além da bruma - markus thayer

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Conto Além da Bruma do escritor Markus Thayer para o aniversário do Sobre Livros.

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Além da Bruma Markus Thayer

Um mundo em desespero

Naqueles dias, o mundo sofria de uma epidemia estranha e incurável.

Os sintomas eram sempre os mesmos: Primeiro surgia a apatia e um

extremo desinteresse pela vida. Em seguida, as pessoas perdiam suas forças

e se entregavam às suas camas, onde minguavam até que a morte as

visitasse.

As cidades estavam totalmente largadas, entregues à lenta

desintegração pelas ações do tempo. Para todo lado que se olhava apenas

caos e destruição. O dia amanhecia e o sol espalhava seus primeiros raios

sobre aquela cidade desolada. Era uma rua cheia de detritos e amontoados

de brasas, remanescentes das fogueiras que alguns fizeram para se aquecer

na noite fria. Em meio às fumaças acinzentadas que subiam aqui e ali,

vinham os dois de mãos dadas.

Ela carregava uma cesta com frutas silvestres e ele carregava um balde

com água fresca do riacho.

Clare era filha única de Frederich von Weber, um bom homem que

esposara Frida Heins dois anos após a morte da mãe de Clare. Frida era

uma mulher meiga e carinhosa, que sempre trazia um brilhante sorriso no

rosto. Ela criou sozinha seu querido filho Michael. Mic agora contava doze

anos de idade e recentemente, com o casamento de sua mãe, ganhara Clare

como irmã.

Clare, aos seus dez anos de idade, era uma menina doce. Seus olhos

azuis combinavam magnificamente com os cabelos claros e encaracolados.

As duas crianças caminhavam com cuidado, procurando evitar ferir os pés

descalços. Contudo, com certa pressa, pois haviam deixado os pais doentes

sozinhos em casa.

História de um moribundo

Em virtude da epidemia, muitas pessoas tinham sido abandonadas à

própria sorte e as ruas estavam repletas de gente pelas calçadas. A maioria

totalmente inanimadas, porém, algumas ainda possuíam um resquício de

consciência.

− Uma esmola pelo amor de Deus − Pediu um velho moribundo,

estendendo os braços esqueléticos − Um gole de água por favor.

Michael desviou o olhar e não diminuiu o ritmo da caminhada. Clare, por sua

vez, olhou profundamente nos olhos do ancião. E seu coração delicado não

permitiu que os pés continuassem a andar.

− Vamos Clare, precisamos chegar logo em casa. − Falou Michael com

insistência.

Clare voltou seu olhar para Michael com toda a força de seu espírito

feminino.

− Mic, ele só está com sede, e nós temos muita água − Disse a menina

com carinho.

Michael continuava evitando olhar para o homem.

− Clare, ele já está quase morto!

Clare pegou uma caneca que trazia consigo, encheu−a com água, fixou

seu olhar nos olhos de Michael e disse.

− Mic, existe uma eternidade que separa o quase do estar.

Michael finalmente olhou para o homem. Havia algo de diferente em seu

olhar. Normalmente as pessoas externavam rancor e decepção, mas aquele

senhor emitia paz. Michael colocou o balde no chão e correu para ajudar

Clare. Com delicadeza, Clare colocou a caneca nos lábios do ancião, que

sorveu um largo gole de água.

− Obrigado, minha filha, − Disse o ancião com voz rouca. − muito

obrigado.

− Não há de que, meu senhor.

− Esse foi o gole d'água mais delicioso que já tomei na minha vida −

Falou com esforço.

− O senhor sente−se melhor? − Perguntou Michael.

− Sim, meu garoto, muito melhor.

− Precisamos ir. − Disse Clare com doçura − Nossos pais estão doentes

e temos de cuidar deles.

O ancião olhou para os dois com compaixão. Fez grande esforço para

se sentar e falou com dificuldade.

− Filhos, essa doença é letal, mas não é incurável.

− O senhor conhece a cura? − Perguntou Michael com grande

curiosidade.

− Sim − respondeu com voz sofrida, como quem sente forte dor. O

ancião tossiu dolorosamente por varias vezes e depois de instantes

conseguiu se controlar. Lançou um olhar piedoso para as crianças e

continuou.

− Seguindo para o Sul, a uns dez quilômetros daqui, existe um pântano.

Muito cuidado, pois ele é habitado por espíritos errantes. Logo depois do

pântano existe uma bela floresta. − O homem deu mais algumas tossidas e

continuou − No meio da floresta existe uma velha cabana, onde mora Zara.

Uma mulher com muito poder. Dizem que ela já tem uns quinhentos anos,

parece que ela é imortal. Vocês devem procura-la. Mas vocês não podem

chegar lá de mãos vazias, Zara não faz nada de graça.

− Mas o que podemos levar para ela? − Perguntou Clare.

Devido ao grande esforço para falar aquelas palavras, o homem estava

quase inconsciente. Seus olhos, perdidos no horizonte, pareciam ver algo

muito belo no infinito. Seus lábios desenharam um leve sorriso.

− Água… − Disse quase sem voz. − leve água fresca.

Após essas palavras, seus olhos se tornaram opacos, seu peito parou

de arfar, sua pele empalideceu. O ancião acabara de deixar essa vida. Seu

corpo ainda exibia seu ultimo sorriso, como que desejando boa sorte ao

mundo que deixava para trás.

Sem esperanças

− Vamos, Clare, acho que agora ele está morto. Vamos ver como estão

nossos pais.

Clare trazia uma lágrima furtiva, fazendo com que seus olhos

brilhassem ainda mais. Levantou−se sem dizer nada. Michael pegou

delicadamente na mão de Clare.

− Vamos, Clare.

− Vamos, Mic. − disse com a voz embargada.

Os dois seguiram seu caminho. A casa de Frederich ficava naquela

mesma rua, uns dois quarteirões à frente. Era uma casa antiga de duas

águas, com o telhado bem íngreme conforme o modelo alemão da época. Em

poucos minutos, os dois venceram a distância que os separava da

residência.

Tanto Frederich como Frida haviam contraído a estranha doença. O

estagio da enfermidade estava mais avançado no pai de Clare, que não

conseguia mais se levantar da cama. Frida lutava heroicamente para se

manter em pé e cuidar das crianças.

Quando entraram em casa encontraram Frida caída no chão frio da

cozinha.

− MÃE .− Gritou Michael.

O rapazinho correu para socorrer sua querida mãe. Segurou−a como

pode e colocou a cabeça dela em seu colo.

