bispo comunista padres subversivos

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61 Outros Tempos, vol. 11, n.18, 2014 p. 61-82. ISSN:1808-8031 BISPO COMUNISTA, PADRES SUBVERSIVOS: cristianismo de libertação e a luta camponesa no sul do Pará durante o período militar 1 COMMUNIST BISHOP, SUBVERSIVE PRIESTS: Liberation Christianity and peasant struggle in southern Pará during the military government BISPO COMUNISTA, PADRES SUBVERSIVOS: cristianismo de libertad y la lucha campesina en el sur de Pará durante el periodo militar FÁBIO TADEU DE MELO PESSÔA Doutorando em História UFPA Professor Assistente na Universidade Federal do Sul/Sudeste do Pará - UNIFESSPA Marabá, Pará, Brasil [email protected] Resumo: Este artigo discute a influência do pensamento radical religioso no movimento camponês em luta pela terra no Sul do Pará entre os anos de 1975-1985. Procura-se demonstrar que a radicalidade do movimento camponês a partir da influência de um “Cristianismo de Libertação”, ocorre no contexto da ditadura civil-militar imposta em 1964, resultando num processo de privatização das terras do Araguaia e na consequente generalização dos conflitos agrários por mais de duas décadas. Focamos nossa análise na resistência camponesa a partir da memória construída pelos camponeses e seus apoiadores, bem como de seus opositores, de modo a compreender a história e a memória da luta pela terra na região do Araguaia. Palavras-chave: Cristianismo de Libertação. Conflitos agrários. Amazônia. Ditadura Civil-Militar. Abstract: This article discusses the influence of radical religious thought in the peasant movement in their struggle for land in southern Pará between 1975 and 1985. It aims to demonstrate that the radical perspective of peasant movement from the influence of a “Liberation Christianity” occurs in the context of civil-military dictatorship, imposed in 1964, resulting in privatization process of the Araguaian lands and the consequent generalization of agrarian conflicts for more two decades. We focus our analysis on peasant resistance from the memory built by the peasants and their supporters as well as opponents, in order to understand the history and the memory of the struggle for land in the Araguaia region. Keywords: Liberation Christianity. Struggle for Land. Amazon. Civil-Military Dictatorship. Resumen: Este artículo discute la influencia del pensamiento radical religioso en el movimiento campesino en la lucha por la tierra en el Sur de Pará entre los años de 1975 a 1985. Se busca demostrar que la radicalidad del movimiento campesino, a partir de la influencia de un “Cristianismo de Libertad”, se produce en el contexto de la dictadura civil-militar impuesta en 1964, resultando de un proceso de privatización de las tierras en la región Araguaia y en la consecuente generalización de los conflictos agrarios durante más de dos décadas. Centramos nuestra análisis en la resistencia de los campesinos a partir de la memoria construida por estos y por sus aliados, y también por sus opositores para comprender la historia, la memoria de la lucha por la tierra en la región Araguaia. Palabras clave: Cristianismo de Libertad. Conflictos agrarios. Amazonia. Dictadura civil militar. 1 Artigo submetido à avaliação em 05/05/2014 e aprovado para publicação em 24/06/2014.

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Artigo publicado na Revista Outros Tempos.Autor: Fábio Pessôa.

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    Outros Tempos, vol. 11, n.18, 2014 p. 61-82. ISSN:1808-8031

    BISPO COMUNISTA, PADRES SUBVERSIVOS: cristianismo de libertao e a luta

    camponesa no sul do Par durante o perodo militar1

    COMMUNIST BISHOP, SUBVERSIVE PRIESTS: Liberation Christianity and peasant

    struggle in southern Par during the military government

    BISPO COMUNISTA, PADRES SUBVERSIVOS: cristianismo de libertad y la lucha

    campesina en el sur de Par durante el periodo militar

    FBIO TADEU DE MELO PESSA

    Doutorando em Histria UFPA Professor Assistente na Universidade Federal do Sul/Sudeste do Par - UNIFESSPA

    Marab, Par, Brasil

    [email protected]

    Resumo: Este artigo discute a influncia do pensamento radical religioso no movimento campons em

    luta pela terra no Sul do Par entre os anos de 1975-1985. Procura-se demonstrar que a radicalidade do

    movimento campons a partir da influncia de um Cristianismo de Libertao, ocorre no contexto da ditadura civil-militar imposta em 1964, resultando num processo de privatizao das terras do

    Araguaia e na consequente generalizao dos conflitos agrrios por mais de duas dcadas. Focamos

    nossa anlise na resistncia camponesa a partir da memria construda pelos camponeses e seus

    apoiadores, bem como de seus opositores, de modo a compreender a histria e a memria da luta pela

    terra na regio do Araguaia.

    Palavras-chave: Cristianismo de Libertao. Conflitos agrrios. Amaznia. Ditadura Civil-Militar.

    Abstract: This article discusses the influence of radical religious thought in the peasant movement in

    their struggle for land in southern Par between 1975 and 1985. It aims to demonstrate that the radical

    perspective of peasant movement from the influence of a Liberation Christianity occurs in the context of civil-military dictatorship, imposed in 1964, resulting in privatization process of the

    Araguaian lands and the consequent generalization of agrarian conflicts for more two decades. We

    focus our analysis on peasant resistance from the memory built by the peasants and their supporters as

    well as opponents, in order to understand the history and the memory of the struggle for land in the

    Araguaia region.

    Keywords: Liberation Christianity. Struggle for Land. Amazon. Civil-Military Dictatorship.

    Resumen: Este artculo discute la influencia del pensamiento radical religioso en el movimiento

    campesino en la lucha por la tierra en el Sur de Par entre los aos de 1975 a 1985. Se busca demostrar

    que la radicalidad del movimiento campesino, a partir de la influencia de un Cristianismo de Libertad, se produce en el contexto de la dictadura civil-militar impuesta en 1964, resultando de un proceso de privatizacin de las tierras en la regin Araguaia y en la consecuente generalizacin de los

    conflictos agrarios durante ms de dos dcadas. Centramos nuestra anlisis en la resistencia de los

    campesinos a partir de la memoria construida por estos y por sus aliados, y tambin por sus opositores

    para comprender la historia, la memoria de la lucha por la tierra en la regin Araguaia.

    Palabras clave: Cristianismo de Libertad. Conflictos agrarios. Amazonia. Dictadura civil militar.

    1 Artigo submetido avaliao em 05/05/2014 e aprovado para publicao em 24/06/2014.

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    MAPA: ANTIGO TERRITRIO DE CONCEIO DO ARAGUAIA ATUALIZADO.

    Fonte: FEITOSA, T. C. Anlise da sustentabilidade na produo familiar no sudeste paraense: o caso dos produtores de leite do municpio de Rio Maria. 2003. Dissertao (Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentvel). Belm:Universidade Federal do Par, 2003, p. 26.

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    Introduo: o Estado e a Privatizao das Terras na Amaznia.

    O ano: 1970. A cena: o general Mdici preside a solenidade de implantao na

    cidade paraense de Altamira, [...] em plena selva, do marco inicial da construo da grande

    rodovia Transamaznica2. Alm do presidente-general, o coronel-governador Alacid Nunes,

    ministros, secretrios e agentes do Servio Nacional de Informao (SNI) participaram do

    evento no qual o presidente emocionado assistiu a derrubada de uma rvore de 50 metros de

    altura [...] numa arrancada histrica para a conquista deste gigantesco mundo verde3. Para

    essa conquista da regio era necessrio, na perspectiva dos militares e de grupos polticos e

    econmicos civis, o desenvolvimento da regio a partir de sua integrao econmica com o

    centro-sul do pas e da ocupao deste gigantesco mundo verde.

    O discurso publicitrio oficial sobre a regio com o intuito de atrair investidores

    para a Amaznia, publicado na Revista Veja, em 1970, tinha como objetivo construir, melhor

    dizendo reforar, uma ideia diferente daquela comumente produzida sobre a regio. Com o

    ttulo Chega de lendas, vamos faturar e contando com o aplauso e incentivo da SUDAM4,

    a propaganda apostava na ideia de lucro fcil j que muitas pessoas esto sendo capazes de

    tirar proveito das riquezas da Amaznia5, segundo anncio veiculado na revista. Os variados

    incentivos fiscais eram direcionados para aquisio de terras por grandes empresas, gerando

    um processo de ocupao desordenado cuja nica ordem era a especulao e a violncia a

    ela relacionada. Os sentidos dessa ocupao territorial, como bem observou Jos de Souza

    Martins, eram diversos. Para os subalternos, era um movimento de fuga de reas j

    ocupadas pela expanso do grande Capital. Para os ricos, era um territrio de conquista,

    como sugerem, alis, o discurso do presidente-general e a publicidade oficial.

