apocalipse doze uma - analise

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FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 37-49, jan./mar. 2011. 37 APOCALIPSE DOZE: UMA Danielle Ventura Bandeira de Lima** A presente análise tem como objetivo observar de que forma é abordada a pericope do capitulo doze do livro do Apocalipse, concentrando-se em duas correntes distintas, ou seja, a hermenêutica feminista e a teoria conflitual. Ao levarmos em consideração que a hermenêutica trata-se da arte de interpretar (PALMER, 1986; CROATTO, 1984), percebemos que a ma- neira diferenciada dessas duas correntes permite ao leitor o conhecimento geral de como um mesmo texto pode ser explorado de diferentes formas. Apesar da leitura conflitual e da hermenêutica feminista utilizar o mesmo método, ou seja, o método histórico-crítico, a busca de cada uma delas é particular. No que tange as técnicas sociológicas da teoria conflitual Ferreira (2009, p.57) comenta que: Resumo: o presente artigo tem como objetivo analisar o capítulo doze do livro de Apocalipse a partir de duas linhas interpretativas: a leitura conflitual e a hermenêutica feminista. Ambas pertencem às áreas do conhecimento da teologia, das ciências sociais e das ciências da religião. A partir destas duas linhas será analisado o capítulo doze do livro do Apocalipse. Pretende-se com isso, abranger a análise dessa perícope ao nos voltarmos para diversos aspectos abordados por essas correntes sobre o mesmo texto. Palavras-chave: Apocalipse doze. Leitura conflitual. Hermenêu- tica feminista. ANÁLISE DA LEITURA CONFLITUAL E DA HERMENÊUTICA FEMINISTA*

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FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 37-49, jan./mar. 2011. 37

APOCALIPSE DOZE: UMA

Danielle Ventura Bandeira de Lima**

A presente análise tem como objetivo observar de que forma é abordada a pericope do capitulo doze do livro do Apocalipse, concentrando-se

em duas correntes distintas, ou seja, a hermenêutica feminista e a teoria conflitual.

Ao levarmos em consideração que a hermenêutica trata-se da arte de interpretar (PALMER, 1986; CROATTO, 1984), percebemos que a ma-neira diferenciada dessas duas correntes permite ao leitor o conhecimento geral de como um mesmo texto pode ser explorado de diferentes formas.

Apesar da leitura conflitual e da hermenêutica feminista utilizar o mesmo método, ou seja, o método histórico-crítico, a busca de cada uma delas é particular. No que tange as técnicas sociológicas da teoria conflitual Ferreira (2009, p.57) comenta que:

Resumo: o presente artigo tem como objetivo analisar o capítulo doze do livro de Apocalipse a partir de duas linhas interpretativas: a leitura conflitual e a hermenêutica feminista. Ambas pertencem às áreas do conhecimento da teologia, das ciências sociais e das ciências da religião. A partir destas duas linhas será analisado o capítulo doze do livro do Apocalipse. Pretende-se com isso, abranger a análise dessa perícope ao nos voltarmos para diversos aspectos abordados por essas correntes sobre o mesmo texto.

Palavras-chave: Apocalipse doze. Leitura conflitual. Hermenêu-tica feminista.

ANÁLISE DA LEITURA CONFLITUAL E DA HERMENÊUTICA FEMINISTA*

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É preciso ler, reler para praticar a teoria e o método. Lembremos que esta leitura precisa, muitas vezes, como riqueza, do método histórico-crítico. Dentro do texto, ela vai descobrir o dinamismo (se houver conformismo é preciso detectá-lo) da vida daquela gente na sociedade.

Diante disso, é evidente a necessidade da minuciosidade analítica no texto para se detectar os aspectos da sociedade. O mesmo ocorre com a hermenêutica feminista que se utiliza do método histórico crítico para detectar as relações sociais entre homens e mulheres e suas variantes, dando ênfase às questões de gênero.

