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gilles jacob Cidadão Cannes O homem por trás do festival Tradução Maria Lucia Machado

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gilles jacob

Cidadão CannesO homem por trás do festival

Tradução

Maria Lucia Machado

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Copyright © 2009 by Éditions Robert Laffont, Paris

Esta obra foi publicada com apoio do Ministério da Cultura francês — Centro Nacional do livro [Ouvrage publié avec le concours du Ministère Français chargé de la Culture — Centre National du Livre]

Título originalCitizen Cannes — La vie passera comme un rêve

Capa e caderno de imagensFlávia Castanheira

Foto da capa© Catherine Cabrol / Kipa / Corbis (dc) / LatinStock

PreparaçãoLeny Cordeiro

Índice onomásticoLuciano Marchiori

RevisãoCarmen S. da CostaMárcia Moura

Copyright © 2009 by Éditions Robert Laffont, Paris

Esta obra foi publicada com apoio do Ministério da Cultura francês — Centro Nacional do livro [Ouvrage publié avec le concours du Ministère Français chargé de la Culture — Centre National du Livre]

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d´Aide à la Publication Carlos Drummond de Andrade de l´Ambassade de France au Brésil, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères et Européennes. Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação Carlos Drummond de Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores e Européias.

Título original | Citizen Cannes — La vie passera comme un rêve

Capa e caderno de imagens | Flávia Castanheira

Foto da capa | © Catherine Cabrol / Kipa / Corbis (dc) / LatinStock

Preparação | Leny Cordeiro

Índice onomástico | Luciano Marchiori

Revisão | Carmen S. da Costa | Márcia Moura

[2010]Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz ltdaRua Bandeira Paulista 702 cj. 3204532-002 — São Paulo — spTelefone (11) 3707-3500Fax (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Jacob, Gilles Cidadão Cannes : o homem por trás do festival / Gilles Jacob ; tradução Maria Lucia Machado. — São Paulo : Companhia das Letras, 2010.

Título original : Citizen Cannes : la vie passera comme un rêve.

isbn 978-85-359-1653-9

1. Atores e atrizes cinematográficos 2. Competições - Cannes - França - História 3. Festival de Cannes - França - História 4. Filmes cinematográficos 5. Jacob, Gilles, 1930- 6. Produtores e diretores cinematográficos - França - Biografia i. Título.

10-03256 cdd-791.430794492

Índice para catálogo sistemático:1. França : Produtores e diretores cinematográficos : Biografia 791.430794492

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Sumário

1. Bolhas de vida, 13

2. Os fios invisíveis, 16

3. Um dia sonhado na vida de Maurice Pialat, 21

4. O noviciado do Santo Rosário, 26

5. Os bons companheiros, 39

6. Fellini entre dois gendarmes, 42

7. Estranha proposta!, 47

8. Um aperto de mão histórico, 55

9. A roda de fiar de minha avó, 63

10. O cavalo da rua Tagánskaia, 66

11. O prazer de viver, 74

12. Um Woody grande como o Ritz, 80

13. A libertação, 87

14. Sharon, 92

15. Escola Normal Superior ou a indústria, 94

16. Clint na escala Richter, 102

17. O Banco Jordaan, 107

18. Estreia em Hollywood, 110

19. Os anos Truffaut, 119

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20. Meus dois Maio de 68, 128

