bokar rimpoche - tchenrezi - o senhor da grande compaixão

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Page 1: Bokar Rimpoche - Tchenrezi - O Senhor Da Grande Compaixão
Page 2: Bokar Rimpoche - Tchenrezi - O Senhor Da Grande Compaixão

Primeira Orelha

BOKAR RIMPOCHE nasceu de uma família de pastores nômades no Tibete, no ano doDragão-Ferro, 1940. Foi reconhecido aos quatro anos de idade como a reencarnação do anteriorBokar Rimpoche, pelo XVI Karmapa, e estudou nos monastérios de Bokar e Tsurpu. Em face dainvasão chinesa do Tibete, deixou sua terra natal aos 20 anos e tornou-se discípulo do grande yogui emestre tibetano Kalu Rimpoche, completando, sob sua direção, duas vezes o tradicional retiro de trêsanos, no monastério de Sonada, Índia. Por suas notáveis qualidades e profunda e autênticarealização, sucedeu a Kalu Rimpoche como chefe da gloriosa linhagem Shangpa Kagyü, uma das oitograndes linhagens originais pelas quais o budismo passou da Índia para o Tibete. Fundou em Mirik oseu próprio monastério, próximo ao de Kalu Rimpoche, especialmente destinado à prática deKalachakra. É considerado, hoje, um dos principais mestres de meditação da linhagem Kagyü, tendosido escolhido por Kalu Rimpoche para dirigir os centros de retiro de Sonada, e por Sua Santidade oXVI Karmapa para dirigir o centro de retiro de Rumtek, no Sikkim, nova sede dos Karmapas.

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Bokar Rimpoche encarna perfeitamente a suprema compaixão de todos os Buddhas. Serrealizado, dotado de grande doçura, possui um estilo direto e profundo de ensinar, abordando osassuntos mais complexos com clareza e simplicidade.

De Bokar Rimpoche, o Muito Venerável Kalu Rimpoche afirmou: "Bokar Rimpoche é umlama extraordinário, perfeitamente realizado tanto no domínio do estudo como no da prática. Naropahavia profetizado a seu discípulo Marpa que, em sua sucessão, cada discípulo seria superior aomestre que o precederia. Assim, Milarepa, discípulo direto de Marpa, seria superior a este. Damesma maneira, Bokar Rimpoche será meu sucessor e será superior a mim".

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Segunda Orelha

Após a invasão chinesa do Tibete, muitos mestres tibetanos buscaram exílio inicialmentenos países vizinhos e depois em diversos países da Europa e da América do Norte. A partir de então,ao longo dos anos, esses mestres vêm incansável, generosa e amorosamente compartindo suaexperiência e seus ensinamentos com os ocidentais.

Muito recentemente, alguns desses mestres passaram a visitar o Brasil e a fundar centros dodharma em nosso país. Entretanto, para a maioria das pessoas é ainda muito difícil o acesso aosprofundos e autênticos ensinamentos do budismo vajrayana.

É com o objetivo principal de tornar acessíveis esses ensinamentos ao leitor de línguaportuguesa que a ShiSil Editora foi fundada, sob a proteção do Muito Venerável Bokar TulkuRimpoche. A ShiSil Editora pretende publicar obras de indiscutível valor espiritual, de renomadosmestres, de modo a garantir a transmissão autêntica dos ensinamentos budistas. Por sua origem, aShiSil Editora publicará em especial, mas não exclusivamente, obras do budismo vajrayana.

A primeira publicação, Tchenrezi, o Senhor da Grande Compaixão, de autoria de BokarRimpoche, ocorre na ocasião em que este grande Mestre, superior da gloriosa linhagem ShangpaKagyü, visita o Brasil pela primeira vez.

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Próximos títulos programados

de Bokar Rimpoche:

Meditação — Conselhos aos Principiantes

de Kalu Rimpoche:

Budismo Vivo

Budismo Profundo

Budismo Esotérico

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Contracapa

TCHENREZI é ao mesmo tempo a divindade mais popular no Tibete e a mais conhecida dobudismo tibetano no Ocidente.

Quem é em realidade essa famosa divindade? Qual é a sua função no trabalho detransformação interior? A essas questões, encontraremos no presente livro, pela primeira vez emportuguês, respostas tão claras quanto profundas. Encontraremos, também, um ensinamentoextremamente interessante sobre a prática de TCHENREZI e sua continuidade na vida cotidiana.

Quem é o verdadeiro TCHENREZI? Escutemos a resposta de um mestre do passado:

"TCHENREZI, o Grande Compassivo, não é um afresco num muro, nem uma figura numathangka. TCHENREZI é, tal como nasce na mente de um ser, a compaixão-vacuidade derramando-sesobre todos com o mesmo ardor do amor de uma mãe por seu filho único."

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Título/Autor

Bokar Rimpoche

Tchenrezi

NATUREZA DA DIVINDADE

PRINCÍPIOS E MÉTODOS DA MEDITAÇÃO

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TRADUÇÃO

Murillo Nunes de Azevedo

REVISÃO TÉCNICA

Antônio Carios da R. Xavier

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Shisil Editora

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Dados

Introdução e tradução do tibetano para o francês

François Jacquemart

Título do original francês

Tchènrézi

Nature de Ia Divinité

Principes et Méthodes de Ia Méditation

Tradução para o português

Murillo Nunes de Azevedo

Revisão técnica

Antônio Carlos da R. Xavier

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Design, capa e edição

Francisco José Villela Pinto

Editoração eletrônica

Cecília Bartholo de Oliveira

Rimpoche, Bokar

Tchenrezi: Natureza da divindade; princípios e métodos da meditação/Bokar Rimpoche; tradução Murillo Nunes de Azevedo; revisão técnica Antônio Carlos da R. Xavier.

— Brasília: ShiSil, 1996.

96 p.

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1. Budismo 2. Meditação. I. Azevedo, Murillo Nunes de.

II. Xavier, Antônio Carlos da R.

CDD 20 ed. 294.3

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APRESENTAÇÃO

A mente em si mesma e todas as aparências são mahamudra;

A mente é inata, é dharmakaya.

As aparências são a luz desse dharmakaya inato.

Quando a graça do glorioso lama e nossas próprias qualificações cármicas se encontram,

Reconhecemos, então, nossa própria natureza, como se reencontra um velho amigo.

Djamgön Kontrul Lodrö Thaye

Em 1980, em Paris, um grupo de brasileiros encontrou pela primeira vez o Muito VenerávelKalu Rimpoche, superior da linhagem Shangpa Kagyü, que realizava uma de suas inúmeras viagensao Ocidente para difundir o dharma budista. Ser realizado, considerado um homem santo por todasas escolas do budismo tibetano, Rimpoche era dotado de infinita compaixão para com todos os seres.Percebendo, em sua mente pura, que seria bom que o dharma pudesse ser divulgado no Brasil,autorizou, pouco tempo depois, a fundação de centros do dharma em nosso país. Foi assim que, em

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1987, nasceu o Centro Budista Tibetano Kagyü Pende Gyamtso (na tradição oral, "um oceano debenefícios"), em Brasília.

Com o falecimento de Rimpoche em 1989, seu sucessor na linhagem Shangpa Kagyü passoua ser o seu principal discípulo, Bokar Tulku Rimpoche. Os discípulos brasileiros de Kalu Rimpochesolicitaram a Bokar Rimpoche, ser de notáveis qualidades e profunda realização, detentor do dom detransmitir os mais complexos ensinamentos com inigualável clareza e simplicidade, que enviasse aoBrasil um lama para ajudá-los na tarefa de consolidar a instalação do Centro Budista. Assim, em1991, lama Trinle-Daniel, discípulo francês de Kalu Rimpoche, veio ao Brasil, por uma curtatemporada. Essa vinda deu novo ímpeto aos trabalhos, culminando com a instalação definitiva deKagyü Pende Gyamtso no local em que hoje se encontra. Em 1993, lama Trinle-Daniel, durante umretiro que se efetuava em Bodhgaya, na Índia, transmitiu a Bokar Rimpoche o desejo dos discípulosbrasileiros de contarem com uma editora para transmitir o dharma budista, em especial o vajrayana,em língua portuguesa. Rimpoche julgou importante que assim se procedesse, deu sua benção e onome de Shisil à editora que se criaria.

Shisil é uma expressão tibetana composta de duas sílabas: shi e sil. Shi significa acalmar,pacificar, e sil significa refrescar, suavizar. Shisil poderia ser traduzido como o estado da mente queproporciona uma calma suave, refrescante. Trata-se de calma, de pacificação, mas também de algosuave, que proporciona refrigério. Shisil é, portanto, o estado de suavidade, de frescor, de uma menteem paz. É esse mesmo espírito que orienta e orientará as publicações da ShiSil Editora, fiel ao nomeque lhe foi atribuído por Bokar Rimpoche.

Em 1994, durante um retiro em Salugara, na Índia, solicitou-se a Bokar Rimpoche queindicasse o livro que gostaria fosse editado em primeiro lugar no Brasil. Rimpoche sugeriu a obraTchenrezi, o Senhor da Grande Compaixão, por julgar ser a que mais benefícios poderia trazer paraos leitores e para o povo brasileiro em geral. Nesta ocasião em que Rimpoche visita nosso país pelaprimeira vez, é com imensa alegria e com profundo sentimento de gratidão ao Mestre que lançamos opresente livro.

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Possam as aspirações de Rimpoche cumprirem-se em sua integralidade e as suas bênçãosderramarem-se sobre todos os seres.

Paz a todos os seres.

Lekshe Drayiang

Editor

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INTRODUÇÃO

François Jacquemart

O budismo é muitas vezes representado como uma tradição não-religiosa, prontamenteclassificada no domínio da metafísica, da filosofia ou da arte de viver. Nessa perspectiva, o budismodito "tibetano" parece situar-se à margem, e não deixa de ser com uma certa desconfiança que seobserva em certos momentos o seu cortejo de divindades (os yidams), as terras puras onde elasresidem e os relatos de cunho mitológico que a elas se reportam.

Entretanto, os próprios tibetanos não vêem nessas divindades nada que contradiga obudismo. Como fazem parte do vajrayana, ensinado pelo Buddha e em seguida transmitidosecretamente na Índia antes de se expandir para o Tibete, sua ortodoxia não lhes causava nenhumadúvida. Essas divindades estão em perfeito acordo com o corpo do ensinamento original.

Todavia, é verdade que as divindades podem ser compreendidas em diferentes níveis. Ostibetanos do povo concebem-nas certamente como seres superiores, morando nos paraísos e velandopela sorte dos seres humanos que para elas rezam. Mas, para os mestres do dharma, elas sãoexpressões múltiplas de um despertar único, do qual a nossa mente não está separada. Este segundoponto de vista corresponde sem dúvida ao budismo no seu sentido estrito, mas o primeiro, enquanto"meio hábil" para auxiliar os seres, não deve ser rejeitado.

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No primeiro capítulo desta obra, Bokar Rimpoche discute claramente esses pontos,descrevendo a natureza de TCHENREZI (Avalokiteshvara em sânscrito), a divindade mais populardo Tibete e uma das mais conhecidas no Ocidente. Mas para bem seguir os seus propósitos, éimportante compreender os dois níveis em que se podem situar os ensinamentos budistas: o darealidade-guia e o da realidade definitiva.

A realidade-guia designa tudo o que permite se aproximar da verdade última, sem contudoexpô-la diretamente, tendo em conta as possibilidades intelectuais dos indivíduos e sua configuraçãopsíquica. Certos níveis de explicação, as imagens, os "métodos" de meditação, os aspectos míticos,etc, pertencem a esse domínio.

Ao contrário, a realidade definitiva exprime diretamente a verdade última, como o faz, porexemplo, o mahamudra.

É necessário compreender bem que a realidade-guia não é falsa com relação à realidadedefinitiva. A realidade-guia é parte da realidade definitiva, constitui uma aproximação e tem umvalor pedagógico. É um pouco em relação à realidade que é o céu e as suas diferentes descrições porum pintor, um poeta, um meteorologista, um professor ou um astrofísico. Essas descrições não sãofalsas, são apenas parciais. O céu é uma realidade muito mais vasta do que qualquer uma dessasdescrições parciais, mas este fato não as invalida.

A realidade definitiva e a realidade-guia não se opõem e não se excluem. É necessário

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perceber o jogo sutil e não-contraditório de sua relação, para só assim compreender o elo entre amente e a divindade.

Além da questão da natureza da divindade, os ocidentais freqüentemente questionam ofuncionamento de uma meditação como a de TCHENREZI. De que modo a visualização de umadivindade e a recitação de um mantra podem agir sobre a mente? O leitor encontrará no segundocapítulo uma exposição extremamente interessante sobre esse assunto, que esclareceráprincipalmente o processo de purificação dos condicionamentos inconscientes e o dedesenvolvimento das potencialidades do despertar.

Os capítulos seguintes descrevem o método de meditação propriamente dito e a maneira deaplicar a prática às várias circunstâncias da vida. Sobre este último ponto, Bokar Rimpocbe deuinstruções no nível mais profundo, o do mahamudra. Aí, o leitor talvez encontre uma grande riqueza,mas também alguma dificuldade!

Os ensinamentos que constam do presente livro correspondem, em sua maior parte, a umtrabalho realizado privadamente com Bokar Rimpoche, o que permitiu abordar e precisar numerososaspectos que um quadro geral de ensinamentos públicos deixam normalmente de lado. Isto significaque podemos ler em francês (agora traduzidas para o português) explicações que não sãoencontradas em nenhuma outra obra.

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NATUREZA DA DIVINDADE

TCHENREZI ABSOLUTO E RELATIVO

Senhor imaculado do corpo branco,

Cuja cabeça está ornada por um Buddha perfeito,

E que olha todos os seres com os olhos da compaixão,

A vós, TCHENREZI, rendo homenagem.

Assim se exprime uma célebre louvação dirigida à divindade mais popular do Tibete.

Quem é verdadeiramente TCHENREZI, divindade do corpo branco dotada de quatro, àsvezes de mil braços e pela qual os tibetanos nutrem uma devoção especial e cuja meditação é hojetambém praticada por muitos ocidentais?

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É um deus luminoso, suave e compassivo que, de longínquos céus, vela sobre o destino dosseres, como crê a maioria do povo tibetano? É uma simples imagem simbólica, como pensam àsvezes os ocidentais? Ou é, ainda, uma outra realidade, mais profunda e mais rica?

Em primeiro lugar, deve-se compreender que TCHENREZI é tanto uma aparência — amanifestação divina — quanto uma essência — a realidade interior —, sem que uma exclua a outranem a contradiga. A aparência de TCHENREZI é o símbolo de sua essência tornada manifesta. Poressa aparência pode-se aproximar da essência de TCHENREZI. A aparência não esgota a essência,nem a essência nega a aparência. Pretender que TCHENREZI teria tão somente uma existênciaexterior a nós mesmos seria um erro. Mas seria outro erro ver nele apenas uma abstração. Eindispensável captar o elo existente entre os dois aspectos da divindade, tanto para compreender oque é TCHENREZI quanto para compreender a sua meditação.

Primeiro, quem é TCHENREZI em essência?

TCHENREZI nada mais é do que o modo de ser da mente, a saber, a união da vacuidade eda compaixão. Esta natureza última da mente é TCHENREZI do ponto de vista da realidadedefinitiva. Em outras palavras, pode-se dizer que TCHENREZI é a bodhicitta sob seus doisaspectos:

✦ bodhicitta absoluta, correspondente à vacuidade,

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✦ bodhicitta relativa, correspondente à compaixão.

Quando se descreve a natureza da mente, utilizam-se as palavras vacuidade e claridade, emvez de vacuidade e compaixão.

De fato, claridade e compaixão são uma única e mesma coisa, designando a expressãodinâmica da mente. Muitos sinônimos são utilizados para designar esses dois aspectosindissoluvelmente unidos:

✦ vacuidade e compaixão,

✦ conhecimento e meios,

✦ aspecto absoluto e aspecto relativo,

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✦ modo de ser e modo de manifestação, etc.