A escolha dessas correntes se deu devido à maneira que ambas tem sua relevância neste estudo e pela maneira que compõem grande número de pesquisas em Ciências da Religião. Na hermenêutica feminista, Reimer (2005) observa o contexto de opressão sofrido pelas mulheres. Na leitura conflitual, Ferreira (2009) tem a preocupação em observar no Apocalipse e em demais textos bíblicos, a mensagem do reino para os excluídos da sociedade, observando atentamente o contexto histórico e as dificuldades vivenciadas pelas comunidades.

Dessa forma, perceberemos como a análise dessas duas abordagens nos permite a visão de como um mesmo texto pode ser visto por olhares peculiares, que enriquecem o conhecimento de quem o observa sob uma perspectiva critica.

Assim, o contexto histórico, a simbologia e as aproximações e distan-ciamentos destes dois tipos de leituras serão observados no presente artigo, oportunizando ao leitor um estudo diferenciado sobre a literatura apocalíptica e, principalmente, no que tange o capitulo doze deste livro tão polêmico e bastante evidenciado nas mais diversas denominações religiosas.

O LIVRO DO APOCALIPSE: UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO Ao nos voltarmos para o livro do apocalipse, buscando por contex-

tualizá-lo, percebemos que esta forma de compreendê-lo é fundamental. Com relação às dificuldades existentes em se interpretar este livro, Borto-lini (2008, p.7) comenta que: “Não é fácil entrar na “casa” do apocalipse pela porta certa, Sob muitos aspectos ele é um livro difícil, pois quem o escreveu usou uma linguagem estranha para nós”

Além disso, Bortolini (2008) destaca algumas chaves de interpreta-ção deste livro de linguagem tão simbólica, observando o Apocalipse en-quanto uma literatura que traz mensagens de esperança, denúncia, teste-

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munho, celebração e felicidade. Assim, há uma ênfase em sua abordagem em observar no livro em questão como há uma mensagem da vinda do reino para as comunidades perseguidas.

De acordo com Ferreira (1996), o período de perseguição e de re-núncia é observável no momento em que o autor do texto afirma que quem tem ouvidos para ouvir deve estar atento, já que não se podia falar abertamente das perseguições sofridas pelos cristãos no período em que foi escrito o livro do Apocalipse.

Livro atribuído a João, apesar de reconhecermos que era costume da época dedicar os livros a pessoas ditas importantes, o Apocalipse (do grego apokálipsis, traduzido por revelação) é estruturado em sessões, ou seja, ele está dividido em: seção introdutória, seção dos selos, seção das trombetas e seção conclusiva (BORTOLINI, 2008; NOGUEIRA, 2003). Ainda sobre a estrutura do apocalipse, Bounneau (2003, p. 253) comenta que:

Sob a forma de uma revelação profética, o Apocalipse se dirige às sete Igrejas da Ásia Menor. Num primeiro momento, o estado espiritual de cada uma delas é ponderado numa epístola em que os pontos positivos são avaliados, os problemas revelados e, finalmente, uma promessa final acom-panha uma exortação à perseverança e ao arrependimento. Depois disso, o estilo muda em prol de uma grande visão do trono e do livro selado (cf. Ap. 4-5), seguida de três séries de visões (sete selos, sete trombetas e sete taça) que se articulam de um esquema apocalíptico bastante clássico.

No que diz respeito a esse esquema clássico de análise do livro de Apocalipse, o autor comenta que estes se tratam dos sinais precursores do fim dos tempos; das provações, do último confronto e do cumprimento final. Tal ideia é fundamental para termos uma noção geral da estrutura de um livro tão complexo e para manuseá-lo da melhor forma possível.

Livro considerado por Bounneau (2003) como essencial para com-preender o profetismo cristão, o Apocalipse tem como autor alguém que se declara com portador de uma revelação de Jesus Cristo. Assim, de inicio, temos a clareza que se trata de um livro cuja mensagem é profética e se destina as comunidades cristãs de forma simbólica.

