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ANGÉLICA LOVATTO • 59 A utopia nacionalista de Hélio Jaguaribe — os tempos do Iseb* Angélica Lovatto** Resumo: O principal objetivo deste artigo é analisar o pensamento do cientista político carioca Hélio Jaguaribe no Iseb — Instituto Superior de Estudos Brasileiros, em sua fase marcadamente nacional-desenvolvimentista (correspondente ao governo Juscelino Kubitschek), assim como o período de sua produção pós- isebiana, no que diz respeito ao posicionamento frente ao golpe de 64. Pretende-se assim apresentar a utopia nacionalista de Hélio Jaguaribe, identificando sua perspectiva de classe e o paradoxo de seu discurso. Apresentar o pensamento nacionalista de Hélio Jaguaribe dentro do contexto das décadas de 50 e 60 no Brasil, implica localizar historicamente a constituição do Iseb — Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Este artigo, em primeiro lugar, situa o papel deste instituto e, em seguida, problematiza o pensamento de Jaguaribe ali produzido. Indicaremos também as posições assumidas pelo autor, após sua saída do Iseb, diante do golpe militar de 1964, entendendo esse momento como o divisor de águas de um conjunto de projetos nutridos pelas gerações brasileiras sumariamente abortados. A formação do Iseb O grupo de intelectuais que compunha o Iseb — Instituto Superior de Estudos Brasileiros, não tinha posições homogêneas sobre o desenvolvimentismo, embora tivesse um projeto político comum, isto é, a formulação da “ideologia do desenvolvimento” e, a partir daí, a tentativa de intervenção prática na realidade. Na verdade, o Iseb foi um instituto em que vários “nacionalismos” foram produzidos, com pontos em comum, mas marcado por uma dada heterogeneidade, dentro da qual se destaca o papel de Hélio Jaguaribe. A influência de Jaguaribe no Iseb foi decisiva, a começar pela criação do instituto, que nasceu de uma idéia acalentada anteriormente pelo * Artigo produzido a partir da dissertação de mestrado, de mesmo nome, PUC-SP, 1996. ** Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, professora do Departamento de Ciências Sociais da Fundação Santo André, membro do Neils e do Núcleo Emancipação do Trabalho — NET.

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A utopia nacionalista deHélio Jaguaribe — ostempos do Iseb*

Angélica Lovatto**

Resumo:

O principal objetivo deste artigo é analisar o pensamento do cientista políticocarioca Hélio Jaguaribe no Iseb — Instituto Superior de Estudos Brasileiros,em sua fase marcadamente nacional-desenvolvimentista (correspondente aogoverno Juscelino Kubitschek), assim como o período de sua produção pós-isebiana, no que diz respeito ao posicionamento frente ao golpe de 64.Pretende-se assim apresentar a utopia nacionalista de Hélio Jaguaribe,identificando sua perspectiva de classe e o paradoxo de seu discurso.

Apresentar o pensamento nacionalista de Hélio Jaguaribe dentrodo contexto das décadas de 50 e 60 no Brasil, implica localizarhistoricamente a constituição do Iseb — Instituto Superior deEstudos Brasileiros. Este artigo, em primeiro lugar, situa o papel desteinstituto e, em seguida, problematiza o pensamento de Jaguaribe alip r o d u z i d o .

Indicaremos também as posições assumidas pelo autor, apóssua saída do Iseb, diante do golpe militar de 1964, entendendo essemomento como o divisor de águas de um conjunto de projetosnutridos pelas gerações brasileiras sumariamente abortados.

A formação do IsebO grupo de intelectuais que compunha o Iseb — Instituto

Superior de Estudos Brasileiros, não tinha posições homogêneassobre o desenvolvimentismo, embora tivesse um projeto políticocomum, isto é, a formulação da “ideologia do desenvolvimento” e, apartir daí, a tentativa de intervenção prática na realidade. Na verdade,o Iseb foi um instituto em que vários “nacionalismos” foramproduzidos, com pontos em comum, mas marcado por uma dadaheterogeneidade, dentro da qual se destaca o papel de HélioJaguar ibe.

A influência de Jaguaribe no Iseb foi decisiva, a começar pela criaçãodo instituto, que nasceu de uma idéia acalentada anteriormente pelo

* Artigoproduzido apartir dadissertação demestrado, demesmo nome,PUC-SP, 1996.

** Mestre emCiênciasSociais pelaPUC-SP,professora doDepartamentode CiênciasSociais daFundaçãoSanto André,membro doNeils e doNúcleoEmancipaçãodo Trabalho —NET.

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autor e um grupo de intelectuais por ele liderado, que se reuniam, nosidos de 1952, no Parque Nacional de Itatiaia, no Rio de Janeiro.

Conhecido como “Grupo de Itatiaia”, esses intelectuais buscaramapoio, ainda durante a gestão de Getúlio Vargas, para a criação deum instituto de pesquisas que assessorasse o governo. Eles viamcomo urgente a elaboração de um projeto nacional-desenvolvimentista para construir a nação brasileira e odesenvolvimento do país. Desse primeiro esforço nasceu, em 1953,o Ibesp — Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política,diretamente vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, fruto deum trabalho de “convencimento” daqueles intelectuais junto aoMinistro da Educação na época, Cândido Mota Filho, no sentido dejustificar que o trabalho do instituto serviria aos interesses do Estadobrasileiro. Hélio Jaguaribe esteve à frente desses projetos, sendoreconhecido como seu “mentor intelectual”. No Ibesp já estavapresente o núcleo de intelectuais que viria a compor mais tarde oIseb: Cândido Mendes, Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré,Alberto Guerreiro Ramos e Roland Corbisier. Este últimoacompanhava Jaguaribe desde os tempos do IBF — Instituto Brasileirode Filosofia, com sede em São Paulo.1

Como secretário-geral do Ibesp, Jaguaribe dirigiu os Cadernosdo Nosso Tempo, em que publicou textos de fundamental importânciapara os desdobramentos de sua posterior produção teórica no Iseb.O texto mais importante desse período foi “Para uma política nacionalde desenvolvimento”, de 1956. Trata-se de um texto denso, ondeJaguaribe expõe, pela primeira vez de modo mais sistemático, umprograma de ação para a burguesia brasileira no sentido de orientá-la para uma intervenção concreta nos destinos da industrialização e“modernização” do país.

Porém, o Ibesp não se firmou. Apesar de estar ligado ao governofederal, não obteve o apoio que demandava para se constituir comoórgão de assessoramento governamental. A única estrutura com aqual o instituto contava era a dos Cadernos do Nosso Tempo,reduzindo o alcance político e intelectual daquela proposta,insuficiente para exercer a influência pretendida por seusfundadores. Essa insuficiência, no entanto, não pode obscurecer aimportância dessa publicação que registra a produção pré-isebiananão só de Jaguaribe, como também dos autores há pouco citados.As dificuldades do Ibesp também correram por conta de que ogoverno brasileiro passava nesse momento por uma transiçãobastante difícil, marcada pelo suicídio de Vargas e de todos osdesdobramentos políticos até a posse de Juscelino Kubitschek.

1. Jaguaribe sedesligou do IBFem 1952, dada

a tendênciaintegralista devários de seusmembros, que

se contra-punha à afir-

mação indus-trializante porele defendida.

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O Iseb, ao contrário de seu antecessor Ibesp, foi criado a partirde uma perspectiva nacional, com toda a infra-estrutura necessáriapara uma proposta de tal porte, em 14 de julho de 1955, através doDecreto nº 57.608, sob o governo Café Filho. Com um estatuto melhordefinido, o Iseb, em princípio, tinha tudo para superar o Ibesp naexpectativa de corrigir suas limitações e projetar, de fato, umaproposta nacional-desenvolvimentista para o Brasil.

“Pela ordem natural das coisas”, como afirmou Nelson WerneckSodré (1978: 16), a direção do Iseb deveria ser de Hélio Jaguaribe,dada sua decisiva influência junto ao grupo. Novamente era ele ointelectual à frente desse empreendimento. Apesar de não ter ficadooficialmente na direção do instituto, que coube a Roland Corbisier,Jaguaribe continuava na liderança intelectual do projeto. Ele só nãoocupou oficialmente a direção devido ao seu cargo na SiderúrgicaFerro e Aço, de Vitória. Na verdade, a constituição de um institutonesses moldes vinha sendo um propósito perseguido por Jaguaribehá anos.

O Iseb possuía vários departamentos e, apesar de suasubordinação direta ao Ministério da Educação e Cultura, foiconcebido como um instituto que gozasse de autonomiaadministrativa. Além disso, segundo seu “Regulamento Geral”, aatuação dos intelectuais ali presentes contava com liberdade depesquisa, de opinião e de cátedra. O departamento de Política ficousob a incumbência de Hélio Jaguaribe. Cândido Mendes ficouresponsável pelo departamento de História; Álvaro Vieira Pinto, deFilosofia; Evaldo Correa Lima, de Economia; Guerreiro Ramos, deSociologia. Nelson Werneck Sodré, embora não ficasse com aresponsabilidade direta sobre qualquer dos departamentos, faziaparte desse grupo de “isebianos de primeira hora” ou “isebianoshistóricos”,2 que formava o núcleo central do Iseb.