Quaisquer que sejam os termos utilizados, é esta mesma realidade que é de fatoTCHENREZI. Ele é, para cada ser, a natureza desperta de sua própria mente, o amor e a compaixãoprimordialmente presentes no dharmakaya.

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TCHENREZI DE QUATRO BRAÇOS

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TCHENREZI é assim inerente a nós, porque o amor e a compaixão não são qualidadesacrescentadas à mente. Fazem parte do despertar, ainda que, no momento, este esteja apenaspotencial em nós.

Os diferentes graus de amor e de compaixão que vemos num ser ou noutro correspondem auma atualização maior ou menor desse potencial, à irradiação mais ou menos poderosa deTCHENREZI em nós. Mas não se pode dizer de nenhum ser que seja totalmente desprovido de amore de compaixão, pois seria negar-lhe essa natureza desperta da qual todos os seres são dotados.Simplesmente, os véus que cobrem a mente podem estar tão espessos no momento que as qualidadeslatentes não conseguem se exprimir.

A disfunção fundamental de nossa mente apresenta-se sob a forma de uma separação entreeu e o outro. Ilusoriamente, agarramo-nos a um eu, sobre o qual se insere o apego, ao mesmo tempoque concebemos um outro, que é a base da aversão. Esta dualidade impede a expressão livre eespontânea do amor e da compaixão, mantendo-as num estado de virtualidade. Daí resulta que em vezde desejar a felicidade dos seres desejamos a nossa própria felicidade; em lugar de desejar odesaparecimento de seus sofrimentos, desejamos o desaparecimento de nossos próprios sofrimentos;em lugar de regozijarmo-nos com a felicidade dos outros, regozijamo-nos com a nossa própriafelicidade; e, em vez de olharmos com equanimidade todos os seres, envolvemo-nos em jogos depreferências e de parcialidade. Assim, "nosso" TCHENREZI continua oculto.

Dizer que TCHENREZI é a natureza última do espírito não é negar a sua manifestaçãoformal. A essência se exprime sob uma aparência. Ao mesmo tempo em que TCHENREZI existe noplano da realidade definitiva, no plano da realidade-guia ele aparece sob a forma de uma divindade,tal como a conhecemos habitualmente. Ele é a expressão visível tomada por todos os Buddhas, paraque possamos tornar ativos o amor e a compaixão que, no momento, são apenas virtuais em nós, epara que se nos revele o TCHENREZI último. Seu próprio nome exprime sua natureza, e cada sílabaque o compõe tem um sentido em tibetano:

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✦ TCHEN significa olho;

✦ RE implica idéia de continuidade;

✦ ZI significa olhar.

TCHENREZI é então aquele que olha para todos os seres continuamente com o olho dacompaixão.

A relação entre TCHENREZI como potencial de compaixão de nossa mente e TCHENREZIque aparece sob a forma divina é o real fundamento da prática:

✴ em primeiro lugar, TCHENREZI enquanto divindade manifestada possui e transmite apotência, a graça e a compaixão da mente de todos os Buddhas;

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✴ em segundo, nossa própria mente é dotada de potencialidades de amor e compaixão;

✴ em terceiro, a interconexão indiscutível de todas as coisas faz com que o primeiro fatoratue necessariamente sobre o segundo e o revele.

Sem as virtualidades de nossa mente, a divindade permanecerá uma aparência externa, belae luminosa, mas inoperante. Sem a divindade, nossas virtualidades permaneceriam não-efetivas. Issodo ponto de vista do caminho. Entretanto, do ponto de vista do despertar último, além das noções deexterior e interior, além de toda dualidade, nenhuma diferença existe entre a divindade e nossaprópria mente, que é em si mesma Buddha.

Quando realizamos a meditação de TCHENREZI, e vemos o amor e a compaixão cresceremem nossa mente, é sinal de que nossa prática está dando frutos. O TCHENREZI relativo serve-nosentão de suporte para desenvolver o TCHENREZI absoluto, que sempre reside em nós. Compreenderque TCHENREZI em realidade jamais está separado de nós, que é inerente à nossa mente, permitecolocar a prática sob sua verdadeira perspectiva.

Temos necessidade do TCHENREZI relativo para realizar o TCHENREZI último: ameditação da forma e dos atributos da divindade, a recitação do seu mantra conduzem-nos àrealização da compaixão presente na nossa própria mente, que é ao mesmo tempo vacuidade. Opoder da graça transmitida pelo TCHENREZI relativo conduz-nos ao absoluto da nossa própriamente, onde a dinâmica é o amor e a compaixão.

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A COMPAIXÃO

TCHENREZI e a compaixão são, como vimos, uma única realidade. O Grande Compassivoé a forma tomada pela dinâmica da mente sem forma. Desse modo devemos compreender bem o quesão o amor e a compaixão.

Ao mesmo tempo, devemos compreender o quanto somos afortunados por ter uma existênciahumana. Se compararmos os nossos maiores sofrimentos ou nossas mais graves dificuldades aos quesofrem os animais, veremos que nunca estamos numa condição tão dolorosa quanto a sua. Quando,por exemplo, um animal está doente, seus sofrimentos físicos são os mesmos de um ser humano quefica doente, mas o animal não tem nenhuma maneira de aliviar o seu sofrimento: ele não o podedescrever, e não há médico nem remédio em que possa buscar amparo. Quando está exposto a umgrande frio ou a um intenso calor, não tem meios de se proteger. Quando lhe impomos os mais durostrabalhos, não dispõe de nenhuma liberdade para recusá-los. Entretanto, aos homens, mesmo aosmais pobres e desprovidos, sempre lhes resta uma pequena margem de liberdade para tentar meiosque melhorem a sua sorte.

A maioria das pessoas só vê o seu próprio sofrimento e lamenta-se sem cessar: "Como eusofro! Como dura esta doença! Como é penosa a minha situação! Como são grandes as nossasnecessidades!" Nunca se pensa em considerar os sofrimentos dos outros, ainda que, como os dosanimais, eles sejam muito mais numerosos e intensos que os seus.

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Quando não compreendemos os sofrimentos dos outros, realizamos muitos atos que lhes sãonocivos, e que, por seu caráter negativo, nos acarretarão sofrimento em vidas futuras, ainda que nãodesejemos que isso aconteça.

No budismo em geral, e mais particularmente no Grande Veículo, o simples fato de tomarconsciência dos sofrimentos e das dificuldades dos outros é considerado uma atitude interior muitobenéfica, pois permite que o amor e a compaixão nasçam naturalmente em nós

Amor e compaixão são duas noções muito próximas. mas que se distinguem segundo o pontode vista que se coloca: a obtenção da felicidade ou a supressão do sofrimento.

Em primeiro lugar, amor é desejar a felicidade dos seres, no presente e no futuro. Afelicidade tem como causa cármica os atos positivos do corpo, da palavra e da mente. A felicidadenas vidas futuras depende do uso que fazemos de nossa vida presente. O amor, portanto, desejafelicidade para os outros não apenas nesta vida, mas também que possam estabelecer as fundações desua felicidade futura por uma conduta positiva.

A compaixão, por sua vez, toma como ponto de referência o sofrimento. É a vontade de queos seres possam agora estar livres do sofrimento, resultado de atos negativos passados, e que nãocriem causas para sofrimentos futuros por meio de uma atividade negativa presente.

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Que os outros possam ser felizes agora e no futuro, que possam cessar de sofrer agora e nofuturo, que possam crescer sem sofrer agora e no futuro, deve ser motivo de uma alegria profunda.

A equanimidade é outro ponto importante. Em nossas relações com os outros, efetuamoshabitualmente uma divisão em três categorias: aqueles pelos quais temos simpatia ou afeição;aqueles pelos quais sentimos antipatia ou ódio; e aqueles em relação aos quais somos indiferentes.As duas últimas categorias são muito mais importantes que a primeira. Devemos nos desembaraçardesse hábito, e exercitar-nos em considerar todos os seres com o mesmo amor que temos por nossamãe ou por um amigo muito querido, sem parcialidade, sem exceção.

Amor, compaixão, alegria e equanimidade constituem os "quatro incomensuráveis", que sãoo coração da prática mahayana. Quando essas quatro atitudes impregnam nossa mente e guiam nossamaneira de pensar, de falar e de agir, isso é o que chamamos bodhicitta.

É possível que essa bodhicitta, essa aspiração fundamental pelo bem dos outros, seja umadisposição natural na mente de certas pessoas. Mas a maior parte do tempo estamos voltados paranós mesmos e raciocinamos de maneira muito estreita. Qual é a nossa aspiração implícita? "Possa euestar livre do sofrimento e das causas do sofrimento! Que alegria para mim poder me liberar dosofrimento e possuir a felicidade para sempre! Fulano e sicrano são meus amigos, fulano e sicranosão meus inimigos, e quanto aos outros não me preocupo nem um pouco!"

Ou ainda mais: " Para mim a felicidade, para mim o agradável, para mim o bom, para mimo belo, para mim o precioso...". Por esse poderoso apego que nos liga ao "eu", viramos as costas aoamor e nos fechamos numa dualidade cada vez maior: "Para mim a felicidade, para o meu inimigo ainfelicidade; para mim o bom, para o meu inimigo o mau; para mim o belo, para meu inimigo o feio;

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para mim o agradável, para o meu inimigo o desagradável; para mim a vitória e o ganho, para o meuinimigo a derrota e a perda!"

Esse interesse em nós mesmos e essa rejeição ou ignorância em relação aos outros levam-nos a cometer muitos atos negativos.

Quando, ao contrário, os "quatro incomensuráveis" residem em nós, somos naturalmentelevados a evitar tudo o que poderia causar mal aos outros e a realizar o que lhes é benéfico. Dessemodo, proporcionamos felicidade aos outros, ao mesmo tempo em que engendramos, para o futuro, anossa própria felicidade. É um benefício tanto para nós quanto para os outros.

Para que floresçam as qualidades da bodhicitta que ainda não estão despertas em nossamente, e para que as que já desabrocharam não se degradem e continuem a se desenvolver, o métodomais poderoso é certamente a meditação de TCHENREZI.

A bodhicitta impregna toda a prática mahayana e deve ser considerada como um tesouroinestimável. Atisha foi um dos grandes mestres da Índia que auxiliou na propagação do budismo noTibete. Tinha o hábito de juntar as mãos ao nível do coração, em sinal de respeito, devoção egratidão, sempre que pronunciava o nome de um dos mestres de quem recebera ensinamentos.Entretanto, todas as vezes que falava o nome de Serlingpa, um desses mestres, juntava as mãos acimada cabeça. Surpresos com essa diferença, os discípulos perguntaram-lhe um dia qual era o motivo, seele queria dizer com isso que Serlingpa era superior aos outros. “Não é essa a razão”, explicouAtisha. “Todos os mestres de quem recebi ensinamentos eram iguais em perfeição. Mas foi graças aSerlingpa que a bodhicitta nasceu na minha mente, e é em testemunho do reconhecimento desse fatoextraordinário que, todas as vezes que pronuncio o seu nome, uno as mãos sobre a cabeça.”

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Numerosos eram os que, no Tibete, vinham procurar Atisha para pedir-lhe ensinamentossobre o sentido profundo da vacuidade, sobre as teorias do madhyamika, ou sobre o vajrayana. Elerespondia invariavelmente que não seria possível compreender a vacuidade ou praticar o vajrayanase, antes, não se tivesse desenvolvido a bodhicitta. Assim, ele sempre ensinava a bodhicitta.

Iniciar a prática do amor e da compaixão nem sempre é fácil, principalmente porque nãodispomos agora de grande poder para auxiliar os outros. Contudo, constatar, em numerosos casos,nossa incapacidade de proporcionar uma ajuda efetiva não deve constituir causa dedesencorajamento. Podemos, pelo menos, e em todos os casos, fazer preces e formular desejos paraos que sofrem, e, em particular, desejar tornarmo-nos capazes de socorrê-los no futuro. Dessa forma,nutriremos nossa bodhicitta e ganharemos progressivamente a faculdade de ajudar verdadeiramenteos outros.

Apesar de toda a nossa boa vontade e do auxílio que tentamos sinceramente dar, podeacontecer que recebamos em resposta uma atitude de descontentamento ou mesmo de hostilidade.Arriscamo-nos fortemente a entrar numa engrenagem de agressividade e a dizermo-nos que nuncamais ajudaremos aquele que reagiu dessa forma à nossa generosidade. Para não irmos de encontro àcompaixão é necessário que compreendamos bem o mecanismo da situação. Aquele que, apesar denossa intenção positiva, manifesta hostilidade contra nós, não o faz livremente. Está dominado pelaignorância, pelo karma e pelas emoções conflituosas, que o impedem, no momento, de agir de formadiferente. De fato, ele não tem escolha. Como disse Shantideva;

Eu não fico em cólera

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Contra uma doença que me faz sofrer;

Por que então me encolerizar contra outras pessoas?

Elas também estão sob o império de condições (que as levam a agir assim).

A compreensão desta ausência de liberdade do outro quando se mostra agressivo vai nosimpedir de rejeitá-lo. Ao contrário, teremos por ele muito mais compaixão e desejaremos, caso nãopossamos ajudá-lo neste momento, poder fazê-lo no futuro.

Uma mãe com vários filhos tem por todos o mesmo amor, dá-lhes a mesma atenção e omesmo cuidado. Mas pode ocorrer que um dos filhos, por estar doente ou por outras dificuldadespassageiras, mostre-se agressivo em relação à mãe, apesar dos seus cuidados e da sua gentileza.Talvez ele chegue mesmo a insultá-la ou a tentar bater-lhe. Isso não é impossível. Mas a mãe nãopensará: “Não é mais meu filho, não quero mais saber dele, nada farei por ele”. Ao contrário, elacompreende que as suas reações são provocadas pela doença ou por outras circunstâncias. Ela senteassim mais amor ainda por ele, suporta com paciência seus destemperos, e procura auxiliá-lo no quefor possível. Quando estivermos diante da agressividade injustificada dos outros, é esta a atitude quedevemos manter.

Com certeza não possuímos, atualmente, amor e compaixão perfeitos. Isso é normal, já quesomos seres comuns. Devemos buscar a sua aquisição como uma aprendizagem e uma progressão,exatamente como uma criança que vai à escola e aprende primeiro a ler, e depois, à medida quepassa para as séries superiores, assimila novos conhecimentos com base nos precedentes.

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Não devemos ter dúvidas sobre as possibilidades de desenvolver o amor e a compaixão.Não constituem idéias externas a nós, mas, como vimos a propósito de TCHENREZI último, sãoqualidades que já existem em nossa mente, de maneira perfeita porém latente. Dada ainterdependência infalível de todos os fenômenos, é certo que nossa aprendizagem relativa atualconduzirá à atualização dessas qualidades virtuais.

A compaixão quer que desejemos liberar todos os seres do samsara. Às vezes, tendemos aconsiderar esse desejo como irrealizável em razão de sua amplitude.

Já que, até o presente, não conseguimos liberar a nós próprios do samsara, como aspirar àliberação dos outros! Entretanto, é precisamente esta atitude nobre e corajosa que nos conduz à nossaprópria liberação, e que, quando tivermos atingido o despertar, será a dinâmica que nos permitiráauxiliar os outros. Agora mesmo, ela engendra grandes benefícios, diminuindo nossos própriossofrimentos e permitindo aliviar os dos outros.

Sem a bodhicitta, isto é, sem o amor e a compaixão, toda prática, por mais profunda quepareça ser, não constitui um caminho para o despertar: nem shine (pacificação mental), nem asmeditações sobre as divindades, nem os exercícios sobre os canais e as energias sutis.

Os ocidentais dispõem hoje de múltiplas técnicas que permitem realizar coisasmaravilhosas. Os homens podem voar pelos ares, deslocarem-se sob o mar, reproduzir e transmitir aimagem e a palavra, cobrir grandes distâncias em pouco tempo, e fazer ainda muitas outras coisas

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que não se poderia imaginar há algum tempo. Contudo, nada disso teria sido inventado e não poderiafuncionar se a eletricidade não tivesse sido descoberta antes. Sem eletricidade, tudo pára, asmáquinas tornam-se objetos imóveis e inúteis.

