bredel três peças de guerra-peixe análise fenomenológica

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65 Três Peças de César Guerra-Peixe: uma abordagem fenomenológica Pierre Bredel (UFMG) p_bredel @yahoo.com.br André Cavazotti (UFMG) cavazotti @ufmg.br Resumo : Abordagem fenomenológica das Três Peças para viola e piano de César Guerra-Peixe, buscando compreender o fenômeno musical através da percepção do ouvinte. A pesquisa constou de duas fases: análise da obra baseada na abordagem fenomenológica e análise fenomenológica de duas gravações distintas da mesma obra comparando-as com a análise anterior. Com esta comparação, evidenciou-se que muitas das descobertas da análise estão contidas na interpretação dos músicos. A fundamentação teórica foi desenvolvida a partir dos conceitos propostos por Thomas Clifton, enfatizando os elementos tempo, espaço e sentimento. Os resultados obtidos com essa pesquisa foram uma maior aproximação e maior compreensão da essência do fenômeno musical e novas possibilidades para se pensar o fenômeno musical. Palavras-chave: análise musical, fenomenologia, César Guerra-Peixe, Thomas Clifton. Three Pieces by César Guerra-Peixe: a phenomenological approach Abstract: A phemomenological approach of the Three Pieces for viola and piano by Brazilian composer César Guerra-Peixe, seeking to understand the musical phenomenon through the perception of the listener. The research had two steps: a musical analysis based on the phenomenological approach and a phenomenological analysis of two recordings of the same piece, comparing them with the former analysis. With this comparison, it was made evident that elements observed in the analysis are also present in the interpretation of the performers. The methodology used was based on the studies about phenomenology applied to music by Thomas Clifton, especially his concept of the essences of the musical phenomenon: time, space and feeling. The results obtained with this research were a greater approximation and understanding of the essence of the musical phenomenon and a new possibility of conceiving the musical phenomenon. Keywords: music analysis, phenomenology, César Guerra-Peixe, Thomas Clifton. “A música é um reservatório de imagens não explodidas.” Giovanni Piana O objetivo deste artigo é analisar, a partir da perspectiva música e fenomenologia, as Três Peças (1957) para viola e piano de César Guerra-Peixe (1914-1994). Este artigo está dividido em quatro partes: uma introdução à fenomenologia aplicada à música, a análise fenomenológica das Três Peças , a análise fenomenológica de duas gravações da referida obra, comparando-a com a análise anterior, e as conclusões obtidas com essa pesquisa. O objetivo da pesquisa foi aplicar os conceitos propostos pela fenomenologia na análise do fenômeno sonoro, especialmente os conceitos de espaço, tempo e sentimento. Para alcançar tal objetivo nos baseamos, principalmente, nos conceitos propostos por Thomas Clifton em seu livro MUSIC AS HEARD, A Study in Applied Phenomenology (1983). A pesquisa foi dividida em duas fases: uma abordagem fenomenológica da obra Três Peças e uma análise fenomenológica de duas gravações distintas da mesma obra, comparando-a com a análise fenomenológica realizada anteriormente.

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Bredel análise musical

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    Trs Peas de Csar Guerra-Peixe:uma abordagem fenomenolgica

    Pierre Bredel (UFMG)[email protected]

    Andr Cavazotti (UFMG)[email protected]

    Resumo: Abordagem fenomenolgica das Trs Peas para viola e piano de Csar Guerra-Peixe, buscandocompreender o fenmeno musical atravs da percepo do ouvinte. A pesquisa constou de duas fases: anlise daobra baseada na abordagem fenomenolgica e anlise fenomenolgica de duas gravaes distintas da mesmaobra comparando-as com a anlise anterior. Com esta comparao, evidenciou-se que muitas das descobertasda anlise esto contidas na interpretao dos msicos. A fundamentao terica foi desenvolvida a partir dosconceitos propostos por Thomas Clifton, enfatizando os elementos tempo, espao e sentimento. Os resultadosobtidos com essa pesquisa foram uma maior aproximao e maior compreenso da essncia do fenmeno musicale novas possibilidades para se pensar o fenmeno musical.Palavras-chave: anlise musical, fenomenologia, Csar Guerra-Peixe, Thomas Clifton.

    Three Pieces by Csar Guerra-Peixe: a phenomenological approach

    Abstract: A phemomenological approach of the Three Pieces for viola and piano by Brazilian composer CsarGuerra-Peixe, seeking to understand the musical phenomenon through the perception of the listener. The researchhad two steps: a musical analysis based on the phenomenological approach and a phenomenological analysis oftwo recordings of the same piece, comparing them with the former analysis. With this comparison, it was madeevident that elements observed in the analysis are also present in the interpretation of the performers. Themethodology used was based on the studies about phenomenology applied to music by Thomas Clifton, especiallyhis concept of the essences of the musical phenomenon: time, space and feeling. The results obtained with thisresearch were a greater approximation and understanding of the essence of the musical phenomenon and a newpossibility of conceiving the musical phenomenon.Keywords: music analysis, phenomenology, Csar Guerra-Peixe, Thomas Clifton.

    A msica um reservatrio de imagens no explodidas.Giovanni Piana

    O objetivo deste artigo analisar, a partir da perspectiva msica e fenomenologia, as TrsPeas (1957) para viola e piano de Csar Guerra-Peixe (1914-1994). Este artigo est divididoem quatro partes: uma introduo fenomenologia aplicada msica, a anlise fenomenolgicadas Trs Peas, a anlise fenomenolgica de duas gravaes da referida obra, comparando-acom a anlise anterior, e as concluses obtidas com essa pesquisa.