− Mãe, fala comigo.

Frida, bastante atordoada forçou um sorriso.

− Eu estou bem − Disse com certa dificuldade.

− Vamos, mãe, você não pode ficar aqui no chão. Vamos, vou te colocar

na cama. − Falou Michael com uma certa dose de desespero na sua voz

infantil.

− Meu pequeno herói, a vida está exigindo tanto de você.

− Não fale, mamãe, procure economizar suas forças.

Clare, que assistia à cena com o rosto banhado em lágrimas, correu

para ajudar Michael. Com grande esforço, ambos conseguiram levar Frida

até a cama e a colocaram ao lado de Frederich.

O pai de Clare estava visivelmente pior. Totalmente apático, não parecia

sequer reconhecer a própria filha.

Clare circulou lentamente a cama, com os olhinhos fixos em seu pai,

enquanto Michael cuidava de cobrir carinhosamente sua mãe. A menina

pegou nas mãos de Frederich e começou a acariciá-las com ternura.

− Papai, você está melhor? − Perguntou com o coração apertado.

Frederich não esboçou nenhuma reação. Parecia perdido em um mundo

distante.

− Papai, fala comigo, por favor. − Insistiu.

Clare fechou os olhos, como se estivesse em prece, e sussurrou aos

ouvidos de seu genitor.

− Papai, há um tempo atrás, você me disse que a mamãe tinha viajado

para uma terra distante e feliz. Se você for viajar também, e se encontrar a

mamãe, diga a ela que eu a amo muito. E nunca se esqueça de que vocês

dois tem um lugar eterno no meu coração.

Michael e Frida acompanhavam a cena bastante comovidos.

− Mãe, − Falou Michael com ternura − você vai ficar boa, eu prometo.

− Eu sei, − Respondeu Frida com um gracioso sorriso. − meu pequeno

herói, isso é só um resfriado, amanha eu estarei melhor.

Michael concordou com a cabeça.

− Durma um pouco, mãe, vai lhe fazer bem.

Frida aquiesceu, fechou os olhos e dormiu profundamente. Michael

caminhou até Clare com expressão tensa.

− Clare, eu preciso fazer alguma coisa para tentar salvá-los.

Clare enxugou as lagrimas com as mãos .

− Eu vou até aquela floresta − Continuou Michael − procurar por aquela

mulher, e se ela conhecer a cura, certamente nos ajudará.

− Eu vou com você.

− Acho melhor você ficar e cuidar deles. − Ponderou Michael.

− Mic, você não é muito bom com as palavras. Creio que seria melhor

estarmos juntos para conversar com Zara.

A caminho da floresta

Foi com muita preocupação que Michael e Clare fecharam a porta de

sua residência, deixando lá dentro aqueles que mais amavam. Contudo, era

necessário fazer alguma coisa. Deram uma ultima olhada para trás e

tomaram a direção Sul, a caminho da floresta.

Com a cidade em ruínas era difícil avançar. O caminho estava cheio de

detritos de toda ordem, bem como corpos humanos e de animais espalhados

por toda parte. O cenário era dantesco, talvez o inferno não fosse tão

repugnante.

Acostumados àquilo que havia se tornado sua realidade, os dois não

prestavam muita atenção à paisagem. Michael seguia um pouco à frente

empunhando uma velha espada que encontrara há algum tempo nas ruínas.

Clare carregava uma pequena mochila às costas, onde guardava comida e

água.

− Clare, precisamos ser rápidos, temos que estar de volta em, no

máximo, cinco dias. − Falou o rapazinho com a certeza de quem domina o

tempo e o espaço.

− Mic, você acha que Zara realmente pode curar os nossos pais? −

Perguntou enquanto saltava por um tronco que obstruía o caminho.

− Eu espero que sim, não temos outra alternativa. − Respondeu com os

olhos atentos ao ambiente.

Aquele era, certamente, um caminho perigoso, pois quando o caos se

instala as pessoas se tornam quase animais.

Três horas se passaram e os dois continuavam rumando para o Sul. O

sol naquele momento já estava alto no céu, fato que indicava ser perto do

meio dia.

Aos poucos, a cidade ia ficando para trás e uma vegetação rala crescia

por todo lado.

Foi quando, vindo sabe-se Deus de onde, surgiu um enorme cão

rosnando ferozmente contra as duas crianças. Seu instinto de predador o

colocou na direção de Clare, por ela ser menor em altura.

A menina, apavorada, apenas emitiu um grito e pôs se a correr. Erro

primário de todo candidato a presa. Tentar fugir apenas fortalece o predador.

A adrenalina se espalhou pelo corpo da pequena Clare com a

velocidade do raio. Força extra mais do que bem vinda naquele momento de

desespero.

Clare, numa olhadela para trás constatou que a fera estava a poucos

centímetros de seus pés.

***

Abriu a janela com determinação. O sol já estava alto, iluminando com

esplendor as copas das arvores.

− Dia lindo, não acha, Arthur? − Disse a mulher com alegria.

Inspirou profundamente, sentindo o perfume agradável das acácias que

se espalhavam pelo quintal.

− Sabe de uma coisa, Arthur, hoje será um dia cheio.

Pássaros cantavam alegremente saltando de galho em galho.

− É, − Disse a mulher com um brilho estranho no olhar. − agora consigo

ver claramente. Em breve teremos visitas.

***

O cão se entregara à caçada com toda a força de seu espírito canino.

Na sua visão, sua fome estava prestes a ser saciada. A salivação aumentara

consideravelmente e, em seu raciocínio primitivo, já podia sentir o sabor da

carne fresca e mesmo o cheiro do sangue jorrando de sua presa.

Mais um salto, apenas mais um salto.

De repente, Clare sentiu uma forte pancada nas costas. Forte o

suficiente para derrubá-la, caiu de bruços e por uma fração de segundo ainda

sentiu o bafo quente e úmido do grande cachorro.

Fechou fortemente os olhos e esperou pela primeira mordida.

Foi quando ouviu forte grunhido e percebeu que o cão não estava mais

sobre ela.

Latidos e barulhos estranhos. Tomou coragem e abriu os olhos. Michael

armado da espada e de um pedaço de pau enfrentava corajosamente o

cachorro, que por sua vez não desistia e avançava ferozmente contra seu

irmão.

Clare tomou coragem, armou−se com um galho seco e correu para

ajudar Michael. Ambos passaram a golpear o animal.