A bodhicitta é a eletricidade das práticas espirituais. Se ela é cortada, nada mais funciona.Mas, com a bodhicitta, as fases de criação e de realização das divindades tornam-se um verdadeirocaminho para o despertar; a meditação sobre a vacuidade torna-se um caminho para o despertar; aconcentração sobre os ventos e sobre os canais sutis tornam-se um caminho para o despertar.Animados pela bodhicitta, toda atividade comum, todo trabalho no mundo tornam-se um caminhopara o despertar.

Aquele que tivesse toda a inteligência e toda a ciência do mundo, mas a quem faltasse oamor e a compaixão jamais poderia realizar nada de verdadeiramente benéfico para os outros.Aquele que está profundamente embebido de amor e de compaixão realiza o bem dos outros em tudoo que faz.

A PRESENÇA DE TCHENREZI

TCHENREZI, como expressão da compaixão de todos os Buddhas e de nossa própriamente, está presente entre os seres humanos que sofrem. Essa presença reveste-se de múltiplasformas, cuja variedade é muito maior do que se pode imaginar à primeira vista.

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No Tibete, alguns grandes lamas (o último capítulo contém quatro biografias) eramoriginariamente considerados como emanações de TCHENREZI, como, por exemplo, os DalaiLamas, ou os Karmapas, profetizados como tais em numerosos termas, textos escondidos porPadmasambhava. Ou ainda um lama como Kalu Rimpoche pode ser considerado como uma emanaçãodo Senhor da Grande Compaixão, embora ele não tenha se identificado especificamente como tal.Kalu Rimpoche tinha uma prática muito profunda da meditação, considerava TCHENREZI como umdos seus principais yidams, e ensinava a meditação de TCHENREZI aos seus discípulos, instituindo-a como prática regular em muitos centros do dharma que fundou no Ocidente e no Sudeste Asiático.

Todavia, a manifestação de TCHENREZI no plano terrestre não se limita apenas ao Tibete,ou ao mundo budista, ou aos lamas. Os nomes e as formas não são de modo algum sinais de suamanifestação. Esta pode referir-se aos budistas ou não-budistas, aos religiosos ou leigos, aos homensou mulheres, aos orientais ou ocidentais, a um rei ou a um mendigo.

De toda pessoa cujo coração é movido pelo amor e pela compaixão, que visa profunda esinceramente ao bem dos outros, sem pensar em fama, lucro, posição social ou reconhecimento,pode-se dizer que exprime a atividade de TCHENREZI. O amor e a compaixão são os verdadeirossinais que nos revelam a presença de TCHENREZI.

Os bodhisattvas são seres que têm por única motivação a compaixão, que nada mais é doque TCHENREZI no sentido último. Em certas preces dos bodhisattvas encontra-se às vezes odesejo de tornar-se um navio, uma ponte, um remédio, um médico, etc. No Bodhisattvacharyavatara,por exemplo, Shantideva afirma:

Possa eu ser um protetor para aqueles que não o têm,

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Um guia para os viajantes em rota,

Uma ponte, um navio, ou um barco

Para aqueles que querem atravessar as águas.

Possa eu ser uma ilha para aqueles que a procuram,

Uma lâmpada para os que desejam luz,

Um leito para os que necessitam de repouso,

Um servidor para aqueles que querem um servidor.

Por trás do caráter um pouco surpreendente desses desejos, percebe-se a mente compassivados bodhisattvas, prestes a manifestar-se sob qualquer forma benéfica para os seres. Se é benéficoque um navio possa cruzar o mar, o bodhisattva aparece sob a forma de um navio. Se é bom que umaponte transponha um rio, ele se manifesta sob a forma de uma ponte. Se uma doença virulenta afeta oshomens, o bodhisattva deseja tornar-se o remédio que a curará, o médico que saberá prescrevê-lo, aenfermeira que cuidará do doente.

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A mente de TCHENREZI pode operar sob a forma de um ser humano, um animal, umaplanta ou uma coisa inerte, sendo sempre a expressão da compaixão.

TCHENREZI pode até mesmo manifestar-se sob a forma de uma pessoa cuja atividade seráaparentemente negativa, mas que terá de fato a finalidade de dirigir os outros para uma condutapositiva. Conta-se a história dedois monges de um país distante que, tendo ouvido falar que o rei do Tibete, Songtsen Gampo, erauma emanação de TCHENREZI, quiseram encontrá-lo. Chegando em Lhasa, souberam que, porordem do rei, numerosas pessoas haviam sido executadas e muitas outras aprisionadas. Disserampara si mesmos que tais atos não poderiam vir de uma emanação de TCHENREZI, mas ficaram commedo e resolveram fugir o mais rápido possível. Mas o rei, tendo sabido da vinda deles e do projetode partida precipitada, enviou emissários para procurá-los. Quando o rei compreendeu as razões quemotivavam a fuga, explicou-lhes que em realidade não matara nem maltratara nenhuma pessoa.Disse-lhes que os tibetanos eram um povo rude e selvagem, pouco inclinado a submeter-se às leis eàs regras de uma sociedade que preservasse o interesse da cada um. Assim, para conduzi-los àtemperança, sem entretanto lhes fazer mal, criou emanações mágicas sob a forma de malfeitores esalteadores, cujos castigos exemplares, ainda que ilusórios, incitariam o respeito às leis e aos outros.O rei era de fato uma emanação de TCHENREZI: os seus poderes podiam dar a aparência de atosnegativos, mas ele os utilizava apenas como instrumento de sua compaixão.

Lá onde está a compaixão, qualquer que seja sua forma, lá está TCHENREZI.

A GÊNESE DE TCHENREZI

Do ponto de vista absoluto, TCHENREZI é sem origem. Existe primordialmente. Entretanto,

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do ponto de vista da realidade-guia, atribui-se um começo à sua manifestação no domínio dosfenômenos. Eis as grandes linhas dessa manifestação, tal como relatada no texto intitulado ManiKhabum.

Amitabha, o Buddha da Luz Infinita, que reina no Campo da Beatitude (Dewatchen),concebeu um dia que, para auxiliar os seres, seria necessário que se manifestasse uma divindade coma aparência de um jovem. Então, de seu olho direito emitiu um raio de luz branca que tomou a formade TCHENREZI. Constatou que ainda faltava uma divindade com a aparência de uma jovem e, doseu olho esquerdo, lançou um raio de luz verde, dando nascimento a Tara.

Nascido do olho de Amitabha, o jovem apareceu miraculosamente sobre um lótus. Havia,então, no Campo da Beatitude, um rei que se chamava Bondade Sublime (Zangpotchok). Milhares derainhas eram suas companheiras, mas delas nenhum filho nascera. Era grande seu pesar, e desejavaardentemente a chegada de um herdeiro. Para que seu desejo fosse atendido, doava muitos dos seusbens ao dharma, e, no altar, oferecia múltiplas oferendas aos Buddhas e às Três Jóias.

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TARA VERDE

Para tanto, enviava regularmente um servidor ao Lago dos Lótus, localizado não muito

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longe do seu palácio, com a missão de colher as mais belas flores frescas. Num dia em que oservidor partira para fazer sua colheita, notou uma criança de aspecto maravilhoso, sentada sobre ocoração de um lótus. Correu imediatamente para o palácio e relatou ao rei o que vira.

O rei pensou que as suas preces haviam sido atendidas.

A miraculosa criança só poderia ser o filho que tanto desejava. Acompanhado por suacorte, o rei dirigiu-se ao Lago dos Lótus para suplicar ao jovem que viesse morar com ele. O jovemparecia ter dezesseis anos. Era muito bonito, de cor branca, adornado de sedas e jóias e dizia semcessar: "Pobres seres! Pobres seres!"

O jovem veio morar no palácio do rei que, em razão das circunstâncias da sua descoberta,chamou-o de Coração de Lótus (Pemai Nyingpo).

O rei Bondade Sublime queria entretanto saber de onde viera o jovem. Assim, foi procurarAmitabha, e perguntou-lhe de quem Coração de Lótus era a emanação e qual o seu nome verdadeiro.

Esta criança é uma emanação da atividade de todos os Buddhas, respondeu Amithaba. É elaaquela que realiza o bem de todos os seres, aquela que regozija o coração de todos os Buddhas. Seunome é TCHENREZI, o Nobre Soberano. O socorro que este filho bem nascido trará aos seres será

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tão vasto como o espaço.

Quando, mais tarde, TCHENREZI pousou o seu olhar de compaixão sobre os seres, viu queestavam recobertos de numerosos véus cármicos e inúmeros eram os seus sofrimentos, pois estavamsob o domínio do desejo, da aversão, da cegueira, do ciúme e do orgulho. Ao ver isso, uma lágrimacaiu de cada um de seus olhos. Da lágrima de seu olho direito surgiu Tara, e da lágrima de seu olho

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TCHENREZI DE DOIS BRAÇOS

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esquerdo apareceu a deusa Lhamo Trölnyertchen. As duas divindades voltaram-se para ele edisseram: "Não tema. Vamos ajudá-lo em sua missão de beneficiar todos os seres". Em seguida, numinstante, fundiram-se de novo nos olhos de TCHENREZI.

Depois, quando estava na presença de Amitabha, TCHENEEZI pensou: "Enquanto houverum único ser que não tenha atingido o despertar, trabalharei para o bem de todos. E se faltar a estapromessa, que a minha cabeça e o meu corpo se partam em mil pedaços!"

Amitabha compreendeu seu pensamento e disse-lhe: "Esta promessa é excelente. É portermos tomado esses votos que eu e todos os Buddhas dos três tempos atingimos o despertar para obem de todos os seres. Eu vou auxiliá-lo a realizar o que prometeu."

O corpo de TCHENREZI emitiu então seis raios de luz que produziram emanações, para obem de todos, em cada uma das seis classes de seres: os homens, os deuses, os semi-deuses, osanimais, os espíritos ávidos, os seres dos infernos.

Ele trabalhou assim durante numerosos kalpas, até que, um dia, do alto do monte Meru,olhou com o olho do conhecimento se havia liberado numerosos seres, se o seu número haviadiminuído no samsara. Mas viu que ainda eram inumeráveis.

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Ficou muito triste por isso. Desencorajado, pensou: "Não tenho a capacidade de socorrer osseres. É melhor que eu me repouse no nirvana."

Esse pensamento contrariou sua promessa. Assim, seu corpo fragmentou-se em mil pedaços,e ele sentiu um intenso sofrimento.

Amitabha, pelo poder de sua graça, recompôs o corpo de TCHENREZI. Deu-lhe onzerostos, mil braços semelhantes aos mil raios de uma roda de um monarca universal, e mil olhos,símbolos dos mil Buddhas do presente kalpa. TCHENREZI poderia, a partir de então, auxiliar osseres sob esta forma, bem como sob suas outras formas, com dois ou quatro braços. Amitabha pediua TCHENREZI que retomasse a sua promessa, agora ainda com mais vigor do que antes, etransmitiu-lhe o mantra de seis sílabas:

OM MANI PEME HUNG.

Essa é a história da manifestação de TCHENREZI no domínio relativo.

O CAMPO DA BEATITUDE E O POTALA

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O Potala é principalmente conhecido como o palácio de Lhassa que, até a invasão chinesa,servia de residência aos Dalai Lamas. Entretanto, esse Potala de Lhassa recebeu seu nome do Potalaceleste, montanha em cujo cume mora TCHENREZI. O Potala terrestre é um reflexo do Potalaceleste. O edifício de Lhassa foi originalmente assim denominado porque o rei Songtsen Gampo, queo construiu no sétimo século, era considerado uma emanação de TCHENREZI, como o seriam, maistarde, os Dalai Lamas.

Embora o palácio de TCHENREZI, enquanto emanação, seja o Potala celeste, ele tambémpermanece no Campo da Beatitude (Dewatchen). TCHENREZI será o sucessor de Amitabha quandoAmitabha partir para outros campos puros. É esta a razão pela qual, no final da meditação, reza-separa renascer no Campo da Beatitude.

Atribui-se ao Campo da Beatitude e ao Potala localizações muito diferentes: o primeiro aoeste, extremamente longe do nosso mundo, e o segundo ao sul, muito mais próximo. E de lá queTCHENREZI vela mais particularmente sobre a terra.

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TCHENREZI DE MIL BRAÇOS

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Entretanto, essas considerações só têm sentido no contexto da realidade-guia. Do ponto devista da realidade definitiva, as manifestações dos Buddhas e seus campos puros são "de um únicosabor". Não se lhes pode aplicar as noções de multiplicidade ou de unidade.

Na verdade, os campos de manifestação pura, como o Campo da Beatitude, nada mais sãodo que a luminosidade própria da mente dos Buddhas. Apesar de manifestados, não têm, do ponto devista do despertar, realidade objetiva. Estão além dos conceitos de sujeito e de objeto. Esse modo deaparência não-dual é denominado de "luminosidade própria".

Não temos, no momento, a capacidade de ver os campos puros. Entretanto, voltar para elesa nossa mente e rezar para neles renascer cria uma tendência purificadora que, aliada à força dosdesejos e ao poder da graça dos Buddhas, permite efetivamente aí renascer, depois da morte.

A experiência que então lá se tem difere tanto da que vivemos atualmente como da que viveum Buddha. As aparências que lá percebemos não têm a mesma estrutura da matéria ordinária, têmum caráter puro. Tudo lá é belo, todos os sons harmoniosos, todos os odores agradáveis. Lá, asemoções conflituosas e o sofrimento estão ausentes. No entanto, permanecemos numa relação desujeito-objeto. Não experimentamos a pureza não-dual. Para isso, devemos continuar, no campopuro, a receber os ensinamentos, a meditar, a praticar. Saímos dos sofrimentos do estado ordináriodo ser, mas não atingimos a não-dualidade última, o estado de Buddha.

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De modo geral, para renascer nos campos puros, é necessário primeiro ter obtido aprimeira terra de bodhisattva, nível de realização muito elevado, no qual já se possui a visão diretada realidade última. O Campo da Beatitude não demanda, necessariamente, a conquista de tal grau.Pode-se aí renascer e viver sem ter alcançado a primeira terra, graças à força particular dacompaixão e das aspirações do Buddha Amitabha. Diz-se que se a aspiração, a devoção e aconfiança são muito grandes, mesmo aquele que cometeu numerosos atos negativos pode renascer noCampo da Beatitude. É também o local onde se podem manifestar, após esta vida, grandes serescomo Tchyungpo Neljor, o fundador da linhagem Shangpa. De qualquer modo, é um estado semretorno. Uma vez aí renascido não mais é possível retornar aos mundos do samsara.

O MANTRA OM MANI PEME HUNG

Os mantras são uma manifestação sonora nascida da vacuidade. Eles são o som autênticoda vacuidade.

Do ponto de vista da verdade absoluta, da própria vacuidade, o mantra não tem existência.Não há, assim, nem som nem mantra. Os sons e os mantras, como toda outra forma de manifestação,situam-se no domínio do relativo, o qual surge da vacuidade. Nesse domínio relativo, os sons,embora desprovidos de entidade própria, têm o poder de designar, de nomear, e de agir sobre amente. Quando alguém nos diz, por exemplo, "Você é uma pessoa de bem", ou, ao contrário, "Você émuito desagradável", as palavras "bem" e "desagradável" não são "coisas", são apenas sonoridadeque não tem nada de "bem" nem de "desagradável". Entretanto, evocam os pensamentos de "bem" ede "desagradável" e produzem um efeito sobre a nossa mente. Do mesmo modo, no domínio relativo,os mantras estão dotados de um infalível poder de ação.

Os mantras são freqüentemente os nomes de Buddhas, de bodhisattvas, ou de divindades.OM MAM PEME HUNG nada mais é, por exemplo, que uma maneira de nomear TCHENREZI. De

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um ponto de vista absoluto, TCHENREZI não tem nome, mas, no domínio do relativo, da realidade-guia, ele é designado por nomes, que são o vetor da sua compaixão, da sua graça e do poder dasaspirações que formula para o bem dos seres. Nesse sentido, a recitação de seu nome transmite asqualidades de sua mente. Aqui reside a explicação do poder benéfico de seu mantra, que é também oseu nome.