Diante da densidade deste livro, nos limitaremos a analisar um tre-cho dessas seções, ou seja, o capitulo doze. Tal capítulo nos chamou a atenção mediante a forma como a luta travada pelo dragão contra mulher é alvo de análises de religiosos e pesquisadores do livro do Apocalipse e enfatizado com freqüência na liturgia católica.

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De acordo com Mesters (2003) o período em que foi escrito o capitulo doze do livro do Apocalipse, assim como os que se seguem, trata-se do fim do governo de Domiciano (81-86), no qual há nitidamente o crescimento de problemas e, concomitantemente, uma busca por enfatizar a condenação dos poderes do mal e trazer uma mensagem libertadora para as comunidades.

Tal imperador é identificado pelas fontes clássicas como sendo um tirano cruel e paranóico, localizando entre os imperadores mais odiados ao comparar a sua vileza com as de Calígula ou Nero.

Concorda com essa visão o autor Ferreira (2009) que indo além, comenta que o contexto geral do Apocalipse revela uma época de opressão para as comunidades perseguidas e enfatiza que a prostituta mencionada na literatura apocalíptica diz respeito a Roma, na qual o Imperador era o senhor do mundo. Contudo, há segundo ele, uma fé no ressuscitado que move as comunidades.

No entanto, antes de adentrarmos no estudo da hermenêutica femi-nista e da leitura conflitual, conheceremos primeiramente o que nos traz essa pericope bíblica, a fim de tomarmos conhecimento de qual capitulo estamos nos referindo ao mostrarmos aqui as análises de diversos estudio-sos dessa área.

O CAPITULO 12 DO LIVRO DO APOCALIPSE

Composto de dezoito versos, a narrativa desse capítulo é iniciada com o anúncio de um grande sinal no céu, ou seja, a mulher revestida de sol cuja lua estava debaixo de seus pés e na cabeça existia doze estrelas.

Logo em seguida, o autor declara que a mulher estava grávida e gri-tava como em dores de parto. No próximo verso, o autor menciona outro grande sinal no céu, ou seja, a presença de um dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres e na cabeça dez coroas. Consta-se na narrativa que o dragão varria com sua cauda uma terça parte das estrelas do céu e as atirou a terra e que ele deteve-se diante da mulher aguardando que ela desse a luz para devorar o seu filho.

Contudo, o menino, de acordo com a proxima perícope, é visto pelo autor como regente das nações pagãs com cetro de ferro e foi arrebata-do para junto de Deus e do seu trono. Com relação ao destino da mulher, o autor afirma que ela fugiu para o deserto que Deus tinha preparado um retiro para ali ser sustentada por mil duzentos e sessenta dias.

Como toda a narrativa revela um ambiente de batalha, na pericope adiante o autor afirma que Miguel e seus anjo tiveram que combater junto

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aos seus anjos o Dragão e seus anjos, travando um combate e não prevale-ceram, não havendo lugar no céu para eles.

Em seguida o autor mostra como o dragão que também é a serpen-te, o demonio, Satanás, o sedutor do mundo inteiro, foi precipitado na terra juntamente aos seus anjos. Mediante essa vitória, o autor declara na próxima pericope a chegada da salvação, o poder e a realeza, bem como a autoridade de seu Cristo porque foi precipitado como acusador de seus irmãos que os acusava dia e noite diante de Deus.

O autor declara ainda que estes venceram pelo sangue do cordeiro e de seu testemunho eloquente no qual desprezaram a vida até aceitar a mor-te. Assim, ordena que se alegre o céu e todos que nele habitam ressaltando que a terra e o mar deveria ter cuidado mediante a vida do demônio que desceu para lá com grande ira devido ao seu pouco tempo de existencia.

Posteriormente, o autor segue sua narrativa afirmando que o dragão perseguiu a mulher que dera a luz ao menino, mas que foram dadas a ela duas asas de água para que pudesse voar para o deserto onde seria alimen-tada por um tempo, dois tempos e a metade de um tempo fora do alcance da serpente.