O cão percebeu que estava em desvantagem e fugiu, sumindo no meio

dos arbustos.

− Clare, você está bem? − Perguntava Michael enquanto tateava sua

irmã para ver se ela estava ferida.

Depois do susto, Clare começou a chorar. Michael a abraçou com

ternura.

− Me desculpe, Clare, eu não vi de onde saiu aquele cachorro. Me

desculpe.

Os dois irmãos ficaram abraçados por alguns instantes.

− Você salvou a minha vida. − Falou a menina com a voz embargada.

− Vamos ficar mais próximos e mais atentos, esses animais estão

famintos.

Clare concordou com a cabeça.

O pântano

Após mais algumas horas de caminhada, os dois chegaram a um tipo

de pântano.

Pequenas arvores e arbustos cresciam sobre uma lama escura e

viscosa. A paisagem era coberta por uma neblina estranha que dificultava a

visão.

Michael e Clare se entreolharam, seus olhos mostravam o que passava

em suas mentes: ansiedade e temor.

− Vamos, Clare, nossos pais dependem de nós.

Michael, com uma das mãos, empunhava a velha espada e, com a

outra, segurava a delicada mão de Clare.

Passo a passo, eles entraram naquele lugar estranho. Sons lúgubres

vinham por todos os lados. O lodaçal dificultava muito a caminhada.

− Olhos bem abertos, Clare, isso aqui está muito estranho.

− Esse lugar nem parece do nosso mundo.

De repente, um forte barulho. Instintivamente Clare agarrou o braço de

Michael. Tratava-se da revoada de um bando de corvos que se assustaram

com a presença deles.

− Puxa, que susto. − Falou Clare com alivio ao mesmo tempo em que

arrumava os cabelos.

− QUEM SÃO VOCÊS, O QUE QUEREM NO MEU PALÁCIO? − Gritou

uma voz retumbante vinda das brumas impenetráveis.

Michael e Clare ficaram estáticos, tentando enxergar através da neblina.

Aos poucos um vulto foi tomando forma. Um velho com cabelos e barba

muito longos, brancos como a neve, emergiu da neblina espessa. O homem

tinha um semblante severo e seus olhos eram opacos, sem brilho, sem

expressão.

− Quem são vocês? − Voltou a perguntar. Agora mais enérgico.

− Eu sou Michael. − Respondeu timidamente o rapazinho.

− O que você quer no meu palácio? Veio atrás do meu ouro? Quer

roubar as minhas joias? Seu ladrão imundo.

− Não, não, eu não quero seu ouro, nem suas jóias. − Respondeu

trêmulo.

− O que quer então? O que veio roubar?

− Não queremos roubar nada. − Disse Clare − Apenas estamos

procurando por Zara, ela pode curar nossos pais.

O velho lançou uma gargalhada amedrontadora.

− Quem? A bruxa? Ela não consegue curar nem a si própria. Vocês

estão perdendo o seu tempo.

− Quem é o senhor? − Perguntou Clare com timidez.

O homem lançou mais uma enfadonha risada.

− Eu sou o guardião do pântano dos espíritos errantes. Só se atravessa

essas terras com a minha permissão e eu só permito com ouro! Agora vão

embora daqui, saiam do meu reino.

Michael ficou petrificado, sem saber o que fazer. Clare fechou os olhos

e pediu uma inspiração.

De repente, ouviu uma voz dentro de sua mente “Ele não é rei, é

apenas o guardião!”.

− Este não é seu reino. − Falou Clare com convicção. − O senhor é

apenas o guardião.

O homem parou de rir e franziu a testa.

− Você está me desafiando, menina? Você se acha capaz de enfrentar

o grande Hignus?

− Não, − Respondeu a menina − eu quero comprar a nossa passagem

por essas terras, e o senhor como grande guardião pode vender.

− Ah é, e como a mocinha pretende pagar? − perguntou com desdém.

− Com o ouro do conhecimento. − Respondeu convicta.

Michael apenas acompanhava o duelo de palavras. O velho coçou a

barba.

− Está bem, eu aceito o desafio, eu farei três perguntas. Se acertarem

duas, vocês podem passar se errarem duas, serão meus escravos para

sempre!

Clare sentiu o peso da responsabilidade. Estava para desistir quando

ouviu a voz novamente “aceite!”.

Assim, diante dos olhos arregalados de Michael, Clare aceitou o duelo

com Hignus.

O velho fechou os olhos opacos, como que a buscar imagens de um

passado longínquo.

Michael acompanhava a cena, estarrecido.

Clare fechou os olhos e imaginou, com toda a força de seu espirito, que

já havia vencido a prova, que agora era só esperar pelas perguntas, pois ela

sabia a resposta para todas.

Os segundos escorreram num silêncio irritante.

− Qual a razão da vida? − Perguntou Hignus com um leve sorriso.

Clare respirou profundamente e sem abrir os olhos respondeu.

− Amor.

Hignus fez uma carranca e fechou novamente olhos por um instante.

− Qual o principal ingrediente da pedra filosofal?

Clare empalideceu e arriscou timidamente.

− Mercúrio?

Hignus deu outra gargalhada.

− Pelo visto ganharei mais dois escravos hoje. – Bradou satisfeito.

Clare sentiu-se muito mal por ter errado. Teve vontade de sair correndo,

quando ouviu a voz novamente “concentre−se, acredite em você”. A menina

respirou profundamente e se lembrou de uma frase que sua mãe sempre

repetia: “Filha, lembre−se tudo o que você precisa já está dentro de você”.

− Em que lugar do Universo você pode encontrar a verdadeira

felicidade?

Clare sentiu-se trêmula, lembrou-se novamente da frase de sua mãe e

respondeu.

− Apenas dentro de você.

Hignus arregalou os olhos numa expressão de dor e angustia e disse

com voz amarga.

− Vocês podem passar pelas minhas terras.

Dito isso, Hignus desapareceu lentamente diante dos olhos dos dois. A

neblina desvaneceu e Michael e Clare puderam ver uma floresta.

A cabana de Zara

A medida que entravam na floresta, a vegetação ficava mais e mais

densa. Pássaros e animais silvestres faziam grande estardalhaço nas copas

das arvores.

Depois de alguns minutos de caminhada no interior da floresta, ficou

claro que aquela não seria uma tarefa fácil. Devido aos grandes arvoredos,

não se podia ver a posição do sol e, com isso, não se podia ter certeza da

direção que estavam seguindo. Talvez estivessem andando em círculos.