    Na verdade, a propaganda posterior s iniciativas governamentais relacionadas

    ocupao/explorao da regio. No caso especfico da regio Araguaia, especialmente no

    antigo municpio de Conceio do Araguaia6, podemos perceber que inmeras medidas

    2"Arrancada para conquistar o gigantesco mundo verde. JORNAL Folha de So Paulo Online, So Paulo, 10 de outubro de 1970. Disponvel em: < http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_10out1970.htm>.

    Acesso em 28 fev. 2013. 3Ibidem, idem. 4 Superintendncia para o Desenvolvimento da Amaznia (SUDAM), rgo federal criado em 1966. 5 MARTINS, Jos de Souza. A vida privada nas reas de expanso da sociedade brasileira. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org). Histria da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contempornea. So Paulo:

    Companhia das Letras, 1998. v. 4, p. 665. 6 At a dcada de 1960, a regio Sul do Par, tambm conhecida como regio do Araguaia, abarcava o extenso

    municpio de Conceio do Araguaia (ver mapa da pgina anterior) e suas inmeras vilas e povoados,

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    governamentais implementadas modificaram o acesso terra e sua explorao, em uma

    alterao do acesso direto dos camponeses a grandes quantidades de terras devolutas7,

    paulatinamente privatizadas e transformadas em grandes propriedades8. Alis, essa histria de

    interveno estatal na regio amaznica bastante antiga.

    Escrevendo sobre o controle territorial da Amaznia, do perodo colonial dcada de

    1960, a gegrafa Lia Osrio Machado procura explicar de que maneira o discurso de isolamento da

    regio amaznica, produzido desde o incio de sua ocupao no sculo XVII, levou a formas estatais

    de controle de um poder diretivo e repressor sobre o territrio9. Pelo menos esse era o discurso, qual

    seja, uma regio com grande potencial econmico, com fronteiras desprotegidas e isolada do litoral,

    leia-se, da modernidade.

    Uma dimenso dessa interveno do Estado em nome do desenvolvimento da

    Amaznia foi a assinatura do decreto de criao da instituio federal Fundao Brasil Central

    (FBC), de 4 de outubro de 1943, e que vinha ao encontro das medidas centralizadoras

    defendidas pelo Estado Novo Varguista (1939-1945), incorporando extensas reas nos estados

    do Par, Amazonas, Minas Gerais e Gois pelo Governo Federal a serem distribudas como

    forma de integrao regional. Consideradas pelo governo como reas de retaguarda do

    padro litorneo de ocupao10, tais terras foram doadas a empresas e particulares para a

    ocupao dos sertes vazios.

    Como boa parte das terras doadas no foi efetivamente ocupada e, portanto, no

    reconhecida juridicamente, o governo do Par quis reav-las atravs do cancelamento da

    doao, em 1961, havendo assim uma sobreposio jurdica que levou a grandes conflitos

    envolvendo camponeses, grandes empresas e particulares11. Como bem observou Ricardo

    Rezende Figueira, [...] sobre essa mesma rea o Estado expediu ttulos provisrios e de

    aforamentos, sobrepondo-se aos anteriores, sem discriminar os lotes [...]. Mais tarde srios

    acontecimentos iriam acontecer em funo dessa irresponsabilidade do poder pblico12.

    Alm do problema da emisso de ttulos, a criao de diversos rgos de

    desenvolvimento regional, como a Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica

    paulatinamente transformados em cidades como Redeno, So Geraldo do Araguaia, Xinguara, Rio Maria,

    Santana do Araguaia, Piarra, entre outras. 7 Por terras devolutas compreende-se aquelas que no esto aplicadas a qualquer uso pblico ou inseridas no

    domnio privado. So bens, dependendo da localizao, da Unio ou dos estados. 8 FERNANDES, Marcionila. Donos de Terras: trajetrias da Unio Democrtica Ruralista UDR. Belm: NAEA/UFPA, 1999, p. 32. 9 MACHADO, Lia Osrio. O Controle Intermitente do Territrio Amaznico. Revista Territrio, Rio de Janeiro, v. 1, n.2, p. 19, 1997, p. 17. 10Ibidem, p. 36. 11 FERNANDES, Marcionila. Op. cit., p. 36. 12 FIGUEIRA, Ricardo Rezende. A justia do lobo: posseiros e padres do Araguaia. Petrpolis: Vozes, 1986, p.

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    da Amaznia (SPVEA), em 1953, com nfase para a produo agropecuria e mnero-

    industrial, com vistas a atingir a auto-suficincia alimentar e o aproveitamento industrial das

    matrias-primas existentes, entre outros benefcios para a regio13, no tiveram o xito

    pretendido.

    Aliado a isso, no podemos esquecer de duas questes determinantes para a

    concentrao fundiria e a consequente generalizao dos conflitos pela posse e uso das terras

    no Par e do Araguaia em particular. Uma o trmino da rodovia Belm-Braslia, em 1960,

    que facilitaria o acesso de uma grande leva de pessoas, vinda de diversas regies. At ento, o

    acesso regio dava-se ou por avio, atravs da Fora Area Brasileira (FAB), ou pela

    navegao dos rios Tocantins e Araguaia. Agora, a especulao fundiria era facilitada pelo

    acesso de pessoas e mercadorias. Alm disso, a criao da Superintendncia para o

    Desenvolvimento da Amaznia (SUDAM) na dcada de 1960 tinha como perspectiva

    governamental a superao dos entraves para o desenvolvimento da regio, cujo principal

    obstculo, segundo o general-presidente Mdici, o fato de ser um territrio escasso e

    esparsamente povoado [...] com caractersticas de economia pr-capitalista [...] empregando

    mtodos primitivos de produo no extrativismo florestal em uma agricultura nmade [...]14.

    Tirar a Amaznia do atraso em que se encontrava, na perspectiva do comando

    poltico que se seguiu ao golpe civil-militar imposto em 1964, rompendo com o modelo pr-

    capitalista reinante de modo a inserir a regio economia do centro-sul e ocupando a regio

    esparsamente povoada, era um imperativo do governo. nessa linha de raciocnio que os

    diversos planos de desenvolvimento da Amaznia foram criados, consubstanciados por um

    modelo denominado de vantagens comparativas15.

    Em trs dcadas de pesquisa sobre a questo agrria na Amaznia, Jean Hbbete

    afirma que a partir das dcadas de 1950/60 a distoro entre a gente muito rica e gente muito

    pobre acentuou-se drasticamente, principalmente com a especulao da terra efetivada por

    empresas e particulares do sul do pas, especulao facilitada com a abertura da rodovia

    Belm-Braslia, j que,

    Na Amaznia, no era costume fazer negcio de terra; o cho no tinha preo; as

    riquezas eram as casas, o gado, a borracha, a castanha, madeira; isso era o que se

    comercializava. Como dizem os especialistas sociais, a terra no era uma

    mercadoria, era um sinal de poder, um meio de controle poltico; no era uma

    mercadoria a comercializar16.

    13 PETIT, Pere. Cho de Promessas: elites polticas e transformaes econmicas no Estado do Par ps-1964.

    Belm: Paka-Tatu, 2003, p. 69-72. 14Ibidem, p. 78. 15Ibidem, p. 82-86. 16 HBETTE, Jean. A velha questo da terra na Amaznia: a estrutura fundiria da colnia at hoje. In: Cruzando a fronteira: 30 anos de estudos do campesinato na Amaznia. Belm: EDUFPA, 2004a. vol. 2, p.37.

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    Alm da especulao facilitada pela abertura de estradas e, consequentemente, do

    acesso regio, a criao de rgos governamentais, como j foi dito, ter forte impacto sobre

    a privatizao de terras na Amaznia e a consequente violncia resultante desse processo.

    Mais uma vez utilizando os argumentos de Jean Hbbete, para quem o governo federal

    estimulou o latifndio na Amaznia, atravs da SUDAM, ao conceder incentivos fiscais a

    quem quisesse investir na regio, uma vez que tais incentivos,

    Consistem no seguinte: no paga seus impostos quem quiser aplic-los para praticar

    pecuria em grande escala na Amaznia. V-se, ento, todas as grandes empresas do

    pas, os bancos, os supermercados, tornaram-se pecuaristas: Volkswagen, Bradesco,

    Bamerindus, Al Brasil, Tecelagem Parahiba e tantos outros17.