Assim como assimilamos o nosso nome, tornamo-nos um com ele, da mesma maneira, norelativo, o mantra é idêntico à divindade. Eles constituem uma única mesma realidade. O mantrarecitado nada mais é que a própria divindade. Pela recitação recebe-se a graça da divindade; pelavisualização recebe-se a mesma graça, sem diferença.

O mantra OM MANI PEME HUNG propiciou, às vezes, traduções fantasiosas oumisteriosas. Contudo, como acabamos de ver, trata-se simplesmente de um nome de TCHENREZI,colocado entre duas sílabas sagradas tradicionais, OM e HUNG.

✴ OM representa o corpo de todos os Buddhas; é também o começo de todos os mantras;

✴ MANI significa jóia em sânscrito;

✴ PEME, segundo a pronúncia tibetana, ou PADME, segundo a pronúncia sânscrita,

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significa lótus;

✴ HUNG representa a mente de todos os Buddhas e conclui freqüentemente os mantras.

MANI e PEME referem-se à jóia que TCHENREZI segura em suas duas mãos centrais e aolótus que segura na sua segunda mão esquerda. Dizer MANI PEME é nomear TCHENREZI por meiodos seus atributos: "aquele que segura a jóia e o lótus". TCHENREZI, ou Jóia-Lótus, são dois nomespara a mesma divindade.

Quando recitamos esse mantra, de fato repetimos continuamente o nome de TCHENREZI.Em si, o exercício pode parecer estranho. Suponhamos uma pessoa de nome Sõnam Tsering e querepetíssemos sem cessar o seu nome, como se fosse um mantra: Sõnam Tsering, Sõnam Tsering,Sõnam Tsering, etc. Isso seria bizarro e certamente sem utilidade. Se, ao contrário, a recitação domantra OM MANI PEME HUNG tem um sentido, é pelo fato de estar investido da graça e do poderda mente de TCHENREZI, que congrega a graça e a compaixão de todos os Buddhas e bodhisattvas.Desse modo, o mantra está dotado da capacidade de purificar nossa mente dos véus que aobscurecem, de abri-la ao amor e à compaixão, de conduzi-la ao despertar.

O fato de que a divindade e o mantra sejam um em essência explica que se possa tambémrecitar o mantra sem fazer necessariamente visualização e que essa recitação guarde sua eficácia.

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As qualidades próprias a cada uma das seis sílabas do mantra são explicadas pornumerosas correspondências.

Considera-se, em primeiro lugar, que cada uma das seis sílabas permite fechar a porta dosrenascimentos dolorosos, em um dos seis mundos da existência cíclica.

• OM fecha a porta dos renascimentos no mundo dos deuses (devas);

• MA, a porta no mundo dos semi-deuses (asuras);

• NI, a porta no mundo dos homens;

• PE, a porta no mundo dos animais;

• ME, a porta no mundo dos espíritos ávidos (pretas);

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• HUNG, a porta no mundo dos infernos.

Cada sílaba é a seguir considerada como tendo um efeito purificador próprio:

• OM purifica os véus do corpo;

• MA, os véus da palavra;

• NI, os véus da mente;

• PE, os véus das emoções conflituosas,

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• ME, os véus dos condicionamentos latentes;

• HUNG, o véu que recobre o conhecimento.

Cada sílaba é em si uma prece:

• OM é a prece dirigida aos corpos dos Buddhas;

• MA, à palavra dos Buddhas;

• NI, à mente dos Buddhas;

• PE, às qualidades dos Buddhas;

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• ME, à atividade dos Buddhas;

• HUNG reúne a graça do corpo, da palavra, da mente, das qualidades e daatividade dos Buddhas.

As seis sílabas correspondem às seis paramitas, às seis perfeições transcendentes:

• OM corresponde à generosidade;

• MA, à ética;

• NI, à paciência;

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• PE, à diligência;

• ME, à concentração;

• HUNG, ao conhecimento.

As seis sílabas são também relacionadas aos seis Buddhas que reinam sobre as seisfamílias de Buddhas:

• OM corresponde a Ratnasambhava;

• MA, a Amoghasiddhi;

• NI, a Vajradhara;

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• PE, a Vairocana;

• ME, a Amitabha;

• HUNG, a Akshobya.

Finalmente, as sílabas relacionam-se às seis sabedorias:

• OM, à sabedoria da equanimidade;

• MA, à da atividade;

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• NI, à nascida de si mesma;

• PE, à do dharmadatu;

• ME, à discriminante;

• HUNG, à semelhante ao espelho.

No Tibete, o mantra de TCHENREZI era recitado por todo mundo. Seu caráter popular esimples, longe de diminuir sua grandeza, conferia-lhe um valor adicional, como expresso numprovérbio bem humorado:

No início, não sabê-lo não é sofrimento;

No meio, sabê-lo não é orgulho;

No fim, esquecê-lo não é de se temer.

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Ignorar a lógica, a medicina, a astrologia e as outras ciências é doloroso, porque deve-sedespender muita energia e esforço e aceitar muito cansaço para aprendê-las, Mas, para aprender omantra de TCHENREZI, bastam alguns segundos. Nenhum "sofrimento" deve ser encarado parapassar da ignorância ao conhecimento do mantra. Esta é a razão pela qual "No início não sabê-lonão é sofrimento".

Após ter-se passado muitos anos para aprender uma ciência difícil, tendo-se obtido fama ouposição social, corre-se o risco da auto-satisfação e de se crer superior aos outros. A simplicidadedo mantra de TCHENREZI afasta esse perigo: "No meio, sabê-lo não é orgulho".

Finalmente, se não são mantidos, os conhecimentos que possamos ter assimilado emmedicina, em astrologia ou em outra ciência perder-se-ão pouco a pouco. Entretanto, é impossívelnão se lembrar das seis sílabas OM MANI PEME HUNG. Portanto, "No fim, esquecê-lo não é de setemer".

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PRINCÍPIOS DA MEDITAÇÃO

DO PURO AO IMPURO

O dharma é um processo que permite passar do estado do ser comum ao estado do serdesperto, que se chama Buddha. Não se poderá captar o alcance do dharma e sua função profundacaso não se compreenda esse processo, cujos princípios são expressos em termos de purificação:

• base da purificação,

• objeto da purificação,

• agente purificador,

• resultado da purificação.

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A base da purificação

Nossa própria mente, na sua verdadeira natureza, é a mente em si, semelhante ao modo deser da mente de todos os seres. Sendo assim, não está maculada por impurezas. Entretanto, encontra-se agora impregnada de numerosos condicionamentos passageiros que, embora não afetem a suaessência, produzem a ilusão e o sofrimento.

A essência da mente é o que se chama de "coração do despertar". Apesar de ser pura, pelanossa ausência de realização do que ela é, coração do despertar e impurezas ilusórias encontram-semisturadas. Essa mistura constitui a base da purificação, semelhante a um tecido branco maculadopor manchas. O tecido pode voltar a ser branco graças ao fato de a brancura ser a sua natureza. Damesma forma, a pureza é a natureza de nossa mente e nós podemos recobrá-la. Um carvão, aocontrário, não tem qualquer chance de se tornar branco, pois é originalmente negro. Se a ilusão, adualidade e o sofrimento fossem a natureza de nossa mente, não teríamos qualquer possibilidade denos livrarmos delas.

O objeto da purificação

O objeto da purificação é o que se deve eliminar, ou seja, as impurezas ilusórias,semelhantes às manchas que recobrem o tecido, mas que não fazem parte da sua natureza. Essasimpurezas não têm realidade própria, motivo pelo qual podemos nos desembaraçar delas. Se fossemdotadas de uma existência em si, isso seria impossível; mas, são contingentes, de natureza ilusória,

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um simples erro. A sua raiz é a dualidade "apreendido-apreendendo": no exterior, as aparênciasapreendidas como objeto; no interior, a mente apreendendo enquanto sujeito. Esta polaridadeacarreta a produção de emoções conflituosas (cólera-aversão, desejo-apego, cegueira, ciúme,possessividade, orgulho, etc) e de aparências ilusórias, das quais provêm, por sua vez, o karma e osofrimento. É portanto a dualidade, a base sobre a qual se edifica o processo, que deve serprincipalmente eliminada.

Os objetos apreendidos exteriormente revestem-se de seis aspectos, correspondentes aosseis sentidos:

• as formas para a vista,

• os sons para o ouvido,

• os odores para o olfato,

• os sabores para o paladar,

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• os contatos para o tato,

• os objetos mentais para o mental.

O sujeito que os apreende interiormente divide-se igualmente em seis consciências: visual,auditiva, olfativa, gustativa, tátil, mental.

É dessa maneira que o espírito funciona na ilusão: seis objetos e seis consciênciasapreendidas como realidades separadas; esta separação é o espaço no qual se inscreve o jogo dasemoções conflituosas.

Esses seis objetos e essas seis consciências são, no entanto, desprovidas de uma entidadeprópria. No processo de percepção de uma forma, por exemplo, incorremos em erro ao percebercomo duas entidades independentes o objeto percebido e a mente que percebe. Na realidade, aforma, percebida como objeto, nada mais é do que a manifestação do aspecto "claridade" da mente,enquanto que o eu-sujeito nada mais é do que o aspecto "vacuidade" dessa mente. No mecanismo deilusão chega-se, contudo, à situação de olhar-se como sendo outro. É um pouco como o que ocorrequando caminhamos ao sol: nossa sombra destaca-se de nós e aparece como outro.

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O objeto apreendido exteriormente e o sujeito que o apreende interiormente não estão, naverdade, jamais separados: não há dualidade. Embora o sujeito e o objeto não sejam duas coisasdistintas, como não percebemos esse fato, criamos uma dualidade conosco, o que produz um jogo deemoções conflituosas e pensamentos ilusórios.

Assim, o que devemos purificar é essa polaridade de eu-outro.

O agente purificador

Para lavar um tecido das manchas que o recobrem é necessário utilizar diferentes produtos:água, detergente ou sabão. Da mesma maneira, para que se opere a purificação de nossa mente, umagente é necessário: o dharma. Todas as suas etapas, todos os aspectos que o compõem, todas asmeditações que nele são ensinadas participam desta única função purificadora. Quer sejam a tomadade refúgio, as práticas preliminares, a pacificação mental (shine) e a visão superior (lhaktong), asfases de criação e de realização nas meditações do vajrayana, enfim o mahamudra, tudo visa aomesmo objetivo.

Pelo dharma são inicialmente dissipadas as emoções conflituosas e os pensamentosilusórios mais evidentes. Depois, progressivamente, os seus aspectos mais sutis, até, finalmente, aeliminação do último obscurecimento, o véu que recobre o conhecimento, graças à ultima meditação,a que conduz ao despertar final: a "contemplação semelhante ao vajra".

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A meditação de TCHENREZI é claramente um desses agentes de purificação. Emparticular, graças ao pensamento "Eu sou TCHENREZI" — aquilo que se chama de "orgulho dadivindade" — purifica-se da assimilação a um eu comum; pela meditação do corpo da divindade,dos seus ornamentos, do campo puro, etc, purifica-se dos condicionamentos que produzem asaparências ordinárias.

Estes pontos serão examinados mais adiante, nas seções "função das duas fases" e "as trêscaracterísticas da fase de criação". Veremos então em detalhe a função purificadora deTCHENREZI.

Resultado da purificação

Quando a mente está totalmente purificada da dualidade sujeito-objeto, revela-se o fruto: arealização da verdade não-dual do modo de ser da mente, cuja natureza não é diferente dos trêscorpos do despertar, corpo absoluto (dharmakaya), corpo de glória (sambhogakaya) e corpo daemanação (nirmanakaya). Esses três corpos já estavam presentes na base de purificação, mas emestado latente. No nível do resultado, eles são atualizados, revelados em sua plenitude e em suapureza.

Do ponto de vista do despertar, de fato não há separação, nenhuma noção de produção, dediferenciação ou de classificação. De um ponto de vista relativo, distinguem-se as três modalidadesaparentes que são os três corpos:

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✴ O dharmakaya corresponde ao aspecto vacuidade da mente desperta e é, portanto,desprovido de forma, cores, etc. É também o corpo que se diz obtido para benefício próprio. Pelopoder da compaixão e dos desejos dos Buddhas e ao mesmo tempo pelo mérito dos seres, dodharmakaya se manifestam os dois corpos formais.

✴ O sambhogakaya aparece para os seres de karma muito puro, em campos demanifestação diferentes do nosso. A transmissão do dharma, nesse nível, não se faz porensinamentos que necessitam da palavra e da escuta. O sambhogakaya simplesmente manifesta-se eos bodhisattvas que compõem o seu grupo de discípulos compreendem o sentido de tudo que deveser transmitido.

✴ O nirmanakaya é a manifestação do despertar nos domínios da manifestação ordinária,para guiar os seres de karma impuro. É o caso, por exemplo, do Buddha Sakyamuni, que vem àterra, gira a roda do dharma e, por isso, faz com que os seres ingressem no caminho da liberação.

Enquanto os dois corpos formais realizam o bem dos seres, a mente de Buddha não produzesforço, não engendra intenção, nem experimenta dificuldade. É uma atividade totalmente espontânea,semelhante à irradiação do sol, que resulta dos desejos, da motivação e dos méritos anteriores.

Embora os aspectos dos três corpos difiram, a sua essência é una. O que são três aspectosnuma só essência, podemos compreender por um exemplo. A lua no céu é semelhante aodharmakaya, seus raios semelhantes ao samboghakaya, e seu reflexo na água semelhante aonirmanakaya. A lua, os raios e o reflexo, ainda que pareçam diferentes, são uma única e mesma

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essência.

Assim, a base de purificação é a nossa mente de ser ordinário impuro, mas dotado daspotencialidades de despertar. O objeto da purificação são as impurezas contingentes nascidas dapolaridade sujeito-objeto. O agente de purificação é o dharma. O resultado da purificação é arealização do modo de ser não dual, a atualização do despertar.

A INICIAÇÃO

Toda meditação do vajrayana pressupõe, para ser eficaz, uma iniciação, isto é, um ritualque transmita a força espiritual. Sem essa iniciação, a prática das fases de criação e de realizaçãonão podem ser realizadas, e mesmo que isso aconteça será em vão.

Segundo as classes de tantras e segundo as divindades, as iniciações revestem-se devariados aspectos, inscrevendo-se num quadro de rituais mais ou menos complexos e mais ou menoslongos. Entretanto, o seu princípio permanece idêntico.

O funcionamento de nossa individualidade comum é descrito no budismo sob diferentesângulos: os cinco elementos, os cinco agregados, as doze bases da percepção, etc. Esses diferentesconjuntos são marcados pela dualidade, pela ilusão e pelo sofrimento. No vajrayana, considera-se,contudo, que sua natureza última é pura e divina, ainda que, agora, não a realizemos. O que ocorredurante uma iniciação? O mestre que a confere, pelos mantras, pelos mudras, pelas visualizações e

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pela meditação, impõe uma força espiritual, uma "graça", aos elementos, aos agregados, e às basesda percepção, de maneira que seu potencial divino, no momento recoberto pela ignorância, édesperto. Esta impulsão inicial permitirá a seguir, pela prática da divindade correspondente,atualizar completamente a realidade divina de nossa mente e de suas expressões.

A iniciação de TCHENREZI, que só pode ser transmitida por um mestre que a recebeu deuma linhagem ininterrupta, compreende três aspectos principais, incluídos numa mesma cerimônia:

✴ A iniciação do corpo da divindade é conferida ao corpo do discípulo. Ela o habilita a sevisualizar sob a forma de TCHENREZI, bem como a considerar o universo como sendo o Campoda Beatitude. Permite também meditar na união da aparência com a vacuidade.

✴ A iniciação da palavra da divindade é conferida à palavra do discípulo. Ela o habilita arecitar o mantra OM MANI PEME HUNG, bem como a considerar todos os sons, que sãoordinariamente percebidos como agradáveis ou desagradáveis, como sendo o mantra. Permite,também, meditar na união da sonoridade com a vacuidade.