Michael começou a fazer marcas na floresta para que pudessem

encontrar o caminho de volta.

− Mic, quanto tempo você acha que ainda temos? − Perguntou Clare

com ar de preocupação.

− Bem, saímos de manhã, acredito que já deva ser umas quatro horas

da tarde. Se nossos pais não conseguirem se alimentar e nem beber água,

acredito que temos no máximo mais quatro dias.

As horas passaram rápido e o céu começou a escurecer. Por varias

vezes, Michael subiu em arvores altas para tentar encontrar a cabana de

Zara, mas só o que podia ver eram quilômetros e mais quilômetros de mata

virgem.

− Clare, − Disse, algo desanimado − Acho que nunca iremos encontrar

a cabana de Zara. Esta floresta é muito grande e podemos estar indo na

direção contrária. Talvez a tal cabana nem exista!

***

− Sabe, Arthur, eu acho que me enganei. Nossos visitantes não

conseguirão chegar com tanta facilidade. − falou a mulher, algo pensativa.

− O que você acha Arthur? Será que conseguirão sobreviver à floresta?

Olhou pela janela, estava ficando escuro. A mulher caminhou para uma

pequena mesa, apanhou o castiçal e acendeu as velas. Fechou a janela.

− É Arthur, teremos de esperar até amanhã.

***

Clare segurou a mão de Michael.

− Não se preocupe, Mic, iremos encontrar um caminho. Minha mãe

sempre dizia que somos nós quem criamos os nossos caminhos conforme a

nossa vontade.

− Me desculpa, Clare, − Respondeu entristecido − eu não quero perder

as esperanças, mas, tudo está ficando tão difícil.

− Nós vamos conseguir, acredite! − Falou a menina com convicção.

O manto escuro da noite cobriu a floresta densa. A escuridão se tornou

total, Michael acendeu uma fogueira para espantar os animais noturnos e

aquecê-los durante a noite. O jovem rapaz preparou uma espécie de colchão

com folhas secas onde os dois irmãos se deitaram para passar a noite.

Ambos estavam exaustos e logo adormeceram profundamente. Clare

sentiu seu corpo leve como uma pena, abriu os olhos e percebeu que

flutuava no ar. Não se assustou, isso já havia acontecido muitas vezes em

sua vida.

Flutuava a uns dois metros de altura. Olhou para baixo e viu seu corpo

físico dormindo tranquilamente ao lado de seu irmão Michael. Sentiu um

enorme carinho por Mic, que não media esforços para fazê-la feliz. Seu peito

se acendeu, emitindo uma luz branca que iluminou o ambiente ao redor.

− O amor tem essas propriedades, iluminar e aquecer. − Disse uma voz

vinda de algum lugar próximo.

− Clare olhou para os lados em busca de quem falava. Aos poucos, foi

se materializando diante de seus olhos um homem que aparentava ter uns

oitenta anos de idade. Clare não sentiu medo, de algum modo, ela conhecia

aquele homem, sabia até seu nome. Sim seu nome era Humbert.

− Humbert, que bom vê-lo novamente. − Falou com alegria.

− É muito bom ver você também Clare, está mais linda que nunca!

A menina se sentiu feliz pelo elogio e brilhou ainda mais. Por fim,

respondeu, algo envergonhada.

− Muito obrigada.

− Clare, venha eu quero lhe mostrar uma coisa.

A filha de Frederich deu uma olhada para seu corpo físico da mesma

maneira que uma mãe amorosa cuida de seu filhinho no berço. E, após

constatar que estava tudo bem, seguiu na direção de Humbert.

O ancião estendeu a mão e disse com carinho:

− Me dê a sua mão.

Clare segurou firmemente a mão de Humbert. No mesmo instante,

ambos subiram muito alto no céu, de forma que era possível ver claramente a

curvatura da terra. Olhando de cima, as grandes cidades eram um misto de

luzes e fumaças escuras. Vendo aquilo a menina perguntou:

− O que é isso que estamos vendo?

− Clare, minha filha, − Respondeu com bondade − as luzes são

pensamentos bons carregados de amor, carinho e paz. E aquelas colunas de

fumaça são pensamentos ruins impregnados de ódio, inveja e autopiedade.

Vamos, vou lhe mostrar mais algumas coisas.

Dito isso, os dois rumaram em alta velocidade em direção à cidade em

que Clare e Michael moravam.

A cidade adoecida estava repleta daquela fumaça negra. Seres

sombrios andavam por todos os lados, deleitando-se com aquele caos.

Humbert e Clare entraram na casa de Frederich. Ele e Frida estavam

deitados na mesma posição, envoltos por aquela fumaça escura.

− Porque eles estão assim? − Perguntou a menina espantada.

− Pensamentos ruins, minha filha, vão se acumulando no corpo e, com

o tempo transformam-se em enfermidade. Ao passo que pensamentos bons

de felicidade, amor e prosperidade curam toda e qualquer doença.

− Como podemos curá-los?

− Vocês podem trazer o conhecimento até eles, mas a cura pertence a

eles próprios. − Humbert fez uma pequena pausa − Venha querida, preciso

lhe mostrar mais algumas coisas.

Partiram novamente na velocidade do raio em direção à floresta. Bem

ao meio da mata havia uma cabana muito iluminada. Humbert parou bem na

frente de uma casinha.

− Esta é a cabana de Zara, − Disse enquanto apontava para a pequena

construção. − ela é uma mulher muito sábia. Tenho certeza de que você e

Mic encontrarão aqui as respostas de que precisam.

Clare aquiesceu com a cabeça.

− Humbert, qual é o principal ingrediente da pedra filosofal? − Perguntou

Clare, lembrando-se de seu teste com Hignus.

− A pedra filosofal, − Falou pensativo − capaz de transmutar chumbo

em ouro, ou ainda, servir como ingrediente para o elixir da longa vida. −

Humbert fez uma pequena pausa e continuou − Querida Clare, em muito

breve, essa questão ficará muito clara para você. Agora vamos, vou lhe

mostrar como chegar até aqui. Preste bastante atenção, pois você precisara

se lembrar disto amanha, quando acordar.

− Humbert.

− Sim.

− Muito obrigada por me ajudar a responder as perguntas de Hignus.

− Clare, minha filha, não fui eu quem te ajudou.

− Não? Então, quem foi? Eu senti que alguém me ajudava.

Humbert olhou com muito amor para a menina, depois olhou para a

floresta escura e falou.

− Foi ela quem te ajudou.