    Dessa forma, diferentes perspectivas foram sendo criadas em relao ao processo

    de privatizao das terras na regio do Araguaia, em particular, por diferentes meios e

    estratgias. Para os militares, grupos empresariais e grandes proprietrios, bem como

    representantes de governos em diferentes esferas de poder, essas terras deveriam servir para o

    desenvolvimento da regio, desenvolvimento aqui entendido como mercantilizao do seu uso

    atravs de mecanismos racionais de explorao dos recursos da floresta. Madeira, gado,

    minrios, tudo que se aproveitasse, para tirar a regio do atraso em que, supostamente,

    encontrava-se. Os diversos planos de desenvolvimento foram facilitados pela conjuntura

    autoritria imposta em 1964. Mas nem todos estavam de acordo com essas premissas. Vozes

    discordantes, nas cidades, vilas e povoados da Amaznia, com especial destaque para a regio

    do Araguaia, ousaram enfrentar a censura e a represso. A fronteira em movimento tornou-se

    palco, ao mesmo tempo, de lutas silenciosas, sangrentas, abertas e sem trgua por quase duas

    dcadas, como veremos a seguir.

    Os camponeses e religiosos do Araguaia na encruzilhada da luta pela terra.

    Segundo observaes feitas por Ricardo Rezende em algumas regies de

    Conceio do Araguaia18, como a do Baixo Araguaia, uma das mais explosivas regies em

    se tratando de conflitos relacionados terra, famlias de goianos, mineiros, capixabas e uma

    17 HBETTE, Jean. Op. cit., 2004a, p. 38. 18 Nascida do encontro, comunho e antagonismo entre cristos e ndios, Conceio do Araguaia foi fundada em 1897 por uma misso dos padres dominicanos. A partir da dcada de 1960, a cidade foi sendo desmembrada

    dando lugar a inmeras outras cidades que hoje compe a paisagem da regio sul do Par, tambm conhecida

    como regio Araguaia. Cf. IANNI, Octavio. A luta pela terra: histria social da terra e da luta pela terra numa

    rea da Amaznia. Petrpolis: Vozes, 1978, p. 09.

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    maioria de nordestinos (piauienses, baianos, maranhenses) fugidos da seca e da fome, em

    busca das matas do Par19, chegavam regio. Chegavam de ps ou de pau-de-arara,

    geralmente das duas formas, pois os recursos de que dispunham eram bastante limitados.

    Muitos ficavam em reas denominadas Sobra-de-Terra, geralmente numa extensa regio

    pertencente Fundao Brasil Central, terras que foram reincorporadas ao poder do estado do

    Par, por fora de Decreto assinado em 1961, sem que os lotes fossem discriminados.

    A grilagem de terra20, generalizada a partir dos incentivos fiscais concedidos pelos

    diversos rgos governamentais, gerou a elevao do valor das terras e uma especulao sem

    precedentes, agravada pelo fato de que a transferncia de terras de uma esfera (federal) a outra

    (estadual) gerou uma sobreposio jurdica, em que, do ponto de vista legal, considerando

    inclusive as fraudes em cartrio, no havia uma definio precisa sobre o real proprietrio. Os

    que se reivindicavam como tal e queriam vend-las, aproveitando-se do aumento do valor da

    terra, tinham que lutar na justia. Os camponeses, com o apoio dos religiosos, lutaram

    ocupando as terras ou resistindo de diversas maneiras naquelas j ocupadas.

    Os discursos de representantes do Estado e de fazendeiros apontavam os padres,

    as freiras e os bispos que atuavam no Araguaia e localidades prximas como incentivadores

    da violncia21. Para o dirigente do Sindicato que representava os proprietrios de terras,

    Anastcio Queiroz, haveria a ao de

    Certa faco da Igreja que, atravs de seus agentes de nacionalidade estrangeira,

    pertencentes CPT, esto invadindo invariavelmente frente, promovendo e

    organizando reunies, nas quais so incentivadas tais aes e, quando se

    concretizam, do a cobertura atravs da imprensa e assessoria jurdica22.

    Para o fazendeiro, existiriam duas alternativas para enfrentar o problema. A

    primeira, atravs das autoridades civis e militares, no sentido de que tomem providncias

    enrgicas, que no temia a reao desta faco da Igreja, enquanto tempo, eliminando pela

    raiz este movimento radical23. A segunda, caso o Estado no consiga agir de forma

    enrgica e as terras continuem a ser invadidas indiscriminadamente, os fazendeiros, que

    19 FIGUEIRA, Ricardo. Op. cit.,p. 69. 20 A grilagem caracterizada pela pseudo-oficializao do processo de aquisio de terras. O grileiro oficializa o requerimento de compra protocolando-o. Vende a terra que ainda est em processo de compra. In: SILVA, Ipujucan R. da. Estrutura Agrria: estudo de uma rea em expanso. Belm: UFPA/NAEA, 1978, p. 29. 21 Somente em Conceio do Araguaia, no comeo de 1978, havia 43 reas de conflitos identificados e cadastrados. Seis meses depois chegam a 55 as reas conflitadas e no final do ano j ultrapassavam 80. Cf. KOTSCHO, Ricardo. O massacre de posseiros: conflitos de terra no Araguaia-Tocantins. So Paulo: Brasiliense,

    1982, p.72. 22 FAZENDEIROS reafirmam suas denncias. O Estado do Par. Belm, 13 set. 1979. 23Ibidem, idem.

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    j esto montando uma guarda particular para se proteger das invases orquestradas pela

    CPT24, agiro por conta prpria.

    Dois pontos chamam ateno nos argumentos do fazendeiro Queiroz. Alm da

    manifestada declarao de guerra, j que os fazendeiros esto armando suas milcias para

    defender seus prprios interesses, h uma clara insatisfao com o que ele chama de faco

    da Igreja. Claramente, Queiroz no admite que a Comisso Pastoral da Terra (CPT)25 esteja

    dando cobertura atravs da imprensa e assessoria jurdica aos camponeses. No acredita que

    os camponeses possam atuar por conta prpria, uma vez que as invases estariam sendo

    orquestradas pela CPT. A fala de outro fazendeiro, Enoque Mota, vai na mesma direo

    quando indaga se o papel da Igreja debater terra ou o Evangelho: Padre pode entender

    muito de Evangelho, mas no de problema fundirio. Ele no pode usar o nome do Papa e da

    Igreja para tomar a terra de seus donos26.

    Mas os discursos dos fazendeiros no esto isolados. Representantes do Estado,

    mais precisamente da Polcia Militar do Par, fazem coro queles que enxergam os religiosos

    como agitadores e subversivos. O tenente Sales, da Polcia Militar (PM) do Par, completou a

    fala do fazendeiro, afirmando que a freira Dorotia, juntamente com o padre Paulo, so dois

    subversivos que vivem estimulando conflitos. Essa freira, inclusive, j esteve presa em

    Marab por agitao [...]. Ns no queremos que se repitam os crimes cometidos em muitas

    localidades, como o que ocorreu em vila Rondon, quando o fazendeiro norte-americano John

    Davis e seus filhos foram mortos por invasores de terras27.

    Certamente, a preocupao dos fazendeiros no obra do acaso. De fato, h uma

    clara opo de padres e freiras, principalmente, mas tambm de alguns clrigos, como o bispo

    Dom Estevo Avelar, de Conceio do Araguaia, na defesa dos camponeses na regio. Opo

    que pode causar estranhamento, considerando o perfil predominantemente conservador da

    Igreja Catlica. Mas o que levaria esses religiosos a atitudes de apoio explcito em relao

    luta camponesa?

    24 ARMAS contra os posseiros. O Estado do Par. Belm, 12 set. 1979. 25 Formalmente, a criao da CPT foi feita a partir do encontro de Bispos da Amaznia para discutir questes

    relacionadas terra e s migraes crescentes na regio. A preocupao residia exatamente nos conflitos

    provocados pela expanso do latifndio, que expulsava posseiros e desmatava reas imensas, a escravizao de pees nas fazendas, a ineficincia ou cumplicidade do INCRA nos casos de presses dos grandes empresrios e

    grileiros, alm da omisso das autoridades, sobretudo judicirias, diante das violncias de jagunos e policiais. Cf. MOURA, Antnio Carlos. A Comisso Pastoral da Terra. In: SALEM, Helena. A igreja dos oprimidos. So Paulo: Brasil Debates, 1981, p. 85. 26 RELIGIOSOS negam acusao. O Estado do Par. Belm, 22 ago.1979. 27 PADRE e freira acusados de comandar invases. O Estado do Par. Belm, 18 ago. 1979.

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    A Igreja que nasce do povo.

