agatha chrisue lady agatha, si a comerciante das letras · agatha chrisue / lady agatha, a...

10
AGATHA CHRISUE / Lady Agatha, a comerciante das letras Para quem encontra conforto espiritual nos retratos da época vitoriana, como Ana Lopes, esta autobiografia é imprescindível Agatha Christie tem 75 anos quando acaba de escrever a sua autobio- grafia Estamos em 1965, altura em que, incrivel- mente, as mulheres lutam para se sustentar a si próprias. Agatha acha isto horrível. Ela acabou por se sustentar a si própria, mas, como repe- te muitas vezes ao longo do livro, escre- ver "sucedeu naturalmente a bordar almo- fadas". "A posição das mulheres ao lon- go dos anos mudou decididamente para pior. Nós, mulheres, temo-nos compor- tado como idiotas. Clamámos pelo direi- to de trabalhar como os homens. Os homens, que de parvos não têm nada, aceitaram a ideia de boa vontade." Ora bem. Agatha acha que, depois de conquis- tado este "direito", as mulheres ficaram em de igualdade com as suas irmãs "das tribos primitivas que trabalham nos campos o dia inteiro" e reconhece o méri- to das mulheres vitorianas, que "tinham os homens onde os queriam". "Estabele- ceram a sua fragilidade, delicadeza e sen- sibilidade - a necessidade constante de serem protegidas e apreciadas. Levariam vidas miseráveis, servis, pisadas e opri- midas? Não é assim que as recordo." A verdade é que Agatha teve uma vida maravilhosa e, excepção feita aos praze- res do sexo pré-matrimonial, quase ne- nhuns lhe foram negados. Ao contrário do que acontecia em França e em Por- tugal, as mulheres daquele tempo em Inglaterra podiam passar muito tempo sozinhas com rapazes - a jogar golfe e a montar a cavalo, por exemplo. Nascida numa família de rendimentos médios, passou várias vezes ao longo da vida por dificuldades financeiras. Porém, essas dificuldades eram contornadas de manei- ra fantástica - a família alugava a casa no Devonshire e desatava a viajar. Agatha debutou no Cairo porque a mãe não tinha dinheiro para uma "season" em Londres. E vão as duas sozinhas e contentes para o Egipto: "As despesas de viajar deviam ser bastante reduzidas naquele tempo e o custo de viver no estrangeiro era facilmente coberto, ao que parecia, pela renda alta pedida por Ashfield." Agatha não foi à escola e nunca teve uma verdadeira preceptora. A sua for- mação é uma mix de ensino da aritméti- ca com o pai (que morreu quando ela tinha 11 anos), leitura dos clássicos ingle- ses com a mãe, muitas aulas de música (chega a compor uma ópera), muito tea-

Upload: others

Post on 11-Feb-2020

61 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

AGATHA CHRISUE /Lady Agatha,a comerciantedas letrasPara quem encontra conforto espiritual nosretratos da época vitoriana, como Ana SáLopes, esta autobiografia é imprescindível

AgathaChristie tem 75

anos quando acaba deescrever a sua autobio-

grafia Estamos em 1965,

altura em que, incrivel-

mente, as mulhereslutam para se sustentar a si próprias.Agatha acha isto horrível. Ela acabou porse sustentar a si própria, mas, como repe-te muitas vezes ao longo do livro, escre-ver "sucedeu naturalmente a bordar almo-fadas". "A posição das mulheres ao lon-

go dos anos mudou decididamente parapior. Nós, mulheres, temo-nos compor-tado como idiotas. Clamámos pelo direi-to de trabalhar como os homens. Os

homens, que de parvos não têm nada,aceitaram a ideia de boa vontade." Orabem. Agatha acha que, depois de conquis-tado este "direito", as mulheres ficaramem pé de igualdade com as suas irmãs"das tribos primitivas que trabalham nos

campos o dia inteiro" e reconhece o méri-to das mulheres vitorianas, que "tinham

os homens onde os queriam". "Estabele-

ceram a sua fragilidade, delicadeza e sen-

sibilidade - a necessidade constante deserem protegidas e apreciadas. Levariamvidas miseráveis, servis, pisadas e opri-midas? Não é assim que as recordo."