Clare olhou para onde Humbert apontava. De repente, uma pequena luz

surgiu no ar. Foi crescendo, crescendo e tomando a forma de uma mulher.

− MAMÃE, − Gritou Clare com amor infinito − mamãe, mamãe..

A menina correu a abraçou a mulher que retribuiu o abraço numa troca

intensa de amor puro e cristalino.

− Minha Clare, minha amada Clare. Eu realmente viajei para um lugar

feliz, mas posso te garantir que não é distante. Estou sempre com você. E

você também tem um lugar eterno no meu coração.

− Mamãe, você ouviu?

− Ouvi sim, meu amor, eu sempre vou te ouvir, porque o amor une as

pessoas para sempre!

Clare e sua mãe choravam de felicidade.

− Agora, meu amor, − Disse a mulher com extremo carinho − aprenda o

caminho até a cabana de Zara e depois você precisa descansar a mente.

Amanha será um dia longo e exaustivo.

***

O dia amanheceu com pássaros cantando por todo lado. Da fogueira

que Michael tinha acendido, sobrara apenas cinzas e umas poucas brasas.

Clare aproveitou as brasas para preparar um café para os dois. Michael

acordou e foi ajudar a irmã.

− Bom dia, Clare, − Disse com voz sonolenta − precisamos achar um

jeito de encontrar logo a casa de Zara.

− Bom dia, Mic! Não se preocupe com isso agora, tome o seu café. Eu

já sei como chegar até a cabana.

− Sabe?

− Sim, eu sonhei com o caminho essa noite.

Michael olhou desconfiado para Clare.

− É verdade, − Disse a menina − acredite em mim.

Clare contou sua experiência da noite anterior e explicou a Michael

como chegar à cabana. Na verdade, a casinha estava bem perto dali.

Os dois tomaram o café, comeram algumas frutas silvestres e seguiram

viagem. Em pouco menos de uma hora, Michael e Clare estavam em frente à

pequena casa. O rapaz estava estupefato pela velocidade com a qual Clare

encontrara a cabana. Aproximaram-se da porta um pouco tímidos.

A porta se abriu antes que batessem. De seu interior, saiu uma senhora

de uns sessenta anos de idade. Olhou para as crianças como quem examina

um tesouro.

− Vocês estão atrasados. − Disse em tom amigável. − Eu sou Zara,

sejam muito bem vindos em minha casa.

− Muito obrigada, − Respondeu Clare com delicadeza − eu sou Clare e

esse é meu irmão, Michael.

Zara olhou para os dois com bondade.

− A senhora sabia que viríamos? − Perguntou Michael.

− Sabe, meu filho, o ato de ver não está circunscrito aos olhos do corpo.

Eu vi que vocês estavam vindo. Vocês deviam ter chegado ontem. Por isso

disse que estão atrasados.

− É que tivemos alguns contratempos. − Respondeu o rapaz.

− Vamos, entrem. Vamos tomar o chá que preparei para vocês. Ao

entrarem, notaram que era uma casa simples, com poucos móveis, mas

muito bem cuidada. Na cozinha havia apenas um velho fogão a lenha, uma

mesa de madeira tosca e algumas cadeiras. Um gato dormia

confortavelmente em uma das cadeiras.

− Arthur, − Falou Zara com alegria, quase cantarolando − nós temos

visitas, acorde seu preguiçoso.

O gato de espreguiçou na cadeira, olhou para as crianças com olhar

sonolento, enrolou-se novamente e voltou a dormir.

− Não liguem para ele. − Disse a senhora com certo desapontamento. −

Ele é preguiçoso assim mesmo, mais é um bom gato e um grande

companheiro.

Zara colocou na mesa o bolo que havia preparado para as crianças e

serviu chá quentinho.

Há muito tempo que os dois não saboreavam um bolo ou outro doce

qualquer.

Enquanto comiam, Clare perguntou.

− Senhora, nossos pais estão muito doentes e um bom homem nos

disse que a senhora saberia como curá-los. A senhora pode nos ajudar?

− É, − Falou Michael com certo entusiasmo − nós trouxemos água.

− Que bom que trouxeram água. Vocês sabiam que a água tem o poder

de reter sentimentos?

Os dois manearam a cabeça negativamente.

− Pois é, quando se dá água para alguém, está, na verdade dando-lhe

seus sentimentos. E vejo que os seus sentimentos estão repletos de amor.

Assim eu posso garantir que a sua água é mais valiosa do que qualquer

tesouro da Terra!

Os dois estamparam um belo par de sorrisos.

− Senhora Zara, você pode curar nossos pais? − Perguntou Clare.

A mulher olhou com carinho e um pouco de tristeza para as crianças.

− Meus filhos, − Falou reticente − eu não posso curá-los.

Os olhos de Clare se encheram de lágrimas, lembrou−se das palavras

de Humbert sobre pensamentos.

− Então, não existem mais esperanças? − Perguntou Michael com

expressão de dor.

Zara olhou para os dois, respirou profundamente.

− Não sei exatamente. O que sei é que eu não posso curá-los. Contudo,

− Continuou Zara pensativa − acho que sei quem pode ajuda-los.

Os olhos de Clare brilhavam por conta das lágrimas, porém agora era

um brilho de esperança.

− Quem? − Perguntou a menina enxugando o rostinho delicado.

Zara olhou para os dois de forma enigmática.

− Alguém que não pertence a este mundo. − Falou, colocando energia

em cada palavra. − Para falarem com ele, vocês precisarão entrar no mundo

dos pensamentos. Tudo o que vocês conhecem por realidade deixa de existir

no mundo dos pensamentos. Lá, quem governa tudo é a imaginação.

− E como se chega lá? − Perguntou Michael determinado.

− Magia − Respondeu Zara com os olhos quase esbugalhados.

Michael engoliu em seco.

− Como exatamente? − Perguntou o rapazinho reticente.

Zara olhou para Arthur, que dormia profundamente.

− Eu preparo uma poção mágica, que os transportará para o mundo dos

pensamentos. E Arthur os levará até um grande amigo meu, Megálo Vivlio.

− Megálo Vivlio. − Repetiu Clare automaticamente.

− Trata−se de um grande sábio. Ele vem ajudando multidões há

milênios!

Clare olhou para Michael, e disse, corajosamente.

− Mic, eu vou me encontrar com este sábio.

− Vamos juntos, Clare, vamos encontrar a cura para nossos pais.