    Com o golpe de 1964 e a consequente represso aos acusados de subverso

    pelos golpistas, entre os quais padres, freiras, agentes de pastoral e muitos jovens catlicos

    engajados em diversas entidades estudantis, a simpatia inicial do clero conservador aos

    golpistas comea a definhar. As torturas, prises e assassinatos fizeram com que os setores

    progressistas da Igreja, embora numericamente minoritrios, tornassem-se politicamente

    hegemnicos em relao aos conservadores. No podemos esquecer das novas linhas de

    atuao adotadas aps o Conclio Vaticano II28, uma vez que este definia que [...] assim

    como Cristo percorria as cidades e aldeias curando todos os males e enfermidades como prova

    da chegada do Reino de Deus, assim a Igreja se une, por meio de seus filhos, aos homens de

    qualquer condio, mas especialmente aos pobres e aflitos e a eles se consagra em gozo29.

    Falando desse deslocamento dos palcios misria da periferia, Helena Salem

    aponta trs fatores fundamentais da guinada da Igreja. Em primeiro lugar, o Conclio

    Vaticano II (1962) e a II Assembleia Geral da Conferncia Episcopal Latino-americana

    (Medeln, 1969), possibilitaram algumas mudanas importantes, como o estmulo da

    participao dos leigos (fundamental para atuao nas Comunidades Eclesiais de Base

    CEBs, por exemplo), a crtica ao capitalismo dependente e misria. Alm disso, observa a

    autora, houve a mudana na formao dos religiosos, que passaram a entrar em contato com a

    chamada teoria da dependncia produzida pela Comisso Econmica para a Amrica Latina

    CEPAL, ao mesmo tempo em que pensadores antes demonizados, como Karl Marx,

    passaram a ser lidos pelos telogos latino-americanos, muitos dos quais acabariam por

    formular o que se denominou de Teologia da Libertao, conjunto de doutrinas produzidas a

    partir da releitura do papel que caberia Igreja Catlica em relao aos problemas sociais, a

    partir do pioneirismo da obra do dominicano peruano Gustavo Gutirrez.

    Um terceiro elemento desta opo preferencial pelos pobres tem relao

    tambm com o crescimento do nmero de adeptos das Igrejas evanglicas na Amrica Latina,

    que passaram a disputar com os catlicos a base social da populao mais pobre. Essa

    evangelizao, mais perto dos problemas de uma populao carente de acesso a bens bsicos

    28 Convocada pelo papa Joo XXIII, o Conclio Vaticano II foi uma srie de Conferncias realizadas entre os

    anos de 1962 e 1965 com a finalidade de debater inmeras questes de interesse da Igreja, litrgicas ou sociais e

    que impactaram profundamente a Igreja Catlica. 29 IOKOI, Zilda M. G. Igreja e Camponeses: Teologia da Libertao e Movimentos Sociais do Campo Brasil e Peru, 1964-1986. So Paulo: HUCITEC, 1996, p. 41.

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    de sobrevivncia, era tambm uma estratgia de assegurar o predomnio catlico numa

    crescente presena dos evanglicos30.

    Textos publicados pelo Clero brasileiro iriam abalar a j frgil relao entre a

    Igreja e os militares, como no documento produzido pelos Bispos do Centro-Oeste brasileiro

    (entre os quais Dom Pedro Casaldliga, Dom Estevo Avelar e Dom Toms Balduno) em

    maio de 1973, intitulado: Marginalizao de um povo. Com uma linguagem prxima

    realidade dos camponeses, o documento dividido em seis pontos principais: 1- Introduo;

    2- a vida do povo (sade, educao, habitao e emprego); 3- a organizao da produo

    (estrutura fundiria); 4- o meio rural; 5- aspectos socioeconmicos; 6- a igreja e o trabalhador.

    Na introduo, o mundo apresentado pela metfora do rio, onde o peixe grande

    come o pequeno, simbolizando a explorao existente na sociedade. Os demais pontos

    continuam a expor, muitas vezes contando com dados estatsticos levantados por pesquisas

    socioeconmicas das dioceses da regio, as condies de vida da populao no que diz

    respeito a mortalidade infantil, desemprego/renda, condies de habitao e educao, entre

    outros elementos que servem de base para a compreenso, segundo o documento, de que o

    povo no nada bobo e que, com um pouco de esclarecimento, descobre os seus direitos e

    tem mentalidade para compreender o valor da unio e da organizao31.

    O documento assinado pelos bispos do Centro-Oeste tambm analisa a poltica do

    Governo Federal para o setor rural, consubstanciada pelo Estatuto da Terra32 e seus

    desdobramentos, fazendo crticas veementes poltica de incentivos fiscais concedidas pelo

    governo em relao a aquisio de terras pblicas. Para os bispos que subscrevem o texto: A

    marginalizao de um povo, a poltica de incentivos fiscais beneficia a aquisio de terras na

    regio por grandes empresas do Centro-Sul do pas, pois elas [as empresas], podem aplicar a

    metade do imposto de renda em empresas, industriais ou no, que favoream o

    desenvolvimento de regies de menor progresso. Alm disso, afirma o documento, h outra

    forma de financiamento, atravs dos bancos, que exigem algum tipo de garantia, ou seja,

    quem no tem o ttulo de propriedade no recebe o financiamento. Podemos ento concluir

    que essa poltica feita para favorecer mesmo os que no precisam, os que j so donos de

    outras propriedades33.

    30 SALEM, Helena. Dos palcios misria da periferia. In: A igreja dos oprimidos. So Paulo: Brasil Debates, 1981, p. 37-41. 31 CONFERNCIA Nacional dos Bispos do Brasil. Marginalizao de um povo: Grito das Igrejas. Goinia:

    CNBB, 1973, p. 9. 32 Conjunto de leis sobre posse e uso das terras no Brasil, criado logo aps o golpe civil-militar de 1964. 33 CONFERNCIA Nacional dos Bispos do Brasil. Marginalizao de um povo: Grito das Igrejas. Goinia:

    CNBB, 1973, p. 24.

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    Cristianismo de Libertao: o bom cristo no foge luta.

    Essa linha tnue que passa a separar os cristos a determinados aspectos do

    marxismo, nos dizeres de Michael Lwy, acaba por aproximar cada vez mais os religiosos dos

    problemas sociais. Lwy denomina o conjunto de formulaes, textos, organizaes e aes

    dos religiosos de Cristianismo de Libertao. Chama ateno para o fato de que tal

    integrao de cristos com o marxismo foi seletiva, na medida em que so rejeitados

    elementos como atesmo e assimilados outros como a crtica ao capitalismo e ao poder das

    classes dominantes, alm da defesa da auto emancipao dos explorados. O autor refora seu

    argumento ao afirmar que a descoberta do marxismo pela esquerda crist no foi um

    processo puramente intelectual ou universitrio. Seu ponto de partida foi um fato social e

    evidente da realidade brasileira: a fome. Portanto, para o autor, essa escolha se d porque o

    marxismo parecia oferecer a explicao mais sistemtica, coerente e global das causas dessa

    pobreza e, ao mesmo tempo, uma proposta radical para sua superao34.

    Citando o trabalho de Max Weber, atravs do conceito de afinidade eletiva, ao

    procurar entender a relao recproca entre formas religiosas (a tica protestante) e

    econmicas (o esprito do capitalismo), Lwy afirma que a partir de certas analogias ou

    correspondncias, duas estruturas culturais podem em certas circunstncias histricas

    favorveis entrar em uma relao ativa de atrao mtua. Entre as afinidades culturais do

    marxismo e cristianismo esto, ainda segundo o autor:

    1- a adeso a valores comunitrios, em oposio ao individualismo liberal; 2- uma

    doutrina de tipo humanista/universalista (ecumenismo/internacionalismo); 3- a

    crtica ao capitalismo e ao liberalismo econmico, em nome de valores tico-sociais;

    4- a simpatia ou solidariedade com o pobre e o oprimido; 5- Uma utopia de futuro

    como reino de justia e paz, liberdade e fraternidade humana35.

    Um dos maiores expoentes no Brasil do que se denominou de Teologia da

    Libertao, Frei Beto, procurou expor essas afinidades, ou arqutipos comuns, como

    prefere, entre cristianismo e marxismo:

    Ambos foram fundados por profetas judeus, ambos acreditavam na

    libertao/redeno atravs da histria, ambos se referem a um paraso perdido (o

    comunismo primitivo em Marx) e proclamavam a esperana num paraso futuro:

    afinal, o que o marxismo seno uma heresia judeu-crist? Os termos so

    34 LWY, Michael. Cristianismo de Libertao e Marxismo: de 1960 aos nossos dias. In: RIDENTI, Marcelo; REIS, Daniel Airo (Org). Histria do Marxismo no Brasil: partidos e movimentos aps os anos de 1960.

    Campinas: EdUnicamp, 2007, p. 412-13. 35 Ibidem, p. 413-14.

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    diferentes, mas ambos compartem a utopia da felicidade humana no futuro histrico:

    Marx chama essa plenitude de reino da liberdade e os cristos, de Reino de Deus. O

    caminho capaz de levar a essa aspirao o compromisso com a luta de libertao

    dos oprimidos36.