✴ A iniciação da mente da divindade é conferida à mente do discípulo. Ela o habilita ameditar pensando que sua mente é una com a de TCHENREZI, abrindo-o assim ao desenvolvimentodo amor e da compaixão. Permite também meditar na união da compaixão com a vacuidade.

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Os tibetanos recitam às vezes o mantra de TCHENREZI sem terem recebido a iniciação.Mas eles o fazem com uma fé e uma devoção adquiridas desde a sua tenra infância, todosconsiderando TCHENREZI como a divindade tutelar de seu país. Ao andarem, ao trabalharem, aorealizarem várias tarefas, recitam o mantra, às vezes sem saber visualizar a divindade. Da mesmamaneira, se temos confiança em TCHENREZI, podemos recitar o seu mantra mesmo sem termosrecebido a iniciação e seremos beneficiados por isso.

De fato, enquanto se considerar TCHENREZI como exterior a si mesmo, a iniciação não éindispensável. Mas passa a sê-lo para meditar sobre si mesmo sob a forma da divindade, paraverdadeiramente realizar as fases de criação e de realização.

AS DUAS FASES DA MEDITAÇÃO DO VAJRAYANA:

CRIAÇÃO E REALIZAÇÃO

As meditações do vajrayana se dividem em duas fases, chamadas de criação e derealização.

A fase de criação refere-se à primeira parte da meditação, quando se cria mentalmente aaparência de uma divindade.

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A fase de realização refere-se ao final da meditação, quando todas as aparênciasdissolvem-se na vacuidade. Permanecemos, então, na natureza da mente, que é ao mesmo tempo umaausência de pensamentos e uma experiência de felicidade.

Quando uma onda se forma na superfície do mar, ela pode aparecer como sendo algodiferente desse mar. Entretanto, quando ela baixa, retorna ao mar, que é a sua própria natureza. Damesma maneira, as fases de criação e de realização não são, em essência, separadas. Como a onda eo mar, participam da mesma natureza. A fase de criação é semelhante à onda que se eleva e a fase derealização, à onda que retorna ao mar. Nos dois casos, é a mesma mente que medita. Não são duasrealidades diferentes. Se não se compreende bem essa relação, poder-se-á talvez ter a idéia de que afase de criação assemelha-se à construção de uma casa e a fase de realização à sua destruição.

Para os principiantes, as duas fases têm, certamente, um aspecto bem distinto; primeiro,realizamos a fase de criação, ao longo da qual visualizamos a divindade e recitamos o mantra, e, aofim dessa fase, passamos à fase de realização em que toda aparência se reabsorve na vacuidade.

Entretanto, num estágio mais avançado, elas revelam-se indiferenciadas. A fase de criaçãoparte da vacuidade da mente, a partir da qual se cria uma imagem. Pode-se, assim, evocar na mente aimagem da cidade de Paris, ver os edifícios que se conhece, as ruas que são familiares. Tudo issoaparece claramente. Ao mesmo tempo que essa manifestação se produz, ela permanece, entretanto,vazia, desprovida de toda realidade material, de entidade independente. Essa vacuidade é a fase derealização. As duas fases estão presentes simultaneamente. As aparências visualizadas são vazias,mas ocorrem. É a união da manifestação e da vacuidade.

Quando visualizamos TCHENREZI, podemos ver claramente seu rosto, seus braços, suas

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jóias, as diferentes cores: é a fase de criação. Ao mesmo tempo, TCHENREZI é sem existênciamaterial: é a fase de realização. Da mesma maneira, os sons são simultaneamente sonoridade evacuidade, os pensamentos são simultaneamente consciência e vacuidade.

Na realidade, cada pensamento que se eleva em nossa mente contém em si mesmo as fasesde criação e de realização.

Tal é a natureza das duas fases. Veremos agora como "funciona" a meditação deTCHENREZI, como ela suporta nosso progresso espiritual em geral, as contribuições específicas dasduas fases, e as características da fase de criação.

FUNÇÕES GERAIS DA MEDITAÇÃO DE TCHENREZI

A meditação de TCHENREZI não é um aspecto fragmentário do dharma; reúne todos osaspectos da via espiritual. É completa e permite desenvolver o conjunto de qualidades necessáriassobre o caminho, as seis perfeições (paramitas) do mahayana:

✴ A motivação que nos leva a fazer essa meditação é a de poder realizar o bem dos seres:é a paramita da generosidade.

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✴ Quando se realiza a visualização e a recitação do mantra, abandonam-se as atividadesordinárias do corpo, da palavra e da mente. A conduta ordinária, as palavras ordinárias e ospensamentos ordinários são abandonados: é a paramita da ética.

✴ No decorrer da meditação, suporta-se o desconforto que às vezes o corpo e a menteexperimentam: é a paramita da paciência.

✴ Despende-se um certo esforço, sujeita-se à perseverança: é a paramita da diligência.

✴ Quando o corpo da divindade, o campo puro, os ornamentos, as sílabas do mantra sãoreconhecidos como sendo a claridade da mente, uma manifestação da luminosidade da mente em simesma: é a paramita do conhecimento transcendente.

Todavia, pode-se conceber a função da meditação de TCHENREZI de maneira maisdetalhada. Isso é considerado sob duas perspectivas:

✴ compreender, de uma parte, como ela permite desenvolver aspectos tão variados como aeliminação dos pensamentos ilusórios, a acumulação de mérito, a compaixão, a devoção, a

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pacificação mental, a visão superior e o mahamudra;

✴ compreender, de outra parte, como ela permite que se opere uma purificação no nívelmais profundo de nossos condicionamentos.

Examinemos cada um dos pontos mencionados na primeira perspectiva:

✴ eliminação dos pensamentos ilusórios: por um lado, a visualização das cores, dasvestimentas e dos atributos de TCHENREZI permite eliminar os pensamentos ordinários ilusórios;por outro, visualizar-se sob a forma de TCHENREZI dissipa a assimilação ao eu ilusório;

✴ acumulação de mérito: durante a meditação, imagina-se que se enviam raios de luz"para o alto", que vão apresentar oferendas aos Buddhas e aos bodhisattvas das dez direções, eraios de luz "para baixo", que se espalham sobre os seres comuns e aliviam seus sofrimentos; essasvisualizações, entre outras, permitem-nos acumular mérito e purificar-nos de nossos véus;

✴ compaixão: pensa-se nos sofrimentos dos seres, e, por diversas visualizações queveremos adiante, desenvolve-se a compaixão por eles; além disso, a forma mesma deTCHENREZI, bem como o seu mantra, impregnam nossa mente com a compaixão de todos osBuddhas, pois são a sua expressão;

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✴ devoção: as oferendas e as preces que se dirigem aos Buddhas e aos bodhisattvaspermitem que cresça nossa confiança e nossa devoção;

✴ pacificação mental (tibetano shine): o fato de que, durante a meditação, nossa mentepermanece sem distração sobre o corpo da divindade em seu conjunto, ou sobre um detalhe, sobreuma sílaba visualizada ou ainda sobre o som do mantra, permite desenvolver a pacificação mental;além disso, a variedade de objetos sobre os quais a mente pode meditar sucessivamente impedeque se relaxe e facilita a progressão na meditação;

✴ visão superior (tibetano lhakthong): quando o corpo de TCHENREZI aparececlaramente em nossa mente, ele permanece contudo desprovido de entidade própria e de realidadematerial, semelhante ao reflexo da lua sobre a água ou a uma imagem num espelho; ele é airradiação luminosa do TCHENREZI último, que é também a natureza última de nossa mente;reconhecer essa natureza vazia da aparência é a visão superior;

✴ mahamudra: a divindade é portanto aparência-vacuidade; mas não é aparência de umaparte e vacuidade de outra, ora aparência, ora vacuidade. Enquanto aparência, não perde suavacuidade, e, enquanto vazio, não perde sua aparência. É a união da aparência e da vacuidade, nãono sentido de duas coisas reunidas, mas no sentido de duas coisas formando uma única realidadeindissociável. Permanecer sem distração nesse estado de união é a simultaneidade da pacificaçãomental e da visão superior. É ainda o que se chama de mahamudra, e, nesse caso específico, o"mahamudra do corpo da divindade". No início não se experimenta verdadeiramente esse estado,mas ter-se uma idéia do que ele é permite que nos aproximemos dele.

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FUNÇÕES ESPECÍFICAS DAS DUAS FASES

Esses diferentes pontos seriam suficientes para que compreendamos a utilidade dameditação de TCHENREZI. Entretanto, é necessário acrescentar uma função purificadora geradapela graça no nível mais profundo. Trata-se da energia espiritual, que está presente em cada elementoda meditação.

As aparências, tais como as percebemos, não têm, em realidade, existência em si. São aprodução de nossa própria mente, produção deformada pelos condicionamentos derivados de nossokarma. Esses condicionamentos atuam no nível do "potencial de consciência" e levam aexperimentar-se a manifestação como separada de nós, sólida, real em si, e causa de inumeráveissofrimentos. Uma mente livre desses condicionamentos é uma mente pura, na qual se manifestam asaparências puras, desprovidas de materialidade, fora da dualidade sujeito-objeto, sem a marca dasemoções conflituosas e do sofrimento.

A purificação deve portanto se operar no nível do potencial de consciência e é lá que atuamas meditações do uajrayana. As fases de criação e de realização visam, com efeito, suprimir oconjunto dos condicionamentos produtores da existência no samsara, que se desenrola na sucessãode três seqüências: o nascimento, a vida, a morte. Desde tempos imemoriais tivemos inumeráveisexistências, cada qual seguindo o mesmo padrão: nascimento, vida, morte. Os condicionamentosinscritos por esta infinita repetição são extremamente fortes e tendem a recriar sem cessar o mesmoprocesso que nos mantém prisioneiros da ilusão.

Nesse contexto, a meditação das divindades, incluindo as duas fases, tem uma tríplice

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função:

✴ purificar-nos dos condicionamentos que causam o nascimento sob uma forma ordinária,resultante da maturação cármica;

✴ purificar-nos dos condicionamentos que produzem as aparências da vida ordinária,caracterizadas pelo apego a uma entidade própria e pelo sofrimento;

✴ purificar-nos dos condicionamentos que conduzem à morte ordinária e atualizar oscorpos e as sabedorias do despertar.

Nesse quadro, cada aspecto da meditação opera uma purificação particular:

✴ Antes de começar a visualização, pensa-se que todos os fenômenos sob a sua formaordinária impura reabsorvem-se na vacuidade. Simboliza a morte que precedeu esta vida. Isso nospurifica, de uma maneira geral, dos condicionamentos da morte produzidos em nossas existênciaspassadas e prepara-nos para a atualização do corpo absoluto (dharmakaya), a natureza última damente.

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✴ Da vacuidade aparecem inicialmente um lótus, um disco de lua e a sílaba-germe HRI.Isto corresponde, no momento da concepção no ventre, à reunião dos três elementos que acaracterizam: o lótus representa o óvulo; o disco lunar, o espermatozoide; a sílaba-germe, aconsciência que, vindo do bardo, junta-se aos dois suportes materiais. Com todos os fenômenosanteriormente purificados pela sua reabsorção na vacuidade, são agora os seus aspectos puros quese manifestam. Isso nos purifica dos condicionamentos que causam a concepção.

✴ A seguir, a transformação da sílaba-germe em divindade corresponde ao nascimento epermite que nos purifiquemos dos condicionamentos que o causam. Isso conduz também àmaturidade as potencialidades do corpo de emanação (nirmanakaya).

✴ Depois, recitam-se as louvações endereçadas à divindade, imaginam-se luzes que partemdo coração de TCHENREZI e apresentam oferendas aos Buddhas e aos bodhisattvas, visualizam-se os seus atributos, suas vestimentas, suas jóias, o palácio celeste onde mora e o campo demanifestação pura que o envolve. Tudo isso se aplica às características de nossa vida ordinária, donascimento até a morte: nossa atividade, nossas relações com os outros, nosso vestuário, nossoshábitos de decoração, nosso habitat, nosso ambiente. As visualizações correspondentes permitempurificar os condicionamentos de nossa vida e preparam-nos para a atualização do corpo de glória(sambhogakaya).

✴ No fim da fase de criação, o campo puro reabsorve-se no palácio celeste, este nadivindade, esta na letra-germe que, finalmente, dissolve-se na vacuidade. Essa dissoluçãosimboliza a morte que virá. Tem os mesmos efeitos que o desaparecimento dos fenômenos queprecedeu a visualização: purificação dos condicionamentos na morte, atualização futura dodharmakaya.

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Dessa maneira opera-se uma total purificação, ao mesmo tempo que a emergência dos trêscorpos do despertar se torna possível. Na realidade, nossa mente é e sempre foi Buddha pornatureza, mas os diferentes véus que a recobrem mantêm em estado latente essa natureza desperta,impedindo que ela se manifeste. Quando se manifestar, os campos puros e os corpos das divindades,que são a expressão verdadeira da natureza última da mente, também se revelarão.

CARACTERÍSTICAS DA FASE DE CRIAÇÃO

Voltemos agora à fase de criação. Para ser completa, deve apresentar três características:

• a clareza da aparência,

• a recordação do sentido puro, e

• o orgulho da divindade.

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A clareza da aparência

Os condicionamentos cármicos são a fonte da produção do mundo tal como o percebemos,tanto o mundo exterior, quanto nosso próprio corpo. Essas produções são semelhantes às de umsonho, mas temos uma percepção muito sólida, muito real, de sua existência. A clareza da aparência,ou seja, a clareza da visualização tem por função livrar-nos desse modo de produção ilusória eeliminar nossa fixação da realidade. Embora tenhamos considerado essa fixação anteriormente comoum elemento de purificação do potencial de consciência, vamos revê-la sob o ângulo da fase decriação.

O mundo apresenta-se sob uma extrema variedade de manifestações: o universo, o ambienteexterior, nosso habitat, nosso corpo, nossas vestimentas ou as jóias que usamos, as diferentes cores,etc. A visualização leva em conta essa variedade e lhe faz corresponder uma igual variedade deaparências divinas:

✴ o universo e o ambiente exterior são substituídos pela visualização do Campo daBeatitude, onde todas as aparências são belas, puras e produzem a alegria;

✴ o nosso habitat ordinário é substituído pela visualização do "palácio inestimável" dadivindade;

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✴ todos os seres e nós mesmos tomamos a forma de TCHENREZI;

✴ as vestimentas e as jóias tornam-se as jóias e as sedas usadas por TCHENREZI;

✴ as cores ordinárias são retomadas nas cores do conjunto e mais particularmente nas docorpo, nas dos ornamentos e nas das vestimentas da divindade.

As aparências divinas substituem assim as aparências ordinárias e neutralizam a fixaçãoque fazemos de sua realidade.

Entretanto, os principiantes freqüentemente têm dificuldades de desenvolver essa clareza daaparência, em particular de desenvolver uma visão de conjunto da divindade. Pode-se, assim, emprimeiro lugar, exercitar-se na visualização de aspectos parciais: apenas o rosto, em seguida cadauma das mãos, ou o rosário, o lótus, a jóia, etc. Esta maneira de proceder será fonte de maiorfacilidade.

Para os principiantes também, é difícil ver o TCHENREZI que visualizam e a própriamente como sendo um. Na verdade, a visualização só existe na nossa mente e não há, assim, um

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sujeito que observa e um objeto observado. Nossas tendências habituais levam-nos, contudo, mesmonesse caso, a guardar a dualidade sujeito-objeto. É somente a partir de uma grande experiência dameditação e de uma certa compreensão do modo de ser da mente que a visualização da divindadedeixa de ser impregnada das noções errôneas de sujeito e objeto. Temporariamente, o meditanteprincipiante pode simplesmente considerar a visualização como um objeto que a mente observa eaplicar-se para torná-la clara e estável, o que permitirá que sua mente se acalme.

A lembrança do sentido puro

Mas a clareza da visualização não deve produzir a percepção de um objeto divino queexistiria verdadeiramente, materialmente, ainda que num plano mais belo ou mais elevado que onosso. A divindade é ao mesmo tempo aparência e ausência de realidade própria, como uma imagemnum espelho, ou como o reflexo da lua na água. A divindade visualizada não é da mesma natureza deuma thangka ou de uma estátua: ela é desprovida de existência material e, ao mesmo tempo, dotadadas qualidades do espírito desperto. Ela não é nem material nem inerte.

