a traidora honrada

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A TRAIDORA HONRADA Tove Jansson C O L E ç ã O J U S T A B U B B L E

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Sutil porém sedutor, dotado de uma tensão que não te deixa parar de ler. Senti-me transpor-tada para aquela região remota da Suécia, e quando terminei decidi ler tudo de novo. As personagens continuam me assombrando. Ruth Rendell

Uma romancista séria, complexa e oca-sionalmente macabra, além de ser uma pintora versátil que durante cinquenta anos trabalhou no mainstream artísti-co. Na Escandinávia ela é considerada um tesouro. Horn Book

…uma companhia sombria para o radiante The Summer Book. Aqui o cenário é o inverno, e o tema quase à la [Patrícia] Highsmith se refere a uma mulher que consegue se insinuar na vida de uma rica e famosa escritora. A prosa de Jansson é, como sempre, sutil, porém aguda e extasiante.Los Angeles Times

Sua descrição é desapressada, precisa e vívida… As frases são belas em sua estrutura, seu movimento e sua cadência. O romance mais belo e gratificante que li este ano.Ursula K. Le Guin, The Guardian, 2009

Jansson complica nossa inclinação de achar que A traido-ra honrada se trata estritamente de ficção, nos encoraja a considerar o mundo de seu romance como real e, ao fazer isso, aprofunda nosso engajamento. Penso que este romance seja avassalador, uma ficção que se torna, graças à eficiente precisão de Jansson, uma verdadeira traição. Theodore McDermott, The Believer

A TrAidOrA HONrAdA

Tove JanssoncO

lEçã

O JUsT A BUBBLe

www.autenticaeditora.com.brwww.abolhaeditora.com.br

Tradução: Guilherme da Silva Braga

A traição — as mentiras que contamos para nós mesmos e as que contamos para os outros — é o tema deste que é o romance mais desconcertante e imprevisível dos escritos por Tove Jansson. Em A traidora honrada, Jansson lança um olhar ainda mais sombrio sobre os temas que animaram seus trabalhos mais primorosos, desde sua singela fábula sobre a vida numa ilha, The Summer Book, até a famosa série de estórias protagonizadas por Moomin: solidão e comunidade, vida e arte, amor e ódio.

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Tove Jansson (1914-2001) nasceu em Helsinque, e pertencia à minoria de língua sueca que vive na Finlândia. Seu pai era escultor, e sua mãe, designer gráfica e ilustradora. Jansson teve seu primeiro trabalho de ilustração publicado aos 15 anos de idade, e quatro anos depois publicou um livro sob pseudônimo. Após temporadas estudando Belas Artes em Paris, ela retornou a Helsinque, onde, nos anos 1940 e 1950, ganhou renome por suas pinturas e murais. de 1929 a 1953, trabalhou com ilustrações de humor e charges políticas para a Garm, uma revista antifascista de esquerda publicada na Finlândia e na Suécia. Moomintroll, um personagem sonhador e com feições que lembram um hipopótamo – a mais famosa criação de Jansson –, fez sua primeira aparição nessa revista. As aventuras de Moomintroll e da família Moomin renderam uma duradoura série de quadrinhos e uma extensa coleção de livros infantis. Jansson é também autora de onze romances e de coletâneas de contos para adultos, entre os quais The Summer Book. Em 1994, ela recebeu o Prêmio da Academia Sueca.

Capa Traidora honrada1903.indd 1 28/03/12 10:31

A traidora honrada

Tove Jansson

TRADUÇÃO

Guilherme da Silva Braga

coordenação editorial

Rachel Gontijo Araujo Stephanie Sauer

título original

Den ärliga bedragaren

tradução

Guilherme da Silva Braga

projeto gráfico

Retina78

editoração eletrônica

Conrado Esteves

revisão

Reinaldo Reis Maria do Rosário A. Pereira

revisado conforme o acordo ortográfico da língua portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde janeiro de 2009.

todos os direitos reservados pela autêntica editora e a Bolha editora. nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia das editoras.