    Esse compromisso pelos oprimidos partilhado de forma radical por parte do

    clero brasileiro da poca. Alm do documento assinado pelos bispos do Centro-oeste em 1973,

    tambm foi produzido outro documento, agora assinado pelo episcopado do nordeste, entre os

    quais Dom Hlder Cmara, Dom Antnio Batista Fragoso e Dom Jos Maria Pires, intitulado

    Ouvi os clamores do meu povo. Podemos ler no documento um pequeno trecho que

    expressa a radicalidade do pensamento de parte do clero brasileiro poca:

    As estruturas econmica e social em vigor no Brasil so edificadas sobre a opresso

    e a injustia que provm de uma situao de capitalismo dependente dos grandes

    centros internacionais. [...] A injustia gerada nesta situao tem seu fundamento nas

    relaes capitalistas de produo, que do obrigatoriamente origem a uma sociedade

    de classes, marcada pela discriminao. A classe dominada no tem outra sada

    seno atravs de longa e difcil caminhada, j em curso, em favor da propriedade

    social dos meios de produo. Este o fundamento principal do gigantesco processo

    histrico para a transformao global da atual sociedade, numa sociedade nova, onde

    seja possvel criar condies objetivas para os oprimidos recuperarem sua

    humanidade despojada, lanarem por terra os grilhes de seus sofrimentos,

    vencerem o antagonismo de classes, conquistarem, por fim, a liberdade37.

    Certamente esse documento e a radicalidade de seu discurso no podem ser

    encarados como viso hegemnica da Igreja Catlica neste ou em qualquer outro momento.

    Seu contedo crtico radical, no entanto, serviu de base formativa para os agentes pastorais

    das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Comisso Pastoral da Terra (CPT) e, por

    conseguinte, da ao destes em relao aos camponeses.

    Bispo esquerdista, padres subversivos.

    A crescente especulao fundiria vivenciada em Conceio do Araguaia nos anos

    de 1970, a grilagem de terra e a sobreposio jurdica de muitos lotes davam poucas

    alternativas aos camponeses. Suas representaes de classe, a Confederao Nacional dos

    Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e o Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR),

    estavam ou sob tutela, ou sob interveno. Ainda assim, no eram raros os casos de

    assistncia jurdica a trabalhadores rurais em casos de ameaa de despejo. Podemos citar

    36 BETTO, Frei. Cristianismo e Marxismo. Petrpolis: Vozes, 1986, p. 35-6; apud LWY, Michael. Op. cit., p.

    423. 37 LIMA. Luis Gonzaga de Sousa. Evoluo Poltica dos Catlicos e da Igreja. Petrpolis: Vozes, 1979.

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    como exemplo uma ao possessria movida por Amador Pereira contra os posseiros do lote

    60, em Conceio do Araguaia, no ano de 1975. Os posseiros procuram o STR, que acionou

    a CONTAG, que acionou o Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria38 (INCRA),

    que no apareceu na audincia para manifestao. A sentena favorvel ao requerente seria

    seguida de despejo. O processo na justia, neste caso e na maioria de outros, significava

    derrota certa para os camponeses.

    No povoado de Itaipavas, Baixo Araguaia, uma srie de donos sucederam-se

    como sendo proprietrios do lote 7. Ocupado a partir de 1969, o primeiro despejo dos

    posseiros ocorreu em 31 de maro de 1976. Entrincheirados espera da polcia, os posseiros

    acabaram saindo da terra cantando o Hino Nacional. Mais de vinte posseiros foram presos

    quando tentaram, alguns dias aps o despejo, pegar os seus pertences. No povoado de Rio

    Maria, em 1975, uma ao da PM despeja nove famlias depois de acionada pela justia. O

    problema no lote 7 em Itaipavas motivou o deslocamento de uma guarnio da PM com o

    objetivo de prender um dos cabeas da resistncia: o lavrador Raimundo Ferreira Lima,

    mais conhecido como Gringo, salvo da priso pela interveno de Dom Estevo Avelar, bispo

    de Conceio do Araguaia39.

    Os camponeses buscaram na justia, ou no recuo, a possibilidade de se manterem

    na terra. E continuaram tentando, com a ajuda de uns poucos advogados e de muitos

    religiosos e agentes de pastorais. Mas os meios pacficos no foram os nicos meios

    utilizados. Tambm em Itaipavas, num local conhecido como Perdidos, na rea que

    pertencera Fundao Brasil Central, tcnicos do INCRA com o apoio de 18 policiais

    militares faziam um trabalho de demarcao da rea quando um conflito armado resultou na

    morte de dois policiais e deixou vrios feridos, entre posseiros e soldados da PM. A morte de

    dois policiais num conflito de terras no era algo comum na regio se comparada s mortes de

    trabalhadores rurais. As mortes ocorreram em 27 de outubro de 1976, dentro de um contexto

    poltico nacional denominado de abertura lenta e gradual, quando a ditadura comeava a dar

    sinais de aparente afrouxamento de seu aparato repressivo.

    A atuao de clrigos e instituies ligadas Igreja, um espao de defesa dos

    trabalhadores rurais fundamental no perodo, levou ao choque entre essas instituies e outras

    ligadas Unio e ao estado, como o Ministrio Pblico Estadual. Para o 1 Promotor da

    Capital (Belm), Carlos Peixoto, o clero tinha ntima ligao com o crime cometido contra os

    PMs. Considerando a ao da Igreja boa, o nobre Promotor, no entanto, considera

    38 rgo Federal criado em 1970. 39 CHINEM, Rivaldo. Sentena: Padres e Posseiros do Araguaia. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 30.

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    inegvel dizer que ela est minada de iderio comunista por alguns de seus membros [...] que

    querem paulatinamente implantar a ideologia de esquerda em nosso pas40. A revolta do

    Promotor explica-se pela absolvio dos rus no processo movido pela promotoria contra

    vrios religiosos, entre os quais Dom Estevo Cardoso Avelar (bispo de Conceio do

    Araguaia), Frei Expedito Marques da Silva e o padre Florentino Maboni, que seria preso logo

    depois do conflito em Perdidos.

    A acusao de subversivos aos clrigos compreensvel, considerando a

    postura favorvel da Igreja em relao aos camponeses. O que chama a ateno, no entanto,

    o papel que caberia Igreja, segundo a viso do Promotor Peixoto. Por que se arvorou o

    clero de Conceio do Araguaia em assuntos que no lhe competia? Esses religiosos, na

    viso do promotor, no estavam fazendo ao pastoral pois, segundo acredita, a Igreja no

    serve para instigar pessoas ao crime, pois a ao pastoral no manda matar. Nessa viso,

    caberia aos religiosos cuidar das almas e deixar para as autoridades competentes o

    papel/funo de cuidar das questes que no dizem respeito Igreja. Alm disso, ao

    desvirtuar suas funes, os religiosos estavam incitando os camponeses ao crime. O

    promotor continua sua argumentao afirmando que os rus, saindo da sua ao religiosa

    para se intrometer indevidamente em assuntos de competncia exclusiva das autoridades

    civis, no caso a demarcao das terras pelo INCRA no seu Projeto fundirio em Conceio do

    Araguaia41.

    Para o Promotor Peixoto, a carta escrita por Dom Estevo Cardoso Avelar e

    enviada aos posseiros pelo padre Florentino Maboni foi o estopim do crime. Por isso,

    considera ambos, bispo e padre, no apenas esquerdistas e subversivos, mas responsveis

    diretos pela morte dos policiais.

    Alm da promotoria de Belm, o Coordenador Regional do INCRA (responsvel

    pela demarcao da terra no caso de Perdidos), Elias Seffer, queria saber quem insuflou os

    posseiros42. Era como se os posseiros no tivessem vontade prpria. Como se no

    conhecessem seu lugar no mundo. Como se no soubessem o momento de agir. Como se

    suas atitudes fossem obra de manipulao de outras pessoas. Indo no caminho contrrio, uma

    moradora da localidade de Perdidos, Maria Rosa Pereira, afirma que no houve projeto de

    briga. Foi o povo que imaginou que o careca, com a ajuda da PM, ia tomar as terras dos

    40 MINISTRIO PBLICO ESTADUAL, Promotoria de Belm, Carlos Peixoto, 24 de agosto de 1978, fls., 5. 41 Ibidem, fls., 3. 42 DEMARCAO a qualquer preo. A Provncia do Par. Belm, 2 nov. 1976.