O apego a uma realidade material na divindade é neutralizado pela recordação do sentidopuro, ou seja, pelo conhecimento de que cada um dos aspectos visualizados exprime as qualidadesdo despertar, num relacionamento simbólico. Cada detalhe de TCHENREZI tem assim seusignificado:

✴ a cor branca do seu corpo: ele é totalmente puro, livre de todo véu;

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✴ um único rosto: a essência de todos os fenômenos tem um único sabor;

✴ os quatro braços: os "quatro incomensuráveis" (amor incomensurável, compaixãoincomensurável, alegria incomensurável, equanimidade incomensurável);

✴ as duas pernas cruzadas na postura do vajra: ele não permanece nos extremos donirvana próprio e do samsara; une a compaixão com a vacuidade;

✴ a jóia que segura em suas mãos unidas na altura do coração: ele é aquele que realiza obem de todos os seres, satisfaz a todas as suas necessidades;

✴ o rosário na mão direita: ele conduz todos os seres para a liberação;

✴ o lótus na mão esquerda: ele possui a compaixão por todos os seres; ademais, assimcomo um lótus cresce no lodo sem que sua flor seja maculada, TCHENREZI atua no mundo sem sermaculado pelas emoções conflituosas e pelas imperfeições;

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✴ o disco lunar por trás de suas costas: o amor e a compaixão atingiram nele toda a suaplenitude;

✴ a pele de um animal sobre seu ombro: a bondade legendária da corça simboliza oespírito do despertar, o pensamento voltado para o bem de todos os seres;

✴ as diferentes jóias: a riqueza das qualidades de seu espírito desperto;

✴ as sedas de cinco cores de sua vestimenta: as cinco sabedorias.

Na visualização, junto à clareza da aparência, a compreensão desse simbolismo permitedesembaraçar-se da percepção material da divindade. Isso não significa que se deve recitarcontinuamente a lista de cada significado puro, mas sim que se tomou conhecimento e que foramassimilados.

O orgulho da divindade

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Os seres estão ligados por uma assimilação muito forte à sua individualidade. A idéia deum "eu", referido a essa individualidade, está profundamente enraizada em nós, é uma espécie deorgulho no nível mais fundamental.

Na meditação, substituí-se esse orgulho ordinário pelo "orgulho da divindade". Engendra-sea convicção de que "Eu sou TCHENREZI".

O orgulho ordinário é a base sobre a qual desenvolvem-se as emoções conflituosas, ospensamentos ilusórios e, em conseqüência, os sofrimentos. O orgulho da divindade permite acabarcom essas produções. Quando "Eu sou TCHENREZI", não mais sou fulano com os seus desejos, suasaversões, seus projetos, etc. As aparências impuras com as quais nos identificamos são substituídaspor aparências puras que são o corpo de TCHENREZI, seu campo de manifestação puro, seumantra,, etc.

Pode-se pensar que substituir uma identificação — a da nossa individualidade ordinária —por uma outra — a da divindade — não é uma mudança significativa. Entretanto, a diferença é muitogrande: no primeiro caso, há emoções conflituosas e sofrimentos; no segundo, isso não ocorre.

Cada um dos três aspectos da fase de criação tem assim uma função precisa:

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✴ a clareza da aparência neutraliza a produção das aparências em modo ordinário, isto é,ilusório;

✴ a lembrança do sentido puro neutraliza o apego a uma existência material nas aparênciaspuras que são a divindade e o seu campo de manifestação;

✴ o orgulho da divindade neutraliza a assimilação a um "eu" ordinário.

Esses três pontos são importantes, mas o desenvolvimento do terceiro é mais importanteque o dos outros dois. Num nível profundo, o orgulho da divindade permite que o corpo deTCHENREZI seja percebido como uma expressão da claridade de nossa própria mente, como umairradiação luminosa de sua natureza vazia. Sujeito e objeto, vacuidade e aparência tornam-seindissociáveis e permanece-se nessa contemplação. É claro que esse estado não poderá seralcançado rapidamente. No inicio, é suficiente pensar simplesmente: "Eu sou TCHENREZI".

APRENDER A VISUALIZAR

Quando se começa a praticar a fase de criação, tem-se freqüentemente dificuldade deformar uma imagem completa da divindade. Nossos esforços acham-se divididos: quando

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visualizamos o rosto, os braços tornam-se indistintos; por sua vez, os braços ofuscam o rosto, e aspernas fazem desaparecer os braços. Todavia, é necessário manter o espírito calmo, não lutarconsigo mesmo e, progressivamente, graças ao hábito, nossa capacidade de visualizar melhorará.

Deve-se evitar uma abordagem rígida e muito estruturada das coisas e considerar avisualização de TCHENREZI como a construção do muro de uma casa na qual cada tijolo é colocadosolidamente sobre o outro, e as portas e janelas são materialmente bem encaixadas no seu lugar. Umbom método é o seguinte:

No inicio da meditação, desenvolve-se simplesmente o pensamento: "Eu souTCHENREZI", e nele nos absorvemos. Depois, enquanto outros pensamentos nascem, levando-nos àassimilação com nossa personalidade ordinária, utilizamo-nos do suporte da visualização pararetomar a idéia de que somos a divindade. Por exemplo: "Eu sou TCHENREZI, meu corpo é de corbranca", e coloca-se a atenção nessa brancura do corpo, o que permite estabilizar a mente por algumtempo. Quando outros pensamentos nos distraem da cor branca, lembramo-nos, então, por exemplo,do que seguramos nas mãos, e assim por diante. Quando a estabilidade da mente sobre uma parte davisualização não pode mais se manter, passa-se para outra: os braços, as pernas, o rosto, etc. Assim,nossa mente habitua-se a uma certa estabilidade, sem tensão. E a visualização torna-se algo fácil eagradável.

Se uma criança se senta em meio a um grande número de brinquedos, não procura brincarcom todos os brinquedos ao mesmo tempo. Ela pega um, com o qual se distrai por um certo tempo;depois, quando se cansa, pega outro, que deixa para se ocupar de um terceiro, e assim por diante. Elatem muitos brinquedos, mas não está inquieta por não poder brincar com todos ao mesmo tempo.Sabe que eles estão lá, e que um de cada vez lhe é suficiente, e que, quando se cansar, pode pegaroutro. Na meditação de TCHENREZI é semelhante. Visualiza-se o rosto, ou uma mão, ou umornamento, ou uma cor e, quando nossa mente se cansa, passa-se a outro detalhe. A mente sente-seentão muito à vontade, com uma certa liberdade de movimento, livre de um peso, que superaria a suacapacidade. Este é um bom método para aprender a meditar.

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De outro modo, corre-se o risco de abordar a visualização inquieta e tensa: "É preciso queeu consiga visualizar de qualquer maneira, sem nada esquecer: o corpo, a cor, os atributos; que osbraços fiquem na posição correta; também as pernas; principalmente que eu não perca o rostoenquanto penso no lótus, ou no rosário..." A tarefa vai parecer esmagadora e estaremosdesencorajados antes mesmo de começar.

Suponha que se coloque, à sua frente, um grande número de trabalhos a serem realizadossimultaneamente. Você não saberia por onde começar. Iniciando uma coisa, ficaria preocupado pornão poder fazer as outras. Pensaria então: "Eu nunca conseguirei, jamais terei tempo, isso não épossível!" Sentir-se-ia mal, com a sensação de ter um enorme peso nos ombros. Não se deve abordara meditação com esse peso na mente.

Quando, durante a visualização, temos uma certa flexibilidade, uma certa aceitação daquiloque podemos fazer ou não, é nossa mente que assim pensa. Ao contrário, quando queremos umavisualização perfeita, não conseguimos e revoltamo-nos contra nós mesmos ou nos desencorajamos, éainda a nossa mente que cria esses problemas. É a mente que considera as coisas de uma maneira oude outra, cria sua própria facilidade ou sua própria dificuldade. E preciso ser hábil para orientar amente corretamente, e saber meditar relaxadamente e à vontade, como a criança que toma o que lheconvém pelo tempo que lhe é conveniente. Isso para ela não é complicado, nem lhe traz inquietação.Com essa atitude, os pensamentos que nos agitam habitualmente podem verdadeiramente se acalmar.Se, ao contrário, fixamo-nos na idéia de que não se pode esquecer isto ou deixar desaparecer aquilo,estaremos apenas adicionando novas preocupações às nossas preocupações, novas tensões às nossastensões, e essa não é a finalidade da meditação.

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MÉTODOS DE MEDITAÇÃO

A meditação de TCHENREZI compreende quatro partes: preliminares, fase de criação, fasede realização, e conclusão.

PRELIMINARES

As preliminares à meditação incluem dois aspectos: a tomada de refúgio e a geração doespírito de despertar. Os dois são recitados na mesma estrofe, que se repete três vezes:

Sangye tchö tang tso gui tcho namla

Djangtchub bartu dani khyab su tchi

Da gui djinso guipe sönam gui

Drola pentchir sangye druppar cho.

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(No Buddha, no Dhanna e na Sublime Sangha

Tomo refúgio até o despertar.

Pelo mérito de minha prática da generosidade e demais perfeições,

Possa eu realizar o estado de Buddha para o bem de todos os seres.)

Os dois primeiros versos aplicam-se à tomada de refúgio; os dois seguintes, à geração doespírito de despertar. A tomada de refúgio pode ser feita de duas maneiras: sem visualização e comvisualização.

No primeiro caso, pensa-se simplesmente que todos os Buddhas e bodhisattvas estão defato continuamente presentes e que nos colocamos sob a sua proteção. No segundo, a visualizaçãodifere daquela da "árvore do

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TCHENREZI DE QUATRO BRAÇOS

refúgio", utilizada em particular nas Práticas Preliminares, e na qual numerosas figuras sãoimaginadas simultaneamente: lamas, yidams, Buddhas, textos do dharma, membros da sangha,protetores. O método utilizado na meditação de TCHENREZI é o que se chama "a tradição da jóiaque reúne todos os lugares de refúgio". Visualiza-se, nesse caso, apenas TCHENREZI e coloca-sesob sua proteção, pensando que ele reúne em sua pessoa o lama-raiz, os lamas da linhagem, bemcomo todos os outros lugares de refúgio, Buddhas, bodhisattvas, yidams, etc.

Nos dois casos, não se toma o refúgio sozinho, mas imagina-se que se o faz junto com todosos seres do universo, até o despertar.

A geração do espírito do despertar consiste em dar à nossa mente a orientação justa, noinício da meditação. Pensa-se: "Realizo esta prática para tornar-me capaz de liberar todos os seresdos sofrimentos do samsara. Quando atingir o estado de TCHENREZI, trabalharei continuamentepara o bem dos seres, como ele faz agora".

FASE DE CRIAÇÃO

A fase de criação começa pelo desenvolvimento da divindade. Visualiza-se que sobre

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nossa cabeça, à altura de um palmo, surge um lótus aberto, sobre ele um disco lunar, no qual repousa,verticalmente, a sílaba de luz branca HRI. Ela produz uma irradiação luminosa que se propaga emtodas as direções. Imagina-se que a luz que se eleva é uma oferenda apresentada aos Buddhas ebodhisattvas, enquanto que a luz que desce é uma onda de compaixão, que alivia o sofrimento dosseres ordinários. Em seguida, a luz retorna vivamente à silaba HRI, que se transforma então emTCHENREZI, tal como se descreve no texto e se representa nas thangkas.

A SÍLABA HRI

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Recita-se, então:

Daso khakhyab semtchen gui

Tchitsuk pekar dawe teng

HRI le patcho TCHENREZI

Karsel össer nga den tro

Dzedzum tudje tchen gui zi

Tcha chi tangpo tel djar dze

O nyi cheltreng pekar nam

Tar tang rintchen gyen gui tre

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Ridak pape töyo söl

Öpamé pe ugyen tchen

Chabnyi dordje kyiltrung chu

Drime dawar gyabten pa

Khyabne kun du ngowor gyur

(Em cima de minha cabeça e da de todos os seres do universo,

Sobre um lótus branco há uma lua

E sobre ela há a letra HRI.

Dela surge o Nobre e Sublime TCHENREZI:

Seu corpo branco e cristalino emite raios de luz de cinco cores.

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Com um sorriso, olha com os olhos da compaixão.

De suas quatro mãos, as duas primeiras estão unidas,

E as outras duas, inferiores, seguram, a direita, um rosário de cristal, a esquerda, um

lótus branco

Está adornado com sedas e ornamentos preciosos,

Uma pele de corça cobre o seu ombro,

E o Buddha da Luz Infinita coroa sua cabeça.

Está sentado na postura adamantina,

E suas costas repousam sobre uma lua imaculada.

Reúne, em essência, todos os aspectos do refúgio.)

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Normalmente, faz-se a visualização ao mesmo tempo em que se recita o texto. Entretanto,quando não se tem muita prática, pode-se, ou fazer a visualização antes e recitar o texto a seguir, ourecitar o texto e fazer em seguida a visualização.

Depois, recita-se três vezes uma curta louvação, durante a qual se pensa que, ao mesmotempo que todos os seres, rende-se homenagem às qualidades do corpo, da palavra e da mente deTCHENREZI. Recita-se três vezes:

Djowo kyön gui na goö kunto kar

Dzo Sangye gui u la gyen

Tudje tchengui drola zi

TCHENREZI la tchatsello.

(Senhor imaculado, de corpo branco,

Cuja cabeça está ornada por um Buddha perfeito,

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E que olha todos os seres com os olhos da compaixão

A vós, TCHENREZI, rendo homenagem.)

Pensa-se logo a seguir que, em resposta a esta prece, TCHENREZI emite de seu corpo todoraios de luz que se espalham por todas as direções e tornam puras todas as aparências:

✦ o universo torna-se o Campo da Beatitude;

✦ todos os seres tornam-se TCHENREZI;

✦ todos os sons tornam-se o mantra de TCHENREZI;

✦ toda atividade da mente torna-se a mente de TCHENREZI, a consciênciaprimordial.

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Ao mesmo tempo, tornamo-nos TCHENREZI.

Recita-se:

Detar tse tchik söl tab pe

Pape kule össer trö

Madak le nang trulche djang

Tchinö Dewatchen gui ching

Nang tchu kye drö lu nga sem

TCHENREZI wang ku sung tuk

Nang dra rik tong yerme gyur.

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(Tendo assim orado de modo concentrado,

Do corpo do nobre TCHENREZI emanam raios de luz

Que purificam o karma, as aparências e os conhecimentos ilusórios.

O mundo torna-se o Campo da Beatidude.

O corpo, a palavra e a mente dos seres

Tornam-se o Corpo, a Palavra e a Mente de TCHENREZI.

Aparências, sons e conhecimento tornam-se indissociados da vacuidade.)

Depois, recita-se o mantra. A recitação do mantra OM MANI PEME HUNG é acompanhadade diferentes visualizações no curso das quais, geralmente, imaginamo-nos sob a forma deTCHENREZI. Mas os principiantes, se tiverem dificuldade com esse método, podem, no seu lugar,visualizar TCHENREZI acima da cabeça, ou ainda no céu diante de si.

Veremos aqui dez visualizações, que podem ser efetuadas alternativamente, sem que hajaobrigação de passar de uma para a outra, e sem que essa lista seja exaustiva.

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✴ VISUALIZAÇÃO 1. Concentramo-nos na aparência de TCHENREZI: no seu corpo porinteiro, ou sucessivamente nos diferentes elementos, por exemplo o rosto, depois as mãos, os braços,os colares, os braceletes, a jóia, o lótus, o rosário, as pernas, etc. Pratica-se, assim, a pacificaçãomental (shine), ao mesmo tempo que se desenvolve nossa capacidade de visualizar.

O MANTRA OM MANU PEME HUNG

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✴VISUALIZAÇÃO 2. Visualiza-se no coração de TCHENREZI a sílaba HRI, branca,colocada verticalmente sobre um disco de lua que recobre o centro de um lótus de seis pétalas.Medita-se com a mente concentrada na sílaba HRI.