Nos textos isebianos de Hélio Jaguaribe está presente toda umapreocupação com a possibil idade de um desenvolvimentoautônomo do capitalismo no Brasil e com o papel desempenhadopela burguesia brasileira nesse processo. São desse período as obras:A Filosofia no Brasil (1957), Condições institucionais dodesenvolvimento (1958a) e O nacionalismo na atualidade brasileira(1958b), l ivro mais importante dessa fase. Esta polêmica publicaçãomotivou, inclusive, a saída do autor deste instituto em abril de 1959,fruto de uma crise interna que atingiu o instituto e que teve comoprotagonista, além do autor, o sociólogo Guerreiro Ramos,justamente em torno da polêmica questão do monopólio estatal dopetróleo e da Petrobrás, debate que mobilizava o país de maneira

2. Assimdenominadospor CaioNavarro deToledo, em seuimportantetrabalho Iseb:fábrica deideologias.(1982).

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efervescente naquele momento histórico. O problema central era aparticipação — ou não participação — do capital estrangeiro naeconomia nacional. Jaguaribe declarava-se favorável à util ização decapitais estrangeiros na exploração do petróleo brasileiro, dizendoque, desde que disciplinado, poderia trazer o desenvolvimento deque necessitava a nação. Essa posição feria imensamente asposições nacionalistas à época.3

O Iseb foi extinto em abril de 1964, pelo Decreto nº 53.884, de 13de abril de 1964, assinado por Paschoal Ranieri Mazzili, que respondiapela Presidência nos primeiros momentos da intervenção militarque havia derrubado o presidente João Goulart.

A histór ia do Iseb caracter izou-se, assim, por duas fases bemdist intas: uma marcadamente nacional-desenvolv iment ista, quecoincide com o período juscel inista e que se encerra com a cr iseinterna, marcada pelo desl igamento de Hél io Jaguar ibe; e outramarcada por uma maior radical idade na defesa das posiçõesnacional istas e que acompanhou, por assim dizer, o movimentopelas Reformas de Base, durante o governo Goulart . Não só ogrupo de intelectuais desse segundo período é di ferente, comotambém o t ipo de publ icação que é produzida. São cr iados osCadernos do Povo Brasileiro, que desde os temas até a formatação,di ferenciavam-se das publ icações anter iores. Os Cadernos eramem formato de bolso, com o objet ivo de que fossem l idos pelomaior número possível de pessoas e que não f icassemcircunscr i tos a uma el i te. Algumas vezes escreviam para osCadernos os própr ios mi l i tantes dos movimentos queendossavam as Reformas de Base, como Francisco Jul ião, queescreveu “Que são as Ligas Camponesas?” (1962). Os temas eram“explosivos”, aspecto faci lmente perceptível pelos t í tu los, comopor exemplo: “Quem é o povo no Brasi l?” (1962), de NelsonWerneck Sodré; “Por que os r icos não fazem greve?” (1962), deÁlvaro Vieira Pinto; “Quem faz as leis no Brasi l?” (1963), de OsnyDuarte Pereira; “Quem dará o golpe no Brasi l?” (1962), deWanderley Gui lherme; “Como ser ia o Brasi l social is ta?” (1963),de Nestor de Holanda; “Como atua o imper ia l ismo ianque?”(1963), de Sylv io Monteiro. Estes t í tu los permitem af i rmar adi ferença de tratamento que os problemas brasi le i ros recebemnessa fase f inal do Iseb.

Essa demarcação das duas fases do Iseb é importante parapontuar a produção de Hélio Jaguaribe em suas devidas dimensões,já que se insere na primeira fase deste instituto, de tendêncianacional -desenvolv iment is ta .

3. Para ummaior

aprofundamentosobre a criseinterna que oIseb viveu a

partir dapolêmica queenvolveu esta

publicação verLovatto, 1996:

14-18.

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O pensamento de Hélio Jaguaribe

A fase isebiana.

A produção teórica de Jaguaribe, no final dos anos quarentapara o início dos anos cinqüenta, caminhou de uma preocupaçãovoltada à reflexão fi losófica — que corresponde ao período doInstituto Brasileiro de Filosofia — para o estabelecimento dosparâmetros de uma intervenção prática na realidade brasileira —marcada por sua presença já no Ibesp e Iseb. Esses dois momentosnão estão desligados mas, ao contrário, as reflexões sobre anecessidade de produção fi losófica, notadamente do nascimentode uma filosofia brasileira, estão diretamente relacionadas com aestruturação de um programa para a concretização dodesenvolvimento, o que exigiria a constituição de uma ideologianacional autêntica e representativa. Numa palavra, pela articulaçãodesses dois planos é que seria possível o nascimento de umaproposta nacionalista para o Brasil.

O nascimento da f i losofia brasileira e o programa para odesenvolvimento articulam-se no discurso de Jaguaribe paraassegurar a ultrapassagem do estágio de subdesenvolvimento dopaís. O atraso brasileiro estaria ligado à ausência de uma culturabrasileira autêntica. Neste sentido, a fi losofia — concebida comoautoconsciência da cultura — seria a base sobre a qual nasceriauma nova cultura no país.

Jaguaribe atribui as razões dessa inautenticidade cultural aopassado colonial do país. A ausência de condições materiais eestímulos espirituais — necessários ao desenvolvimento de umaautêntica reflexão filosófica — deviam-se à presença lusitana. O paísteria ficado tempo demais sob a influência de Portugal, que nãoexperimentou de modo fecundo a situação de crise que a Europaviveu a partir do Renascimento e que foi o fator essencial para oadvento de respostas culturais novas naquela parte do mundo. Acrise estrutural que colocou em dúvida a crença no cristianismoteria sido o grande motor das mudanças experimentadas a partirdo século XV: crenças antigas foram colocadas à prova, dando lugara novas crenças. Excluído dessa dialética das crenças, por suasituação colonial, o Brasil não teria experimentado uma situação decrise, f icando privado das condições de desenvolver uma culturaprópria e original.

Para Jaguaribe esse teria sido o divisor de águas entre países quese constituíram como nações e aqueles que ficaram impossibilitadosde construir sua nacionalidade. O movimento verificado a partir do

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Renascimento — que foi provocando lentamente unificaçõesnacionais no território europeu — deu origem a uma culturaocidental autêntica e original, fruto das respostas que os homensderam frente à crise estrutural das crenças acalentadas na IdadeMédia. O Brasil teria, portanto, que perseguir a conquista de suainserção nesta cultura ocidental, sem assimilar acriticamente o queviesse dela, mas construindo sua própria originalidade cultural deacordo com aqueles parâmetros. Este fato não ocorreu e o Brasil,ainda no século XX, se via diante de dois fenômenos bastantecomprometedores para sua ocidentalização. O país estaria paralisadoentre dois extremos: a assimilação acrítica de outras culturas, queresultava numa alienação cultural; e a valorização excessiva de suasraízes culturais mais primitivas, a despeito de com isso estarpreservando sua originalidade — o nativismo primário. A mediaçãoperseguida por Jaguaribe teria que se pautar pela construção denovas crenças, vale dizer, de uma nova cultura de caráter ocidental,que demandaria, por sua vez, a construção de uma ideologianacional. Aqui se localiza o centro de sua proposta, haja vista que aeficácia histórica dessa ideologia seria a objetivação do nacionalismoenquanto programa de desenvolvimento para o país.

O conteúdo desta nova ideologia surgida a partir da crise docristianismo foi, segundo o autor, a democracia burguesa e aeconomia capitalista. Sendo assim, seriam esses os moldes ocidentaisnos quais o Brasil precisaria trabalhar e se ajustar. Caso contrário,suas possibil idades de desenvolvimento estariam comprometidas.

A proposta nacionalista de Hélio Jaguaribe para o Brasilpressupunha que todas as classes sociais participassem do processode instauração do desenvolvimento, porém a direção caberia aapenas uma classe: a burguesia industrial. Trabalhando seusconceitos a partir da dualidade estrutural que contrapõe o modernoao arcaico — como grande parte dos pensadores da época — oautor propõe que a modernização do país seria tarefa de todos ossetores da sociedade brasileira reunidos por intermédio de seusinteresses situacionais de classe. O que haveria de fato seria umaluta interna entre os setores arcaicos — leia-se sem interesse naindustrialização — e setores modernos dentro de cada classe. Emfunção disso, o autor defende mais a necessidade da luta dentro decada classe como meio para fazer valer a vitória da modernizaçãodo que a luta entre as classes, uma vez que em estágios desubdesenvolvimento, como o do caso brasileiro, as classes sociaisencontrar-se-iam unidas pelo mesmo interesse — o dodesenvolvimento. Jaguaribe, portanto, atribui um caráter universal

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a um desenvolvimento particular que é do capitalismo, semquestionar em momento algum a quem os interesses de talindustrialização corresponde, evidenciando-se sua perspectivateórica burguesa.

Além de precisar criar uma cultura original, inserida na culturaocidental e de reunir todas as classes em torno do objetivo comum dodesenvolvimento, o Brasil precisaria superar sua baixa capitalização. Opaís era atrasado porque subcapitalizado e estaria impedido por todasorte de estrangulamentos — culturais, sociais, econômicos e políticos— a alcançar seu desenvolvimento nacional. Por isso o conteúdo daproposta nacionalista teria que dar conta de apresentar o instrumentonecessário à superação desse atraso e deveria ser um nacionalismo defins e não um nacionalismo de meios. Devido à baixa capitalização dopaís importaria, em primeiro lugar, o aumento de sua poupança internaatravés da utilização de capitais estrangeiros, pois esta era a maneiramais rápida de alcançar o desenvolvimento nacional. A finalidade seriao desenvolvimento e para isso o meio necessário não só poderia, comodeveria fazer uso dos capitais estrangeiros. Dentro do debate da décadade 50 que opunha nacionalismo a “entreguismo”, a proposta deJaguaribe era imediatamente identificada ao segundo. Não consideravao capital estrangeiro como “força oposta” aos interesses nacionais,mas apenas como “força externa”.