21. O rei das notas breves, 137

22. Matin de Paris ou Festival de Cannes, 142

23. François-Régis Bastide, 151

24. O colóquio Rossellini, 154

25. A manhã de uma nova vida, 161

26. Aprender, 164

27. Visão do Apocalipse, 168

28. O trem de campanha, 175

29. A lei de quem tem o poder aplicada a O portal do paraíso, 180

30. A presidência Adjani, 186

31. Vienense, 191

32. A premiação, 192

33. Colhido pela história, 197

34. Por amor a Hitchcock, 200

35. Jack Nicholson, de improviso, 205

36. A demissão do presidente Coppola, 207

37. Alô, é Alain, 212

38. O novo Palais, 215

39. Na Quinzena..., 217

40. A encomenda da sra. Jacob, 222

41. O envelope pardo, 225

42. Jeanne, a eterna, 227

43. Quem abandonou Sol enganador?, 229

44. Gérard, 234

45. Isabella, 237

46. Cópia sépia, 243

47. Seduzir Scorsese, 246

48. A vida é bela?, 251

49. A jaqueta preta, 255

50. Sr. Sergio, 258

51. Van Gogh, 260

52. Nossos bilionários, 264

53. Van Gogh (continuação), 266

54. Till, o diabrete (um exemplo clássico), 272

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55. Denise, 278

56. A investida de Barton Fink, 280

57. Aprender (continuação), 285

58. O “15”, 288

59. A vida, modo de usar, 290

60. Wajda e Kieslowski, 291

61. A arte e o estilo, 297

62. Quem quer matar Robert Bresson?, 300

63. O complô, 302

64. Ettero Scola, 311

65. Sophie, 315

66. O quinquagésimo aniversário, 319

67. Desdêmona, 330

68. O quinquagésimo aniversário (continuação), 333

69. Catherine, 341

70. O jantar, 343

71. Intrépida Juliette!, 346

72. Uma velha amiga, 348

73. Amarcord, 350

74. O deslizamento, 355

Créditos das imagens, 361

Índice onomástico, 363

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1. Bolhas de vida

as sereias da escrita

Todo mundo conhece a famosa sequência de A rosa púrpura do Cairo, de

Woody Allen. Aquela em que o herói desce da tela para se misturar ao público,

corteja uma espectadora e se torna por isso mesmo um homem de carne e

osso, um ser vivo.

Eu passei por uma metamorfose análoga, mas em sentido inverso.

Nasci para a cinefilia aos dezoito anos de idade, ou seja, entrei na tela em

1948 para me tornar sucessivamente crítico, editor e, finalmente, diretor do

Festival de Cannes.

Um festival, são filmes mais dramas. Dramas que se revelarão, no fim das

contas, não ser mais que minúsculas peripécias. Na Croisette, essa definição

se verifica mais ainda: filmes do mundo inteiro, dramas de caráter frenético,

aos quais é preciso acrescentar as delícias da Côte d’Azur. (Esse ponto não é

insignificante: é difícil ver um festival de filmes de montanha inventar o mito

da jovem atriz...)

A primeira das peripécias que tive ocasião de assistir foi a de minha no-

meação. Voltarei a isso. A mais recente — e, sobretudo, a mais delicada para

mim — foi a escrita dessas lembranças. Passo bastante arriscado, uma vez que

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mistura duas operações contraditórias. Agir e comentar o que se faz é correr o

risco de enfeitar a verdade para deixar uma imagem lisonjeira de si mesmo. A

menos que, tomado pelo humor judeu nova-iorquino, se prefira ganhar sim-

patia à força de zombar de si próprio. Daí, talvez, essa homenagem afetuosa a

Woody Allen...

Pouco depois de minha chegada a Cannes, em 1976, tomei notas, sem ja-

mais imaginar nem por um instante escrever uma história do Festival. Mesmo

em um posto de observação tão privilegiado, seria preciso várias equipes para

relatar tal aventura.

Procurei simplesmente fazer o retrato de alguns artistas e, no ritmo dessas

imagens que se entrecruzam, dar a noção do que são a vida do Festival de Can-

nes em seus preparativos, seus costumes e seus ritos, a efervescência diante de

uma premiação contestada, os caprichos das estrelas, o cerimonial incessante-

mente recomeçado da subida da escadaria e sobretudo, sobretudo, o privilégio

de assistir “ao vivo” à ressurreição anual da célebre Feira das vaidades inventada

bem antes de nossa época pelo profético Thackeray.

Em sua existência, cada um tem várias vidas. Eu tive pelo menos duas,

minha vida biológica e minha vida cinematográfica. Não gostaria de fazer o

suspense durar demais: elas se encontrarão e, mais que se equilibrar, se alimen-

tarão uma da outra, como duas irmãs gêmeas.

A memória fez subir outra vez à superfície essas bolhas de vida pessoal. Por

que estas, por que hoje? Talvez porque ninguém conhece sua hora, e o tempo

não é mais que ilusão. Seria muito cômodo poder classificar as coisas sem zigue-

-zagues: a memória seria o passado, a vida, o presente e a imaginação, o futuro.

E como todo relato seria simples se a memória não fosse regida pela incerteza!