✴ VISUALIZAÇÃO 3. Com base na visualização precedente, acrescentam-se as seissílabas do mantra. Elas são colocadas verticalmente sobre as pétalas do lótus, voltadas para asílaba HRI que está no centro, sucedendo-se da esquerda para a direita a partir do OM colocadoem frente. Cada sílaba é dotada de uma cor própria:

✦ OM: branco

✦ MA: verde

✦ NI: amarelo

✦ PE: azul

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✦ ME: vermelho

✦ HUNG: negro

Concentra-se no conjunto, ou em cada sílaba sucessivamente.

✴ VISUALIZAÇÃO 4. A sílaba HRI no coração emite contínuos raios luminosos que setransformam em objetos, sons e odores agradáveis, ou ainda tomam a aparência de símbolos ou desubstâncias auspiciosas. Pensa-se que tudo isso é apresentado como oferenda aos Buddhas ebodhisattvas. Em seguida, os Buddhas e bodhisattvas enviam-nos em troca sua graça e sua bençãosob a forma das mesmas luzes que vêm se fundir na sílaba HRI.

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O mantra colocado nas pétalas de um lótus no coração

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(Na visualização, as sílabas estão colocadas verticalmente e voltadas para o centro. Asílaba HRI está voltada para a sílaba OM, a qual está colocada na pétala superior do lótus. Por essarazão a sílaba HRI está de cabeça para baixo.)

✴ VISUALIZAÇÃO 5. Do coração de TCHENREZI é emitida uma luz branca que vai atéos infernos, acalma todos os sofrimentos do seres que lá se encontram, proporciona frescor aos queardem, calor aos que têm frio, transforma os infernos num campo puro.

Depois, a mesma luz irradia-se até o mundo dos espíritos ávidos, acalma sua fome, extinguesua sede, transforma esse mundo num campo puro.

Pensa-se do mesmo modo que a luz se propaga sucessivamente em cada um dos seis mundosdo samsara: depois dos infernos, e dos espíritos ávidos, os animais, os humanos, os semi-deuses eos deuses são por sua vez aliviados de seus sofrimentos e das emoções conflituosas que os causam.

✴ VISUALIZAÇÃO 6. Semelhante à precedente, mas mais elaborada. De cada uma dassílabas do mantra colocadas sobre as pétalas do lótus no coração parte uma luz, as luzes sendo damesma cor das sílabas. As correspondências são as seguintes:

✦ OM branco: mundo dos deuses

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✦ MA verde: mundo dos semi-deuses

✦ NI amarelo: mundo dos humanos

✦ PE azul: mundo dos animais

✦ ME vermelho: mundo dos espíritos ávidos

✦ HUNG negro: mundo dos infernos.

✴ VISUALIZAÇÃO 7. Se temos uma certa compreensão da visão superior (lhakthong),medita-se sobre o fato de que o corpo de TCHENREZI é desprovido de entidade própria. E vazio aomesmo tempo que aparência, aparente ao mesmo tempo que vazio, como um reflexo no espelho.

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✴ VISUALIZAÇÃO 8. Pratica-se a pacificação mental (shine) tendo como suporte o somda recitação do mantra, sem distração, num estado em que o som e a nossa mente estãoindiferenciados. Pode-se também pensar que todos os sons exteriores são igualmente o mantra deTCHENREZI.

✴ VISUALIZAÇÃO 9. Os sons, percebidos como o mantra, não sonoridade mas vazios, evazios mas sonoridade.

✴ VISUALIZAÇÃO 10. Quando se faz a meditação para um doente ou um falecido, pensa-se na luz que parte do coração de TCHENREZI e se derrama sobre a pessoa, alivia-a dos seussofrimentos, purifica-a de suas faltas e de seus véus cármicos e a torna feliz. Nesse caso, pode-sevisualizar TCHENREZI acima de nossa cabeça ou no espaço, e imaginar que, ao fim da meditação,seu corpo se funde com o da pessoa doente ou falecida, de modo que seus corpos, suas palavras esuas mentes tornam-se um só.

Dessas dez visualizações, a primeira, a segunda, a terceira e a oitava permitem maisparticularmente estabelecer shine; a sétima e a nona, praticar lhakthong; a quarta, desenvolver adevoção; a quinta, a sexta e a décima estão em relação mais direta com a compaixão.

A fase de criação não tem uma duração fixa: é possível continuá-la o quanto pudermos ouquisermos. Pode-se recitar cem, mil, dez mil mantras ou mais.

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FASES DE REALIZAÇÃO

Após recitar o número desejado de mantras, passa-se para a fase de realização, quecomeça com a reabsorção progressiva de todos os elementos da fase de criação, até a vacuidade:

✦ o Campo da Beatitude funde-se com os seres visualizados sob a forma de TCHENREZI;

✦ os diferentes TCHENREZI reabsorvem-se uns nos outros para finalmente fundirem-se noTCHENREZI que somos;

✦ este se reabsorve simultaneamente da cabeça ao coração, e dos pés ao coração, nomantra;

✦ o mantra se funde na sílaba HRI;

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✦ os diferentes elementos de HRI reabsorvem-se uns nos outros: primeiro os dois pontoscolocados à direita no atchung, que constitui a parte inferior da sílaba propriamente dita;

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AS ETAPAS DA DISSOLUÇÃO DA SÍLABA HRI

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✦ depois, de baixo para o alto, o atchung na rata;

✦ a rata em HA,

✦ HA no guigu;

✦ o guigu torna-se um tigle (um pequeno ponto de luz branca) tendo em cima um nada(espécie de centelha);

✦ o tigle é reabsorvido no nada;

✦ o nada torna-se cada vez menor e desaparece na vacuidade.1

Se há pouco tempo, em lugar desta dissolução progressiva, pode-se imaginar que todas asaparências da fase de criação desaparecem de imediato na vacuidade.

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Deixa-se então a mente em repouso, sem visualização, sem introduzir nenhum conceitoadicional na meditação, do tipo: "A vacuidade da mente deve ser assim", ou "Creio que a mente éclaridade", etc. Permanece-se simplesmente numa vigilância sem distração, sem seguir ospensamentos que se elevam, sem procurar pará-los, sem aceitação nem rejeição, sem esperança nemtemor.

Medita-se dessa maneira o tempo que se quiser.

CONCLUSÃO

Ao parar a meditação precedente, pensa-se novamente que somos TCHENREZI, que todosos seres também o são, que o mundo é o Campo da Beatitude, que todos os sons são o mantra, etc.Mas trata-se apenas de um pensamento, e não de uma visualização. Recita-se:

Da chen lu nang pakpe ku

Dradra yigue drukpe yang

Drento yeshe tchenpe long.

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(Minha aparência corporal como a dos outros seres é a do

Corpo Nobre de TCHENREZI.

Todos os sons, a melodia das seis sílabas,

Todos os pensamentos e produções mentais, o

Conhecimento Supremo.)

A seguir, dedica-se o mérito da meditação, desejando que ela nos auxilie a atingir o estadode TCHENREZI para o bem de todos os seres. Recita-se:

Guewa diyi nyurtu da

TCHENREZI uang drub gyur ne

Drowa tchik kyang malupa

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Deyi sala gö par cho.

(Pela virtude desta prática,

Tendo rapidamente realizado o Todo Poderoso TCHENREZI,

Possa eu colocar nesse estado

Todos os seres sem exceção.)

Por fim, recita-se um curto desejo para renascer no Campo da Beatitude:

Di tar gomde guipe sönam gui

Da tang dala drelto drowa kun

Mitsang lu di porwar gyur matak

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Dewatchen tu dzu te kyewar cho

Kyemataktu sa tchu rab drö ne

Trulpe tcho tchur chen dön dje par cho.

(Pelo mérito de minha prática desta meditação e recitação,

Possa eu, como todos aqueles que estão vinculados a mim e todos os demais seres,

Logo após o abandono deste corpo impuro,

Renascer espontaneamente no Campo da Beatitude.

Após que nela renascermos, possamos percorrer perfeitamente as dez terras,

Por meio de emanações, e orar para o bem dos seres das dez direções.)

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Assim termina a versão breve da meditação de TCHENREZI. Pode-se incluir um certonúmero de outras preces, mas o essencial está contido neste curto texto.

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A PRÁTICA NA VIDA

A prática, para ser completa, não deve limitar-se às sessões de meditação, mas prosseguirem todas as atividades da vida, de dia e de noite. Veremos sucessivamente cinco aspectos destacontinuidade da meditação:

✦ deixar as aparências auto-liberadas;

✦ deixar os seis grupos sensoriais auto-liberados;

✦ deixar as circunstâncias auto-liberadas;

✦ a prática do sono;

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✦ a prática da refeição.

DEIXAR AS APARÊNCIAS AUTO-LIBERADAS

As aparências apresentam-se sob dois aspectos: exteriores, isto é, as formas, os sons, osodores, etc, e interiores, isto é, os pensamentos, os produtos de nossa reflexão e de nossaimaginação.

Atualmente, atribuímos a uns e outros uma realidade intrínseca. Percebemo-los comoobjetos dotados de uma entidade própria, qualidade que também atribuímos ao sujeito, o "eu". Essadualidade sujeito-objeto fixa as aparências, torna-as auto-prisioneiras, ligadas pela crença que temosde sua realidade.

Como libertar-se dessas amarras? Deixa-se as aparências "auto-liberadas", ou seja, não asnegamos, mas também não as afirmamos: elas são o que são, além de todo conceito.

Para poder assumir essa posição mediana, deve-se compreender, como se costuma dizer,que "o mestre das aparências" é a mente. Quando se eleva uma aparência e afirmamos a suarealidade, quando somos persuadidos da sua existência real, é a mente que faz esta afirmação. Senegamos essa realidade, é a mente que opera essa negação. As aparências não se afirmam nem senegam por si mesmas, só a mente intervém para atribuir-lhes existência ou não-existência. Se, agora,voltamo-nos para a essência da própria mente, nada encontramos, não podemos atribuir-lhes

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nenhuma identificação. Essa essência é inexprimível, ela é vazia.

Quando a mente não permanece na sua essência, podemos pensar que as aparências existemverdadeiramente ou que elas são verdadeiramente desprovidas de existência. Mas a essência mesmadaquele que afirma ou que nega não é um objeto identificável, uma "coisa" que se possa descobrir.Não tendo nenhuma existência própria, ela é vacuidade. Desse modo, não caímos no eternalismo, queé a crença em uma mente enquanto realidade individual, na realidade de um ego. Isso não significa,entretanto, que nada haveria, uma inexistência total. Na própria vacuidade elevam-se todas asaparências e todos os pensamentos. Assim, não caímos também no extremo do nihilismo.

Nessa posição, livre dos dois extremos, as aparências são auto-liberadas, livre expressãoda vacuidade da mente. É a VISÃO de TCHENREZI, o Grande Compassivo.

DEIXAR OS SEIS GRUPOS SENSORIAIS AUTO-LIBERADOS

Nossa relação com os fenômenos estabelece-se sobre a base dos "seis grupos sensoriais",sendo cada grupo composto de um órgão dos sentidos, de um objeto e da consciência correspondente.Tem-se, assim:

✦ olho, formas, consciência visual;

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✦ ouvido, sons, consciência auditiva;

✦ nariz, odores, consciência olfativa;

✦ língua, sabor, consciência gustativa;

✦ pele, contatos, consciência tátil;

✦ mental, objetos mentais, consciência mental.

Na realidade, embora não haja dualidade entre os objetos dos sentidos e as consciênciasque os apreendem, estabelecemos uma separação entre sujeito e objeto. Daí nasce uma classificaçãoentre objetos (formas, odores, sabores, etc.) bons ou ruins, agradáveis ou desagradáveis, sobre a qualse mesclam as noções de apego e aversão. Se não se reconhece a verdadeira natureza desse apego edessa aversão, os seis grupos sensoriais são auto-prisioneiros; se os reconhecemos, eles são auto-liberados; sua aparição e sua liberação ocorrem simultaneamente.

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Quando a mente cai sob o império da ilusão, o apego leva-nos a crer que o objetopercebido é realmente bom, e a aversão, que o objeto percebido é verdadeiramente ruim — mas osfenômenos não afirmam nenhuma qualidade por si mesmos. De fato, é apenas a mente que engendraapego e aversão, confere as classificações. Uma forma, um som, um odor, ou um sabor não se auto-designam como agradáveis ou desagradáveis. E tão somente a mente que adiciona essas noções aoque ela percebe pelos sentidos e cria o jogo do apego e da aversão. Como essa mente é vazia e livreem si, apego e aversão são também vazios e livres em si. Os seis grupos sensoriais, suporte destefuncionamento, são, também, vazios e auto-liberados. Reconhecer a essência dos seis grupossensoriais é suficiente assim para assegurar sua auto-liberação, sem que se tenha de agir sobre eles.

Deixar os seis grupos sensoriais auto-liberados é a MEDITAÇÃO do Grande Compassivo.

DEIXAR AS CIRCUNSTÂNCIAS AUTO-LIBERADAS

Quando encontramos circunstâncias boas ou más, deixamo-las, da mesma maneira, auto-liberadas.

As circunstâncias boas são aquelas que produzem nossa alegria: estar na companhia dosamigos ou das pessoas que amamos, manter conversações agradáveis, realizar atividades que nosproporcionem alegria. Apegamo-nos a essa alegria e atribuímos-lhe uma realidade.

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Quando surge a alegria, é preciso observar a mente que a experimenta. Essa mente é vaziaem essência. Nesta vacuidade, as noções de amigos, de palavras ou de sons agradáveis, etc. não têmnenhuma realidade. As boas circunstâncias são portanto vacuidade. Tudo o que nos aparece comofelicidade é desprovido de uma entidade própria, auto-liberado ao mesmo tempo que manifestado.

Quando, ao contrário, somos confrontados com circunstâncias desfavoráveis, quandoestamos na companhia de pessoas que não nos amam, que nos são maledicentes, ou quandoencontramos a dor ou a doença, se consideramos a essência da mente que experimenta essessofrimentos, descobrimos que é vazia. Nesta vacuidade, as noções de inimigos, de maledicência, dedoenças, etc. não têm nenhuma realidade. Tudo o que nos aparece como sofrimento é destituído deentidade própria, auto-liberado ao mesmo tempo que manifestado.

Felicidade e sofrimento são de fato a dinâmica da mente vazia, sem realidade própria;assim, não é necessário rejeitá-los ou aceitá-los.

Deixar as circunstâncias auto-liberadas é a AÇÃO do Grande Compassivo.

Esses três primeiros aspectos são a continuidade da prática tal como devemos aplicardurante o dia.

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A PRÁTICA DO SONO

A prática do sono diz respeito, por um lado, ao sono profundo, sem sonhos, e, por outro,aos sonhos; o sono está em relação com a clara luz; os sonhos, com a realidade das aparências.

Inicialmente, formula-se o desejo de poder ter consciência dos sonhos que surgirão emnossa mente durante a noite. Em seguida, antes de dormir, para preparar a prática do sono profundo,visualizamo-nos sob a forma de TCHENREZI e imaginamos no interior de nossa fronte, entre assobrancelhas, uma pequena esfera de luz branca sobre a qual se repousa a mente. Adormece-se,assim. Com o apoio desta visualização, se for possível dormir num estado sem distração, comausência de pensamentos, com a mente na vacuidade, estabelece-se o fundamento do reconhecimentoda clara luz, primeiro durante o sono profundo, depois no momento da morte. A clara luzpropriamente dita supõe que a ausência de pensamentos seja acompanhada de consciência. Noentanto, mesmo que não a obtenhamos verdadeiramente, a ausência de pensamentos e a meditaçãosobre a esfera da luz branca favorecem sua emergência vindoura. Em particular, no momento damorte poderemos reconhecê-la, ao fim do processo de manifestação-extensão-obtenção.