A verdade é que Agatha teve uma vidamaravilhosa e, excepção feita aos praze-res do sexo pré-matrimonial, quase ne-nhuns lhe foram negados. Ao contráriodo que acontecia em França e em Por-

tugal, as mulheres daquele tempo emInglaterra podiam passar muito temposozinhas com rapazes - a jogar golfe e a

montar a cavalo, por exemplo. Nascida

numa família de rendimentos médios,

passou várias vezes ao longo da vida pordificuldades financeiras. Porém, essasdificuldades eram contornadas de manei-

ra fantástica - a família alugava a casano Devonshire e desatava a viajar. Agathadebutou no Cairo porque a mãe não tinhadinheiro para uma "season" em Londres.E lá vão as duas sozinhas e contentes

para o Egipto: "As despesas de viajardeviam ser bastante reduzidas naqueletempo e o custo de viver no estrangeiroera facilmente coberto, ao que parecia,pela renda alta pedida por Ashfield."

Agatha não foi à escola e nunca teveuma verdadeira preceptora. A sua for-

mação é uma mix de ensino da aritméti-ca com o pai (que morreu quando elatinha 11 anos), leitura dos clássicos ingle-ses com a mãe, muitas aulas de música

(chega a compor uma ópera), muito tea-

tro, muitas aulas de dança, pintura (queodiava), botânica (outro horror), uma pas-

sagem por Paris, etc. "Acho que estoucontente por ter sido jovem naquela épo-ca. Havia uma grande liberdade na vidae muito menos pressa e preocupações."Ao longo das páginas, Agatha repete queera muito tímida, que não gostava da vida

social, que tinha imensas dificuldades dese expressar em público e uma enormefalta de confiança em si própria. Mas se

na autobiografia estão as horas de deses-

pero - a morte da mãe, um esgotamen-to nervoso e o divórcio por imposição do

primeiro marido -, o que passa é umavida aventurosa em que tudo pareciaincrivelmente simples. E sim, claro, apa-nhou com as duas guerras. Agatha expli-ca: "Lembramo-nos de ocasiões felizes

[...] Estranhamente, a dor e a infelicida-

de são difíceis de recapturar. Não querodizer exactamente que não me lembredelas - lembro, mas sem as sentir."

Agatha queria, em miúda, ser tratada

por Lady Agatha, mas é informada pelananny de que isso só poderia acontecer

se fosse filha de um duque ou de um con-de. Agatha é de classe média-alta e pro-fundamente pragmática. Se escrever veiona sequência de "bordar almofadas" (um

dia em que estava aborrecida e doente,na cama, a mãe desafiou-a a começar a

escrever), Agatha revelar-se-ia um pro-dígio de profissionalismo cru. Não, nãoescrevia como Graham Greene.

O conselho que dá aos candidatos aescritores não podia ser mais prático: oescritor potencial tem de ter em consi-

deração "o mercado para aquilo que pro-duz". Pode não o fazer, "e isso está mui-to bem se for um génio, mas o mais pro-vável é que seja um comerciante". Ou

seja, "há algo que acha consegue fazerbem e que gosta de fazer bem e quer ven-dê-lo bem". "Não é bom uma pessoa come-

çar a pensar que é um génio divinal - há

algumas pessoas que o são, mas muito

poucas. Não, nós somos comerciantes -comerciantes numa profissão boa e hones-

ta." Fabulosa Lady Agatha.