Mas a proposta nacionalista do autor, que procura articular asuperação de todos os estrangulamentos presentes na vidabrasileira, só se completa com a questão política. É na polít ica —portanto no estado — que estaria a chave para a resolução doconjunto desses estrangulamentos, pela constituição de condiçõesinstitucionais do desenvolvimento.

A tese central defendida por Jaguaribe era a de que o Brasilprecisaria de uma reforma política, através da substituição de umestado cartorial por um estado funcional. O estado cartorial era aexpressão de um descompasso entre quem dominava a economiae quem dirigia politicamente o país, reproduzindo tão somente umapolítica de clientela, reiteradora do atraso brasileiro. Esse estado,que abrigava todos os setores arcaicos da sociedade e eracontrolado pelos representantes mais tradicionais da burguesia,encontrava-se em oposição aos setores modernos que viam seusprojetos de industrialização obstaculizados e inviabilizados. Aconstituição de um estado funcional implementado através de umapolítica ideológica — vale dizer, de uma ideologia nacional — seriamos instrumentos institucionais dotados de eficácia e objetividadepara a promoção do definitivo desenvolvimento do país.

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O nacionalismo de Jaguaribe pode ser sintetizado como oesforço de construir o instrumental necessário para orientar umaintervenção prática da burguesia industrial na realidade brasileira,transformando o estado cartorial, superando os estrangulamentospolíticos que caracterizavam o país, ultrapassando os pólos arcaicose atrasados da sociabilidade e trazendo à tona a modernidade, porintermédio da instauração da industrialização e, com isso, o definitivodesenvolvimento brasileiro.

Mais tarde, precisamente em 1962, no primeiro texto publicadoapós sua saída do Iseb — que consideramos aqui umdesdobramento natural de sua fase ainda isebiana precocementeinterrompida —, Jaguaribe retoma e desdobra as diretrizes do estadofuncional, passando a denominá-lo estado neobismarckiano.4 Seriaum tipo de estado que, em função do atraso brasileiro — e para suasuperação — teria que ser forte e autoritário, planejador eintervencionista. Mas isto não significava que devesse ser despóticoou ilegítimo. À burguesia industrial caberia o papel de direção, umavez que, definida pelo autor como classe mais autêntica erepresentativa dos interesses da industrialização, seria a única quepoderia levar a cabo a constituição desse tipo de estado, o que lheconferiria uma de suas mais importantes características: alegi t imidade.

Com esta proposta, Jaguaribe pretendia garantir odesenvolvimento capitalista e evitar qualquer possibil idade de umaalternativa socialista para o Brasil, haja vista o momento de guerrafria que o mundo então atravessava. O combate de Jaguaribe aosocialismo tinha como argumento o fato deste não fazer parte dacultura mais autêntica produzida até então pela humanidade, acultura ocidental. Tal possibil idade representaria um “perigo” cadavez maior na medida em que o socialismo, no seu entender, teriacontrariado as previsões de Marx, instaurando-se nos pólos maisatrasados, onde se verificou uma rápida superação do atraso. Istoteria seduzido alguns países, que acabaram por pagar um preçoalto demais, com o surgimento de governos despóticos, i legítimos ecerceadores da liberdade individual, como os do bloco soviético.De novo, a perspectiva burguesa presente.

Além de captar o atraso brasileiro, não escapa da análise deJaguaribe a crise em que se encontravam, naquela altura do séculoXX, as instituições democrático-burguesas, chamando a atenção parao fato de que a crise brasileira estaria inserida numa crise maior, a“crise do nosso tempo”. O “nosso tempo” estaria marcado, em meioà guerra fria, tanto pelas limitações do socialismo do bloco soviético,

4. O conceitode neobis-

marckismo sóaparece

plenamenteconfigurado no

texto pós-isebiano

Desenvolvi-mento

econômico edesenvolvi-

mento político(1962). É com

essatematização

que ganhacontinuidade a

visão demundo do

autor nesseperíodo, pois oconteúdo dado

ao neobis-marckismo é atradução mais

acabada doestado

funcionaldefendido ao

longo de toda adécada de 50

em seus textosisebianos,produção

teóricaabruptamenteinterceptada

por sua saídado Iseb, em

1959. Emsuma, a defesado estado neo-bismarckiano éa consumação

da ideologianacionalista de

HélioJaguaribe.

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quanto pela falência do liberalismo. Jaguaribe, que deixava bemclaro não querer o socialismo no Brasil, passa a defender ainstauração do “capitalismo possível nas condições do nosso tempoe do nosso país”. Ele adota uma espécie de posição intermediáriaou terceira via de desenvolvimento: nem o liberalismo puro esimples, nem o socialismo, mas uma socialização do capitalismo.Este é um dos principais aspectos do nacionalismo de HélioJaguar ibe.

A socialização do capitalismo seria uma forma de distribuir asriquezas produzidas pelo sistema capitalista de produção, sem terque optar pela socialização de um modelo oposto ao capitalismo,no caso, o socialismo. Desse modo, não se sairia do circuito ocidental,se implementaria o capitalismo possível no país e não se correria orisco do Brasil entregar-se ao bloco soviético. O Brasil t inha queencontrar um caminho “próprio e original” — dentro da culturaocidental — o que não descartava o capitalismo, nem a influênciados Estados Unidos. Porém, para Jaguaribe tampouco poderia opaís se entregar de modo inconteste ao satelitismo norte-americano,pois isso só reiteraria sua condição “colonial”. Um país que quisesseconstruir sua própria nacionalidade não poderia deixar de realizaruma política externa conveniente ao contexto da guerra fria, mascom o cuidado de não perder sua própria identidade e garantir suaautonomia. Com essa posição, Jaguaribe demarcava sua diferençaem relação àqueles que, à época, defendiam explicitamente oimperialismo americano.

No entanto, para que toda essa proposta nacionalista deJaguaribe pudesse se efetivar, dependeria da intervenção decisivade uma classe: a burguesia industrial. Por isso, o grande problemaresidia na criação das condições para que ela assumisse seu papel,do qual parecia não ter consciência ou não apresentava capacidadepara realizar. Jaguaribe reconhece que a própria burguesia industrialtem dificuldade de implementar os esforços que dela dependempara a modernização e o desenvolvimento econômico. Reconheceque a primeira classe que precisa ser “educada” pela políticaideológica é a própria burguesia. Daí a função dos intelectuais doIseb de formular essa política ideológica, na qual Jaguaribe tanto seempenha. Depois disso é que a burguesia realizaria o esclarecimentojunto às demais classes no movimento de união de todos osinteresses situacionais de classe.

É interessante como o autor aponta uma das característicashistóricas fundamentais da burguesia no Brasil que é suaincompletude de classe. Ao mesmo tempo que reconhece com

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realismo essa questão, alimenta a ilusão de que a burguesia teriacondições de superar sua debilidade. Reconhece também aimpossibil idade da constituição de um estado liberal-democráticono Brasil, propondo como único meio de superar o atraso brasileiro,um estado forte e autoritário. Jaguaribe captura questões essenciaisdo caso brasileiro, mas sua perspectiva teórico-política burguesa olimita para estabelecer as bases de uma superação efetiva. O autorprocura nos processos europeus de constituição das nacionalidadesum referencial para o caso brasileiro. Bismarck — e,conseqüentemente a unificação alemã — seria o modelo compatívelpara se pensar as possibilidades do desenvolvimento brasileiro, umavez que também era um país marcado pelo atraso na afirmação desua nacionalidade e desenvolvimento industrial.

Inspirado por ta l perspect iva, embora assuma — diga-se depassagem, com um forte senso de real idade para a época — aimpossibi l idade da burguesia industr ia l brasi le i ra ser democrát icadentro das condições do atraso brasi leiro, o l imite da perspect ivade classe de Jaguar ibe é revelado quando anal isa as condiçõesdo Brasi l , na segunda metade do século XX, sem as dist inçõessingulares que o di ferenciavam das condições viv idas pelaAlemanha, no f inal do século XIX. O “bismarckismo” do estadoalemão real izou a uni f icação nacional da Alemanha nummomento anter ior às disputas imperial istas, alcançando, inclusive,na seqüência, uma posição de país imper ia l is ta dentro docapi ta l ismo mundial . A i lusão de Jaguar ibe era acredi tar que areprodução do bismarckismo no Brasi l , através da montagem deum estado neobismarckiano poder ia nos colocar dentro docapi ta l ismo mundial , no mínimo, numa posição autônoma eindependente, quando isso já não era mais possível dentro doestágio em que as lutas imperial istas se encontravam. Entretanto,mesmo em meio a essa i lusão, o que é notável em Jaguaribe é ofato de ter conseguido romper (sem cair no erro também muitocomum daquela época — tanto do pensamento conservadorcomo da própr ia esquerda) com a ident i f icação automát ica entreos processos revolucionários burgueses da França e da Inglaterra,no tocante à necessidade de transição de um inexistente“feudal ismo” brasi le i ro para o “verdadeiro” capi ta l ismo.

Para melhor estabelecer as conexões com o pensamento deHélio Jaguaribe, assim como evidenciar os limites de sua perspectivade classe e de suas propostas para o país, torna-se imprescindívelassinalarmos o contexto histórico que envolveu a particularidadeda constituição do capitalismo brasileiro.

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A problemática das origens do capitalismo brasileiro.

Diferentemente dos casos clássicos — onde foram geradascondições para a afirmação plena do capital industrial, o chamado“verdadeiro capitalismo” — no Brasil, o capital industrial sempreesteve obstaculizado por uma estrutura atrasada anterior,ressentindo-se das condições que pudessem possibil itar suaafirmação. No Brasil, não se deu o caminho clássico de transiçãopara o capitalismo a partir do feudalismo, como ocorreu na Europa.Na historiografia brasileira foi Caio Prado Júnior que iniciou, nocampo do marxismo, uma tradição no pensamento brasileiropreocupada com a identificação da particularidade da constituiçãodo capitalismo no Brasil.