A prática do sonho, em segundo lugar, pode-se realizar quando, em seguida a um desejoformulado, acontece tomarmos consciência de que sonhamos no decorrer do próprio sonho. Epreciso, então, esforçar-se para compreender que as aparências oníricas, apesar de manifestadas, sãodestituídas de entidade própria, nada mais são que uma produção da mente, e, a seguir, permanecerem meditação nesse estado de reconhecimento. Da mesma maneira, esforçamo-nos para reconhecer aausência de realidade das sensações agradáveis ou desagradáveis, das alegrias ou dos sofrimentosque podemos experimentar durante o sonho. Desse modo, produz-se a auto-liberação dos fenômenosoníricos. Eles continuam, mas não somos mais enganados pelo seu grau de realidade.

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Se se tem a capacidade, pode-se, também, no decorrer do sonho, visualizar-se sob a formade TCHENREZI e recitar o mantra. Podemos, então, fazer a mesma meditação durante o bardo elibertarmo-nos de todas as aparências do "bardo da natureza em si".

Quando se acorda pela manhã, ao se recordar dos sonhos da noite passada, não se lhesconfere qualquer significado especial. Não se considera os bons sonhos como uma coisa boa eauspiciosa, e os sonhos desagradáveis, como um coisa má ou de mau augúrio. Lembramo-nossomente que os sonhos nada mais são do que manifestações ilusórias da mente que, em essência, estálivre dessas qualificações de bom ou de mau.

Pensa-se, a seguir, que na realidade as aparências do estado de vigília são da mesmanatureza que as do sonho. Os fenômenos, ao aparecerem, não têm identidade própria. São vazios. Deonde eles procedem? Provêm da mente, que é, ela mesma, vazia em essência. Falamos de aparênciascomo sendo exteriores e da mente como sendo interior. Mas, "exterior" e "interior" sãodenominações enganosas que, finalmente, não têm sentido. Quando as aparências e a mente se elevamno conhecimento puro da vacuidade-claridade, isto é a MENTE do Grande Compassivo, é o próprioGrande Compassivo.

A PRÁTICA DAS REFEIÇÕES

No momento da refeição, pensa-se que se é TCHENREZI e que toda comida que se ingeretorna-se um néctar oferecido à divindade. Antes de começar a comer, recita-se:

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Djowo kyön gui ma gö kunto kar

Dzo sangye gui u la gyen

Tudje tchengui drola zi

TCHENREZI la tchopa bul.

(Senhor imaculado do corpo branco,

Cuja cabeça está ornada por um Buddha perfeito,

E que olha todos os seres com os olhos da compaixão,

A vós, TCHENREZI, ofereço este alimento.)

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MESTRES DO PASSADO

Vimos como a presença de TCHENREZI neste mundo pode revestir-se de múltiplas formas,sem que sejam necessariamente identificadas como a divindade. No Tibete, entretanto, buscava-seansiosamente detectar essa presença de maneira mais precisa, e algumas "emanações" deTCHENREZI foram indicadas. O rei Songtsen Gampo e o lama Gyelse Tome são as mais célebres.

Outros mestres, como a monja indiana Guelongma Palmo ou como Kyergangpa, são notáveisnão como emanações, mas em razão da posição particular que TCHENREZI ocupa em suas vidas.

Os breves resumos que se seguem da vida desses quatro mestres são dados em ordemcronológica.

Guelongma Palmo

Da Índia antiga, inicialmente, a figura da monja Guelongma Palmo é considerada a maiscélebre, em razão das realizações extraordinárias que obteve pela bênção de TCHENREZI.

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O texto intitulado Mani Khabum relata que, nascida numa família real do noroeste da Índia,desejava desde muito jovem renunciar aos seus privilégios de princesa e abraçar a vida monástica.Mas aconteceu que, acometida de lepra, tendo perdido mãos e pés, foi obrigada a deixar omonastério.

Abandonada por seus servidores num local distante dos homens, ela permanecia num estadode grande tristeza. Um sonho trouxe-lhe uma certa consolação. Ela viu o rei Indrabodhi, que aabençoou e lhe disse: "Pratique a meditação de TCHENREZI, que você alcançará a sublimerealização, a realização da natureza da mente". Seguindo esse conselho, aplicou-se durante o dia arecitar OM MANI PEME HUNG, e, durante a noite, o mantra longo2 de TCHENREZI. Ela recebeutambém instruções diretas do mahasiddha Leão de Glória, célebre por sua realização do GrandeCompassivo.

Após ter praticado um longo tempo, começou a sentir um profundo cansaço. As diretivasque lhe faltavam foram-lhe dadas mais uma vez em sonho. Teve na ocasião uma visão de Manjushri,que lhe disse: "Vá para Lekar Chinpel e pratique TCHENREZI. Em cinco anos você obterá umarealização igual à de Tara."

Ela foi então ao local indicado pela divindade. Firmou o compromisso de não partir dalienquanto não tivesse alcançado a realização sublime. Continuou a recitar os diferentes mantras deTCHENREZI, ao mesmo tempo que jejuava completamente um dia em cada dois, abstendo-se dequalquer alimento ou líquido — aquilo que chamamos a prática de nyung-ne. Isso resultou numaextraordinária purificação, e, pela graça de TCHENREZI, ela ficou completamente curada, recobroua integridade dos seus membros e a saúde de uma jovem normal. Ao mesmo tempo, sua meditaçãoprogrediu consideravelmente.

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Aos vinte e sete anos, obteve a primeira terra de bodhisattva e recebeu de Tara umapredição: "Você poderá realizar a atividade dos Buddhas dos três tempos."

Finalmente, depois de muitos anos de meditação e de ascese, num dia de lua cheia doterceiro mês tibetano (sagadawa), apareceu-lhe TCHENREZI de onze cabeças. Seu corpo continhatodas as divindades das quatro classes de tantra; os poros de sua pele irradiavam inumeráveiscampos puros. Guelongma Palmo, maravilhada, disse, contudo, à divindade: "Nobre TCHENREZI,durante muito tempo e com muito esforço, eu realizei sua prática. Por que o Senhor demorou tanto avir até mim?"

"A partir do primeiro momento em que você começou a meditar em mim," respondeuTCHENREZI, "nunca mais me separei de você. Estive constantemente com você, mas devido aosvéus cármicos que recobriam ainda a sua mente, você não podia me ver".

TCHENREZI conferiu-lhe então sua graça, deu-lhe novas instruções e ela obteve todas asqualidades da décima terra de bodhisattva, tornando-se semelhante ao próprio Grande Compassivo.

A memória de Guelongma Palmo permaneceu muito presente no Tibete, em particular pelaprática de nyung-ne, à qual está associada, e que muitas pessoas ainda realizam nos nossos dias.

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Songsten Gampo

No Tibete, a primeira pessoa a ser considerada uma emanação de TCHENREZI foi o reiSongtsen Gampo, que reinou no país das neves na primeira metade do século sétimo da nossa era. Asua grandeza reside principalmente no fato de que ele introduziu o budismo em seu país.

O Mani Khabum relata que sua encarnação manifestou a vontade de TCHENREZI de virsob a forma de um poderoso monarca para guiar o povo tibetano, do qual ele tinha notado amaturidade com o seu olho divino.

Diz-se que, no momento de sua concepção, ele entrou no ventre de sua mãe sob a forma deum raio de sol. Todos os Buddhas e bodhisattvas souberam então que TCHENREZI emanava-se naterra em favor dos tibetanos. Na mesma noite, a rainha sua mãe viu num sonho que seu corpo emitiaraios de luz que se propagavam por todas as direções, enquanto que deuses e deusas apresentavamoferendas. Ela viu também que o sol e a lua colocavam-se como guarda-chuvas para abrigá-la emúltiplas flores formavam-lhe um tapete. Teve, também, uma experiência da claridade nãoconceitual.

Logo que a criança nasceu, todos viram os sinais maravilhosos que a marcavam: emparticular, seu crânio estava coberto por uma pequena cabeça do Buddha Amitabha. Posteriormente,a iconografia tradicional representará sempre o rei usando um chapéu, cuja função era a de ocultar tal

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cabeça.

Essas foram, portanto, a concepção e o nascimento daquele que, embora nascido numafamília bón, iria converter-se ao budismo e introduzir a compaixão e a doçura dessa tradição numpaís que era reputado pela sua barbárie.

Deve-se principalmente a Songtsen Gampo, além de sua atividade propriamente política, ade ter dotado, por intermédio de seu ministro Thoönmi Sambhota, a língua tibetana de um alfabetoderivado do sânscrito, de ter construído o palácio de Potala, bem como o santuário de Djokhang.

Como Songtsen Gampo nada mais era que TCHENREZI em pessoa, compreende-se melhora ligação privilegiada que une os tibetanos à sua divindade de predileção.

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O REI SONGSTEN GAMPO

Kyergangpa

Kyergangpa, que viveu no século XII, é um lama da linhagem Shangpa Kagyü, da qual elefoi o terceiro detentor depois de Tchyungpo Neljor e Motchokpa. Tinha por TCHENREZI umadevoção particular; veremos que sua experiência assemelha-se muito à de Guelongma Palmo.

"Eu tenho agora uma preciosa existência humana", pensou ele. "Não devo deixá-la exaurir-se em vão, mas dar-lhe todo o seu sentido. Devo usá-la para obter o despertar e realizar o bem detodos os seres. Para atingir esse objetivo, assumo o compromisso de realizar continuamente a práticade TCHENREZI."

Logo após essa promessa, retirou-se para um eremitério. Noite e dia, praticava a meditaçãode TCHENREZI e recitava o seu mantra.

Após três anos e meio de retiro, TCHENREZI apareceu-lhe. Kyergangpa disse-lhe então:

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"Durante três anos e meio eu privei-me de alimentos e de sono. Sem interrupção, eu reciteio seu mantra e fiz sua meditação. Por que eu não pude vê-lo até o presente?"

"Dois obstáculos impediram-no de ver-me", respondeu TCHENREZI. "O primeiro, osdiversos véus cármicos acumulados na tua mente desde tempos imemoriais. Progressivamente, ameditação livrou você deles. O segundo, a esperança que tinha de me ver. Você meditava e recitavana espera de que eu lhe aparecesse e no temor de não obter esse resultado. Ora, esperança e temorsão dois grandes impedimentos. De fato, a partir do terceiro dia do seu retiro, estive presente no seueremitério e nunca mais nos separamos, nem por um único instante. Mas só agora os dois obstáculosforam dissipados."

Gyelse Tome

Contemporâneo do terceiro Karmapa Rangdjung Dordje (primeira metade do século XIV),Gyelse Tome, também conhecido pelo nome de Tome Zangpo, "o bom Tome", autor, entre outros, deum texto célebre, As Trinta e Sete Práticas dos Bodhisattvas, é unanimemente considerado pelostibetanos como uma emanação de TCHENREZI, como a presença da grande compaixão entre oshomens.

Nasceu na província do Tsang; diz-se que seu nascimento foi marcado por uma chuva deflores e por outros sinais maravilhosos.

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Desde a sua mais tenra infância, manifestou naturalmente muito amor e afeição para os sereshumanos e os animais. Como numerosas crianças da sua idade, tomava conta dos carneiros e dosyaks. Mas sua mente estava tão preocupada com o dharma que, abandonando um dia o rebanho,escapou para ir estudar junto a um lama. Tomou então os votos monásticos e recebeu o nome deZangpo Pel.

Ao longo dos anos, estudou os grandes temas da filosofia budista, o vinaya, aprajnaparamita e o madhyamika. Diz-se que tomou conhecimento da totalidade dos textos que foramtraduzidos do sânscrito para o tibetano. Sua erudição era imensa.

Longe de se confinar num intelectualismo abstrato, devotava ao mesmo tempo uma constanteatenção aos doentes, aos mendigos e aos pobres e esforçava-se para aliviar os seus sofrimentos.Relata-se que, assim que tomou o voto de bodhisattva, ou seja, o compromisso de alcançar ailuminação para o bem de todos os seres, a terra tremeu e arco-íris iluminaram o espaço.

Praticou a seguir as seis junções de Kalachakra, e o lama que o instruiu revelou-lhe que,durante muitas encarnações, ele teve TCHENREZI como divindade principal de meditação. Deu-lhevárias iniciações de TCHENREZI, bem como muitas instruções sobre a prática.

A cada dia ele fazia cem prosternações, cem circumbulações de uma stupa e recitava vinte

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e uma vezes a louvação de Tara. Passou vinte anos de sua vida em retiro, praticando nyung-ne emeditando a bodhicitta.

Certo dia teve uma visão de TCHENREZI de onze cabeças, o que fez nascer em sua menteuma profunda realização da vacuidade-compaixão. Trewo Tekden, um dos grandes discípulos doterceiro Karmapa, disse-lhe então: "TCHENREZI, o Grande Compassivo, não é nem um afresco nummuro, nem uma figura numa thangka; TCHENREZI é, tal como nasce na mente de um ser, acompaixão-vacuidade derramando-se sobre todos com o mesmo ardor do amor de uma mãe por seufilho único." Exprimindo-se desse modo, ele referia-se de fato ao próprio Gyelse Tome,considerando-o uno e o mesmo que TCHENREZI último.

Gyelse Tome, em todas as circunstâncias, olhava apenas os seus próprios defeitos. Jamaisfalava dos defeitos dos outros, e sempre dava valor às qualidades alheias. A força do amor e dacompaixão que o habitava era tal que as pessoas de sua vizinhança tinham naturalmente a mentepacificada. Os próprios animais perdiam toda a sua agressividade. Os animais ferozes, as corças, ospássaros, os cães e os gatos pareciam ter esquecido sua hostilidade habitual. Distribuiu todos os seusbens aos necessitados, nada preservando para o seu próprio uso. Dava as suas vestimentas e atémesmo o tapete sobre o qual se sentava habitualmente, se visse um pobre necessitado.

Vários dos seus discípulos que tinham um karma puro viram nele verdadeiramenteTCHENREZI.

Sua biografia parece espantosa quando se considera o número de anos que passou emretiro, o tempo que consagrou ao ensino e o número de textos que compôs, já que cada uma dessasatividades seria capaz de preencher uma vida.

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Todos os lamas de sua época tinham por ele muita fé e respeito. Teve inúmeros discípulos.

Estes exemplos são apenas alguns entre os mais célebres. Ao longo da história do Tibete, enos dias de hoje ainda, são muitos os grandes mestres que mantêm uma ligação privilegiada comTCHENREZI.

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CONCLUSÃO

Neste livro, vimos as inúmeras funções benéficas da meditação de TCHENREZI.

Citemos, para concluir, a palavra do próprio Buddha enunciando os benefícios do mantra.3

"OM MANI PEME HUNG é o coração da sabedoria de todos os Buddhas. É aquintessência das cinco famílias de Buddhas e dos mestres do segredo. As instruções que cada umadas seis sílabas encarna são a fonte de toda qualidade e da beatitude, a raiz de toda realizaçãoproveitosa e feliz, o grande caminho em direção às existências superiores e à liberação.

"Ouvir, ainda que uma única vez, as seis sílabas da perfeita palavra, o coração de tododharma, permitirá atingir o estado sem retorno e tornar-se o barqueiro que libera os seres. Alémdisso, se um animal, seja ele uma formiga, escuta este mantra antes de morrer, renascerá, uma vezlivre desta existência, no Campo da Beatitude. Recordar em sua mente, uma só vez, estas seis sílabas— assim como o sol derrete a neve — elimina toda falta e todo véu dos atos nefastos acumulados nociclo das existências em toda a eternidade, e conduz a renascer no Campo da Beatitude. Tocar apenasas letras do mantra é obter a iniciação dos Buddhas e dos bodhisattvas inumeráveis. Contemplá-louma única vez torna efetivas a escuta, a reflexão e a meditação. As aparências revelam-se como odharmakaya, e abre-se o tesouro da atividade para o bem dos seres".

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1 As pessoas que sabem o tibetano conhecem as diferentes partes da sílaba. Caso contrário, pode-se recorrer à ilustração no texto.

2 Esse mantra longo encontra-se no texto da prática de nyung-ne.

3 Extraído de Continuelle Ondée pour le Bien des Êtres, publicado pelas Edições Yiga Tch:o Dzin.