Ele narra ainda que a serpente vomitou contra a mulher um rio de água para faze-la submergir e a terra acudiu a mulher abrindo a boca para engolir o rio que o dragão vomitara. Irritado, o autor finaliza este capitulo afirmando que, o dragão fez guerra contra a mulher e sua descendência, aqueles que guardaram os mandamentos de Deus e que tem o testemunho de Jesus e ainda que ele se estabeleceu na praia.

Enfim, a narrativa de Apocalipse 12 é repleta de símbolos que foram in-terpretados por diversos autores a partir do método histórico crítico, mas que, paulatinamente, vão enfatizando determinados fatores que caracterizam os en-foques considerados relevantes para suas respectivas correntes de pensamento.

A LINGUAGEM SIMBÓLICA DE APOCALIPSE 12

Ao analisarmos a simbologia presente neste estudo, de inicio se observa duas imagens marcantes: a mulher e a serpente. A indumentária de ambas e a luta que travam entre si é dotada de significados e tem sido alvo de muitos estudos de autores exegetas que se dedicam a esse tipo de leitura, se utilizando, principalmente, do método histórico crítico, a fim de identificar o sentido de cada expressão narrada neste livro.

No que diz respeito à mulher mencionada no capitulo doze do livro do apocalipse, Bortolini (2008) destaca que na própria literatura ela é vista

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apenas como um sinal e que, portanto, trata-se de uma realidade mais profunda, já que revela a comunidade.

Além disso, em sua perspectiva, ao interpretar a maneira que a mu-lher é ornamentada, o autor afirma que corresponde à forma como Deus a envolve completamente, já que é mencionado que a lua está debaixo de seus pés e as estrelas sob sua cabeça.

O capítulo 12 de Apocalipse pode ser considerado como o início de uma dramatização histórico-simbólica da crise que João percebia na sua sociedade. Em sua visão, a dramatização narrada neste capitulo é co-municada de forma retórica, a fim de que seja produzida ruptura social e, subseqüentemente, consiga oferecer esperança e consolo na intervenção divina (MIRANDA, 1994)

De acordo com Miranda (2008) há duas historias no capitulo 12 do Apocalipse. Uma delas diz respeito à perseguição do dragão a mulher e a segunda trata-se da derrota do dragão ao lutar contra Miguel e é expulso para a terra. Além disso, ele observa que a primeira narrativa é secciona-da pela segunda que não é maior pelo fato do autor usar uma doxologia (12.10-11) cuja função é fazer uma transição da narrativa de volta para a mulher e o dragão, bem como de fornecer a interpretação dos eventos que estão em torno.

Tematicamente, Miranda (1994) identifica no capitulo 12, duas porções com versos duplicados ou repetidos, a fim de que se faça transição entre elas, portanto, os versos 6 e 13 se encontram repetidos. Um deles para interromper a primeira narrativa e o outro para continuá-la. Caso eles fossem suprimidos existiriam duas narrativas mítico-literárias, ou seja, a mulher e o dragão e o dragão e Miguel.

De acordo com Ferreira (2009) o dragão corresponde à oposição a comunidade que resiste e que é profética. A cor vermelha a ele atribuída dá a ideia de que o Imperador é uma figura violenta e sanguinária.

Com relação à figura do Imperador Domiciano, observa-se como ele perseguiu as comunidades em todo o seu governo. Daí a alusão aos 1260 dias, condizerem com os três anos e meio de perseguições e sofrimentos.

É válido ressaltar que a visão da mulher descrita no Apocalipse, segundo Weiler (2003), autora que pauta seu discurso na hermenêutica feminista, no período medieval, devido à visão pietista, era considerada como a mãe de Jesus. Daí a atribuição dela como sendo a Rainha dos céus. Isso pode ser observável ao levarmos em consideração que, de acordo com Rosble (2006), Maria é tida com arquetipo que representa a luta contra o demônio e o temor do pecado.