    O objetivo da pesquisa foi aplicar os conceitos propostos pela fenomenologia na anlise dofenmeno sonoro, especialmente os conceitos de espao, tempo e sentimento. Para alcanartal objetivo nos baseamos, principalmente, nos conceitos propostos por Thomas Clifton emseu livro MUSIC AS HEARD, A Study in Applied Phenomenology (1983). A pesquisa foi divididaem duas fases: uma abordagem fenomenolgica da obra Trs Peas e uma anlisefenomenolgica de duas gravaes distintas da mesma obra, comparando-a com a anlisefenomenolgica realizada anteriormente.

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    Dois termos recorrentes nesta anlise so ouvinte e perceber, que, no presente trabalho,referem-se percepo dos autores deste artigo sobre a obra. Outros ouvintes podem ouvir eperceber de forma diferente a mesma obra, o que no invalida uma ou outra anlise, pois estacomposio, por ser uma obra artstica, mltipla de significados e pode tocar a cada um demodo nico, podendo inclusive, se mostrar diferentemente para a mesma pessoa em momentosdiferentes.

    1. ABORDAGEM FENOMENOLGICA - CONCEITOS PRELIMINARESBaseando-nos em Heidegger, podemos entender fenmeno como o que se mostra e comoaparecer, aparncia, aparecncia. Logos o que deixa e faz ver aquilo sobre o que discorre eo faz para quem discorre e para todos aqueles que discursam uns com os outros (HEIDEGGER,2002, p. 62-63). Portanto, podemos compreender fenomenologia como: deixar e fazer ver porsi mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo (ibid, p. 65). Adescrio fenomenolgica concentra-se no em fatos, mas na essncia, em descobrir o queexiste sobre o objeto e a experincia, o objeto e um sujeito. A abordagem fenomenolgicapretende evidenciar o que a msica para o ouvinte, antes de tentar encaix-la em padrespr-definidos. O objetivo da fenomenologia chegar essncia das coisas mesmas.

    A msica no existe sem um ouvinte que participe corporalmente, que interaja com ela e,para a fenomenologia, o ouvinte deve permitir que a msica se mostre para ele. Obviamente,cada sujeito ir perceber aspectos diferentes da msica, dependendo de sua percepo, porma essncia a mesma. Com a fenomenologia, deixa-se de perceber o fenmeno musical apenascomo sinais escritos na partitura, estes passam a ser percebidos como sinais e ao mesmotempo no sinais. Na partitura os diversos sinais ao serem executados so, para o ouvinte,diferentes espaos, sons vindo de longe e perto, expanses e retraes no tempo, etc.

    CLIFTON (1983) prope quatro essncias que constituem a experincia musical: tempo,espao, elemento ldico e sentimento. A seguir, apresentaremos a definio dos principaistipos de eventos que ocorrem nas Trs Peas e que pertencem s essncias musicais detempo, espao e sentimento.

    1.1 TEMPONa essncia tempo, temos os mecanismos de protenso e reteno, que fazem a ligaoentre passado, presente e futuro. Reteno a lembrana do que foi ouvido e o que permitearticular o passado com o presente. Ela tambm responsvel pelas relaes que o ouvintefaz numa composio, que d identidade a esta e nos capacita a dizer que pertence a algumestilo, por exemplo. A protenso o futuro que o ouvinte antecipa e no simplesmente espera. essa participao corporal (antecipar) que interage com o fenmeno musical. PIANA (2001),prope chamarmos o mecanismo de reteno de memria e o mecanismo de protenso deimaginar.

    A experincia de comeo e fim tem para o ouvinte mltiplos significados no fenmeno musical.Por exemplo, na experincia de comeo, a msica pode iniciar e o ouvinte percebe que ela scomea, realmente, alguns compassos depois. O fenmeno musical no segue a regra deque, dada a primeira nota, iniciou-se a msica, pois existem diversas possibilidades de comeo.

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    A experincia de fim pode, de maneira geral, ser vivenciada pelo ouvinte como parar e terminar.So duas possveis experincias de fim que tm pelo menos um ponto em comum: o silncio.Terminar a noo geral de fim que temos quando, por exemplo, uma cadncia prepara umfinal. Quando a msica termina o ouvinte tem a sensao de que algo se completou. J parar, a experincia de fim que no soa como fim: o ouvinte percebe que a msica acabou, mas ficacom a sensao de que ainda havia algo para acontecer.

    1.2 ESPAOO elemento espao mais difcil de ser compreendido, talvez por imaginarmos - como nos dizMAGNANI (1989) que a msica uma arte que ocorre apenas no tempo. Para ele, a msica uma arte que ocorre tambm no espao, sendo a arquitetura a arte que possui maior afinidadecom a msica. O espao interno na arquitetura, bem como na msica - no deve ser pensadocomo qualidade abstrata, mas, sim, como realidade varivel, sob a ao de inmeros fatores(MAGNANI, 1989, p. 42).

    Espao, para Clifton, uma regio fenomenolgica em que no h diferena entre o eu (self)e a msica, ouvinte e msica habitam a mesma regio fenomenolgica. Desta forma, sempreque se usar a palavra espao neste artigo,estaremos remetendo noo de espaofenomenolgico. Sobre o elemento espao, Clifton prope algumas ocorrncias, tais comolinha musical, superfcies e profundidade.

    A linha musical a menor forma (espacial) musical, porm no a mais simples. Ocorre comfreqncia na msica homofnica. Sua caracterstica ter um direcionamento e estar sempreconduzindo para algum lugar.

    A caracterstica da superfcie no ter um direcionamento claro. Clifton lista quatro tipos desuperfcies: Superfcies indiferenciadas em que percebe-se ausncia de movimento, dedinmica e de complexidade rtmica. Superfcies de baixo relevo, que so caracterizadas poruma no competio entre linha musical e superfcie, por mudanas de timbre com outrosparmetros mantidos constantes e pelo elemento tempo como pulso rtmico. Superfcies demdio relevo so caracterizadas por conter projees mais perceptveis. Percebe-se contraoe expanso da durao, crescimento onde o som se expande em direo a um plano esuperposio, onde so percebidos diferentes p lanos sobrepondo-se uns aos outros.Superfcies de alto relevo so caracterizadas pela presena de uma base na qual projetadauma figura de incontestvel individualidade, mas que no est isolada de algum tipo de base.