Para Caio Prado a “modernização” da estrutura agrária do Brasilnão se deu como nos moldes “clássicos” e nem mesmo como emalguns casos “não clássicos”, por exemplo, a Alemanha. No Brasilhouve uma adaptação do latifúndio ao capitalismo de uma formatotalmente peculiar, dentro de uma exploração rural de tipo coloniale não a partir de um domínio rural de tipo feudal. Aqui o latifúndioesteve voltado desde as origens para a produção de valores de trocapara o mercado externo e fundado em relações escravistas det raba lho .

O trabalho de Caio Prado Júnior, mesmo isolado durantedécadas, passou a obter, a partir de um dado momento, no campodo marxismo, a adesão de alguns intelectuais. Foi na década de 60que Carlos Nelson Coutinho, autor de inspiração lukacsiana,começou a desenvolver uma reflexão na direção de identificar agênese do capitalismo brasileiro, aproximando-a, inicialmente daanálise sobre a via prussiana.5 Dentro da mesma tradição, J. Chasintratou a particularidade brasileira como um capitalismo de extraçãocolonial e nesse sentido sugere o que denomina de via colonial.6

Dentro desta tradição marxista, Carlos Nelson Coutinho, ao falarsobre Caio Prado Júnior afirma que “Um dos principais méritos dessacaracterização caiopradiana da natureza de nossa formação socialmoderna, definida objetivamente como um capitalismo ‘não clássico’,foi precisamente o de permitir ao historiador apresentá-la comocapitalista. Essa não era uma posição consensual entre os marxistas,pelo menos até os anos 60. Ignorando a problemática das formas‘não clássicas’ de transição para o capitalismo (e as peculiaridadesda formação capitalista que dela resultam), os marxistas brasileiros— sobretudo os ligados ao PCB — afirmaram durante muitos anosque o Brasil era um país ‘semifeudal’ e ‘semicolonial’, que sedefrontava ainda, por conseguinte, com a tarefa de efetuar uma

5. “No Brasil,só em anosmuitosrecentes, oproblema davia prussianamal queaflorou, ealgunsraríssimospesquisadoresvoltaram suaatenção paraela, em buscade referencialpara efeito daanálise docaso brasileiro.Nestediapasão,Carlos NelsonCoutinho,assumindoexplicitamentea trilha teórico-metodológicalukacsiana,tem-sedestacadocomo pioneirofértil e bemsucedido, comespecialdedicação nocampo daanáliseliterária”(Chasin, 1978:626).

6. Ler arespeitoChasin, 1978:cap. IV.

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‘revolução democrático burguesa’ ou de ‘libertação nacional’. Estavaimplícita a noção — falsa — de que para ser plenamente capitalistaera preciso seguir uma via ‘clássica’ de transição e apresentar todosos traços de um capitalismo igualmente ‘clássico’. Os inúmerosequívocos a que isso conduziu, tanto na teoria como na prática, sãoapontados por Caio Prado em A revolução brasileira” (Coutinho,1989: 120).

Preocupado em determinar a particularidade do capitalismobrasileiro, Coutinho explica como Lenin, com base na análise deMarx e Engels sobre o caso alemão, formulou o conceito de viaprussiana para não cometer o erro de transpor mecanicamente paraa Rússia a análise dos casos clássicos de transição para o capitalismo.Lenin se atém ao caso alemão, tentando entender seu atraso emrelação à Inglaterra e à França — assim como as diferenças frente aocaso norte-americano — para, na seqüência, capturar ascaracterísticas próprias e particulares do atraso russo. Na linha deLenin para a apreensão do caso russo, para Coutinho, embora hajauma maior proximidade do caso brasileiro com a via prussiana, elanão pode ser transposta literalmente para explicar nossaspeculiaridades, mas aproxima-se e ajuda a elucidar o capitalismo dopaís. Ele afirma que “aqui, a burguesia se ligou às antigas classesdominantes, operou no interior da economia retrógrada efragmentada. Quando as transformações políticas se tornavamnecessárias, elas eram feitas ‘pelo alto’, através de conciliações econcessões mútuas, sem que o povo participasse das decisões eimpusesse organizadamente a sua vontade coletiva. Em suma, ocapitalismo brasileiro, ao invés de promover uma transformaçãosocial revolucionária — o que implicaria, pelo menosmomentaneamente, na criação de um ‘grande mundo’ democrático— contribuiu, em muitos casos, para acentuar o isolamento e asolidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo de umamesquinha vida privada” (Coutinho, 1967: 142).

Na trilha aberta por Caio Prado Júnior e na esteira de CarlosNelson Coutinho, para J. Chasin, as semelhanças do caminhoprussiano que mais chamam a atenção para o caso brasileiro, taiscomo, a presença da grande propriedade rural — que no caso alemãoé proveniente do feudalismo do quadro europeu, ou seja, tem outragênese histórica — e a lenta expansão das forças produtivas, sãoalusões insuficientes para justificar uma análise simplesmentecomparativa, principalmente quando se leva em conta que, naAlemanha, a industrialização ocorre no final do século XIX, com achance de inserir-se ainda no bloco de países imperialistas. Por outro

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lado, “no Brasil a industrialização principia a se realizar efetivamentemuito mais tarde, já num momento avançado da época das guerrasimperialistas, e sem nunca, com isto, romper sua condição de paíssubordinado aos pólos hegemônicos da economia internacional.De sorte que o ‘verdadeiro capitalismo’ alemão é tardio, enquanto obrasileiro é hipertardio” (Chasin, 1978: 628). Para o devidoentendimento do caso brasileiro, o caminho prussiano pode sertomado apenas como referência na medida em que forneceelementos assemelháveis que precisam ser pensados dentro daparticularidade do Brasil e que serviu de base aos pensadoresbrasileiros que realizaram um esforço para superar essa dificuldade.

No Brasil, país não clássico de extração colonial, a entificação docapital industrial se dá sem processo revolucionário e gera aimpossibilidade da existência de um estado liberal-democrático, oque caracteriza a natureza autocrática de sua burguesia. Entre asopções que se apresentam, a burguesia brasileira sempre tende parauma via autocrática — na linha de uma “conciliação pelo alto” —como único meio possível de impor-se frente às necessidades deexpansão dos seus “negócios”. Tal opção autocrática é marcadapela exclusão política e econômica de grandes parcelas dapopulação, daí o caráter anti-democrático. De tal modo o atrasoestrutural do caso brasileiro, dado pela extração colonial — trouxecontradições que deram origem a uma burguesia igualmenteatrasada e limitada. Não se toca na estrutura fundiária brasileira e anova burguesia industrial — para poder existir — vê-se obrigada aaliar-se à velha burguesia agro-exportadora. Inviabilizadageneticamente de conquistar sua autonomia política e econômica, aburguesia de extração colonial conformou-se ao papel de meracaudatária dos pólos hegemônicos do capital.

Restrita a esse universo, a burguesia brasileira — que nãoconsegue romper com os países centrais do capitalismo — cai noreformismo, na conciliação pelo alto e se torna incapaz de identificar-se com aspirações de tipo democrático. Assim como a modernizaçãoque consegue pleitear assume, paradoxalmente, um caráterprofundamente conservador.

A burguesia brasileira, portanto, na condição passiva que nãoconsegue jamais completar seus capitais, fica incapacitada deelaborar um projeto nacional próprio e independente. Algumas fraçõesde classe da burguesia, inclusive, nem mesmo estão preocupadascom a formulação de qualquer projeto, assimilando essa condição eprocurando tirar apenas os “melhores proveitos dela”: normalmentevantagens extraídas a partir da subsunção aos capitais estrangeiros.

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O anacronismo da burguesia brasileira em relação aos países que jáse encontravam no universo das disputas imperialistas — disputandoe não sendo disputados — inviabilizava na base qualquer conquistade um capitalismo autônomo e auto-sustentado. Aí está um dosmaiores dilemas da década de 50 no Brasil.

Esse dilema fomentou, mais do que em qualquer outromomento da história brasileira, duas ilusões nacionalistas básicas:a de que os capitais brasileiros podiam se autonomizar a partir debases estritamente nacionais, sem a menor subsunção aos capitaisestrangeiros; e a que acreditava chegar aos mesmos resultados pelocaminho oposto: pela util ização dos capitais estrangeiros como ummeio para atingir esse fim. As duas posições nacionalistas perseguemilusoriamente a completude do capital, sendo a primeira contra, e asegunda através do capital externo. A ilusão de Hélio Jaguaribe,localiza-se nesta última.

Acreditando na autonomização do capitalismo brasileiro atravésdo capital estrangeiro, Jaguaribe acaba por assimilar em seu discursoa utilização do capital “alienígena” a partir do nacionalismo de fins edo estado neobismarckiano. Podemos dizer que o autor se inspirana solução para um país não clássico de via prussiana, quando, narealidade, se tratava de um país não clássico de extração colonial.Por isso mesmo, com relação ao imperialismo há uma posição, nomínimo, paradoxal de Hélio Jaguaribe. Por um lado, ignora-oobjetivamente, ao desconsiderar o passado colonial do Brasil e aoacreditar que se possa atingir o mesmo estágio de desenvolvimentomonopolista logrado pela Alemanha. Por outro, assimila a“inevitabilidade” do imperialismo, ao acreditar que o caminho paraalcançar aquele estágio seria justamente através da utilização dessescapitais de países imperialistas. O equívoco do autor é provocadopelo fascínio com que a rapidez da superação do atraso alemão seefetivou. É essa a velocidade que ele deseja ver a burguesia imprimirà industrialização brasileira, e é nessa aposta que se encontra suaprincipal i lusão, conforme já referido.

