do processo de criao de Paes Leme.

    Retornando s imagens de planos mais gerais, pode-se observar que a espiral uma forma recorrente nas anotaes dessa artista, assim como nas estruturas formal e espacial de diversos de seus trabalhos.

    Encontram-se tambm diversas imagens que fun- cionam como projetos em estado avanado de reflexo, apontando uma grande proximidade com a obra em processo de materializao. interessante observar, tambm, que, medida que a leitura dos documentos de Paes Leme conduz s obras mais recentes, existe o quase total abandono do texto verbal. Quando aparecem, so como ttulos: breves, sintticos e solitrios; assim, imagens referentes a esse ciclo de obras tm sua gnese centrada em anotaes visuais, sem indicaes verbais sobre os estudos. Uma ressalva deve ser feita: simultaneamente a essa experimentao eidtica, existem documentos de experimentao conceitual de alguns dos projetos e obras que so exclusivamente de textos verbais, porm no se encontram atrelados s imagens, nem mesmo participam do mesmo suporte de registros, pois so predominantemente registros digitais ou em arquivos avulsos.

    Projeto potico

    A continuidade da anlise dos cadernos vai permitin-do, ento, elucidar um pouco do pensamento de Paes Leme em ao na plenitude da atividade criadora. Ao longo da leitura desse dilogo da mente criadora consigo mesma, pode-se falar apenas daquilo que, mediado pela razo, tornou-se aparentemente esttico para ser compreen-dido, materializado em anotaes, ndices do admirvel na criao. Esses ndices permitem o acesso s dvidas, experimentaes, deslumbramentos, decises e reflexes sobre a obra, a arte e sobre a prpria identidade psicosso- cial da artista buscada em muitos dos seus sonhos regis-trados e comentados. O admirvel em Paes Leme parece localizar-se na sua memria: nos segredos guardados (alguns relegados ao esquecimento no pntano da me- mria; outros constroem para si uma memria da memria que no lhes permite serem esquecidos). So esses os segredos da memria de Paes Leme que so articulados nos seus documentos, constituindo um territrio do qual somente fragmentos tornam-se visveis por meio das anotaes nas extenses de sua memria que so os seus cadernos.

    O recorrente uso da lembrana como imagem ge- radora da imaginao criadora, bem como o pleno uso das imagens e das palavras permeiam um fazer que transcende os limites da sua geografia ntima, revelam o seu propsito: sua ao comunicativa transcende os limites do dilogo ntimo; ela encontra em si mesma o que nela est para o mundo, para o campo do simblico que permeia a humanidade:

    Fonte: anotaes da artista (C0:117)

    Figura 7 Shirley Paes Leme, Esboo para a instalao: a espiral como imagem geradora.

    Fonte: anotaes da artista (C6:13)

    Figura 6 Shirley Paes Leme, Imagem geradora: uso da espiral.

  • 18 Cirillo, J.

    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    [...] bvio que eu sou brasileira, que essa referncia veio da minha infncia, de ver as pessoas trabalhando com casas de pau-a-pique, veio de l... mas o trabalho universal... Quando voc cria um volume com esta matria que j guarda na memria...que j guarda embutido no prprio material esses conceitos, qualquer, qualquer cidado comum do mundo vai entender isto... vai ver aquilo como estrutura primeira do homem.

    A semiose no processo de criao de Paes Leme com tendncia clara: a memria, sua e dos materiais, estabelece-se como um fio condutor que age e direciona a gnese das suas obras. Sua inteno parece estar centrada na busca de uma satisfao que gera sua ao contnua. Nessa tendncia, fio que conduz o ato criador, seu projeto potico busca na sua memria aquilo que primeiro, e o que primeiro do campo do admirvel que, para Pierce segundo Santaela (1998), o ideal da esttica. Mas o admirvel deve ser o crescimento contnuo da corporificao da potencialidade da ideia, ainda no encarnada, uma mera possibilidade. O admirvel em Paes Leme o que norteia sua ao dialtica com o outro; sua ao criadora busca a satisfao de suas necessidades, porm essa satisfao encontra-se na matriz memorial do que transcende sua geografia ntima e busca atravessar as fronteiras do receptor, ou melhor, um percebedor que se configura como pertencente ao gnero humano.

    esse o fio malevel que conduz o movimento do seu projeto potico que tende para o indizvel, para o vago, para o dinmico o movimento do signo assim, tende para a vagueza, para a incompletude que coloca o processo de criao em movimento contnuo e inevitvel. Em cada obra, Paes Leme parece buscar ndices desse admirvel, o qual no se pe como algo delimitado, visto que do campo da qualidade.

    Essa vagueza de contornos exatamente o que permite que a percepo da obra de Paes Leme transponha os limites geogrficos de sua memria, cumprindo a tendncia comunicativa inerente ao seu projeto potico: o dilogo com a tradio e com a histria culturalmente construdo. Assim, sua aura de singularidade, que revela um projeto potico nico, singular e dinmico, est em busca do que lhe mais primeiro. Por s-lo, no par- ticular, mas integrante naquilo que se encontra no com- partilhamento com outro sistema semitico ainda mais complexo: a cultura. Essa tendncia do ato comunicativo em Paes Leme ser tratada em outro texto mais especfico das relaes comunicacionais expressas nos arquivos e documentos da criao.