    O conceito de profundidade mostra como o elemento espao no esttico. Por exemplo,quando o ouvinte assiste um concerto de uma orquestra e percebe que o som emanado pelatrompa vem de longe ou uma determinada frase do trompete parece que foi tocada do seulado e todos os instrumentos esto no palco na mesma posio: pode-se perceber que oespao varivel.

    As experincias de distncia e penetrao esto nos domnios da profundidade. A penetrao uma atividade que contribui para a experincia de continuidade. A penetrao ocorre napea, mas no a interrompe. A noo de distncia experimentada, por exemplo, quando o

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    ouvinte percebe determinado som vindo de longe ou de perto sem a fonte sonora mudar delugar. A explicao para tal fato que o fenmeno musical constitudo da interao do objetocom o ouvinte. A distncia pode ou no estar condicionada dinmica e localizao da fontesonora.

    1.3 SENTIMENTOO sentimento faz a interao do nosso interior com o exterior, do Eu (self) com o mundo naturalem que vivemos. As essncias de tempo, espao e elemento ldico so tratados com um abrir-se humano. Estas essncias so unidas e adquirem sentido, atravs do sentimento. Para afenomenologia, a realidade da msica s se d porque existe algum ouvindo e percebendo amsica daquela forma. O que a abordagem fenomenolgica pretende discutir dois aspectosseparados, porm relacionados: os objetos e as experincias humanas dos objetos.

    O sentimento caminha junto com o entendimento. Para Clifton, os sentimentos iluminam ocaminho da reflexo e a reflexo sustenta, ratifica os sentimentos (CLIFTON, 1983, p. 285).

    2. ANLISE DA OBRA1Csar Guerra-Peixe (1914-1994) comps as Trs peas durante sua fase nacionalista, que seiniciou em 1949 com a Pea para piano (que est desaparecida) e se estendeu at o final desua vida. As Trs Peas foram compostas especialmente para uma gravao fonomecnicarealizada por Perez Dworecki (violista) e Fritz Jank (pianista) em 1957.

    1 movimento - Baio de violaPercebe-se o movimento dividido em seis partes: X / A / B / A / B / Coda. Chamei de X aintroduo do piano (c.1 e 2), A (c.3-6), B (c.7-10), A (c.11-15), B (c.16-20) e Coda (c.21-23).

    1 O manuscrito autgrafo em formato de bolso das Trs peas, gentilmente cedido por Jane Guerra-Peixe,encontra-se publicado integralmente neste nmero de Per Musi s p.82-94.).

    Ex. 1: Tema apresentado pela viola c.3 e 4 (1 mov)

    O ouvinte percebe esse movimento como uma superfcie de alto relevo porque existe umdesenho bastante individual (tema da viola, vide Ex. 1) mas que mantm-se ligado base (videEx. 2). Percebe-se tambm nos primeiros compassos, que este movimento se d a cada doiscompassos, j que o ostinato (c.1-2, Ex. 2) e o tema (c.3-4, Ex. 1) duram dois compassos eexiste um movimento de impulso e queda produzido pelo piano, sobre o qual discorreremosabaixo. Percebe-se, tambm, um espao que comea menos amplo e f (c.1-5, Ex. 2) chegaao clmax, onde o espao mais amplo, (c.11-13, Ex. 4) e termina novamente menos amploe p (c.21-23, Ex. 7). Este espao (c.1, Ex. 2) considerado menos amplo em relao ao clmaxque o trecho mais amplo. (Pode-se notar aqui, que o espao pode ser independente dadinmica.)

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    O fato de o movimento comear com f e somente no c.5 chegar ao p, sendo um espaomenos amplo, se mostra para o ouvinte pelo menos de duas maneiras. Uma delas que amsica comea realmente no c.5. J que o movimento se d a cada dois compassos, os c.1-2 seriam a apresentao do ostinato f, no c.3 apresentado o tema F (vide Ex. 2) e a msicarealmente comea no c.5, ainda inserido no mesmo espao menos amplo dos c.1-4.

    Outra possibilidade que a msica mostra ao ouvinte neste comeo pensar a noo de impulsoe queda. Logo que a msica se inicia, deixa cair com fora a primeira nota (c.1, Ex. 2). Este o primeiro impulso, abrindo o espao e mostrando o ostinato que permanece por todo omovimento. A partir da, as outras notas, num movimento de queda, tem um impulso cada vezmenor at o p no c.5 (Ex. 2). O que se d um grande impulso inicial e trs quedas consecutivasformando uma grande queda. S quando termina o movimento de queda que a msicacomea realmente.

    Nos c.7-11 (Ex. 3 e 4), o ritmo harmnico (que at ento era a cada dois compassos; vide Ex. 3,c.5-6) muda e o ouvinte passa a perceber o ritmo harmnico a cada meio compasso (vide Ex. 3,c.7-8). Essa acelerao (mecanismo de protenso, o ouvinte antecipa/prepara o clmax) conduzao clmax e ajuda a criar o espao mais amplo que vai ser experimentado no c.11 (Ex. 4).