A casa dos livros

Zara passou o dia todo preparando uma estranha bebida. Foi só lá para

as cinco da tarde que a poção ficou pronta. Michael foi o primeiro a

experimentar.

Clare segurava um copo cheio da bebida, olhou para Zara.

− Senhora Zara, a senhora sabe qual é o principal ingrediente da pedra

filosofal?

− Pergunte a Megálo Vivlio ele te explicara com mais clareza.

Clare assentiu com a cabeça e sorveu toda a poção. Por fim, Zara

colocou uma dose no pratinho de água de Arthur, que bebeu tudo. O sabor

era muito agradável, algo parecido com suco de maracujá. Diante dos olhos

de Zara, os três foram, lentamente, desaparecendo até sumirem por

completo.

Michael e Clare sentiram uma leve tontura e a visão embaçou por

completo. Michael esfregou os olhos e, quando voltou a abrí-los não estavam

mais na casa de Zara. Olhou ao redor, naquele lugar não havia chão e Clare

flutuava ao seu lado.

Para onde quer que você olhasse, tudo estava cheio vida. Pessoas,

animais e coisas de todo tipo flutuavam e trocavam energias.

− Vamos crianças, − Disse Arthur com voz firme − precisamos encontrar

Megálo Vivlio o mais rápido possível.

− Você fala? − Perguntou Michael assustado.

− Sim, lógico que sim. − Respondeu Arthur um tanto irritado − Na terra,

nós gatos temos o nosso próprio idioma. Porém aqui, todos falamos a mesma

língua, a linguagem do pensamento.

− Quer dizer que aqui os animais podem conversar com as pessoas. −

Perguntou Clare.

Arthur fez uma carinha de impaciência.

− Aqui, menina, todos os animais podem conversar entre si. Além disso,

todas aquelas coisas que você pensava que eram inanimadas também

podem se expressar.

A poucos metros deles, passou uma maçaneta conversando com uma

chave:

− E lhe digo, Paul, não é nada fácil ser maçaneta. As pessoas estão o

tempo todo lhe puxando pelo nariz.

− Mas a vida de chave também não é nada simples. Você já viu o que

os bêbados são capazes de fazer conosco? Espremem a gente por toda

parte e, quando conseguem achar o buraco correto, giram nossa cabeça

depositando todo o peso deles sobre nós! E olha que alguns são bem

gordinhos…

Michael e Clare estavam maravilhados, por todos os lados, coisas e

animais, todos falando a mesma língua, todos se entendendo!

− Vamos crianças, − Resmungou Arthur − vamos logo encontrar o

velho. Sigam me, é por aqui.

Arthur saiu flutuando em uma direção. Clare e Michael entreolharam−se

e, pelo simples poder da vontade, flutuaram atrás de Arthur.

Passaram por vários lugares maravilhosos e brilhantes. Passaram

também por lugares lúgubres e escuros. A cada trecho da viagem, Clare e

Michael ficavam mais e mais impressionados com aquele mundo.

Por fim chegaram a uma cidadezinha. Pousaram em uma estradinha de

terra batida e puseram-se a caminhar. Vez por outra passavam cardumes de

belos peixes nadando no ar. Clare se encantou com uma pequena cachoeira,

cujas águas caiam para cima, dissolvendo-se em uma grande nuvem.

− Chegamos, − Falou Arthur com orgulho de si próprio − a casa dos

livros.

Bem à frente deles havia uma bela construção no estilo grego. Enormes

pilares adornavam o grande portal de entrada. Um pouco acima do portal,

uma mensagem, esculpida na pedra, alertava os visitantes: “Η γνώση δεν

είναι το τέλος, αλλά ο τρόπος με τον”. Estava escrito em grego, mas eles

conseguiam entender perfeitamente: “O conhecimento não é o fim, mas sim o

caminho”.

Arthur não fez cerimônia e já foi entrando. Logo depois do portal havia

um grande hall, repleto de estatuas gigantescas de homens e livros. A

história da literatura mundial era contada ali por aquelas magnificas estatuas

gigantes.

Clare ainda estava apreciando as estatuas quando um livro veio na

direção deles.

− Bom dia, crianças, neste belo amanhecer. Porque nos visitais? O que

desejam hoje aprender? − Perguntou o livro alegremente.

− Bem… − Articulou Clare, pega de surpresa.

− Pobre menina tímida, não consegue vocalizar. A propósito eu sou

Ilíada. E estou aqui para ajudar.

− Queremos falar com Megálo Vivlio − Disse Arthur com ares de pouca

paciência.

− Oh! belo gatinho. Interessado em filosofia. Mostrar−lhe−ei o caminho,

para a real sabedoria. − Disse Ilíada e pôs−se a caminho do interior da

construção.

Arthur fez cara enfadonha e seguiu o livro, Michael e Clare foram logo

atrás.

Atravessaram alguns corredores repletos de quadros, textos e citações.

Por todo lado, livros e mais livros, cada um com sua especialidade, iam e

vinham, trocando ideias e compartilhando conhecimento.

Clare, que adorava ler, estava maravilhada com aquele lugar. Alguns

livros, muito educados, cumprimentavam os visitantes. Outros, porém, os

ignoravam por completo. Alguns sorriam, outros faziam cara feia. A dualidade

do Universo estava presente no mundo do conhecimento.

Por fim, chegaram a um grande salão, aos moldes gregos, com

belíssimas estatuas em mármore branco.

− Aguardem por aqui enquanto Vivlio irei chamar. Ele está sempre por

ali. No jardim a meditar. − Falou Ilíada enquanto se encaminhava para um

jardim externo.

Arthur encontrou uma poltrona confortável, onde rapidamente subiu,

enrolou−se ao modo felino e dormiu.

− O que acha de tudo isso? − Perguntou Michael.

− Mic, é tudo muito belo, nunca imaginei que um lugar como esse

pudesse existir!

− Gostaria que nossos pais estivessem conosco. − Falou Michael, algo

entristecido.

Clare lembrou−se da ultima vez que vira seu pai. Totalmente largado na

cama, quase sem vida. Lembrou−se do sofrimento de sua cidade, de Frida.

Lembrou−se de como perdera sua querida mãezinha. Sem perceber foi

tomada por pensamentos tristes.

Olhou em seu redor, tudo estava escuro cinzento. Ela não estava mais

na casa dos livros, mas sim em um lugar onde todos lamentavam

profundamente por perdas e sofrimentos atrozes.

O que havia acontecido? Onde estava? Por quê estava ali? Quando

ouviu a voz de Humbert.