Esta posição de Hélio Jaguaribe diante do imperialismo é que ofez ser identificado como o pensador “mais à direita”, dentro doIseb. E é essa mesma postura diante das relações estabelecidas como imperialismo mundial que identifica, na década de 50, o modelo deindustrialização implementado por Juscelino Kubitschek.

Hélio Jaguaribe e o governo JK.

Considerando-se que a produção isebiana de Jaguaribe realizou-se justamente no decorrer da presidência de Juscelino Kubitschek

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(1956-60), são poucas as referências diretas feitas pelo autor a essegoverno. Quando o faz, não deixa de ressaltar a tentativa feita por JKno sentido da implementação do desenvolvimento: “O governoJuscelino Kubitschek é um governo que suscitou a adesão dasgrandes massas rurais e urbanas e assumiu o poder sob a bandeirado desenvolvimento econômico e da transformação econômica esocial do país” (Jaguaribe, 1958a: 32). Porém, o autor não deixa deacentuar que esses esforços de JK eram obstaculizados, em grandeparte, pela estrutura arcaica do aparelho de estado. Sem reformapolítica adequada, isto é, sem implementação de “condiçõesinstitucionais” de nada adiantaria a disposição do presidente darepúb l i ca .

Jaguaribe afirma que o estado brasileiro estaria incapacitadode responder à altura das exigências da modernização, e que a únicasolução que o tornaria “capaz de uma ação política coerente com odesenvolvimento e dotada da funcionalidade que requer, nãoconsiste apenas em que o Presidente da República, individualmente,seja um homem carregado de boas intenções, mas em que seconsiga, por meio da propaganda, da educação ideológica e daorganização das forças dinâmicas que propulsionam odesenvolvimento, conquistar bases efetivas para que o governodisponha de condições de apoio” (Idem: 33). Não teria sidoimplementado um estado de pulso forte, ausência que fez com quefossem desperdiçadas muitas das “boas intenções” do presidentepois a inexistência “de condições institucionais que possibil item aexecução desses planos tende a neutralizar todo esse esforço,conduzindo a um ‘impasse’ todo o arcabouço das medidas adotadaspelo governo Kubitschek” (Idem: 49).

O governo Kubitschek que é normalmente identificado comdemocracia, se localiza no período de 45 a 64 — dentro do que seconsidera o período mais democrático da vida brasileira. Porém,quando se pensa que este período foi alvo de pelo menos quatrotentativas de golpes militares, sendo a última vitoriosa, percebe-se adificuldade de manter estas considerações, sendo necessário umesforço maior de análise. Lúcio Flávio de Almeida em seu trabalho“O Regime Democrático no Período JK: um mito a ser questionado”(1995c) defende que o governo de Juscelino Kubitschek “se, porum lado, possibil itou a implementação de uma política dedesenvolvimento capitalista acelerado, por outro, não superou, masapenas redefiniu, a posição dependente da formação social brasileira.A mesma articulação de forças impossibil itou a transformação daestrutura fundiária; a ruptura com as práticas clientelistas derecrutamento do pessoal do Estado; e mesmo a implantação de um

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regime de liberdade sindical e partidária. Tudo isso e mais a fortepresença militar no processo de definição da política estatal parecemsugerir que os anos JK ainda estão à espera de muitos estudos queprovavelmente contribuirão para questionar uma imagemparadisíaca que, se interessa aos dominantes, faz com que osdominados se voltem para o passado ao invés de — como já foiescrito em um texto clássico — buscarem a poesia em seu própriofuturo” (Idem: 18-19).

Assimilando a impossibil idade de se implementar uma indústrianacional a partir de seus próprios recursos, JK não hesitou emassumir a aceleração do desenvolvimento do país com o lema“cinqüenta anos em cinco”, dentro da i lusão nacionalista de que oscapitais nacionais poderiam se completar sem a ruptura com asubordinação aos pólos hegemônicos do capitalismo. Com isso, apolítica de desenvolvimento capitalista acelerado implementada nasegunda metade dos anos 50 “resultou na redefinição dadependência, ao mesmo tempo em que possibil itou o fortalecimentode importantes setores do empresariado industrial nativo” (Almeida,1995b: 12). Segundo Almeida, para o sucesso dessa redefinição,que contrariava “interesses poderosos, internos e externos”,contribuíram diversos fatores. E aponta um “aparente paradoxo:um dos fatores decisivos foi justamente o apoio dos segmentosnacionalistas da burocracia estatal, especialmente do seu ramomilitar” (Ibidem).

Ao analisar o nacionalismo da segunda metade da década de50, Almeida7 observa que “o ufanismo dos empresários industriaisengajados neste processo — assim como a produção ligeiramentetriunfalista do Iseb — só adquire sentido à luz de uma constelaçãode forças políticas que lutaram efetivamente (com maior ou menorconsciência acerca da natureza deste processo) no sentido daconsumação, em novos termos, do capitalismo dependentebrasileiro. Todavia, a insistente presença, inclusive no planoideológico, já revelava a fragilidade daquele ‘projeto de hegemonia’”(Idem: 13).

Envolvido no contexto do governo Kubitschek — cuja políticade desenvolvimento contribuiu para acentuar o caráter dependentedo capitalismo brasileiro — o Iseb não poderia escapar às duasilusões nacionalistas básicas que se confrontavam neste período.Se houve, portanto, alguma homogeneidade no Iseb foi apenas nacrença mais geral, acalentada pela quase totalidade de seuspensadores, da possibil idade da constituição de um capitalismonacional autônomo. A forma de atingi-lo — através ou contra o capital

7. A propósitodo nacio-

nalismo, lertambém doautor o livro

Ideologianacional e

nacionalismo.(1995a).

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externo — é que os dividia entre nacionalistas e “entreguistas”. Se,portanto, de acordo com o conteúdo de seu nacionalismo, Jaguaribeera identificado automaticamente como “entreguista”, fora docontexto isebiano, seu pensamento apresentava diferenças nadadesprezíveis em relação ao pensamento conservador em geral queprecisam, no mínimo, ser pontuadas. Foi muito comum ahistoriografia brasileira absolutizar determinados aspectos dopensamento de Hélio Jaguaribe. Os limites deste artigo não permitemapresentar um quadro de nossa historiografia no tocante aotratamento que deu ao Iseb e ao autor.8 No entanto, vamos nosremeter agora à fase pós-isebiana de Jaguaribe e seuposicionamento frente ao golpe de 64 para, nas considerações finaisdeste artigo, caracterizar a singularidade de seu pensamento.

A fase pós-isebiana de Hélio Jaguaribe e o posicionamento frenteao golpe de 64.

Considerando o nacional-desenvolvimentismo defendido naprimeira fase do Iseb, o intelectual que defende com maior ênfase anecessidade de um estado forte e autoritário, é Hélio Jaguaribe. Nessesentido, sua produção teórica não está necessariamente descoladadaquilo que acabou acontecendo no país a partir do golpe militar. Nãopodemos dizer, entretanto, que Jaguaribe fez parte das forças quepromoveram e efetivaram a intervenção militar, mesmo quandojustificou, dez anos depois, a intervenção das Forças Armadas sobre ogoverno Goulart. Mas podemos dizer que a centralização de poder doestado, de tipo neobismarckiano que propunha, só não estava alicontemplada, entre outras coisas, por ser ocupada no aparelho deestado pelos militares e não pela burguesia, como queria Jaguaribe.Demarcamos isso de início porque alguns autores identificaram a defesado estado neobismarckiano com a efetivação do golpe.9

Jaguaribe constata a debilidade de nossa burguesia e se afligeao não vê-la assumir o seu papel político. O autor tem consciênciadisso e expressa objetivamente essa posição. Sua produção teóricaé desde sempre a tentativa desesperada de ser o instrumento deesclarecimento da burguesia brasileira no sentido de educá-la econvencê-la a ocupar seu lugar no cenário histórico. Mas 64 mostraa incapacidade histórica da burguesia brasileira em exercerdiretamente o poder político, revelando mais uma vez seu espíritoautocrático e bonapartista.10 Dividida e temerosa diante do fantasmada “república sindical”, não titubeia, para garantir seus interessesmateriais, em delegar às Forças Armadas o controle do estado, a fimde dedicar-se com tranqüilidade aos seus negócios.

8. Verificar osindicativosdesta questãoem Lovatto,1996: 28-40 e214-219.

9. Sobre estaidentificaçãoler de OctávioIanni “Neo-bismarckismo(Iseb)” (1979:55-62).

10. Comrelação aobonapartismoler de PauloBarsotti “Engelse o Bona-partismo”(1996: 245-246).

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A posição de Jaguaribe no que diz respeito ao golpe de 64 e arelação que essa posição tem com sua produção teórica se encontrano artigo “Brasil: estabilidade social pelo colonial-fascismo?”, dejaneiro de 1967, mas publicado em 1968,11 e no livro Brasil: crise ealternativas, de 1974. Neste último há uma posição bastantecompreensiva e de concordância com o ocorrido dez anos antes,com argumentações que chegam a justificar, inclusive, a ilegitimidadedo golpe, que inicialmente (no texto de 67) havia merecido deJaguaribe algumas críticas. Não há exatamente uma mudança deposição entre o texto escrito em 1967 com o de 1974. Há, aocontrário, uma continuidade da lógica utilizada pelo autor na análisedo acontecimento. Jaguaribe talvez seja, dos pensadores compassado isebiano, o que com maior realismo reconhece — e acabadiante das circunstâncias admitindo — a necessidade da burguesiater que lançar mão dos militares no exercício do poder. No primeirotexto Jaguaribe fala do golpe em seu primeiro momento, anterior ao“milagre econômico”, e no segundo texto já com os resultados doseu esgotamento.