    Ex. 2: Espao aberto pelo piano / duas possibilidades do comeo c.1-5 (1 mov)

    No c.11, experimenta-se o mecanismo de reteno, porque s depois de confirmado esseclmax (c.11, Ex. 4) que o ouvinte classifica o que veio antes como uma preparao para oclmax. Antes de ouvir o c.11, o ouvinte percebe o que acontece como uma acelerao do ritmo

    Ex. 3: Ritmo harmnico (1 mov)

    a cada dois compassos c.5-6 a cada meio compasso c.7-8

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    harmnico. Depois que o c.11 ouvido, o trecho anterior passa a ser concebido como umaacelerao do ritmo harmnico com uma preparao para o clmax, confirmado no c.11.

    Ex. 4: Clmax e espao mais amplo c.9-11 (1 mov)O ouvinte experimenta o c.11 como um espao mais amplo porque a acelerao do ritmoharmnico que ocorreu nos compassos anteriores provoca uma maior movimentao e asensao de ansiedade, que vem se juntar a dois outros fatores: 1) uma nova melodiaescondida na mo direita do piano (c.11, Ex. 5), que provoca movimentao neste trecho, e2) as cordas duplas2 na viola provocam uma sensao de amplitude que por si s chamam aateno do ouvinte para este trecho. Alm disso, temos o mecanismo de reteno, pois asnotas que a viola toca so dois r em oitava, que a mesma nota tocada no piano nos primeiroscompassos (c.1-6, Ex. 2) e nos c.8 e 10 como baixo, ou seja, uma nota que mantida desde oprimeiro momento em nossa memria e que aparece agora duplicada.

    4 Tocar corda dupla significa, nos instrumentos de cordas friccionadas, tocar simultaneamente em duas cordas.Neste caso especfico, so tocadas as cordas l e r.

    Original apenas melodia escondida da mo direita

    Ex. 5: c.11 (1 mov)

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    Nos c.13-15 (Ex. 6), o ouvinte experimenta a sensao de expanso do tempo j que o temaganha mais um tempo/pulsao sem, contudo, quebrar a regularidade de dois compassos domovimento. Em vez de dois compassos 4/4, a msica nos surpreende com uma fuso de doiscompassos (2/4 e 3/4 que so percebidos como um 5/4, c.14-15, Ex. 6) provocando a sensaode expanso do tempo porque o tema fica maior. (Isto tambm ocorre nos c.18-20.)

    5 Na gravao feita por Perez Dworecki (DWORECKI, 1998) lanada pela selo Paulus consta o nome de Rezade Fundo. Nas diversas fontes em que pesquisamos (GUERRA-PEIXE, 1968; ASSIS, 1993) e no manuscritoda parte de viola, fica claro que o nome correto da tradio folclrica Reza-de-Defunto.

    Ex. 6: Expanso do tempo e continuao da regularidade c.13-15 (1 mov)Na Coda (c.21-23, vide Ex. 7), percebe-se o mecanismo de reteno: a msica est chegandoao final, com a viola e o piano tocando parte do tema, fazendo com que o ouvinte se lembre dotema atravs de fragmentos, que j no apresenta toda a sua vitalidade.

    Ex. 7: Fragmentos do tema tocados na coda c.21-23 (1 mov.)Percebe-se tambm na Coda, que este movimento no termina, ele simplesmente pra. Pormaqui, a msica prega uma pea no ouvinte. Vrios aspectos musicais fazem com que corpodo ouvinte pea um fim que termine (mecanismo de protenso), tais como: o ostinato menosdenso (a partir do c.16), o fato do tema ser tocado cada vez em notas mais graves, a dinmicaque diminui para p no c.18 (Ex. 6) e o decrescendo que est escrito.

    Porm, a msica pra no final, cerceando esta expectativa criada no ouvinte. Este pararacontece porque: 1) est escrito senza ralentando, 2) a ltima nota dada pelo piano em staccato(que traz consigo uma atitude brusca e que no corresponde ao que esperamos de uma

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    cadncia) e 3) o no preenchimento de todos os tempos do compasso deixando a msicasuspensa (vide Ex. 7).2 movimento - Reza-de-Defunto3Percebe-se o movimento dividido em cinco sees: A / B / A / B / Coda. Chamamos de A (c.1-5), B (c.5-10), A (c.11-14), B (c.11-18) e Coda (c.18-22).

    Os contornos da escrita do piano e a melodia da viola, formam uma superfcie que tem umdirecionamento. percebida aqui uma melodia/tema tocada pela viola qual o piano aglutinaoutros elementos. A viola e o piano habitam o mesmo espao: a viola tem a melodia, que complementada, por sua vez, pelo piano, que, muitas vezes toca outra melodia, porm habitandoo mesmo espao.

    Este movimento experimentado como um nico espao que se d numa nica respirao,onde no se diferencia o piano e a viola. Quando afirmamos que no h diferena entre opiano e a viola, no estamos afirmando que h uma fuso tmbrica e sim que viola e pianoocupam um nico espao, que existe apenas uma nica melodia que composta pelos doisinstrumentos. Esse espao pode ser definido em uma palavra: sofrimento. Ele um movimentosofrido devido melodia chorosa da viola, por sua profundidade/distanciamento e pela tensoque permanece por quase metade do movimento. Percebe-se neste movimento a capacidadeda msica criar um espao/ambiente e convidar o ouvinte para este espao. O ouvinte percebeque a msica vem de longe, como um choro de muitas pessoas ao longe, seguindo umenterro no interior do nordeste.