− Clare, Clare, minha querida, resista a esses pensamentos ruins.

Livre−se deles.

− Humbert, é você?

− Sim, minha querida, concentre-se em seu coração e na sua

capacidade de amar.

A menina colocou toda a atenção em seu coração. Lembrou-se de

Michael, queria estar com ele. De repente, toda aquela agonia acabou e ela

estava novamente na casa dos livros. Justamente quando Megálo Vivlio

entrava no salão.

A grande verdade

− Olá, meus amigos − Falou Megálo com carinho − sejam muito bem

vindas à minha humilde residência.

Clare ainda estava meio atordoada com o que acabara de lhe

acontecer.

− O senhor é Megálo Vivlio? − Perguntou confusa.

− Sim menina eu sou Megálo. − Respondeu com calma. − Existe algo

em que eu possa ser útil.

− Senhor Megálo, − Iniciou Clare com certa aflição. − nós estamos aqui

para pedir a sua ajuda.

Megálo era um velho livro, com as folhas já bastante amareladas pelo

tempo. Sua capa, revestida em couro, também mostrava os sinais de sua

idade.

O bom livro fixou seu olhar na menina com atenção.

− Sim.

− Nossos pais estão muito doentes, − Disse Michael − muitas pessoas

na cidade onde moramos contraíram uma estranha doença.

− Por favor, − Suplicou Clare − eles estão morrendo.

− Eu não sei se eu posso curá−los. − Falou o velho livro.

− Mas Zara falou que o senhor é mágico.

− Não, menina, eu não sou mágico. Você, Clare, é mágica! Você,

Michael é mágico! Um livro de aventura não tem a aventura em si. A

aventura, meus jovens, está mente do leitor no momento em que lê. O leitor

dá vida ao livro na exata medida em que mantém sua atenção na história.

Megálo Vivlio começou a andar em direção ao jardim.

− Venham, me acompanhem por favor. Olhem para essas flores. São

orquídeas, são belas e exuberantes, rainhas da delicadeza, da forma e do

perfume. Mas apenas para aqueles que pousam seus olhares e sua atenção

sobre elas. A grande maioria das pessoas não as vê.

Clare ficou olhando para uma bela orquídea que lhe chamara a atenção.

Começou a ver detalhes tão sutis que ficou impressionada.

− Vê, − continuou o bom livro − você cria realidade na medida em que

deposita a sua atenção.

− Não entendi. O que quer dizer com criar a realidade? − Perguntou

Clare com curiosidade.

− Clare, Michael − Falou pausadamente Megálo − tudo o que está fora é

igual ao que está dentro!

Clare fez sinal de que não havia entendido.

− Menina Clare, aquela coisa que você chama de realidade nada mais é

do que o reflexo dos seus pensamentos. Tudo que está ao seu redor é a

manifestação de todo o que você mais pede ao Universo!

− Eu não pedi que meus pais ficassem doentes. − Protestou com

delicadeza.

− Com certeza você não pediu por isso... conscientemente. Seus

pensamentos dominantes fizeram isso. Se seus pensamentos estiverem

focados na tristeza e na dor, você estará criando ao seu redor tristeza e dor.

Esta é uma lei imutável do Universo. Todos nós somos cocriadores do

cosmos. Por outro lado, se os seus pensamentos forem carregados com

amor, felicidade, alegria, sua realidade será repleta de saúde, bem estar,

amor felicidade.

− Então, o que podemos fazer para ajudar meus pais?

−Não podemos esquecer que seus pais também estão alimentando

esses pensamentos, e é por isso que estão doentes. Clare, Michael, os seus

pensamentos são mágicos! Eles se transformam em realidade! − Magálo

Vivlio fez uma pequena pausa e continuou − Seus pais estão em um estágio

muito avançado da doença. Assim, para curá−los precisaremos dividir as

nossas ações em duas fases. Primeiro, vamos tira−los da letargia, e essa é a

parte fácil. Depois iremos ensiná−los sobre a grande verdade da vida.

− Qual é a grande verdade da vida? − Preguntou Michael.

− A grande verdade é que todos somos eternos cocriadores. Cada um

de nós é uma obra prima do Grande Arquiteto do Universo. Cada pessoa é

um universo em si e todas as almas do cosmo são unas com o Criador.

Clare, você e o Universo são Um! Logo, para você, tudo é possível! Minha

filha, veja com seus próprios olhos.

Megálo estendeu a mão e tocou com o indicador na testa de Clare.

Numa fração de segundo, Clare se lembrou da grandeza de seu espírito, das

milhares de vidas em incontáveis planos de existência.

De repente tudo ficou claro. Ela era muito mais de pensava ser, a

sabedoria de seu Eu interior era maravilhosa e brilhante.

− Viu? − Perguntou Megálo com um sorriso nos lábios.

− Eu vi. − Disse atônita. − Mas, como posso fazer para que meu pai e

Frida vejam isso?

Michael que acompanhava a cena, sentiu que algo de diferente havia

acontecido com Clare, mas preferiu deixar para perguntar depois.

− Como disse, − Respondeu o velho livro − primeiro vamos tratar do

corpo físico, que está intoxicado com uma quantidade enorme de

pensamentos ruins. Depois, o que podemos fazer é tentar ensina−los sobre

esta verdade. E essa, minha filha, será a parte difícil.

− Como poderei ensinar algo tão subjetivo?

− Exemplo, menina Clare, exemplo. Controle os teus pensamentos, viva

a felicidade interior e ame intensamente. Faça com que cada momento de

sua vida seja um momento feliz. Comemore as vitórias com alegria e

entusiasmo. E não dê atenção às derrotas, ignore−as completamente. E

carregue sempre um sorriso consigo, ele enfeita seu rosto e ilumina a alma.

Você entende, agora, quando eu digo que não sei se posso curá−los? A cura

depende deles!

Clare ficou contemplando o vazio. Megálo tocou de leve no ombro das

duas crianças.

− Venham, meus amigos, vamos preparar um remédio para o corpo

físico deles.

O elixir da vida

Megálo Vivlio levou Michael e Clare para um laboratório onde haviam

vários instrumentos de alquimistas.

Rapidamente, o velho livro se pôs a trabalhar. Colocou uma porção de

ervas em um tacho com água e colocou tudo para ferver.

− Que remédio é esse? − Perguntou Michael curioso.

− Isso não é exatamente um remédio, − Respondeu Megálo prestativo −

é o elixir da longa vida. Ele pode alongar a vida de uma pessoa na terra por

séculos!