Inicialmente, Jaguaribe reconhece que a intervenção militar seriauma contra-revolução que se fazia passar por “revolução”, imprimindoao país um ritmo para alcançar a estabilidade social através do quedenomina de colonial-fascismo. Para chegar a essa caracterização,analisa Castelo Branco como um governo originalmente reduzido aostermos de um “normalismo conservador de classe média e deanticomunismo”. O próprio controle integral do Estado pelos militaresteria garantido amplamente a estabilidade social na medida em quesua auto-legitimação, garantida pelos Atos Institucionais “constituíramo mais formidável reforço do poder público central jamaisexperimentado no Brasil, resultando em haver equipado o governocom meios coercitivos dificilmente igualados nos regimes maisautoritários” (Jaguaribe, 1974: 40). Através desses meios coercitivos sealcançaria a eliminação do incômodo da resistência popular a quaisquermedidas que viessem a ser tomadas. Jaguaribe afirma que, a partirdisso, as diretrizes de Roberto Campos, ministro de Castelo Branco àépoca, puderam voltar-se para a obtenção da estabilidade financeira,que pressupunha a estabilidade social para se efetivar com maiorrapidez, pois o ministro “em sua tentativa de controlar a inflação contavacom a vantagem de não ser incomodado pelas dificuldades maiscomuns”, dado que “a severa ditadura militar eliminou a resistência daclasse operária, permitindo a redução dos salários reais dostrabalhadores” (Idem: 40, grifos nossos).

Mas o problema central que preocupava Jaguaribe não era aeliminação da resistência da classe operária. Ao contrário, era a

11. Este textode Jaguaribecompôs umvolume ori-ginalmente

publicado emfrancês pela

revista LesTemps

Modernes, nº257, em 1968,todo ele dedi-

cado ao Brasil.Esta revista era

editada porJean Paul

Sartre que, noseu interessepelo TerceiroMundo, pediu

a Celso Fur-tado a organi-zação desse

volume.

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situação em que se encontrava a burguesia brasileira. Fora doexercício político, colocava-se nas mãos dos militares e “aceitava” asmedidas desencadeadas pelo governo. Assustava-se pela recessãocausada pela política antiinflacionária, mas preferia isso às tendênciastemerosas do governo João Goulart, aceitando o sacrifício de umatemporada de “maus negócios”, do que o risco iminente dehiperinflação. Enfim, a burguesia brasileira, ao invés de estar presenteno exercício político de um governo forte e autoritário, como queriaJaguaribe, deixou essa função a cargo dos militares, o que fez comque esse poder político tomasse rumos não necessariamente“cont ro láve is ” .

Nas mãos da burguesia, um governo nos moldes propostos porJaguaribe, de linha neobismarckiana, mesmo atuando por viaautoritária e forte, pressupunha a conquista da legitimidade, que porsua vez, só poderia se efetivar com a classe social mais autêntica erepresentativa — a burguesia industrial. Portanto, 1964 não é o estadodos sonhos de Jaguaribe, muito mais por não ser a burguesia a estarno exercício político, do que por estar sendo realizado por viaautoritária. Embora dotado das características que o autor propunhapara um estado funcional em substituição ao estado cartorial, o estadomontado em 64 carecia da presença burguesa mais direta.

Mas, afinal, por que a denominação de colonial-fascismo? Porquepara Jaguaribe, sem a presença direta da burguesia, haveria umaexplícita ilegitimidade do poder. O modelo para a estabilidade socialteria conduzido à solução de alguns problemas brasileiros mesmosendo à custa de sua gradual desnacionalização. Isso não queriadizer, porém, que a longo prazo não viesse a se inviabilizar.Irremediáveis contradições imanentes estariam condenando, desaída, o regime e eram de “dois gêneros: uma afeta seu mecanismointerno, vítima dos resultados da superconcentração de renda epoder por ele gerada. A outra atinge a relação do regime com seucentro metropolitano externo. Em outras palavras, uma resulta desua característica ou propensão ‘fascista’ e a outra de suacaracterística ‘colonial’” (Idem: 43).

A indicação do esgotamento desse modelo é apontada por nãopromover a quebra dos laços “coloniais” que interceptavam o nossodesenvolvimento de fato. De novo não é a utilização pura e simplesdo capital estrangeiro que emperra, segundo Jaguaribe, essedesenvolvimento, mas a crença equivocada de que o estímuloexterno poderia, mecanicamente, compensar a falta de dinâmicainterna de crescimento. Isso porque, o modelo colonial-fascistavisaria “precisamente a impedir as mudanças sociais que seriam

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exigidas para o desenvolvimento de uma economia autônoma eendógena” (Idem: 44). É de novo a crença — ilusória — de que ocapital nacional poderia vir a conquistar independência através docapital estrangeiro, desde que bem disciplinado, o que o chamadocolonial-fascismo não estaria conseguindo realizar.

Sem esquecer que Jaguaribe faz essa análise em janeiro de 1967,portanto, antes do “milagre”, percebemos que o autor tem duastônicas: reconhece que o colonial-fascismo tem contradiçõesirremediáveis que não permitirão sua manutenção a longo prazo,sem deixar de constatar que, mesmo à custa da gradualdesnacionalização, promoveu “a resolução de alguns problemas”.E conclui sua análise enfatizando a inviabilidade do regime se manternaqueles moldes ao apontar que o setor industrial-urbano brasileirohavia atingido uma complexidade não compatível com um regimemilitar colonial-fascista de longa duração. Uma vez diluídos com ocurso do tempo “os temores que impeliram os setores maisprogressistas da burguesia brasileira e a classe média a seassociarem às forças reacionárias, impor-se-á de novo,inevitavelmente, à transformação, assim no plano político como nosócio-econômico. Nessas circunstâncias, ou os militares terão derestituir o poder aos partidos políticos — ainda que muitos delesvenham a se fi l iar aos mesmos — e às forças sociais por elesmarginalizadas, ou terão eles próprios de modificar, de maneiraessencial, o significado de seu regime” (Idem: 45-46, grifos nossos).

Os “temores” de Jaguaribe foram, porém, se diluindocrescentemente ao longo dos anos seguintes a partir do modelotraduzido pela alcunha de “milagre econômico”, no período de 68 a73. Os resultados provenientes desse modelo trouxeram umcrescimento industrial sem precedentes no Brasil (embora à custado massacre da classe operária brasileira, o que não se constituíaem problema central para o autor) . Não é à toa que Jaguaribe, dezanos depois do golpe, justamente no período de esgotamento do“milagre”, volta a analisar os efeitos do regime militar instaurado em64, fazendo um conjunto de referências mais elogiosas, embora namesma base de análise, do que as dispensadas no texto de 67. Aênfase dada por Jaguaribe, assim como por vários setores presentesna vida brasileira naquele momento, foi a da necessidade da auto-reforma do regime. Auto-reforma pedida veementemente nestemomento e não antes, na medida em que somente a partir de 73-74o “milagre” começa a descontentar alguns e a demonstrarobjetivamente os problemas que desde sua gestação indicavam ainevitabilidade de seu esgotamento.

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Mantendo sua posição de defesa de um estadoneobismarckiano, o autor manifesta, nesta análise de 74,concordância com o desfecho do governo Goulart e o início doregime militar, com muito maior ênfase do que aquela que o haviacaracterizado na análise de 67. As ressalvas que ali fazia em relaçãoao fato de não ter sido a burguesia a assumir o exercício político e ascríticas feitas à ilegitimidade que os militares haviam imposto naquelemomento são reavaliados. O dado novo que aparecerá neste textoé o de justificação da explícita i legitimidade do golpe militar comoum “mal menor”, diante dos resultados promovidos pelo regime,vistos dez anos após sua instauração.

Jaguaribe fundamenta sua posição colocando que nos últimosanos do governo Goulart havia uma “ampla violação” dos preceitosconstitucionais, levada a cabo pela própria cúpula do Executivo. Ediz que a economia, por sua vez, achava-se à beira de um completocolapso, com uma inflação na casa dos 100%: “Conspirava-seabertamente, nos círculos mais próximos ao Presidente da República,para a implantação de uma ditadura de esquerda, de conseqüênciasimprevisíveis. Era evidente que o regime constitucional não subsistiamais e que as Forças Armadas tinham de intervir imediatamente,enquanto ainda podiam fazê-lo, para a preservação da ordem pública,na iminência de ser arrastada pelo colapso do regime ou derrocadapelas forças subversivas” (Idem: 50, grifos nossos).

Entre perder as franquias político-eleitorais ou promover odesenvolvimento brasileiro, optou-se pelo segundo, pois, docontrário, segundo Jaguaribe, o país apenas e tão somente assistiriae sofreria diretamente os efeitos de uma guerra civil infrutífera edestruidora. Afirma ainda que “o país passou, assim, a se defrontarcom um incontornável dilema: ou se dava prioridade à necessidadede promover seu desenvolvimento econômico e técnico-organizacional, para o que necessitava de uma estabilidade social,política e econômica só alcançável por intermédio de uma prolongadaintervenção das Forças Armadas e que certamente não seriacompatível com o regime político-eleitoral da constituição de 1946,ou se dava prioridade ao restabelecimento das franquias político-eleitorais, em condições que inevitavelmente restabeleceriam umregime de tipo populista e tornariam a precipitar o país, em termosprovavelmente mais radicais, numa crise do tipo da de 1964, cujareiteração dificilmente o pouparia de uma guerra civil” ( Idem: 50,grifos nossos). Fica evidente que optou-se pela primeira alternativa.