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    posseiros e resolveu enfrentar a coisa no tiro43. Aqui cabem duas observaes: primeiro,

    perguntada sobre a especulao em torno da incitao ao crime por parte de alguns

    membros subversivos da Igreja, a moradora afirma no haver nenhum projeto de briga,

    isto , nenhuma prvia articulao poltica antes da chegada dos integrantes do INCRA e dos

    policiais. Seria um movimento espontneo diante da cotidiana presena da polcia como brao

    armado dos grandes proprietrios. Alm disso, o careca era nada mais nada menos que um

    contumaz grileiro a servio de interesses privados, conhecido da populao.

    Assim como Carlos Peixoto e Elias Seffer, o comandante da Polcia Militar do

    Par, Carlos Alberto Moreira, tambm est entre aqueles que no acreditam na ao poltica

    autnoma dos camponeses. Existe algum por trs. Ele considera que diante da hostilidade

    manifestada pelos posseiros, algum os tenha insuflado no ato da emboscada44. Afirma ainda

    que no tem ideia de quem seja, mas h algum insuflando os posseiros contra o INCRA e

    contra a PM do estado45.

    Os argumentos do Promotor Peixoto continuaram repercutindo dentro e fora do

    estado do Par46 e dividindo opinies. Enquanto o Inqurito Policial Militar considerava que

    se no fosse a prelazia de Conceio do Araguaia, que apaziguava e tranquilizava o povo,

    coisas bem piores poderiam ter ocorrido no Sul do Par47, a Promotoria Militar (Jos Manhes

    Leito) e o 1 Promotor da Capital (Carlos Peixoto), cada qual a sua maneira, davam margem

    para enquadrar os religiosos na Lei de Segurana Nacional48, principalmente Dom Estevo

    Avelar, da diocese de Conceio do Araguaia. Houve um total de 42 prises, a maioria de

    posseiros49, e o Padre Maboni50. Alm de insuflar os posseiros a subverso51, segundo os

    argumentos do Promotor Carlos Peixoto, para a PM, a partir de seu comando no Sul do Par,

    os conflitos so o resultado da ao de grupos guerrilheiros, sugerindo o uso da fora para

    43 PERDIDOS depois da ao dos posseiros. O Liberal. Belm, 30 nov. 1976. 44 PM v subversivos na ao de posseiros. O Liberal. Belm, out. 1976, 1 Caderno, p. 11. 45 PM v subversivos na ao de posseiros. O Liberal. Belm, out. 1976, 1 Caderno, p.12. 46 CNBB sob fogo cruzado. VEJA. So Paulo, 24 nov. 1976. 47 SEM CARTER subversivo ou poltico. O Liberal. Belm, 11 jun. 1978. 48 Decreto-Lei n 314, de 13 de Maro de 1967que define os crimes contra a segurana nacional, a ordem poltica e social, configura como um dispositivo jurdico para atender as prerrogativas dos governos autoritrios que sucederam no Brasil desde o golpe civil-militar de 1964 at 1985, quando um presidente civil assume o

    poder. Entre os crimes previstos na lei, esto os de incitar guerra ou subverso da ordem poltico-social; paralisao de servios pblicos ou atividades essenciais, dentre outros. Numa palavra, estavam proibidas greves, organizaes e manifestaes coletivas, atividades enquadradas como subversivas ordem pblica e social.Cf.http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 19 de agosto de 2014. 49 SEGURANA Nacional para os posseiros. O Liberal. Belm, 1 out. 1976. 50 PADRE preso de novo acusado de insuflar. O Liberal. Belm, 6 nov.1976. 51 PROMOTOR acusa do Estevo de subverso. O Liberal. Belm, 9/6/1978.

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    coibir novos derramamentos de sangue52. Quanto a Dom Estevo, apesar das declaraes de

    apoio da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil53 (CNBB), acabou sendo transferido de

    Conceio para Uberlndia54, enquanto o padre Maboni, depois de solto, enviado a Porto

    Alegre55.

    As tenses aumentavam e a CPT posicionava-se. Em uma denncia publicada na

    imprensa, a Comisso Pastoral da Terra denunciava a formao de milcias armadas para

    expulsar posseiros em 25 reas de Conceio do Araguaia, envolvendo um total de 4.450

    famlias. Na regio de Floresta do Araguaia, em que 3.000 famlias viviam desde 1973, havia

    um clima tenso depois que o Governo do Par e a SUDAM decidiram diminuir a rea

    destinada aos colonos como meio de atender a interesses de proprietrios da regio. Em

    Xinguara, ainda segundo o relatrio da CPT, 400 lavradores permanecem nas terras do

    banqueiro Flvio de Almeida Pinto, que j entrou com ao judicial contra nove

    lavradores56.

    Reao conservadora

    Se por um lado os conflitos que se seguiam possibilitavam vitrias pontuais de

    camponeses em permanecer em suas terras, os setores mais conservadores, civis e militares,

    procuravam combater as aes por eles consideradas subversivas. Afinal, a Lei de

    Segurana Nacional no fora criada toa. Alm da priso e assassinato de camponeses,

    incluindo a importantes lideranas sindicais, padres e freiras tambm sofreram perseguio.

    Alguns foram presos, outros assassinados.

    Os conflitos continuaram a ocorrer em escala cada vez maior, mas agora um

    importante personagem aparece em nossa histria: o Grupo de Terras Araguaia Tocantins

    (GETAT). Criado em fevereiro de 1980 para atuar na rea de abrangncia do Programa

    Grande Carajs57, abarcando as microrregies de Marab, So Flix do Xingu, Parauapebas,

    52 PME v Ao de Guerrilhas nos conflitos do Araguaia. O Liberal. Belm, 7 nov. 1976. 53 Criada em 1952, a Conferncia reunia inicialmente os cardeais e arcebispos catlicos, aos poucos foi

    ampliando a participao dando assento e voz a todos os bispos e prelados. A partir de 1971, com a tenso

    crescente entre o clero catlico e os diversos governos militares, a CNBB passa a aprovar documentos que

    apresentam avaliaes sobre a realidade brasileira, especialmente sobre a realidade agrria do pas. 54 D. ESTEVO transferido de Conceio para Uberlndia. A Provncia do Par. Belm, 27 nov. 1978. 55 PE MABONI solto e enviado a Porto Alegre. O Liberal. Belm, 27 nov. 1976. 56 CPT prev conflito armado em Conceio do Araguaia: terras. O Liberal. Belm, 3 out. 1979. 57 Apesar do PGC ter sido inaugurado oficialmente em 1980, desde a dcada de 1960 o Departamento de

    Pesquisa Mineral (DNPM) j havia publicado uma srie de pesquisas sobre a existncia de grandes e diversas

    jazidas minerais (ferro, mangans, bauxita) na regio norte. Empresas estrangeiras, como a US-Steel, tinham

    grande interesse na explorao dessas reservas. Cf. HBETTE, Jean. O Grande Carajs: um novo momento da

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    Redeno e Conceio do Araguaia, o GETAT deveria resolver os problemas de sobreposio

    jurdica das terras do Araguaia. Terras que no se sabia bem se eram da Unio ou pertencentes

    ao estado. Terras reivindicadas por vrios proprietrios com ttulos os mais diversos. Em

    resumo, o GETAT fora criado para realizar a regularizao fundiria na rea58.

    Mas, para alm dessa atuao, digamos, tcnica, o GETAT atuou em inmeras

    questes sociais, que, pela luta e conflitos resultantes, tornaram-se polticas. Nessa

    regularizao fundiria do GETAT ocorreu uma mudana nada agradvel aos posseiros

    quando da reduo dos lotes de 100 par 50 hectares. Alm disso, os que no lutaram, na

    fronteira, principalmente fora da colonizao dirigida, tm sido expulsos por uma outra forma

    de coao qual em geral no tem faltado apoio das polcias locais ou estaduais, do INCRA

    ou do GETAT59. Os argumentos de Jean Hbette do uma outra dimenso do papel do

    GETAT na regio, na medida em que no foram raros os casos de despejos executados pelo

    rgo. Alm disso, o rgo tambm interveio nas eleies do Sindicato de Trabalhadores

    Rurais de Conceio, sem falar no seu papel de polcia em diversas situaes envolvendo

    camponeses e padres.

    Um exemplo dessa reao dos governos autoritrios ps 1964 diante dos conflitos

    foi a priso dos padres franceses Aristides Camio e Francisco Goriou. Ambos expulsos do

    Laos, chegaram regio em diferentes momentos. Camio chegou em Conceio do Araguaia

    em dezembro de 1977, indo depois para So Geraldo. Goriou chegou em 1978 para atuar em

    Xinguara60, respectivamente, distrito e povoado pertencentes a Conceio.