    O fato do movimento se dar numa nica respirao e num nico espao pode ser explicadopelo significado da reza-de-defunto. Segundo Guerra-Peixe, denomina-se reza-de-defunto, apea ou conjunto de peas religiosas genuinamente populares tpicas do nordeste; peas queso entoadas diante do morto e no cemitrio. (Guerra-Peixe apud ASSIS, 1993, p. 27)

    Em uma outra instncia, o compositor afirma:... A impresso marcante para quem ouve esta espcie de cantoria que tudo na melodia soanum eterno legato, sem nuanas sensveis, tendo as pausas, muito curtas, alis, apenas atenderao processo respiratrio. Por outro lado, o ritmo das melodias, no obstante fugir exatidodo tempo medido, resulta pouqussimo variado. E como o andamento se realiza de maneiralenta, a cantoria dava, ao autor, a impresso de permanente monotonia de to arrastada eracada cantiga. (GUERRA PEIXE, 1968, p. 242)

    No c.1 (vide Ex. 8), o ouvinte percebe que o piano cria um espao que aberto com suaprimeira nota; e este espao s se fecha, sua tenso e seu sofrimento s terminam, quando osom da ltima nota tocada se esvai. Esse espao, aberto pelo piano, em seguida ocupadopela viola (Ex. 8) e, por diversas vezes, penetrado pelo piano contrastando sons duros,brutos com a melodia chorosa da viola, sem, contudo, interromp-la (Ex. 8).

    6 Os outros quatro finalistas, em ordem de classificao, foram Ernst Ueckermann (Alemanha), Rafael Nassif(UFMG), Gilberto Carvalho (UFMG) e Antonio Celso Ribeiro (UFU).

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    Este movimento segue o mesmo modelo do primeiro em relao ao espao. O espao inicia-semenos amplo, se amplia e chega mais amplo no clmax do movimento no c.9 e retorna aomesmo espao menos amplo no fim do movimento. Esse clmax ajuda a manter a tenso e aidia de sofrimento que percorrem todo o movimento.

    Ex. 8: Espao criado pelo piano e ocupado pela viola / penetraes do piano c.1-6 (2 mov)

    Ex. 9: Clmax c.9-17 (2 mov)

    Ex. 10: com tema da seo B em tercinas c.16-17 (2 mov)Esse clmax criado pelo acompanhamento do piano (Ex. 9) que provoca movimento, quebrandoo padro seguido at ento. Ele comea no fim da seo B, atravessa toda a seo A eculmina na seo B com a viola tocando durante dois compassos o tema da seo B emtercinas (c.16-17, Ex. 10), aumentando, assim, a sensao de uma maior movimentao, que sendo criada pelo piano. Percebe-se, nos c.16-17 (vide Ex. 10), os mecanismos de retenoe protenso. O mecanismo de reteno fora a memria do ouvinte a articular com o passado.Apesar de se tratar de tercinas, reconhece-se esse trecho como sendo o tema apresentado naseo B, porm modificado. O mecanismo de protenso experimentado porque a melodianos d a impresso de que algo novo vai acontecer, de que a pea tomar outro rumo devidoao aumento de movimentao. Porm, esse impulso cerceado pela msica com umdecrescendo, terminando o movimento.

    Chega-se CODA, onde o ouvinte experimenta a sensao de que algo est acabando (vide Ex.11), pois apenas fragmentos (ltimas quatro notas) do tema A (Ex. 8) so tocados. Alm deste

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    fator, h um diminuendo at o final do movimento (Ex. 11) e o ltimo acorde tocado pela viola e opiano possui uma fermata e preenche todo o compasso. Este acorde traz ao ouvinte a sensaode final. Todos esses fatores levam o ouvinte a perceber o final desse movimento como trmino.O que no ocorre no final dos outros dois movimentos (1 e 3), que simplesmente param.

    3 movimento - Toque Je-JePercebe-se o movimento dividido em sete sees: X / A / transio 1 / B / transio 2 / A / X.Chamei de X o ostinato executado na viola (c.1 e 3), A (c.4-13), transio 1 (c.13-16), B (c.17-33), transio 2 (c.34-47), A (c.48-56) e X (c.57-61). Este movimento pode ser dividido em trsambientes. Ambiente 1: superfcies (indiferenciada, mdio e alto relevo, c.1-16), ambiente2: espaos que se alternam (c.17-33) e ambiente 3: superfcies (baixo e alto relevo, c.34-61).

    A seo X (Ex. 12), percebida como uma superfcie indiferenciada, porque, apesar doritmo intenso executado no ostinato da viola e piano, no existe uma movimentao espacialnestas sees.

    Na seo A percebe-se a linha da viola individual e o acompanhamento do piano em ostinato(Ex. 13), porm percebidas como que habitando o mesmo espao. Por este motivo, esta seo percebida como uma superfcie de alto relevo. Este tipo de superfcie tambm ocorre naseo A (c.48-56).

    Ex. 11: Coda, c.18-22 (2 mov)

    Ex. 12: Ostinato da seo X c.1-3 (3 mov)

    Ex. 13: Tema da viola com penetraes do piano c.4-5 (3 mov)

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    J na transio 1, o ouvinte percebe uma melodia que interage com o acompanhamento (videEx. 14). Por esse motivo, trata-se de uma superfcie de mdio relevo.

    Ex. 14: Transio c.42-44 (3 mov)Da seo A para B, o ouvinte experimenta o mecanismo da protenso. O crescendo e oaccelerando geral da pea criam a expectativa no ouvinte de que a pea vai ficar cada vez maisagitada e percussiva. A msica frustra essa expectativa, pois o que o ouvinte encontra, chegandoem B, uma expanso do tempo. O ouvinte experimenta esta expanso do tempo, devido aofato de que a msica, na seo B, utiliza o mesmo tema rtmico do ostinato, porm num andamentomais lento (vide Ex. 15), voltando ao tempo primo sem preparao (transio 2).

    Na seo B, temos o ambiente 2, onde o ouvinte percebe que existem dois grandes blocos queso compostos por espaos que se alternam. No primeiro grande bloco (c.17-24, Ex. 15 e 16)percebe-se trs espaos que so construdos, a cada compasso, a partir da alternncia entreo piano e a viola.