Às “conseqüências imprevisíveis” de uma “ditadura deesquerda”, a opção por uma ditadura de direita garantiu e não

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comprometeu o processo de “ocidentalização” do Brasil, aspectoprimordial em nome do qual, para Jaguaribe, todos os sacrifíciosvaliam a pena, inclusive uma prolongada intervenção das ForçasArmadas, antes vista com ressalvas.

Essa posição de Hélio Jaguaribe, que de imediato pode parecerestranha a um ex-membro do Iseb, dado que o instituto foi extintojustamente pelo golpe de 64, na verdade é totalmente coerente comsua produção teórica e postura ideológica e, ao contrário do quepossa parecer, não é uma descontinuidade com a análise feita em67. Deve-se atentar para o fato de que Jaguaribe constrói em suateoria uma justificativa extremamente lógica à manutenção de umregime despótico, porém legítimo, neobismarckiano, como define. Énessa direção que acabará justificando a ditadura militar de 64,mesmo nos períodos em que qualquer alegação de legitimidadepareceria absolutamente fantástica, justificada pelo temor do retornodo populismo do governo Goulart que teria criado, com suaspromessas demagógicas, uma expectativa inatingível para as massas.Note-se que é em “defesa das massas” que se constrói a justificaçãodos caminhos do golpe.

Dez anos após o golpe, não aparece mais no discursojaguaribeano a designação de “golpe de 64” ou “ditadura militar”,mas sempre que se refere ao acontecimento Jaguaribe o caracterizacomo “o regime social que se instaurou no Brasil em 64”. ParaJaguaribe, os frutos do que foi implementado a partir de 68“demonstram claramente o acerto da política econômica adotada,baseada numa ampla mas judiciosa utilização do capital e datecnologia estrangeiros”, fato que o autor temia que não viesse aocorrer quando escrevia no momento anterior. Diz também que “aprazo longo, o desenvolvimento do país aumentará, continuamente,a capacidade interna de formação de capital e de investimento, assimcomo seu grau de autonomia tecnológica, reduzindo,correspondentemente, a dependência para com o exterior e adecorrente necessidade de utilização de recursos externos” (Idem:49, grifos nossos).

Portanto, no entender de Jaguar ibe, o regime mi l i tar acaboureal izando as bases para o abandono da si tuação desubdesenvolv imento do país, através de uma “ampla masjudic iosa” ut i l ização do capi ta l e da tecnologia estrangeiros. Éesse aspecto que faz o autor apresentar concordância com aqueleregime, o que não é incompatível com sua produção teór ica, quesempre nutr iu essa i lusão básica de alcance da autonomianacional através do capi ta l “a l ienígena”.

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Para Jaguaribe, a intervenção ocorrida em 64 serviu ao país paranão precipitá-lo numa guerra civil, dado que preservar franquiaspolítico-eleitorais seria um preço “alto” demais para o país. Abriu-semão do regime eleitoral e, diante da impossibilidade de uma soluçãoideal para o problema da legitimidade institucional do regime, “aopção pelo desenvolvimento, embora à custa das franquias político-eleitorais do antigo sistema constitucional, é entendida comoconduzindo, a longo prazo, a condições estáveis de legitimidade”(Idem: 51).

“Alto” preço foi aquele pago pelos setores marginalizados peloregime — as classes trabalhadoras — e não por aqueles que opromoveram, sem contar a duríssima repressão — quando não datortura e do assassinato — empreendida contra todos seusopositores. E Jaguaribe não podia fazer de conta que a tortura, porexemplo, não havia sido uma realidade do regime militar.

Porém, tudo que envolveu o regime militar é visto por ele, nolimite, como um dado inalienável da situação e como garantia tantodo “processo de ocidentalização” como da “estabilidade sócio-econômica”. Para Jaguaribe, esse “preço” leva aos resultadosnecessários, pois “na medida em que, com o desenvolvimento, sereduza substancialmente, e ao cabo se elimine, a marginalidade dasmassas, e se assegurem as bases para uma política resdistributiva emais igualitária, em condições que não mais afetem a estabilidadesócio-econômica do país, nessa mesma medida as franquias político-eleitorais deixam de ser socialmente disruptivas e passam, aocontrário, a estabelecer uma sadia competição para a melhoradministração do país” (Ibidem). A despeito de no momento oratratado por Jaguaribe as massas ainda estarem esperando aeliminação de sua marginalidade, o preço pago por trilhar-se ocaminho da ilegitimidade para a conquista da legitimidade continuavacomo um paradoxo.

Como já se apontou, todo esse itinerário de Jaguaribe estáservindo ao propósito de indicar a necessidade, naquela altura dosacontecimentos, da auto-reforma do próprio regime para que, afinal,se colocasse a burguesia industrial no seu lugar: o poder. É por issoque, somente neste momento de sua produção teórica, e não antes,ele pondera a injustificabilidade e insustentabilidade da perpetuaçãoda ilegitimidade do regime, aparecendo pela primeira vez uma dadacondenação da utilização do mecanismo da tortura. A necessidadede superar a ilegitimidade fazia com que Jaguaribe indicasse que osrequisitos mínimos da legitimidade “se encontram, sistemática oufreqüentemente, violados pela prática do regime. Assinale-se, pela

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extrema gravidade de que se reveste, a adoção, como métodorotineiro do sistema de segurança, da prática da tortura. A instituiçãoda tortura, eticamente mais repelente do que a da escravidão,constituiu uma mancha intolerável do regime, que nenhumaalegação de segurança nacional pode, em nenhum caso, justificar”(Idem: 80, grifos nossos). É com base, entre outras coisas, nesse tipode ressalva feita por Jaguaribe que não podemos classificá-lo jamaiscomo um ideólogo do golpe de 64.

Porém, apesar de publicamente declarar não desconhecer aprática da tortura, a ênfase nos aspectos que justificam a adoçãodos princípios autoritários do regime ocupa um espaçodemasiadamente importante dentro de sua produção teórica. Semesquecer ainda que, dentro do próprio Iseb, o autor não deixou defazer recomendações com relação à política externa convenienteao Brasil defendendo que “a segurança nacional torna aconselhávelum aumento da vigilância sobre o comunismo interno e suaadequada contenção ou repressão” (Jaguaribe, 1958b: 290), o que,no limite, não deixa de abrir campo para a prática da tortura. Alémdisso, mesmo depois dessas objeções, reafirma Jaguaribe que oobjetivo do regime militar como um todo deve ser valorizado pois “oatual regime brasileiro nem foi o produto de uma conspiração pérfidanem alimenta propósitos inconfessáveis”. Mais uma vez a idéia de“mal necessário” se manifesta. Por isso fica amenizada suacondenação à prática da tortura. Se, com essa condenação, nãopodemos dizer que o autor fazia vistas grossas ao fato, não é menosverdade que a ênfase dada é extremamente insuficiente diante damonstruosidade da util ização de tal instrumento.

A utopia nacionalista de Jaguaribe e o paradoxo de seudiscurso

Reservamos esta parte final do artigo para retomar os aspectosmais relevantes do pensamento de Hélio Jaguaribe, a fim de indicar asingularidade de seu discurso.

O tratamento dado pela historiografia ao autor possui umaunanimidade: quase todos reconhecem que seu papel no Iseb foi ode liderança intelectual máxima e que foi o pensador maisconservador daquele instituto. Sem dúvida estes são indicativos quenos parecem procedentes. Porém, o grau de conservadorismo a eleatribuído e sua fundamentação por vezes superestimam algumasde suas colocações, deixando em segundo plano, quando nãodescontextualizando, aspectos significativos da particularidade deseu pensamento.

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Nenhum dos autores trabalhou especificamente a produçãoisebiana de Hélio Jaguaribe. Por isso mesmo as referências aos seusescritos estão sempre inseridas num contexto mais amplo do Iseb.Foi muito comum, por exemplo, tomarem sua mais importante obrado período, O nacionalismo na atualidade brasileira, de formaparcial, e serem citados sempre os mesmos trechos,desconsiderando que a despeito de todo o real conservadorismoali apresentado, o livro significou, dentro de seus limites, um diálogonão anunciado, mas perceptível, contra as teses da Escola Superiorde Guerra — centradas no alinhamento incondicional do Brasil aosEstados Unidos — que, à época, preparava o “espírito nacional”para o golpe de estado que acabou por se efetivar em 1964.12 Apósa pesquisa que desenvolvemos (Lovatto, 1996) pudemos perceberque, no mínimo, a historiografia brasileira trabalhouinsuficientemente este texto. Ressalvamos, porém, que no tipo deafirmação que aqui fazemos não se trata de “absolver” Jaguaribe deseu conservadorismo, mas localizá-lo devidamente dentro dasingularidade de seu ideário. E chamar a atenção para o fato de queo equívoco no empreendimento desta análise pode descaracterizaro combate ao seu pensamento, que deve se fazer com base emsuas reais afirmações, sem correr o risco que se atribuam ao seudiscurso características que lhe são estranhas, comprometendo,ao cabo da análise, a eficácia da crítica.

O fator preponderante da identificação de Jaguaribe comoconservador dá-se em torno da identificação — correta — de suaperspectiva de classe burguesa, mas principalmente em torno desua proposta de um estado neobismarckiano. Quando o golpe de64 instaura um estado autocrático, as possíveis semelhanças dogoverno militar com a proposta elaborada por Jaguaribe sãoprontamente descartadas pelo autor, na medida em que a burguesianacional teria ficado fora do exercício político e, com isso, tinham sidoperdidas as possibilidades de tornar esse estado legítimo. Lembremosque o que acabou se instaurando teria sido um estado de carátercolonial-fascista, i legítimo, que interrompera a construção do estadoideal para a ultrapassagem do subdesenvolvimento brasileiro.