    Tanto em Xinguara quanto em So Geraldo, rea de atuao dos padres,

    ocorreram inmeros conflitos. O ocorrido na fazenda Barreira Branca, um castanhal de 84 mil

    hectares, dos quais 44 mil financiados pela SUDAM, de propriedade do Banco Bamerindus,

    envolveu pistoleiros e posseiros, resultando no sequestro do posseiro Mineirinho. Padre

    Aristides solicita apoio do GETAT, mas Mineirinho s aparece depois da interveno de

    histria moderna da Amaznia paraense. In: Cruzando a fronteira: 30 anos de estudos do campesinato na Amaznia. Belm: EDUFPA, 2004c. vol. 3. p.38-39. Embora o PGC tenha como investimento principal a

    extrao e beneficiamento de minrios, o Projeto se estende tambm a empresas agrcolas e de criao de gado.

    Cf. HALL, Anthony. Amaznia: desenvolvimento pra quem? Desmatamento e conflitos sociais no Programa

    Grande Carajs. Belm: NAEA/UFPA, 1991, p. 59. 58 Pelo menos essa a verso de Gutemberg Guerra, agrnomo formado em Belm que chegou em 1981 em So

    Geraldo, para trabalhar no GETAT. Gutemberg Guerra: depoimento [jun. 2012]. Entrevistador: Fbio Pessa.

    Conceio do Araguaia, 2012. 59 HBBETE, Jean. Grandes Projetos e transformaes na fronteira. In: Cruzando a fronteira: 30 anos de

    estudos do campesinato na Amaznia. Belm: EDUFPA, 2004b. vol. 3, p. 69. 60 FIGUEIRA, Ricardo. Op. cit., p. 51-52.

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    Sebastio Curi61, acompanhado da Polcia Federal (PF). Em razo do conflito, padre

    Aristides prestou depoimento para a Polcia Federal na sede do GETAT tendo que responder

    perguntas sobre sua atuao na rea62.

    No conflito do Cajueiro a histria seria diferente. Em uma rea reivindicada por

    diversos donos, os quase 10 mil hectares de castanhais ocupados por mais de 90 posseiros,

    alguns com at 20 anos na rea, foram disputados entre fazendeiros e posseiros, em que

    diversos rgos governamentais se envolveram. O INCRA faria a demarcao, o que no foi

    aceito pelos posseiros. A Polcia Federal e o GETAT, denominando de invasores uma parte

    dos posseiros, seriam responsveis pela presso para expuls-los. Sebastio Curi que

    conhecia muitos posseiros como o Joo Matias, ex-guia do Exrcito, pedia para que

    aceitassem a demarcao. Os padres Francisco e Aristides, atendendo solicitao de um dos

    posseiros, foram celebrar missa na rea em conflito. Como a igreja do povo tem de ir onde

    o povo est, os padres foram e em 8 de agosto de 1981 celebraram a missa na presena de

    cerca de 60 pessoas63.

    A celebrao da missa em uma casa simples, de um posseiro, numa comunidade

    distante do distrito mais prximo, So Geraldo, permite-nos algumas reflexes.

    Primeiramente, denota uma proximidade real dos religiosos com os pobres e oprimidos, em

    uma prtica religiosa consubstanciada pelo Cristianismo de Libertao. A Igreja

    itinerante, no se estabelece por um ponto fixo, um prdio reconhecido pelas autoridades

    eclesisticas como lugar oficial da prtica religiosa catlica. Alm disso, apesar de manter

    certa formalidade ritualstica durante a celebrao, os padres Aristides e Francisco buscavam

    associar as passagens da Bblia com a realidade dos posseiros, de modo a aproximar a religio

    da dura realidade vivida por eles, o que certamente funcionou como uma motivao a mais

    para quem luta pela terra.

    Celebrada a missa e definidos os papis, a diligncia do GETAT que no dia 6 de

    agosto visitara So Geraldo parte para a ofensiva contra os posseiros. Tocaiados, os

    61 O capito do exrcito Sebastio Rodrigues de Moura, o Sebastio Curi, foi deslocado para o Araguaia em incios da dcada de 1970 para organizar a represso Guerrilha rural organizada pelo Partido Comunista do

    Brasil (PCdoB). Usando o nome de doutor Luchini, Curi se passava por engenheiro do INCRA para se

    aproximar dos camponeses e acessar as reas onde estariam os guerrilheiros. Depois da Guerrilha, coordenou as aes de limpeza da rea para apagar os sinais do confronto. Adotou o apelido de Major Curi e, por meio da

    coao e pelos pistoleiros a seu servio, transformou-se no homem mais temido da regio. Distribui lotes de terra

    par colaboradores e recebeu o garimpo de Serra Pelada para administrar. Fundou a cidade de Curionpolis e

    elegeu-se prefeito trs vezes. Tambm foi eleito deputado federal por vrios mandatos, o ltimo em 2004. Cf.

    MORAIS, Tas; SILVA, Eumano. Operao Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. 2. ed. So Paulo:

    Gerao Editorial, 2005, p. 594. 62 CHINEM, Rivaldo. Op. cit., p. 41. 63 Ibidem, p. 49.

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    posseiros atiram na diligncia do GETAT e da Polcia Federal, matando um pistoleiro de um

    dos supostos proprietrios e ferindo quatro policiais federais e dois funcionrios do GETAT64.

    Dois dias aps a emboscada, uma operao envolvendo o Exrcito, avies da FAB, agentes da

    PF deram incio a operao conjunta para prender os posseiros. Quase uma dcada depois da

    Guerrilha do Araguaia, agora so os camponeses a serem caados. Segundo apurou o

    jornalista Rivaldo Chinem, uma semana depois do conflito, 13 posseiros se entregam PF,

    ficando detidos no GETAT para em seguida serem enquadrados na Lei de Segurana

    Nacional. Alm disso, a PF apreende em So Geraldo mais de duas mil espingardas de caa

    de diversos calibres65. Os agentes tambm prendem, em 31 de agosto de 1981, os padres

    Francisco e Aristides. As razes que explicariam a priso dos dois padres podem ser

    evidenciadas pelo discurso do senador Jarbas Passarinho66, um dia antes das prises. Para o

    senador, a Igreja tem uma ntida opo pelo socialismo e as comunidades de base insuflam

    a luta de classes no campo67.

    De So Geraldo, os presos foram transferidos para Belm espera do julgamento.

    Da priso, os padres escreveram uma carta na qual expem a situao em que vivem e falam

    da perseguio sofrida pela Igreja de Deus que est em Conceio, citando a represso

    sofrida em 1976 pelo bispo Avelar e por padres e agentes pastorais. Falam tambm da dupla

    funo da religio: a de representar e organizar o povo. Por que o regime investe tanto

    contra o clero progressista, as CEBs, a Teologia da Libertao?, perguntam os padres.

    Oferecendo a priso e a condenao a Deus, os padres pedem aos irmos e companheiros

    que fiquem sempre unidos na comunidade para o que der e vier; com f em Deus e nos

    companheiros, um dia a justia ser feita, pois enquanto houver nesse Brasil afora gente que

    luta pela libertao do povo, o tempo passado na priso ter sentido68.

    A carta foi escrita quando j se completavam 263 dias de priso dos dois padres e

    13 camponeses. Nesse tempo de priso, diversas manifestaes foram realizadas no Par,

    dando origem ao Movimento pela Libertao dos Presos do Araguaia (MLPA). O movimento

    64 Ibidem, p. 41. 65 CHINEM, Rivaldo. Op. cit., p. 50. 66 Jarbas Gonalves Passarinho nasceu em Xapuri, no Acre. Foi governador do Par e senador por trs mandatos

    (1967-83 e 1987-95). Foi ministro do Trabalho e Previdncia no Governo Costa e Silva, de Educao no

    Governo Mdici, da Previdncia no governo Figueiredo e da Justia no governo de Fernando Collor de Melo. Cf.

    GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. Organizaes rurais e camponesas no Estado do Par. In: FERNANDES, Bernardo Manano; MEDEIROS, Leonilde Servlo de; PAULILO, Maria Ignez. Lutas

    camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas. So Paulo: EdUNESP; Braslia, DF: Ncleo de

    Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 123. 67 FIGUEIRA, Ricardo. Op. cit., p. 79. 68 Trechos de Cartas da Priso dos padres Aristides e Francisco para o povo de Conceio do Araguaia e de todo

    o Brasil. Belm, 26 de abril de 1982. Arquivo da Comisso Pastoral da Terra CPT Araguaia-Tocantins. Xinguara (PA).

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    organizou palestras, atos pblicos e criou um Boletim para expor suas ideias e denncias da

    represso sofrida por religiosos e camponeses. Em uma dessas publicaes, o MLPA

    denuncia a represso sofrida pelos religiosos, como o padre Peter MacCarthy, da Diocese de

    Conceio do Araguaia, preso e espancado no dia 15 de outubro de 1981, juntamente com 4

    freiras69.