A lembrança dos lugares onde vivi, das pessoas com quem cruzei, das coisas que

vi se arrisca a ser deformada, bem sei, por leituras, sonhos, filmes, as sereias da

escrita e mil outras influências, a começar pela lembrança que tenho hoje da

lembrança original. Mas há, nessa paisagem sensorial, marcos tangíveis entre os

quais tentarei encontrar meu caminho. Por exemplo: eu tinha nove anos quan-

do caímos nesse abismo chamado Segunda Guerra Mundial, dezenove quando,

desistindo de me tornar professor, entrei na indústria, 48 quando fui nomeado

diretor do Festival de Cannes. Isto também pode ser escrito: eu tinha quatro

anos quando fui picado por uma abelha, dezessete quando, na mesma noite, es-

cutei Cocteau, Gide e Orson Welles, 54 quando disse adeus a François Truffaut.

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* * *

Uma coisa é certa, adorei o cinema. O cinema e seus homens. Ainda hoje

teria dificuldade em definir se prefiro os filmes ou os diretores. Os filmes são o

que permanece, são a obra acabada, são o mármore eterno — e são o prazer;

os diretores são o sofrimento.

Esse sofrimento, eu teria podido experimentar quando, tardiamente, me

tornei documentarista. Mas não é assim. Quando a informática desembar-

cou nos escritórios do Festival de Cannes, logo compreendi o lado jubiloso de

montar um filme no computador. Nenhuma necessidade de chutier,* de luvas

brancas, de lápis oleoso, de cortadora-coladora. Tudo está ali, virtualmente,

na mesa de montagem, com exceção da imagem, a alguns cliques do resulta-

do. Como se guardam todas as propostas, todos os arrependimentos, todas as

versões sucessivas, não se fica desencorajado se o filme com que se sonha ainda

está longe. Somos tomados pela febre de experimentar, de experimentar no-

vamente. Com esse poder absoluto sobre a matéria, o iniciante acredita-se um

demiurgo. Que revelação perturbadora!

Prazer solitário, semelhante à escrita, quando descobrimos, tateamos,

aprendemos, inventamos, corrigimos, conservamos, pomos música e quando,

felicidade, acabamos por dizer: é isso aí.

* Acessório de sala de montagem destinado a ordenar fragmentos não utilizados de filme. (N. T.)

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2. Os fios invisíveis

papai, me segure!

Antes de mim, ninguém da família Jacob havia trabalhado nas profissões

de entretenimento. Para que três pequenos camponeses lorenos se unissem

a uma burguesia abastada e desposassem, o primeiro, a filha de um general,

o outro, a de um engenheiro, e o terceiro, uma herdeira de grandes lojas, foi

preciso um concurso de circunstâncias e um homem excepcional. Agricultor

órfão, sobrecarregado de irmãs que precisavam de dote, meu avô, Auguste Ja-

cob, sem saber reinventa o comércio. Divide em dois um hectare de boa terra,

vende cada metade pelo preço do total, torna a comprar um campo, dobra a

aposta: a bola de neve imobiliária está lançada. Foi à imagem de uma mesma

avalanche que Jeanne Weil, sua mulher, lhe deu um após outro três meninos,

os três pequenos Jacob de Nancy. Já que o sucesso lhe sorria, Auguste tomou

coragem. Acompanhado de seus três filhos, veio instalar-se em Paris como

negociante de bens sob a insígnia da Société ajf, Auguste Jacob e Filhos, no

Boulevard Malesherbes, 117, a vinte casas do imóvel onde — ironia do destino

— o Festival de Cannes fixará residência setenta anos mais tarde.

No fim dos anos 1920, Simon, Pierre e André (meu pai) começaram a

negociar imóveis na Alta Normandia. Enquanto não os vendiam, dispunham

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deles. Foi assim que, de Rouen a Fécamp, de Elbeuf a Manneville-la-Goupil,

passávamos nossos fins de semana em residências cada vez diferentes, um sítio,

uma casa de personalidades, um local de reunião de caçadores, um castelo.

Nascera meu nomadismo. Ficávamos um pouco surpresos, meu irmão Jean-

-Claude e eu, com essas bruscas mudanças semanais, mas meu pai nos levava

para passear de carroça, muitas vezes a burra se recusava a avançar, e minha

mãe sorria.

— Papai, me segure! — Foi no castelo de Boissey-le-Châtel, no Eure, que

aprendi a andar de bicicleta. Meu pai decidiu tirar as rodinhas de minha bela

Alcyon azul-céu. Ele era corpulento, então, e corria atrás de mim gritando:

— Pedale, pedale! Não pare! — E eu berrava... Aquele fracote “papai, me

segure!” ficará nos anais da família. Mas, depois, fiquei bem seguro. Não lar-

guei mais minha bicicleta, a não ser no dia em que, soltando as mãos num

caminho lamacento, quebrei o pulso.