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Numa leitura do imaginário durandiano, bem e mal aparecem numa grande batalha que revelam características próprias do imagi-nário judaico cristão, no qual o Regime diurno é aquele que predo-mina, já que as imagens nele existentes se contrapõem. Para tanto, Durand (1997) identifica os mitos presentes na narrativa de um de-terminado texto.

Com relação aos mitos da sociedade, Weiler (2003) destaca a exis-tência dos mitos da mulher e do dragão em outras sociedades como no Egito e na Grécia. Contudo, ela própria destaca que a mulher narrada no capitulo doze de fato trata-se da comunidade.

Essa narrativa, de acordo com Mesters (2003), é identificada ainda como uma releitura do livro de Gênesis, já que também aparece um dialo-go entre a mulher e a serpente e a inimizade entre ambas se torna preceito divino. A figura do dragão é observada, concomitantemente, como dragão, serpente e como demônio. Assim, no momento em que ele se refere à mu-lher e a serpente em Apocalipse, certamente, há uma leitura que pode ser dialogada com o livro de Genesis.

Mesters (2003) destaca que esta luta é muito injusta, já que se trata de um combate entre uma mulher grávida com um dragão. Entretanto, é destacado ainda como há uma intervenção divina em defesa da mulher, ou seja, da comunidade.

Assim como Ferreira (2009), o autor destaca que a vitória almejada trata-se da ressurreição de Jesus e que Satanás é o eterno derrotado. O vo-mito do dragão é visto por ele como o Império Romano. Além disso, ao mencionar que a teoria conflitual é a utilizada por ele em sua abordagem Ferreira (2009, p. 59) comenta que:

Em cada texto vemos algo da vida do povo, as contradições da sociedade, as resistências e lutas, o crescimento ou a derrocada, opressões ou liberta-ções, momentos que fazem rir ou chorar. Recordemos: essa leitura olha a sociedade como estrutura em tensão.

Dessa forma, cada símbolo, numa análise conflitual, pode ser visto de uma maneira peculiar no decorrer dos anos. A observação do contexto histórico por esses autores permitem uma análise profunda do que cada símbolo corresponde.

Assim, concorda-se com Certeau (2008) ao observar que cada au-tor analisa um determinado conteúdo por sua época, suas experiências e pelos institutos do qual fazem parte. Portanto, é a partir dessa afirmativa

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que conseguimos compreender como cada autor interpreta de diferentes formas um mesmo texto.

Além disso, a partir de Eco (2001), observamos a relevância de se observar o texto no seu contexto, uma vez que a análise construída por esses autores que se dedicaram a analisar o contexto histórico do livro do Apocalipse nos possibilitou uma análise critica e uma maior percepção dos símbolos presentes nesta abordagem.

Isso é nítido no momento em que, ao associarmos ao contexto da época, identificamos que a linguagem simbólica utilizada pelo au-tor está diretamente relacionada com o contexto histórico vivenciado pelas comunidades. É certo que a maneira que o Apocalipse é repleto de símbolos exige do exegeta um estudo profundo do contexto em que o texto escrito está inserido, a fim de compreendermos o sentido dessa linguagem.

A HERMENÊUTICA FEMINISTA E A LEITURA CONFLITUAL EM APOCALIPSE 12: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

Ao observarmos o capitulo doze do Apocalipse sob teorias distintas, percebemos que estas têm interesses peculiares a sua área. Sendo assim, são comuns as leituras da hermenêutica feminista e da literatura conflitual se complementarem por preencherem lacunas fundamentais para a compre-ensão do Apocalipse.

Na leitura conflitual percebe-se nitidamente uma visão critica a so-ciedade que não se limita a análise do contexto, mas que se volta até mes-mo para questões posteriores. Sobre essa teoria ele explica que:

Como fizemos uma opção pela teoria (modelo) conflitual, procuraremos sempre especificar os fatores que condicionam a estabilidade (Império romano, civilização grega, instituições judaico-israelitas que detinham o poder etc) ou sua mudança (grupos, comunidades e ou pessoas que apare-cem como explorados, despossuídos, conformados ou não) para detectar as relações que mantinham entre si.