    O primeiro julgamento dos presos ocorreu em Belm na 8 Circunscrio Militar,

    no dia 22 de junho de 1982. Um forte aparato de segurana foi montado. Em um julgamento

    que durou 21 horas, o Conselho de Sentena da Auditoria Militar, sediado em Belm,

    condena 12 camponeses a 8 anos de priso, Joo Matias, identificado como lder, a 9 anos e

    os padres Francisco Goriou e Aristides Camio, respectivamente, a 10 e 15 anos de recluso70.

    Todos foram condenados com base na Lei de Segurana Nacional, com o agravante, no caso

    dos padres, de serem estrangeiros e que a natureza de suas atividades no pas no seria de

    natureza religiosa, mas poltica71. Os presos foram libertados no dia 17 de dezembro de 1983.

    Os padres, aps libertados, acabaram saindo do pas anos depois.

    No documento de acusao de padre Aristides, assinado pelo delegado da Polcia

    Federal em Braslia, Jos Sampaio Braga, podemos observar a compreenso das foras de

    segurana sobre o carter subversivo das atividades religiosas de Camio. As acusaes

    contidas no documento so as seguintes:

    Aproveitando-se da condio de sacerdote e do baixo nvel cultural, da simplicidade

    e humildade de seus paroquianos, desenvolveu destacada atividade voltada para a

    conscientizao do trabalhador rural, objetivando a criar um ambiente de tenso

    social, que culminou em emboscadas, assassinatos, invaso de terras, desrespeito

    coletivo s leis, s autoridades constitudas e seus agentes [...]72.

    Os argumentos apresentados contm uma srie de contradies. Primeiro, que os

    camponeses no poderiam agir sozinhos, precisavam ser conscientizados, j que possuam

    um baixo nvel cultural. Segundo, que o ambiente de tenso social seria o resultado dessa

    conscientizao e no do caos fundirio provocado pela sobreposio de ttulos, grilagem e

    69MOVIMENTO pela Libertao dos Presos do Araguaia (MLPA). Boletim n 3, dez/1981, p. 5. Arquivo da

    Comisso Pastoral da Terra CPT Araguaia-Tocantins. Xinguara (PA). 70 CHINEM, Rivaldo. Op. cit., p. 17. 71Os padres, enquanto estrangeiros, estavam submetidos a dois decretos-leis, o n 417/69 e o 941/69, ambos

    editados aps o Ato Institucional n 5 (AI-5), e lei n6815/80, conhecida como Lei (Estatuto) do Estrangeiro,

    aprovada durante a abertura poltica do regime civil-militar. As trs leis proibiam ao estrangeiro o exerccio de

    qualquer atividade de natureza poltica e envolvimento direta ou indiretamente em negcios pblicos do Brasil.

    Sob este arsenal de leis, os padres estrangeiros ficavam permanentemente com uma espada sobre suas cabeas era a espada sob a cruz. Qualquer movimento suspeito por parte dos padres estrangeiros era motivo de priso,

    com ameaas de expulso; Cf. TAVARES. Ruth F. O. Igreja Catlica e poltica: padres estrangeiros no Brasil. OPSIS, Catalo, v. 12, n. 1 - jan./jun. 2012, p. 263. 72SUPERINTENDNCIA REGIONAL DA POLCIA FEDERAL.Documento de Notificao. Braslia: DF, 9 de

    outubro de 1981. Arquivo da Comisso Pastoral da Terra CPT Araguaia-Tocantins. Xinguara (PA).

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    especulao de terras no Araguaia. Como se os conflitos fossem o resultado de um

    proselitismo supostamente religioso com o objetivo de subverter a ordem existente. Assim

    como os argumentos do promotor Carlos Peixoto, analisados anteriormente e que insistiam na

    vinculao da carta de Dom Estevo ao conflito de Perdidos, em 1976, o Delegado argumenta

    que, sem a interferncia do padre Camio, as emboscadas, assassinatos e desrespeitos coletivos

    s autoridades constitudas no seriam cometidos.

    Consideraes Finais

    A partir dos dados apresentados ao longo do texto foi possvel chegar a algumas

    concluses. Em primeiro lugar, a radicalidade da luta pela terra d-se como forma de

    resistncia camponesa expropriao de suas terras, desde a dcada de 1970. As formas de

    resistncia foram variadas, onde a trincheira podia ser o rito jurdico de contestao de

    despejos a partir de mandatos de reintegrao de posse ou a resistncia armada em

    emboscadas a agentes de segurana da Unio e estado.

    Alm disso, podemos concluir que essa radicalidade tem um forte significado

    simblico, a partir de interpretaes do Evangelho no que diz respeito terra e natureza.

    Essas interpretaes realizadas pelos camponeses ocorreram atravs do contato com

    diferentes atores sociais: as foras repressivas (exrcito e polcias), organizaes sindicais e

    partidrias e, fundamentalmente, atravs do contato com religiosos, principalmente os padres,

    bispos e freiras ligados ordem dos dominicanos. No toa que Jarbas Passarinho, poltico

    de origem militar que fez carreira no Par, atribui aos dominicanos boa parte das aes

    conflituosas envolvendo religiosos aps o golpe de 196473.

    Essa influncia pode ser observada a partir das opinies de Dom Pedro

    Casaldliga, um dos maiores expoentes da Teologia da Libertao na regio Araguaia, ao

    afirmar que:

    Se a Igreja no tomasse uma posio popular, em vez de populista, em determinado

    momento entraria em choque com as representaes de classe. Em determinados

    momentos ela s apoiaria reformas. Na medida em que os sindicatos tenham uma

    posio clara, no reformista, eles entram em choque com a Igreja conservadora.

    Mas a Igreja e as representaes de classe no s podem como devem caminhar

    juntas, caso contrrio a Igreja no caminharia junto com o povo. Ela se preocuparia

    s com a organizao da Igreja e no com a realidade.74

    73PASSARINHO, Jarbas. Apogeu e declnio do ciclo militar. Disponvel em:

    . Acesso em: 27 jul. 2013. 74 O INCRA um defunto que nem fede: entrevista com Pedro Casaldliga. Jornal de Braslia. Braslia, 28 jan.

    1980, p. 36.

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    Dessa forma, procuramos discutir a radicalidade da luta pela terra a partir de

    alguns pontos. Os camponeses do Araguaia assumiram formas autnomas de resistncia a

    partir das experincias herdadas e partilhadas com movimentos, partidos e organizaes

    religiosas, reinterpretando seus significados e dando-lhes formatos tticos de aes que lhes

    eram possveis no momento: entre 1975 e 1980, a partir da ocupao e resistncia, muitas

    vezes armados e usando tticas de emboscadas. Entre os anos de 1980 e 1985, essas aes

    foram acrescidas pela crescente organizao sindical e articulao de lideranas camponesas.

    Alm disso, acreditamos que a CPT e os agentes de pastoral que atuavam nas

    CEBs foram muito mais do que mediadores de conflitos ou uma espcie de retaguarda

    poltica, jurdica e de comunicao dos camponeses. Os espaos como as igrejas, associaes

    e comunidades se transformavam em espaos de reunies, troca de ideias e experincias. As

    parbolas e passagens da Bblia eram reinterpretados pela realidade de quem vive os

    problemas da terra, numa dimenso mtico-religiosa. O sentido de comunidade era

    reinterpretado como pertencimento a uma classe, e a partilha, como sinnimo de igualdade. O

    irmo era o companheiro de luta, dando um sentido de solidariedade que se exacerbava no

    enfrentamento com o diferente: o fazendeiro, o pistoleiro, o policial, o juiz.

    A radicalidade da luta pela terra, no entanto, no era unilateral. Como via de mo

    dupla, ocorre tambm pela ao violenta do Estado e fazendeiros. O resultado disso pode ser

    observado no nmero de assassinatos cometidos e na impunidade reinante. O relatrio da CPT

    encaminhado ao Ministrio da Justia em 2010 afirma que [] at 2010, foram assassinadas

    1580 pessoas, em 1186 ocorrncias. Destas somente 91 foram a julgamento. Discordamos

    daqueles que interpretam esses dados transformando os camponeses em meras vtimas

    inocentes e incapazes de se defender. bvio que no enfrentamento ao latifndio e estrutura

    de um Estado historicamente autoritrio os camponeses e seus apoiadores levaram, e

    continuam a levar, desvantagem. No possuem as mesmas armas, mas lutaram e continuam a

    lutar com as condies que lhes foi possvel. Parafraseando padre Ricardo Rezende,

    continuam a misturar f e teimosia na busca de um futuro cujo roteiro est sendo escrito por

    homens e mulheres que plantam os sonhos para colherem um novo amanh.