O colonial-fascismo do governo militar teria impedido o autênticonacionalismo e mantido o país na qualidade de “colônia”. A crítica feitapelo autor naquele momento vinha do fato de que o colonial-fascismoestaria se entregando demasiadamente ao satelitismo norte-americano,abandonando a perseguição de uma autonomia nas relações externasconvenientes ao país. Por mais que Jaguaribe pregasse a utilização docapital estrangeiro na superação do subdesenvolvimento — que,

12. A esserespeito, ébastanteperspicaz aafirmação deTancredoNeves ementrevista aoCPDOC: “Naverdade, o Isebfoi criado paranão ter aEscolaSuperior deGuerra, nãoé?”TancredoNeves(Depoimento).(1984: 86).

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inclusive, poderia implicar forte presença de capitais norte-americanos—, o autor defendia que as relações diplomáticas brasileiras deveriamse pautar pela neutralidade, inclusive com a retomada das relaçõesdiplomáticas com o bloco soviético. Todavia, isso deveria se realizarcom cuidado, para que os Estados Unidos não ficassem temerosos deque o Brasil intencionasse “mudar de lado”. A tensão — para não dizero paradoxo — do discurso jaguaribeano é sempre essa: a ilusão daautonomia nacional, sem deixar de estar sob a influência norte-americana no contexto da guerra fria, representante, afinal, maisautêntico da cultura ocidental.

Apesar de defender um estado forte e autoritário, quandodenomina o regime de 64 de colonial-fascismo o autor está lheatribuindo um caráter negativo e não de concordância. No entanto,fica claro que o descontentamento do autor com esse colonial-fascismo vem menos do fato de ser autoritário do que por nãocomportar a presença da burguesia industrial na direção políticadireta, ainda que esta participe como coadjuvante do processoeconômico. Todavia, se o estado construído em 64 não pode serdefinido como o “estado dos sonhos” de Jaguaribe, isso não querdizer que o autor deixe de justificá-lo, principalmente quando sedepara, satisfeito, com seus resultados 10 anos depois, no períodode esgotamento do “milagre” econômico.

De novo, o paradoxo que marca seu discurso: sua negação inicialdo golpe e, na seqüência, seu contentamento com os resultadosindustrializantes dele, acabam por fazê-lo justificar até mesmo ai legitimidade do regime, antes condenada. Esta aprovação se deveao fato de a ditadura militar ter afastado o perigo da convulsão socialque se desenhava no pré-64, marcado notadamente pelo populismodo governo João Goulart que, segundo o autor, alimentava falsasexpectativas nas massas com sua demagogia.

Não se pode afirmar que Jaguaribe seja um democrata convicto,ainda que seu discurso revele que medidas autocráticas seriamtransitórias e necessárias dada a urgência da superação do atrasobrasileiro. A conquista da verdadeira democracia só seria possíveldepois da concretização do desenvolvimento nacional. Além disso,dois outros elementos afastam o discurso de Jaguaribe de um perfildemocrático: em primeiro lugar, a defesa da ilegalidade do PartidoComunista no momento em que o desenvolvimento já estivesseassegurado — isto é, em tese, no momento em que fosse possívelum abandono de medidas autocráticas para a adoção de medidasmais democráticas. A justificativa é a de que, antes disso, esse partidoserviria como um contrapeso interno ao satelit ismo americano. Em

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segundo, a frágil e insuficiente condenação à tortura contra as forçasde oposição promovida pelos militares durante a ditadura. Apesardessa ressalva em relação ao procedimento da ditadura, o regozijocom os resultados industrializantes do regime militar recebem umaênfase muito maior do autor.

Mesmo assim, é somente neste momento, e não antes, que oautor começa a se deparar com a necessidade de propor de fato aauto-reforma do regime, pois está preocupado com a proletarizaçãodas classes médias que os resultados do esgotamento do “milagre”traziam. A situação de desemprego crescente deixava Jaguaribetemeroso de que o binômio classes médias + miséria, viesse a reporum estado de rebelião. Ele insiste na urgência do processo de auto-reforma, pois, do contrário, o questionamento do regime poderiagerar nova convulsão social. Todavia, esta, diferentemente do queocorreu no pré-64, era agora apenas potencial e, portanto, poderiae deveria ser controlada e evitada.

Esta defesa da auto-reforma do regime não era indiferente aalguns dos principais mentores do golpe de 64. A própria ditaduracomeçava a sentir os sinais da necessidade de “distensão”. Porém,Jaguaribe se diferenciava quanto ao prazo para realizá-la. Ele queriaa imediata auto-reforma, enquanto a ditadura estava preocupadacom uma “transição lenta, segura e gradual”.

Jaguaribe, na verdade, vê nesse momento a oportunidade paravoltar a defender com toda ênfase sua proposta nacional-desenvolvimentista para o país. Para ele o regime militar não teriaresolvido várias coisas: deixou de implementar o autênticonacionalismo, util izou o capital estrangeiro sem adquiririndependência tecnológica, não absorveu as classes médias e nãochamou a burguesia a governar. Apesar de sempre reconhecercomo positivo o papel dos militares em 64 como guardiães da ordem,Jaguaribe questionava alguns resultados do regime, uma vez quepouco ou quase nada se identificava com a proposta de terceira viapor ele resumida como socialização do capitalismo. Nesta medida,não estaria superada a crise brasileira. Na verdade, o que o autorvolta a reclamar é que a burguesia industrial finalmente assuma seupapel de direção no desenvolvimento do país, repondo a ilusãoessencial de seu discurso, que acreditava que esta fração de classeainda tinha uma missão civil izatória a desempenhar.

Por tudo até aqui af i rmado, sem discordar da atr ibuição deum caráter conservador que, sem dúvida, apresenta o discursode Hél io Jaguar ibe, queremos ressal tar que seu pensamentopossui or ig inal idade.

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Embora permeado por ilusões, entre os intelectuais do seutempo, ligados à perspectiva do capital, Jaguaribe pode ser apontadocomo um dos que menos se iludem e até entre os mais arrojados.Isto porque, apesar do seu alinhamento com a modernizaçãoindustrial, não deixa de sustentar uma modernização dependente ede caráter excludente, como forma de garantir o desenvolvimentobrasileiro. Daí a facil idade de incorporar medidas autocráticas e,portanto, não poder ser identificado como um defensor explícitode uma propositura democrática. Ao mesmo tempo e,paradoxalmente, também não pode ser, simplesmente, identificadocomo um dos ideólogos do golpe de 64 ou de regimes de terror.

Por isso estarmos insistindo neste caráter paradoxal do discurso,como uma das chaves para a compreensão de seu ideário. Jaguaribeé, ao mesmo tempo, realista e, de certo modo, “utópico”.13 Detectalimites “culturais” que o atraso do país teria provocado,comprometendo a atuação daquela que para ele seria a responsáve lpelo desenvolvimento nacional — a burguesia industrial. Dedica seuprojeto intelectual no Iseb à procura de soluções para tal fragilidade.Ao mesmo tempo, propõe soluções irrealizáveis, esperando não sóque esta burguesia tome seu lugar na cena histórica, como tambémo encontro dela com um destino que está incapacitadahistoricamente de alcançar, uma vez que estão ausentes as condiçõesobjetivas para isso.

Todavia, o autor não perde de vista as possibil idades concretasatravés das quais a industrialização possa vir a se processar. Mas setrata de uma industrialização capitalista e dependente. Daí sua defesabem mais explícita da intervenção do capital estrangeiro, seurompimento com o Iseb, em suma, o seu nacionalismo de fins, istoé, um nacionalismo mais pragmático que não se perde em grandesdevaneios românticos como os nacionalistas que punham fé tãosomente nas bravatas do capital nacional. Mas é a utopia daautonomia nacional pelo capital alienígena. Jaguaribe está semprecom um olho no desenvolvimentismo e o outro voltado para acontra-revolução preventiva. O conteúdo reformista de suaspropostas induzia à mobilização das classes populares, maisprecisamente, dos seus setores “modernos”, porém lideradas pelaburguesia industrial, com a promessa do distributivismo futuro.Promessa impossível de se efetivar no caso brasileiro.

Em todo o período aqui analisado — dos primórdios do Grupode Itatiaia até os desdobramentos do golpe de 64, dez anos depois— fica a reafirmação, com as especificidades que distinguem cadamomento histórico, do desespero de Jaguaribe em ver realizado o

13. Utopia estásendo utilizada

aqui comomero adjetivoque pretendeapenas apon-

tar o caráterirrealizável da

proposituranacionalista de

Jaguaribe.

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desejo de assistir à burguesia assumindo o papel de classe dirigentee autônoma do processo de industrialização brasileira. Fica tambémreafirmada a posição histórica do autor no seu papelconscientemente assumido de ser parte da intell igentsia brasileira,do esclarecimento educador dessa classe que parece não quererou não saber qual é seu verdadeiro papel. E fica finalmente tambémreafirmada a utopia nacionalista de Hélio Jaguaribe aguardandosempre a chegada do dia “d” da reforma ou auto-reforma do regimeinstaurado em 64.

Mas a intenção do regime não era se reformar com tanta pressa.O que vimos, na seqüência, foi a prolongação dos governos militaresainda por mais dez longos anos, no melhor estilo ESGuiano daabertura lenta, segura e gradual. Assim, o desejo expresso em todasas linhas da produção teórica de Hélio Jaguaribe, de fazer a burguesiabrasileira assumir seu papel, viu-se de novo frustrado.

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