AutênticA EDitorA LtDA.

rua aimorés, 981, 8º andar. funcionários30140-071 . Belo Horizonte . Mgtel: (55 31) 3214 5700 Televendas: 0800 283 13 22www.autenticaeditora.com.br

A boLhA EDitorA

rua orestes, 28 . santo cristo20220-070 . rio de janeiro . [email protected] www.abolhaeditora.com.br

Dados internacionais de catalogação na Publicação (ciP) câmara brasileira do Livro, SP, brasil

jansson, tove, 1914-2001. a traidora honrada / tove jansson ; tradução guilherme

da silva Braga – Belo Horizonte : autêntica editora ; rio de janeiro : a Bolha editora, 2012. (coleção just a Bubble; 3)

título original: den ärliga bedragaren.

isBn 978-85-65381-14-7 (autêntica editora)isBn 978-85-64967-07-6 (a Bolha editora)

1. ficção finlandesa i. título.

12-02575 cdd-894.5413

índices para catálogo sistemático: 1. ficção : literatura filandesa 894.5413

© 2012 tove jansson © 2012 autêntica editora© 2012 a Bolha editoraesta publicação foi possível graças a um acordo feito com a schilds förlags ab, Helsinque

reprodução proibida, mesmo parcialmente, sem autorização das editoras.

Para Maya

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Era uma manhã escura de inverno como muitas ou-tras, e continuava nevando. Nenhuma janela brilhava no vilarejo. Katri encobriu a luz do abajur para não acordar o irmão. Estava muito frio dentro de casa. Ela preparou café e pôs a térmica ao lado da cama dele. Junto da porta, o grande cachorro estava deitado, olhando para ela com o focinho entre as patas, esperando que saíssem juntos para a rua.

Nevava sem parar há um mês no litoral. Ninguém se lembrava de ter visto tanta neve, uma neve constante que se acumulava nas portas e janelas e pesava nos te-lhados e não parava por uma hora sequer. Os caminhos já estavam cobertos pela neve assim que terminavam de limpá-los com as pás. O frio tornava o trabalho na oficina de barcos impossível. As pessoas acordavam tarde porque não havia mais manhãs, o vilarejo permanecia em silêncio com a neve intocada entre os pátios até que as crianças saíssem para a rua e cavassem túneis e cavernas e gritassem e ficassem entregues a si próprias. Tinham sido proibidas de jogar bolas de neve na janela de Katri Kling, porém jogavam-nas mesmo assim. Ela morava no sótão acima da mercearia com o irmão Mats e o grande cachorro sem nome. Antes do dia raiar ela costumava sair com o ca-chorro e andar pelas ruas do vilarejo em direção ao farol, toda manhã era a mesma coisa, e as pessoas começavam a

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acordar e diziam, ainda está nevando e lá vai ela outra vez com o cachorro e ela está usando uma gola de pelo de lobo. Não é normal deixar de dar um nome ao próprio cachorro, todos os cachorros precisam de um nome.

Diziam que Katri Kling não se importava com nada além dos números e do irmão. E muita gente se pergun-tava de onde ela tinha tirado aqueles olhos amarelos. Os olhos de Mats eram azuis como os da mãe, e ninguém se lembrava direito de como era o pai, há muito tempo ele tinha ido para o norte comprar uma carga de lenha e nunca mais voltou, forasteiro que era. As pessoas estavam acostumadas a ver todo mundo com os olhos mais ou me-nos azuis, mas os olhos de Katri eram tão amarelos quanto os do cachorro. Ela olhava ao redor através de pequenas frestas entre as pálpebras, e era raro que alguém desco-brisse aquela cor anômala, mais amarela do que cinza. A desconfiança permanente, despertada com tanta facilida-de, era capaz de fazer com que as pálpebras se abrissem de repente, em um olhar repentino e direto, e dependendo da luminosidade os olhos pareciam amarelos de verdade e transmitiam um forte sentimento de insegurança. As pes-soas sentiam que Katri Kling não confiava em ninguém e não se importava com ninguém além de si mesma e do irmão, criado por ela dos seis anos em diante, e por isso mantinham distância. Por isso e também porque nunca alguém tinha visto o cachorro sem nome abanar o rabo. E também porque nem Kling nem o cachorro aceitavam a gentileza de ninguém.