Quando minha mãe saía e a casa estava silenciosa, eu me enfiava no quar-

to dela e ali, diante do espelho de três faces, abria sua caixinha de tartaruga de

pó de arroz, tirava o pompom de pluma, esfregava suavemente nas minhas

bochechas como a tinha visto fazer tantas vezes, o pó de arroz que esvoaçava

ao meu redor cheirava bem, e a criada de quarto me surpreendia:

— O que você veio remexer de novo nas coisas de madame?

manter sua posição

Antes da guerra, todo mundo usava chapéu. Os cavalheiros, palhinha, cha-

péu de coco ou feltro mole, para cumprimentar um conhecido na Avenue du

Bois no passeio dominical, as damas de chapeuzinho, toque ou capelina, para

enfeitar o rosto, realçar a silhueta com algo bonito. A voga das modistas estava

no auge e o véu, filtrando a luz, suavizando o nascimento de uma ruga, apro-

fundava o mistério dos olhos. Em minha família, as mulheres não trabalhavam.

Cuidavam da casa, criavam os filhos, administravam o serviço doméstico. Em

suma, mantinham sua posição. Os homens ganhavam a vida, elas gastavam o

dinheiro. Mais tarde, ao enviuvar, elas saíam pouco, quase não recebiam visitas,

comiam pouco, dormiam mal. Ícones vestidas de preto, encarnavam o respei-

to devido aos antepassados, de olhos baixos sobre uma tristeza secreta. Em

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qualquer circunstância, meu pai e seus dois irmãos visitavam sua mãe todas as

tardes às cinco horas. Os apartamentos da família estavam agrupados no bairro

Monceau, com exceção daquele dissidente do tio Pierre, que se aventurara até a

Rue de Longchamp. Mas também ele não faltava ao encontro.

o moinho de vlaminck

Nasci em 22 de junho de 1930. Chabrol nasceria dois dias depois, Godard

ainda tem cinco meses para espernear na barriga da mãe, Jean Vigo terminava

a filmagem de À propos de Nice. O cinema e a Côte d’Azur serão minhas boas

estrelas, mas ainda não sei disso.

Também não sei muita coisa do imóvel onde nasci, na Rue Margueritte,

em Paris, perto do Boulevard de Courcelles, onde viveria Bernard Blier cin-

quenta anos mais tarde. Na verdade, em todos os lugares onde morei, sinais

misteriosos, que eu não notava, me ligaram ao cinema. Toda a estranheza do

destino se prende sem dúvida a esses fios invisíveis. Por mais que tente me

desligar deles, não consigo. Nos anos 1960, Marcel Carné era nosso vizinho no

Boulevard Suchet. Em Anthouillet, onde passávamos os fins de semana, por

cima da cerca eu via Eddie Constantine pôr seu cavalo a trote. Na Rue Raynou-

ard, em 1950, a gente discutia de nossas varandas: Anatole Litvak tagarelava

com Terence Young, Simone Berriau usava o béguin, como se chamavam aque-

les chapéus que se atavam sob o queixo, tão solidamente enfiado na cabeça

que devia, imagino, conservá-lo em todas as circunstâncias. Mesmo na cama.

E antes da guerra, quando meus pais se instalaram na esquina do Boulevard

Haussmann com a Rue de Courcelles, morávamos bem em frente do imóvel

onde Louis Malle rodaria Ascensor para o cadafalso.

Como era grande o nosso apartamento do Boulevard Haussmann! Maior

ainda que o tamanho de verdade na lembrança de um menino de cinco, seis

anos. De um lado a outro da fachada e em pleno meio-dia, a sacada do 170 cor-

ria ao longo do bulevar, acima da casa Perret-Vibert, antiguidades da China,

virava o aposento circular que meu pai, como bom oficial da reserva, requisita-

ra para ali instalar seu escritório, e depois, em frente ao florista Veyrat, ladeava

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a Rue de Courcelles para a qual davam os quartos das crianças e a rouparia. O

portão me parecia gigantesco.

Para os apreciadores de cinema, direi que nosso elevador Roux-Comba-

luzier hidropneumático funcionava melhor que o de Louis Malle, mesmo que

a cabine acolchoada fosse tão lenta que preferíamos, Jean-Claude e eu, subir

os seis andares correndo. Embaixo, um otorrino, o dr. Salomon, ia esmerar-se

em me introduzir espatelas no fundo da garganta e os sinistros funis de inox

dos quais aparafusaria a rosca para dilatar o conduto que leva ao tímpano...