    Ex. 16: Piano e viola alternam a mesma linha meldica c.21-22 (3 mov)

    Ex. 15: Linha meldica e acompanhamento interagem c.17-18 (3 mov)

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    No segundo grande bloco, percebe-se dois espaos. Um primeiro (c.25-30, Ex. 17) mais amplo, tocado nos c.25-27 (vide Ex. 17) e repetido nos c.28-30 e o segundo (c.31-33, Ex. 18), queouvinte percebe como menos amplo e se esvaindo, uma espcie de coda da seo em que tocado o tema do comeo da seo inteiro e ele vai sendo decomposto at terminar a seo.

    A partir da transio 2 (c.34), temos o ambiente 3. Na seo X (vide Ex. 19) o elementortmico do ostinato cria uma ptina na superfcie que faz o ouvinte perceber essa seo comosuperfcie de baixo relevo.

    Este movimento, diferente dos dois primeiros, no possui coda, pois, assim como o primeiro,traz a sensao de que pra no final (Ex. 19). Essa sensao de parar provocada devido aosenza ritardando, indicado no penltimo compasso (c.60, Ex. 19) devido ao fato de que a peatermina com uma colcheia tocada pela viola e o piano em staccato no primeiro tempo, nocompletando o compasso, e deixando o ouvinte com uma sensao de suspenso, de quealgo no foi completado, assim como no primeiro movimento.

    Ex. 19: O movimento pra no final c.59-61 (3 mov)

    Ex. 18: Outro espao do segundo bloco c.31-33 (3 mov)

    Ex. 17: Segundo grande bloco c.25-27 (3 mov)

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    3. ANLISE DAS GRAVAESO objetivo da presente anlise, que chamamos de anlise mediada4 , comparar os resultados daanlise fenomenolgica acima descrita com a interpretao de outros msicos, atravs da anlisede duas gravaes: a de Perez Dworecki (viola) e Gilberto Tinetti (piano) (DWORECKI, 1998)5 , quedenominamos GRAV.1 e a de Carlos Aleixo dos Reis (viola) e Cenira Schreiber, (piano) (REIS,SCHREIBER, 2002), que denominamos GRAV.2. Faremos um pequeno resumo da anlisefenomenolgica descrita acima, inserindo a comparao com as gravaes nesta recapitulao.

    O primeiro movimento (Allegretto moderato) uma superfcie de alto relevo em que se percebea individualidade da parte da viola sem que esta, contudo, esteja desligada da parte do piano.Em ambas gravaes percebe-se o seguinte: os pianistas interagem com os violistas, maspercebe-se claramente dois instrumentos distintos habitando o mesmo espao musical.

    Neste movimento, a msica deixa claro que no est presa barra de compassos (vide Ex. 2). NaGRAV.1, o piano evidencia o movimento de impulso e queda tocando um pouco mais forte aprimeira nota dos c.1, 3 e 5 e menos forte o ostinato. Na GRAV.2, tambm temos o mesmo movimentode impulso e queda. A pianista deixa cair a primeira nota com muita fora, e o prximo impulso(c.3), com menos fora, criando uma grande diferena de dinmica. Estes fatos explicitam o fenmenomusical em ambas gravaes, induzindo o ouvinte a perceber o movimento a cada dois compassos.

    Percebe-se, ainda, um espao que comea menos amplo, fica mais amplo no clmax da msicae termina novamente menos amplo. Na GRAV.1, nos compassos do espao mais amplo, opianista enfatiza a nova melodia que surge na parte do piano e o violista enfatiza um r emoitava. Estes eram dois fatores que, segundo a anlise fenomenolgica, levam o ouvinte aperceber este trecho como mais amplo (vide Ex. 4).

    Na GRAV.2, este espao mais amplo enfatizado pelo violista, que toca com mais agressividadeos c.11-15, alm de enfatizar o r em oitava. A volta para o espao menos amplo tambm enfatizada pelos msicos desta gravao, que fazem um grande ritardando antes do incio daseo B (c.16), deixando mais evidente esta diferena de amplitude do espao musical.

    Segundo nossa anlise, a CODA deste movimento pra (vide Ex. 7), enfatizando o carterrtmico do movimento. Nas GRAV.1 e GRAV.2 esse parar enfatizado porque os msicostocam sem ralentando e diminuendo. O fato dos msicos, em ambas gravaes, no executaremo diminuendo, que est escrito na partitura (c.22-23, Ex. 7), extremamente relevante, poismostra que os msicos percebem este final como parar, e no como trmino.

    No segundo movimento (Andantino), existe um nico espao que aberto pelo piano eposteriormente ocupado pela viola. Este espao tem uma direo definida e se d em umanica respirao. Na GRAV.1, mesmo com as pequenas cesuras que o violista faz, percebe-seo movimento numa nica respirao. Na GRAV.2, o violista enfatiza esse nico espao comeandosua melodia a partir da nota deixada pelo piano (inclusive com a mesma dinmica e sonoridade).4 Termo cunhado por ns e que se refere anlise realizada a partir da escuta de uma ou mais interpretaes

    musicais de determinada obra.5 Durante a escuta desta gravao, nota-se que diversas vezes h erros de leitura de notas.

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    Percebe-se, neste movimento, um carter sofrido, prprio da reza-de-defunto, que percorretodo o movimento. O que enfatiza esse carter sofrido uma seo de nove compassos detenso (vide Ex. 9). Na GRAV.1, esta tenso, apesar de ser percebida pelo ouvinte, poucoenfatizada pelos intrpretes devido a uma cesura feita pelo violista no c.11, que quebra atenso que est sendo criada at ento.

    Na GRAV.2, os msicos conseguem prender a ateno do ouvinte enfatizando esse cartersofrido. Eles enfatizam esse carter, comeando no c.3 uma preparao para o clmax. Estapreparao se d com a pianista tocando a primeira nota do c.3 mais forte que o contexto dedinmica que est sendo estabelecido e com um crescendo gradual at chegar ao clmax,tocado com vigor e intensidade pelos msicos. O clmax enfatizado pelo violista, que sustentaa intensidade durante os nove compassos, alm de tocar f, como indicado na partitura.