Assim, a abordagem de Ferreira (2009) nos esclarece como a lei-tura conflitual se volta para um determinado texto bíblico observando as relações de poder na sociedade e os conflitos entre os desfavorecidos e os ricos. Diante disso, fica mais nítido como se deve olhar o capitulo doze do livro do apocalipse ao recorrer a este tipo de leitura.

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Diante da teoria conflitual, observamos que a dualidade narrada simbolicamente no capitulo doze, a luta travada entre o dragão e a mulher, refletem o conflito existente entre Roma e as comunidades cristãs. As per-seguições sofridas pelos cristãos são representadas pela figura da mulher que Deus a envolve e protege. Assim, há uma mensagem de esperança aqueles que viviam em um contexto de opressão e sofrimento.

Essa visão engrandece o estudo do Apocalipse, pois permite que façamos uma análise sociológica onde os excluídos da sociedade são obser-vados. Sobre a maneira que ela se porta diante do texto, Ferreira (2009, p. 57) comenta que:

É preciso, diante de qualquer texto, esforçar-se para des-codificá-lo (os símbolos, as imagens, as categorias), e, as vezes, desconstruí-lo, olhando o processo dinâmico da vida daquela gente que aí aparece. Aí se re-codifica e re-constrói. Lembremos: nesse processo se manifestam os “conflitos” na leitura.

A partir dessa perspectiva e daquilo que já foi analisado, percebe-se como é cara a leitura conflitual a desconstrução das imagens e das ca-tegorias, e, concomitantemente, a análise minuciosa que se segue ao se observar a sociedade e os conflitos presentes na leitura. Isso é exatamente o que os autores que dela se apropriam precisam fazer com os textos analisa-dos. Tal analise requer um estudo profundo de cada perícope e do contexto histórico que ele foi escrito, ou seja, um estudo filológico e histórico crítico.

É relevante destacar que na própria contextualização há uma dife-renciação entre a hermenêutica feminista e a literatura conflitual. Já que, de acordo com Weiler (2003), há na hermenêutica feminista uma busca por observar que as mulheres na literatura apocalíptica ocupam um lugar invisível e pouco relevante e que ora é vista sempre numa perspectiva dua-lística, ou seja, ora vista como santa, ora como prostituta. De acordo com Richter Reimer (2000, p. 20):

Ela se torna importante porque evidencia que a teologia precisa aprofun-dar sua reflexão e ação feministas, questionando e rompendo com os parâ-metros patriarcais e androcêntricos das ciências sociais e teológico-pasto-rais. Pois neles a mulher, além de ser desqualificada na sua humanidade e capacidade, também é desapropriada de sua dignidade e silenciada em sua experiência e resistência. O sistema patriarcal – e, portanto as ciências que trabalham com paradigmas patriarcais - é dualista, sexista e hierárquico,

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no qual o homem poderoso/branco é o principio organizativo e normativo de todas as coisas.

Sobre o estudo da hermenêutica feminista, Richter Reimer (2005) comenta que nos anos setenta mulheres e crianças se tornam referen-cial para a hermenêutica da libertação na América Latina mencionando autoras como Agostinha Vieira, Ivone Gebara, Ana Flávia Gorgulho, Ana Maria Tepedino, Tereza Cavalcanti e Maria Clara Bingemer. Numa segunda geração, a autora destaca que ocorreu nos anos 80 quando es-tudantes teólogas participam de um novo florescer hermenêutico e se envolvem em movimentos sociais e políticos. Nos anos 90, a autora menciona como a categoria de gênero enriquece este debate por ser um instrumento analítico da construção das relações entre homens e mulhe-res e suas variantes.