Tristes otites.

Entrava-se em nossa casa por uma vasta galeria onde meu pai havia dis-

posto sua porcelana branca da China, que na verdade era azul, e uma deusa

Kwan-yin cujos dedos, por milagre, tinham permanecido intactos. Quanto ao

resto, minha mãe se mantivera firme: o grande salão que se abria por duas

portas corrediças para uma sala de jantar art déco e o quarto dos pais em fileira,

com sua colcha de cetim rosa, cortinas de crepe da China, um pastel de Berthe

Morisot e um Moinho à beira do rio, de Vlaminck, tinham sido confiados a

uma amiga decoradora.

Koula-la-Roumaine tinha estilo para camuflar as luzes e fizera todo o pos-

sível nas molduras de estuque. Minha mãe se apaixonara também por frágeis

terracotas, assinadas por Maurice Charpentier-Mio, que atraíam poeira em

posturas suplicantes. Então, quanto a meu pai, nem pensar em ficar para trás:

o sr. Mohr, do Faubourg Saint-Antoine, aluno do sr. Jules Leleu, concebera para

o escritório circular uma biblioteca que um jogo de prateleiras, moldando-se

à forma da parede, arredondaria como dinheiro até o fim do mês. Eu a tenho

ainda hoje. Ali reinava o mogno enquanto nos aposentos de minha mãe tudo

era apenas ébano, pau-santo e nó de nogueira. O carpete de lã grossa de cinco

filamentos era marrom-escuro para meu pai, em outros lugares combinava

com os olhos azuis de minha mãe.

Empate!

Por contraste, nossos quartéis eram atapetados de linóleo, revestimento

ideal para nosso exército de soldados de chumbo e para o trem elétrico da casa

Roussy, no bairro Saint-Lazare, uma maravilha de eletromecânica com suas

passagens de nível automáticas, que meu pai ameaçava dar ao filho do porteiro

se não o arrumássemos todas as noites. Não me lembro mais se tínhamos cada

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um um quarto próprio ou se, como caçula, eu partilhava o da “mademoisel-

le” que cuidava de nós, nos banhava, empurrava nossos carrinhos de bebê,

acalmava nossas brincadeiras. Brigávamos para dispor de um brinquedo e eu

cobiçava o mapa-múndi luminoso de meu irmão mais velho.

Depois dos aposentos das crianças, que abriam para o pátio, ficava a área

de serviço: cozinha, copa, lavanderia, sala de passar, o domínio de Valérie Ogier,

a cozinheira, independente uma vez recebidas as ordens; de Reine Courtois, a

criada de quarto com a língua solta das soubrettes de Molière, e do arrogante

motorista de meu pai, que chamávamos de Gros-Albert, que se plantava na

copa à espera do patrão, ralhando com uma, lançando olhares amorosos à ou-

tra, passando descomposturas no rapaz que entregava o gelo tirando-o de um

saco de juta que carregava nos ombros: seguia-se seu rastro úmido desde a es-

cada de serviço, em seguida ele o cortava com o furador e o enfiava em blocos

na geladeira... E enquanto Gros-Albert cantarolava, brincando com a criada de

quarto, eu contemplava o misterioso quadro elétrico com os indicadores lumi-

nosos “senhora”, “senhor”, “banheiro”, “escritório” (o sinal da sala de jantar era

acionado por uma campainha de pé cujo fio passava sob o tapete), quadro que

reencontrarei mais tarde em O diário de uma camareira, com Jeanne Moreau

no papel de Reine Courtois, e que anunciaria, com a chegada da guerra e dos

novos tempos, o fim de certa burguesia francesa.

Meus pais eram ricos? Eu não me fazia a pergunta, não tendo nenhuma

ideia do que era a riqueza. Meu pai gostava de se vestir, sair, ir a um espetáculo,

atravessar Paris para ir ver um móvel ou um objeto, minha mãe fora presentea-

da com vários casacos de pele, um castor, uma lontra, um astracã, que ela usava

com tato e nos quais, sobretudo na lontra, escondido no grande roupeiro todo

de espelhos, eu ia enfiar a cabeça, voluptuosamente. A lontra cheirava a água

de rosas. Uma vida inteira teria podido escoar naquele apartamento de coisas

suaves e luminosas...

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