    Esse movimento termina no final, e no simplesmente pra, como os outros dois movimentos.Isto enfatizado na GRAV.1, com os msicos fazendo uma pequena cesura antes de tocarem oltimo compasso. Na GRAV.2, o final como terminar enfatizado pelo violista que faz um granderalentando nos ltimos dois tempos do penltimo compasso e um diminuendo no ltimo compasso.

    O terceiro movimento (Allegretto), pode ser dividido em trs ambientes. Ambiente 1: diversostipos de superfcies (indiferenciada, mdio e alto relevo), ambiente 2: espaos que sealternam e ambiente 3: novamente superfcies (baixo e alto relevo). Esses ambientesconduzem o ouvinte por regies fenomenolgicas (espaos musicais) diferentes.Na GRAV.1, o ambiente 2 diferenciado dos outros, com os msicos evidenciando o aspectomais melodioso deste ambiente realizando frases bem ligadas e ralentando no final de cadafrase, contraposto ao carter rtmico dos outros dois ambientes. O terceiro ambiente diferenciado do primeiro, pois tem um carter menos agressivo, menos rtmico. Os msicostocam esse ambiente mais lentamente que o primeiro, enfatizando esse carter.

    Na GRAV.2, percebe-se ainda mais claramente esses trs ambientes. No ambiente 2 , os msicosevidenciam esta outra regio fenomenolgica (espao musical) para onde o ouvinte conduzido.Os diversos espaos do ambiente 2 so enfatizados com os msicos tocando com articulaesdiferentes. A pianista toca legato e o violista saltado, enfatizando a diferena entre esses espaosque se alternam a cada compasso. O violista, tambm, toca um pouco mais rpido que a pianista,enfatizando ainda mais a diferena entre os espaos internos deste ambiente. O ambiente 3 diferenciado do primeiro porque os msicos apresentam o carter musical mais ansioso desteambiente. O ouvinte percebe esta idia de ansiedade por quatro motivos: 1) a pianista articulamais as notas, 2) os msicos fazem um pequeno acelerando no primeiro compasso (c.48) destaseo, 3) no c.52, a pianista faz um crescendo e uma volta sbita dinmica anterior na entradado violista e 4) os msicos fazem um grande crescendo no c.56.

    O final, como no primeiro movimento, pra, enfatizando o carter rtmico do movimento. Aqui temoso mecanismo de reteno: o ouvinte tem guardado na memria o carter rtmico do movimento eeste concludo de forma abrupta, violenta, reforando este carter deste movimento. Na GRAV.1o violista enfatiza ainda mais esse parar tocando a ltima nota em harmnico trazendo a sensao

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    de que terminou de forma abrupta. Na GRAV.2, este fato enfatizado porque os msicos tocam anota com o valor menor do que o pedido na msica, terminando de forma abrupta.

    Quando realizamos a anlise fenomenolgica, no percebemos dois fatos no terceiro movimento:que neste movimento o espao musical constitudo por trs ambientes e que o primeiro e terceiroambientes so distintos. Estes fatos s se mostraram quando ouvimos as gravaes. Percebemosapenas que existiam superfcies e espaos que se alternavam e no percebemos que existiadiferena entre o primeiro e terceiro ambientes. Quando ouvimos as gravaes, finalmentecompreendemos o todo terceiro movimento. Algumas imagens estavam escondidas.

    Isso leva a observar a dupla importncia das abordagens, direta e mediada, na perspectivafenomenolgica. Primeiro, porque mostra que diversas interpretaes so possveis, uma noexcluindo a outra, mas que muitas chegam essncia das coisas mesmas, que o objetivoda fenomenologia. Segundo, porque mostra como o ser humano d conta do mundo atravsda percepo, escolhendo ou se permitindo ver essa ou aquela face de um fenmeno.

    Com a comparao da anlise direta com a mediada, pode-se concluir que muitos aspectospesquisados por ns esto contidos na interpretao dos msicos e que, em vrios trechos, osmsicos, explicitando o fenmeno musical, tocam de modo diferente do escrito na partitura,conduzindo a percepo do ouvinte a perceber a msica como ela quer se mostrar.

    As palavras quer se mostrar, necessitam de uma breve explicao. Quando o ouvinte escutauma msica, ele a escuta atravs da percepo de intrprete(s), que o induz a perceber aquelamsica de um certo modo. O todo fenmeno musical est sempre presente s que o intrpreteescolhe enfatizar uma ou outra imagem. Como nos diz Piana, a msica um reservatrio deimagens no explodidas (PIANA, 2001, p. 326) e quando o ouvinte escuta uma msica, algumasdessas imagens se mostram para ele atravs da percepo de outro (o intrprete).4. CONCLUSOCom a abordagem fenomenolgica, o fenmeno musical entendido atravs da percepo doouvinte. Os elementos que constituem o fenmeno musical tornam-se relativos percepodo ouvinte e a msica torna-se mais viva.

    Em nenhum dos movimentos desta pea, o elemento tempo esttico. No primeiro movimento,experimenta-se uma acelerao em que o tempo torna-se mais rpido e depois volta aonormal quando chega o clmax. No segundo movimento, tem-se a impresso de que o tempono passa, que todo o movimento cabe num nico flego. J no terceiro movimento, no ambiente3, experimenta-se uma sensao de ansiedade que faz o tempo passar mais rpido. Oelemento espao, assim como o tempo, no um elemento esttico e o ouvinte pode caminharpelos diversos espaos criados pela msica. No terceiro movimento, por exemplo, o ouvinte conduzido por diversos espaos musicais.