Depois que perdeu a mãe, Katri começou a trabalhar na mercearia, onde também cuidava da contabilidade. Ela era muito esperta. E em outubro pediu demissão. Acha-vam que o merceeiro queria que ela saísse da casa mas não tinha coragem de pedir. O menino Mats não contava. Tinha quinze anos, dez a menos do que a irmã, e era alto

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e forte e visto como um pouco simplório. Fazia trabalhos ocasionais no vilarejo, mas passava a maior parte do tempo na oficina dos irmãos Liljeberg quando a construção dos barcos não precisava ser interrompida por causa do frio. Os irmãos Liljeberg deixavam-no fazer algumas coisas menos importantes.

Há muito tempo a pesca tinha sido abandonada em Västerby, não valia a pena. Havia três oficinas onde os bar-cos eram construídos, e uma delas fazia reparos e guardava barcos durante o inverno. Os melhores construtores de barcos eram os irmãos Liljeberg. Eram quatro, todos sol-teiros. O mais velho era Edvard, que desenhava os barcos. Entre um desenho e outro, ele dirigia o caminhão do correio até a cidade e aproveitava para buscar mercadorias para a mercearia no caminho. O caminhão pertencia ao merceeiro e era o único carro no vilarejo.

Os construtores de barcos de Västerby tinham orgu-lho da profissão e assinavam todos os barcos com um W, como se o vilarejo de Västerby fosse o mais antigo do país. As mulheres também faziam colchas de crochê com de-senhos tradicionais e assinavam com um W, e em junho os visitantes de verão compravam tanto os barcos como as colchas e levavam uma vida fácil durante o verão, enquan-to o calor durava, e no final de agosto tudo voltava ao normal e ficava em silêncio mais uma vez. E aos poucos o inverno chegava.

Agora o raiar do dia era azul-escuro e a neve tinha começado a brilhar, as pessoas tinham acendido velas nas cozinhas e deixado as crianças sair para a rua. As primeiras bolas de neve bateram na janela, porém Mats continuou dormindo um sono tranquilo.

Eu, Katri Kling, muitas vezes passo as noites acorda-da, pensando. Meus pensamentos devem parecer um tanto práticos para pensamentos noturnos. Na maior parte do

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tempo eu penso em dinheiro, muito dinheiro, em ganhar dinheiro rápido de maneira inteligente e honesta, tanto dinheiro que eu nem precise mais pensar no assunto. E eu pretendo devolver tudo mais tarde. Para começar, vou comprar um barco para Mats, um excelente barco espa-çoso com cabine e motor de bordo, o melhor barco que já foi construído nesse vilarejo desprezível. Toda noite eu escuto a neve bater na janela, o sussurro suave da neve que o vento traz do mar, é tão bom, eu queria que todo o vilarejo fosse coberto e apagado e enfim alcançasse a pureza... Nada pode ser tão tranquilo e tão eterno quanto a longa escuridão do inverno, é uma escuridão que não acaba mais, é como viver em um túnel onde a escuridão se adensa à noite e se dissipa um pouco no raiar do dia, ficamos afastados de tudo, protegidos e mais sozinhos do que o habitual. As pessoas esperam e se escondem como as árvores. Dizem que o dinheiro cheira, mas não é verdade. O dinheiro é tão puro quanto os números. Quem cheira são as pessoas, cada uma delas tem um cheiro oculto que se torna mais forte quando ficam irritadas ou envergonhadas ou quando sentem medo. O cachorro sabe, ele percebe no mesmo instante. Se eu fosse um cachorro eu saberia demais. A única pessoa que não cheira é Mats, ele é puro como a neve. Meu cachorro é grande, bonito e obediente. Ele não gosta de mim. Mas nós nos respeitamos. Eu res-peito a vida secreta dos cachorros, o segredo dos grandes cachorros que ainda conservam um pouco da selvageria natural, mas não confio neles. Não sei como alguém se atreve a confiar nesses grandes cachorros observadores, as pessoas atribuem aos bichos qualidades quase humanas e com isso referem-se a qualidades nobres e encantadoras. O cachorro é mudo e obediente, mas nos observa e nos conhece e sente o cheiro da nossa insignificância, nós de-víamos ficar surpresos, espantados, atordoados diante do