Vale destacar ainda que a hermenêutica feminista, além de obser-var as mulheres como pouco consideradas na sociedade, traz a tona ainda como o livro do Apocalipse, seguindo um sistema patriarcal, dividia as mulheres em apenas dois grupos, ou seja, prostitutas ou integras. (Richter Reimer, 1996)

Além disso, a abordagem da hermenêutica feminista busca anali-sar as mais variadas relações de poder levando em consideração a etnia, a identidade e o gênero observando, segundo Schussler Fiorenza (1992), questões que vão além das relações entre homens e mulheres.

No caso específico do Apocalipse 12, há uma visão invertida dessa mulher, já que ela é vista por ela como alguém dotado de força e poder, mesmo sendo simbólica a alusão do autor. A maneira que o autor se utili-za da imagem de uma mulher para representar a comunidade perseguida é enfatizada pela teóloga. , de acordo com (SCHUSLLER FIORENZA 1997; SHUSLLER FIORENZA, 1986)

As mulheres no livro do Apocalipse e sua exclusão social nessa so-ciedade androcêntrica e patriarcal são temas bastante relevantes, uma vez que permite que essas mulheres passem de marginalizadas para agentes sociais. O olhar crítico permitido pela hermenêutica feminista vem de fato a complementar a rica abordagem da leitura conflitual

É interessante notar que mesmo partindo do método histórico cri-tico, enquanto a literatura conflitual se pauta no estudo dos dominados da sociedade, daqueles que não tem voz ativa na sociedade, a hermenêutica feminista também analisa os mais excluídos, mas concentra seus estudos nas mulheres.

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Diante disso, as aproximações de ambos os estudos estão na ma-neira que eles se voltam para os excluídos da sociedade, dando-lhes vez e voz. O distanciamento está nos dois grupos específicos que eles analisam.

Contudo, mostramos aqui como a análise sob esses dois vieses vem a complementar a análise realizada de forma que abrangendo nosso co-nhecimento, temos a visão de que existem diferentes teorias que apesar de distintas permite conduzir aqueles que se volta para essa abordagem a terem uma visão geral desse estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise do Apocalipse 12, a partir da hermenêutica feminista e

da leitura conflitual de pensamento, nos fez observar como essa pericope, mediante sua rica simbologia, é alvo de muitos comentários.

Percebemos ainda que é consensual entre os pesquisadores que as imagens do dragão e da mulher referem-se ao contexto de opressão da época, ou seja, enquanto o dragão diz respeito ao reino opressor, a mulher representa as comunidades cristãs.

A mudança, porém, está na maneira que a hermenêutica feminista está mais preocupada em observar como a mulher, que representa a comu-nidade, não é observada enquanto imagem dotada de força e poder e o fato de uma mulher ser escolhida para representar tais comunidades. Além dis-so, esse estudo observa ainda como as relações de gênero são conflitantes.

Na leitura conflitual o enfoque é sociológico e nos permite um estu-do profundo das relações sociais conflitantes do período em questão e, ain-da, consegue extrair do texto a voz dos dominados, a partir de indagações que levam os estudiosos a uma reflexão apurada do tema.

Além disso, cada enfoque dado por essas correntes são complemen-tares e a união de ambos permite ao leitor um estudo mais abrangente do capitulo doze do livro do Apocalipse. Assim, pretendeu-se com esse traba-lho trazer um panorama geral de como ambas correntes de pensamento analisam o capitulo doze do livro do Apocalipse.

APOCALYPSE TWELVE: AN ANALYSIS OF THE READING CON-FLICT AND FEMINIST HERMENEUTICS

Abstract: this article aims to analyze the twelfth chapter of Apocalypse from two interpretations are: read conflicting and feminist hermeneutics. Both be-long to the areas of knowledge of theology, social sciences and sciences of reli-

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gion. From these two lines will be analyzed to chapter twelve of Apocalypse. It is intended to cover the analysis of this passage to turn to several points raised by these currents on the same text.

Keywords: Apocalypse twelve. Read conflicting. Feminist hermeneutics.

Referências

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* Recebido em: 22.10.2010. Aprovado em: 28.10.2010.

** Graduada em História. Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB. Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC Goiás.