    Assim, de volta vagueza inerente ao processo de criao, pode-se dizer que a artista no tem total clareza dos projetos em construo; alguns so mesmo abandonados por anos, sendo depois retomados o que resgata a sua percepo como integrante desse todo no-

    linear que a criao. Outras imagens geradoras vo se atualizando ao longo de todos os cadernos: como o caso particular da continuidade intermitente da espiral que assume diferentes constituies e materializa-se em diversos trabalhos ao longo dos vinte anos que envolvem os documentos analisados.

    medida que as obras vo sendo executadas, o projeto potico vai ficando mais claro, tanto pela continuidade das tendncias nele implcitas, quanto pela ao do acaso e das apropriaes que a artista faz dos rudos que permeiam a produo. Ficam expostas, tambm, as suas reflexes acerca daquilo que entende como sendo arte, com suas leis em construo e transformao. perceptvel, ao longo das pginas de seus cadernos, que existe um dilogo intenso da artista com os rudos que aparecem ao longo da gnese de suas obras. Assim, num projeto potico centrado em experincias vividas transformadas em imagens-lembrana, falar no acaso no procedimento criativo de Paes Leme quase uma redundncia, porque o seu vivido, matriz da sua obra, repleto desses imprevistos que imponderavelmente desviam o curso natural da existncia. Resta acatar o acaso e desviar temporaria- mente a rota da criao e, assim, constituir um novo percurso.

    Nesta anlise geral dos documentos de Paes Leme, pode-se concluir que algumas questes funcionam como matrizes no seu projeto potico, tendncias que vo se materializando e movimentando a criao: uma busca por aquilo que primeiro na humanidade, por aquilo que faz parte, que compartilha da memria do homem. Outro ponto a questo da presena do vivido como matria geradora do seu processo de criao tanto os registros da memria da artista, como da memria de suas matrias. Em Paes Leme, o espao da criao a mediao entre lembrana e imaginao; aquilo que construdo pela mente criadora da artista feito tendo a lembrana do vivido como fonte geradora, como matria edificante do seu percurso.

    Esse texto aponta algumas reflexes que iniciaram a investigao sobre o processo de criao de Shirley Paes Leme, e, principalmente, sobre a mediao verbo imagevidenciada nos documentos e arquivos da criao. Assim, no se objetiva encerrar o assunto, mas pr em debate algumas especificidades dos estudos documentais e da leitura crtica desses documentos e arquivos da criao e de sua contribuio para as pesquisas em crtica e histria da arte. Os documentos do processo trazem em si evidncias da interao da mente criadora, revelando os dilogos possveis dela consigo mesma, com a matria de sua construo e com o ambiente e o pblico que a envolvem, o que revela mais uma vez sua interao com a sociologia e a antropologia, complementares aos estudos histricos e das cincias.

  • Geografia ntima 19

    Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 11-19, out./dez. 2010

    Aqui, verifica-se a emergente necessidade de apro- ximao dos estudos do processo de criao pesquisa documental, de modo a contribuir para a compreenso e para a integridade dos conjuntos de documentos e arquivos. Esse estudo pretende tambm servir para auxiliar o conhecimento da natureza e significado dos documentos e de seu contexto nas artes; assim como, contribuir para a construo de um critrio mais universal para a anlise e armazenamento desse acervo que revela a memria da criao de uma obra, ou de um conjunto delas. Buscamos, ainda, o estabelecimento de princpios para garantir que esses arquivos pessoais sejam investigados segundo uma metodologia prpria para os documentos de artistas a partir de um mtodo investigativo, pautado na interao de metodologias de investigao da histria da arte com os procedimentos de outras cincias, resultando em um procedimento investigativo crtico e flexvel o suficiente para que os aspectos da diversidade de cada artista, de cada processo, sejam respeitados. Para tal, lanamos mais um passo para a interao desses documentos e arquivos com os estudos e procedimentos investigativos da pesquisa em histria e crtica da arte.

    Referncias

    BACHELARD, Gaston. A potica do espao. Traduo de Antnio de Pdua Danesi. So Paulo: Martins Fontes, 1993.

    BAXANDALL, Michael. Padres de inteno. Traduo Vera Maria Pereira. So Paulo: Cia da Letras, 2006.

    CIRILLO, J.; GRANDO, A. (Org.). Arqueologias da Criao: estudos sobre o processo de criao. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

    CIRILLO, J. Imagem-lembrana: comunicao e memria no processo de criao. So Paulo, SP: PUC, 2004. Originalmente apresentada como tese de doutorado, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. 2004.

    HAY, Louis. A montante da escrita. Traduo de Jos Renato Cmara. Papis avulsos, Rio de Janeiro: Fundao Casa Rui Barbosa, n. 33, p. 5-19, 1999.

    HAY, Louis. O texto no existe: reflexes sobre crtica gentica. In: ZULAR, Roberto (Org.). Criao em processo: ensaios sobre crtica gentica. So Paulo: Iluminuras, 2002. p. 29-44.

    OSTROWER, Faiga. Criatividade e processos de criao. 12. ed. Petrpolis: Vozes, 1997.

    SALLES, Ceclia Almeida. Crtica gentica: uma nova introduo. So Paulo: EDUC, 2008.

    SANTAELLA, Lcia. A percepo: uma teoria semitica. 2. ed. So Paulo: Experimento, 1998.

    SANTOS, Paulo R. Elian dos. Arquivos de cientistas: gnese documental e procedimentos de organizao. So Paulo: Associao de Arquivistas de So Paulo, 2005.

    Recebido: 24 de setembro de 2010Aprovado: 30 de setembro de 2010Contato: [email protected]