Clara MillerMÃE

Fred MillerPAI

Madge WattsIRMÃ

Monty MillerIRMÃO

HERCULE POIROT /O detective quenasceu numafarmácia de hospitalAlbert Finney fez um bom "Crime no Expresso do Oriente" ePeter Ustánov uma interessante "Morte no Nilo". Mas não háPoirot como David Suchet. Ana Sá Lopes acha que se pudessever a série, Agatha Christie ficava assombrada

Depois

de se estar vicia-do em David Suchet-Poirot, rever Peter Usti-

nov em "Morte no Nilo"é uma experiência desa-

gradável. Não é que SirPeter Ustinov não seja um muito razoá-vel Poirot, mas poder ter assistido à per-formance de David Suchet no papel deHercule teria sido delicioso para AgathaChristie. Ustinov não consegue nuncaatingir o ponto ridículo em que Agathapôs Poirot. Suchet é perfeito nas manias,na roupa, nos exageros, no descaradoauto-elogio permanente e na perfeitadose de humor britânico-belga. Os fãsda série da ITV iniciada em 1989 têmagora o quinto volume de filmes em DVD,um fantástico banquete com "Poirot e

os Quatro Relógios"; "Tragédia em TrêsActos"; "Poirot e o Encontro Juvenil" e

"Um Crime no Expresso do Oriente".E afinal tudo começou com uma apos-

ta. Madge, a irmã mais velha de AgathaChristie, apostou que ela nunca seriacapaz de escrever um romance policial.Madge tinha escrito contos, antes de se

casar, que foram publicados em revistasfamosas da época.

A ideia começa, de facto, a tomar for-ma durante a Grande Guerra, quandoAgatha Christie está a trabalhar na far-mácia do hospital. Como muitas outrasmulheres, Agatha alistou-se para contri-buir para o esforço de guerra e, depoisde uma época nas enfermarias, é trans-ferida para a farmácia, onde começa a

lidar com venenos. "Comecei a pensarno tipo de história policial que poderiaescrever. Uma vez que estava rodeadade venenos, talvez fosse natural que ométodo de eleição fosse a morte por enve-nenamento", escreve, na autobiografia.Imersa como estava na tradição de Sher-lock Holmes, começou a pensar que o

seu detective "teria de ter também umamigo que fosse uma espécie de pau--mandado". Mas quem poderia ser o

detective? "Depois lembrei-me dos refu-

giados belgas. Tínhamos uma colóniabastante grande de refugiados belgas a

viver na paróquia de Tor [...] Porque nãohavia o meu detective de ser um belga?,pensei."

Foi enquanto arrumava as coisas espa-lhadas no seu quarto em casa da mãe

que Agatha Christie pensou que o seu

detective belga "seria meticuloso, mui-to organizado". "Um homenzinho metó-dico. Conseguia vê-lo como um homen-zinho metódico, sempre a arranjar as

coisas e a gostar das coisas aos pares, a

gostar mais de coisas quadradas queredondas." Agatha já estava casada comArchie Christie, mas ainda vivia na casada mãe, no Devonshire. O casamentotinha sido decidido em cima da hora,quando Archie, que estava na Royal AirForce, teve uma licença militar. Foi umacerimónia-relâmpago, para a qual nemcomprou nenhum vestido nem sequer,escreve, arranjou tempo "para lavar a

cara ou as mãos".O detective seria então "um polícia apo-

sentado, não muito novo". Agatha reco-nhece que "aí cometeu um grande erro"."O resultado foi que o meu detective fic-tício já deve ter bem mais de 100 anos."Ficou definido que o homem "seria mui-to inteligente". "Teria celulazinhas cin-

zentas. Era uma boa expressão: tinha de

me lembrar dela."Durante todo o processo de criação do

seu detective, a imagem de Sherlock Hol-mes de Conan Doyle é quase omnipre-sente. "Podia ter um nome imponente -um daqueles nomes que Sherlock Hol-mes e a família tinham. Como se chama-va o irmão dele? Mycroft Holmes." Esta-va decidido que "seria um homem peque-no" e depois lembrou-se de Hércules.Mas não sabe por que motivo se lembroude Poirot. "Combinava bem, não comHércules, mas com Hercule."