    Na anlise aqui exposta, pode-se observar que o fenmeno musical vai muito alm dos smbolosda partitura, sendo um reducionismo acreditar que o ouvinte no participa da msica. Com aabordagem fenomenolgica, cada signo contido na msica passa a ser percebido como nico

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    e a msica torna-se mais viva para quem a experincia. Piana ilustra bem este fato quandodiscute, no captulo sobre o smbolo, o sentido na msica.

    Consideremos, por exemplo, a diferena entre o fraco e o forte. Esta distino na realidade encontrada todos os dias e interfere de vrias maneiras nas nossas prticas cotidianas: todosos dias, nestas prticas, entendida como sinal e diretamente interpretada como tal. Mas,quando por fim descoberta como uma determinao dos sons, e ao mesmo tempo, comouma possibilidade que se oferece ao nosso agir, ento ela comea a se enriquecer de refernciasque, por outro lado, devem ser entendidas como desvios, fuses e transies. O fraco podereceber o sentido de distante, lembrando o mbito da espacialidade e, nesta distncia espacialpode transparecer a dimenso temporal do passado, assim como na maior intensidade dosom, a urgncia, a iminncia, o estar-por-vir; e tudo isso pode assumir um colorido emotivo, eno propriamente, um colorido emotivo qualquer, mas aquele colorido que cabe justamentequelas diferenas: de intimidade, mistrio, solido e nostalgia. (PIANA, 2001, p. 322)

    Como exemplo pode-se citar o primeiro movimento, em que a pea vai alm das regras da partiturae mostra que quer ser percebida a cada dois compassos (vide Ex. 2), e que a partir da percepodo ouvinte que a msica se d. As codas, que deixam de ser entendidas apenas como simplesfinais e passam a exercer a funo de terminar ou deixar em suspenso determinado movimento.

    A reza-de-defunto (2 mov), que deixa de ser apenas um componente folclrico inserido nafase nacionalista do compositor e passa a ter subsdios para enfatizar, na interpretao, ossinais contidos na partitura e deixar que a msica se mostre como ela : um movimento sofrido,da primeira ltima nota. E o terceiro movimento, onde, em ambas gravaes, os msicospercebem este movimento composto por trs ambientes distintos.

    A comparao das gravaes com a anlise fenomenolgica da obra revelou que diversos aspectosapontados por ns na anlise estavam contidos na interpretao dos msicos. Esta anlise no a nica possvel e isto pode ser verificado nas gravaes. Por exemplo, no terceiro movimento,em que os msicos evidenciam de forma distinta o espao musical, utilizando recursos da tcnicados instrumentos para tal (os msicos tocam mais saltado o primeiro ambiente e legato o segundo).

    Outro fato que deve ser ressaltado que, para a abordagem fenomenolgica, no existe apenasum caminho para se chegar compreenso do fenmeno musical e, sim, muitos caminhosvlidos. Quando realizamos a anlise, alguns aspectos passaram desapercebidos e s semostraram quando ouvimos as gravaes, evidenciando que a msica traz dentro de si diversoselementos e necessrio se colocar disposio para v-los. Como nos diz Guimares Rosaem seu conto O espelho, se [o ouvinte] nunca atentou nisso, porque vivemos, de modoincorrigvel, distrados das coisas mais importantes (ROSA, 2001, p. 121).

    Atravs da abordagem fenomenolgica, abre-se a possibilidade de pensar o fenmeno musicalcomo um todo, revendo teorias existentes nas diversas reas de pesquisa, j que afenomenologia rompe com a idade moderna que abstrata, excludente, linear, uniforme,coerente, sem ambigidades e prope chegar essncia das coisas mesmas.

    Exemplificamos neste artigo uma das possibilidades que a fenomenologia nos traz, que aplicar seus conceitos associados anlise musical para se compreender o fenmeno musicalbaseado na percepo do ouvinte.

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    Aqui, empregamos a fenomenologia na perspectiva analtica. A fenomenologia pode associar-se, entre outras reas de pesquisa, por exemplo, etnomusicologia em que no existe amsica e sim msicas educao musical, j que, ambas partem da essncia da experinciamusical: a relao entre o indivduo e a msica. Ou, ainda, acstica musical onde se pesquisa,dentre outras coisas, como o som captado pelo ser humano e que pode ser associado ssensaes que esse experimenta ao ouvir tais sons.

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    LEITURA RECOMENDADAFRANCALANCI, Carla. Introduo a uma compreenso do tempo a partir de Heidegger. taca. Rio de Janeiro, V.

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    Pierre Bredel bacharel em viola pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente integrante da Orquestra Sinfnica Nacional. Alm das atividades de pesquisador, tendoparticipado de congressos e publicado diversos trabalhos, tem realizado diversos recitaisacompanhado por pianistas ou como integrante das mais diversas formaes de cmara.O violinista Andr Cavazotti, natural de Londrina, Paran, Professor de Violino, Msica de Cmara,Anlise Musical e Pesquisa em Msica na Escola de Msica da UFMG. Doutor em Msica pelaBoston University (1998), sua tese de doutorado consiste em um estudo estilstico sobre as Sonataspara violino e piano de M. Camargo Guarnieri. Mestre em Msica pela UFRGS (1993), estudouviolino com o Prof. Marcelo Guerchfeld e, sob a orientao do Dr. Celso Loureiro Chaves, defendeusua dissertao de mestrado, que uma investigao sobre a utilizao de processos seriais nascanes do LP Clara Crocodilo de Arrigo Barnab. Suas atividades como violinista o levaram arealizar recitais e concertos em diversas localidades, tais como So Paulo, Rio de Janeiro, BeloHorizonte, Curitiba, Porto Alegre e, nos EUA, em Champaign (Illinois) e Boston (MA).