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fato inacreditável de que os nossos cachorros continuam a nos seguir e a nos obedecer. Talvez nos desprezem. Talvez nos perdoem. Ou talvez se sintam bem por não terem nenhuma responsabilidade. Nunca vamos saber. Talvez nos vejam como uma espécie fatal de criaturas enormes e malconstruídas, como besouros extremamente lerdos. Não como deuses, os cachorros devem ter nos observado e detêm uma compreensão devastadora posta em xeque por mil anos de obediência. Por que ninguém tem medo do cachorro? Por quanto tempo um animal que foi sel-vagem pode negar a própria selvageria? As pessoas ideali-zam os bichos e ao mesmo tempo aceitam e se mostram complacentes em relação à vida natural dos cachorros; co-çar as pulgas, enterrar um osso podre, rolar por cima do lixo, latir para uma árvore a noite inteira... Mas e o que elas fazem? Por acaso enterram coisas que apodrecem às escondidas para depois desenterrá-las e enterrá-las mais uma vez e fazem alarido debaixo de uma árvore oca e rolam no... não. Eu e o meu cachorro desprezamos essas pessoas. Vivemos escondidos em uma vida secreta, ocultos em nossa selvageria interior...

O cachorro tinha se levantado e esperava junto da porta. Os dois desceram a escada e passaram pela merce-aria, no vestíbulo Katri calçou as botas e o tempo inteiro aqueles pensamentos noturnos ameaçavam-na por todos os lados, quando saiu para o frio e ficou parada e encheu os pulmões com a pureza do inverno ela parecia um mo-numento preto com o cachorro inacessível aos pés, como que preso ao lado dela. Ele nunca andava na coleira. As crianças ficaram em silêncio e se afastaram em grupos pela neve, e depois de dobrar a esquina mais próxima con-tinuaram a gritar e a brigar umas com as outras. Katri se-guiu em direção ao farol. Liljeberg tinha levado bujões de gás para o farol, mas os rastros do caminhão tinham sido

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quase apagados pela neve. Mais perto do promontório o vento noroeste soprava do mar, era nesse ponto que o caminho começava a subir o morro em direção à casa da velha dona Aemelin. Katri se deteve e no mesmo instante o cachorro também parou. No lado do vento, os dois es-tavam brancos da neve que aos poucos se derretia nas pe-les. Katri ficou observando a casa como há muito tempo fazia todas as manhãs no caminho até o farol. Lá dentro, Anna Aemelin morava sozinha consigo mesma, sozinha com o próprio dinheiro. Durante todo o longo inverno ela quase não saiu de casa, tudo que precisava era enviado pelo merceeiro e a sra. Sundblom fazia a faxina uma vez por semana. Mas logo no início do outono o casaco claro de Anna Aemelin foi visto nos limites da floresta, onde ela caminhava devagar por entre as árvores. Os pais dela tinham vivido bastante e nada jamais havia cortado a flo-resta da família. Eram ricos como trolls quando morreram. E a floresta permanecia intocável. Aos poucos se tornou quase intransponível, e erguia-se como um muro logo atrás da casa – da casa do coelho, como diziam no vilarejo. Era uma casa cinza de madeira com janelas entalhadas em branco, um branco acinzentado como o cenário da floresta afogada em neve. Na verdade a construção parecia um grande coelho agachado, com os dentes quadrados das cortinas na varanda e as janelas estúpidas debaixo das sobrancelhas de neve e as orelhas atentas das chaminés. Todas as janelas estavam às escuras. Ninguém tinha limpa-do a neve do caminho.