A primeira história é "O Misterioso Caso

Agatha sempre achouque cometeu "umgrande erro" ao criarPoirot tão velho"O Assassinato deRoger Ackroyd" foiindirectamentesugerido pelo cunhadoDepois de consumadoo divórcio de ArchieChristie, embarca noExpresso do Orientede Styles". É enviado para a editora Hodder& Stoughon e imediatamente recusado.Só a quarta editora para onde é enviado,

a The Bodley Head, aceita publicá-10, dois

anos depois de o receber - mas obriga a

"várias mudanças". "'0 Misterioso Caso

de Styles' vendeu 2 mil exemplares, o

que não era mau na altura" e rendeu aAgatha 25 libras, pela publicação emfolhetim na "Weekly Times". Depois o

'The Sketch" encomenda expressamen-te uma série de 12 histórias de Poirot. Oeditor da revista manda fazer um dese-nho de Poirot "que não era muito dife-rente da ideia que eu fazia dele, embo-ra um pouco mais elegante e aristocrá-tico do que o visualizara".

Agatha Christie gostava do capitão Has-

tings. "Era uma criação estereotipada,mas ele e Poirot representavam a minhaideia de uma equipa de detectives. Ain-da estava a escrever na tradição de Sher-lock Holmes - um detective excêntrico,um assistente pau-mandado, com umdetective da Scotland Yard do género de

Lestrade, o inspector Japp."No "Crime no Campo de Golfe", Agatha

Christie começa "a ver o erro terrívelque cometera ao começar com HerculePoirot tão velho!" E chega a dizer umablasfémia: "Devia tê-lo abandonado e

recomeçado com alguém mais novo."Mas o sucesso dispara. Arranja um agen-te literário e muda de editora "O primei-ro livro que escrevi para eles, 'O Assas-sinato de Roger Ackroyd', foi de longe omais bem sucedido até à data; na verda-de, ainda hoje [a autobiografia tem a datade 1965] é recordado e citado. Encontreinele uma boa fórmula e devo-a em par-te ao meu cunhado, James, que algunsanos antes dissera, de forma algo abor-recida, ao acabar de ler um romance poli-cial: "Hoje em dia quase toda a gente aca-ba por ser um criminoso nos romancespoliciais... até o detective. O que eu gos-taria de ver era um Watson que se vies-se a revelar um criminoso."

Agatha encontrou aí "uma ideia extraor-dinariamente original", só que havia ummas. "A minha mente revoltava-se con-tra a ideia de Hastings assassinar alguéme, de qualquer forma, seria difícil fazê--lo de forma que o leitor não se sentisse

enganado." Depois houve o divórcio. É

praticamente logo a seguir que AgathaChristie decide assumir "o fardo da pro-fissão, que é escrever mesmo quandonão queremos, mesmo quando não gos-tamos muito do que estamos a escrever

e quando não o estamos a escrever par-ticularmente bem". Por exemplo, "sem-

pre odiei 'O Mistério do Comboio Azul',mas escrevi-o e enviei-o para a editora".

Agatha tenta até ao limite evitar o divór-cio, mas o marido está decidido. A filhaestava no colégio interno. "Não havianada a fazer, excepto decidir o que fazercomigo própria." É então que vai à Tho-mas Cook e compra um bilhete para o

Expresso do Oriente.

Capitão HastingsSÓCIO-AJUDANTE PAU-MANDADO

Hastings foi construído àsemelhança do caro Watson.A grande influência de Agathaé Sherlock Holmes. O capitãoé um pateta alegre e cordial.

Inspector JappCHEFE DA POLÍCIA

Também o inspector-chefeJapp, da Scotland Yard, é

inspirado no inspectorLestrade de Conan Doyle.Passa-lhe tudo ao lado.

Miss LemonSECRETÁRIA

É uma espécie de secretária

pessoal, governanta etambém detective quando é

preciso - é boa a investigararquivos, por exemplo.

Ariadne OliverESCRITORA

Pode ser um alter ego da

própria Agatha Christie. Aescritora de policiais, alegre e

charmosa, aparece apenasem algumas histórias.