Megálo foi até uma estante onde havia uma pequena urna de ouro.

Apanhou a urna e a levou até uma mesa, abriu e tirou de dentro uma pedra

resplandecente na cor do ouro.

− Essa − Falou o velho livro erguendo o metal até a altura dos olhos. − é

a pedra filosofal.

− A pedra filosofal? − Michael e Clare perguntaram em uníssono.

− Sim, sob condições especiais, ela é capaz de transmutar chumbo em

ouro! Mas aqui, o uso será mais nobre. Usaremos a pedra filosofal para

preparar o elixir da longa vida. Um gole desse elixir deverá curar os corpos

físicos de seus pais.

− Senhor Megálo, − Perguntou Clare pausadamente. − qual é o principal

ingrediente da pedra filosofal?

O velho livro olhou nos olhos da menina. E disse com carinho.

− Muitos são os ingredientes para se fazer uma obra como esta. Mas

dois ingredientes se destacam e são tão importantes em conjunto que não dá

para considerar um sem o outro.

− E quais são esses ingredientes?

− A vontade e a fé. − Respondeu Vivlio − Clare, Michael, onde existir

uma vontade existirá um caminho. A vontade define as próximas criações da

alma e a fé materializa essas criações. Fé não é simplesmente acreditar, fé é

acreditar com amor, é transmutar pensamentos em realidade física.

O bom livro voltou ao trabalho e, depois de poucas horas, estava

satisfeito, com um frasco nas mãos.

− Crianças, − Disse com bondade − aqui está o remédio. Basta um gole

para cada um. Lembrem-se que a parte mais importante da cura vem depois,

quando terão que ensiná-los sobre a força dos pensamentos.

− Obrigada senhor Megálo Vivlio, eu nunca me esquecerei dos seus

ensinamentos. − Falou Clare com lágrimas nos olhos.

− Minha filha, o que mais faz um livro feliz é saber que o seu conteúdo

foi lido, entendido e colocado em prática. Agora vocês precisam ir, pois, pelos

meus cálculos, seus pais têm poucos minutos de vida.

Corrida contra o tempo

− Arthur, Arthur, acorde, por favor. − Falava Clare ao mesmo tempo em

que chacoalhava o felino.

Foi com muito custo que Arthur abriu os olhos.

− O que foi, menina, não vê que estou descansando? – Falou, mau

humorado.

− Precisamos ir, não temos muito tempo, por favor , vamos, vamos.

O gato esticou-se preguiçosamente.

− Está bem, está bem, eu já vou.

Clare agradeceu mais uma vez ao grande livro e saíram flutuando a

grande velocidade em direção ao local por onde haviam entrado no mundo

dos pensamentos.

Arthur conhecia aquele lugar como ninguém e, em pouquíssimo tempo,

eles estavam de volta na casa de Zara. Foi tão rápido que nem Clare nem

Michael perceberam como aconteceu a passagem de um mundo para o

outro.

− E então, encontraram o que procuravam? Perguntou Zara com

bondade.

− Sim, senhora, − Respondeu Clare − como a senhora havia dito,

Megálo Vivlio é muito sábio. Ele preparou o remédio para nossos pais.

− Que bom, − Falou Zara com certa apreensão. − só que vocês

precisam correr, pois o tempo deles está acabando.

Clare viu, através da janela que o dia já tinha amanhecido. Ela e

Michael haviam passado a noite toda no mundo dos pensamentos!

− Meu Deus, já é dia! − Exclamou a menina.

− O tempo no mundo dos pensamentos passa de forma diferente, às

vezes mais rápido e às vezes mais devagar. Tudo depende da nossa

atenção. − Disse Zara pensativa, em seguida abriu a porta e continuou −

Vamos crianças, não percam mais tempo, voltem para casa o mais rápido

que puderem.

Clare e Michael abraçaram Zara carinhosamente. Agradeceram e

partiram rumo a floresta

A Cura

Embora tenham passado a noite toda acordados no mundo dos

pensamentos, eles não estavam nem um pouco cansados.

Correram como puderam, tentando vencer a distância que os

separavam de casa no menor tempo possível.

A cidade estava exatamente como a tinham deixado dias atrás, triste,

vazia e doente.

Michael e Clare entraram quase que ao mesmo tempo pela porta da

pequena casa.

Frederich e Frida estavam deitados na mesma posição.

Clare colocou um gole do elixir na boca de Frida e fez ela engolir. Frida

fez um pequeno movimento com os lábios.

Clare seguiu então na direção de seu pai. Conforme se aproximava, foi

ficando mais e mais tensa. Frederich não estava respirando.

− Papai, − Falou Clare baixinho − papai…

Tocou de leve no rosto de seu pai. Frederich parecia estar morto.

− Papai, por favor, não me deixe…

Frida se moveu na cama, parecia estar acordando.

Clare fechou seus olhos e ouviu a voz de Megálo Vivlio em sua mente

“você cria a sua realidade”. Abriu os olhos, pegou o frasco e colocou um gole

na boca de seu pai. Foi com muito custo que ela conseguiu fazê−lo engolir.

Frida abriu os olhos.

− Michael − Disse atordoada.

− Mãe, que bom que você está melhor!

Frederich continuava imóvel. Michael se aproximou de Clare com

tristeza.

− Clare, eu sinto muito, talvez tenhamos chegado muito tarde.

A filha de Frederich olhou para o irmão com carinho.

− Não, Mic, não chegamos tarde, apenas está faltando mais um

ingrediente.

Clare aproximou−se do rosto de seu pai e deu−lhe um beijo na testa. E

disse em pensamento.

“Papai, você cria a sua realidade”

No mesmo instante, um tremor percorreu todo o corpo de Frederich e,

em seguida, abriu os olhos.

− Clare minha filha, eu tive um sonho horrível, ainda bem que acordei.

Epílogo

Clare e Michael saíram pelo bairro e salvaram muitas vidas naquele dia.

A poção que carregavam parecia não ter fim, pois o pequeno frasco nunca

esvaziava...

Depois de alguns dias, toda a cidade estava curada.

Um dia, ao se levantar pela manhã, Clare percebeu que o frasco estava

vazio.

Segurou o pequeno frasco na mão e pensou: Não precisamos mais de

você, não é verdade? Todos estão curados e não há mais necessidade de

remédio. Clare abriu um lindo sorriso e disse.

− A saúde não faz alarde, porque é o nosso estado natural.