É lá que ela mora. É lá que eu e Mats também va-mos morar. Mas eu preciso esperar. Preciso pensar muito bem antes de dar a Anna Aemelin um lugar importante na minha vida.

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Talvez se pudesse dizer que Anna Aemelin era gen-til, porque ninguém jamais a tinha obrigado a demonstrar maldade alguma e que portanto tinha uma capacidade fora do comum para esquecer coisas desagradáveis, ela simplesmente sacudia a poeira e continuava com aquele jeito ao mesmo tempo indeciso e teimoso. Na verdade ela chegava a parecer assustadora com tanta boa vontade, mas ninguém havia notado por simples falta de tempo; as raras e curtas visitas à casa do coelho afastavam os visi-tantes ocasionais com uma cortesia distante que os fazia sentir como se tivessem prestado homenagem a um ídolo menor. Anna não se escondia atrás de uma atitude, e tam-pouco seria correto dizer que não mostrava o verdadeiro rosto; mas ela vivia de verdade apenas quando cultivava o raro talento para a pintura, e enquanto pintava estava sempre sozinha, naturalmente. Anna Aemelin detinha o grande e convincente poder dos obstinados, o poder de enxergar e compreender apenas uma única coisa, e de interessar-se apenas por ela. E essa coisa era a floresta, o chão da floresta. Anna Aemelin desenhava a floresta de maneira tão minuciosa e tão convincente que nem uma única agulha dos pinheiros passava despercebida. As aquarelas eram pequenas e assumidamente naturalistas, e tão belas quanto o solo coberto de musgo e vegetação delicada que as pessoas muitas vezes atravessam em uma

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floresta densa, mas poucas vezes detêm-se para admirar. Anna Aemelin fazia com que as pessoas vissem, elas viam a ideia da floresta e lembravam e por um instante sentiam um leve anseio que as enchia de bem-estar e esperança. Era uma pena que Anna estragasse as aquarelas pintando coelhos nelas, ou seja, o papai, a mamãe e o filho Coe-lho. E também que os coelhos, enfeitados com pequenas flores, prejudicassem um bocado a profunda mística da floresta. Certa vez os coelhos foram criticados nas rese-nhas de livros infantis, Anna ficou magoada e insegura, mas o que ela poderia fazer, os coelhos precisavam estar lá por causa das crianças e da editora. Mais ou menos de dois em dois anos saía um novo livrinho. O texto era escrito pela editora. Às vezes Anna tinha vontade de pintar apenas o chão da floresta, os arbustos rasteiros, as raízes das árvores, sempre com mais detalhes e em escala cada vez menor, tão próximo e tão fundo no musgo que o mundo verde e marrom em miniatura se transformava em uma verdadeira selva povoada por insetos. Daria para imaginar uma família de formigas em vez dos coelhos, mas era tarde demais. Anna apagou da cabeça a imagem do cenário vazio e livre. Era inverno e ela nunca come-çava a trabalhar antes de ver o pedaço de terra nua. En-quanto aguardava, escrevia cartas para várias crianças que perguntavam por que os coelhos eram floridos.

Mas no dia em que a verdadeira história de Anna e Katri começou Anna não escreveu nenhuma carta, ela ficou sentada na sala lendo A aventura de Jimmy na Áfri-ca, um livro muito divertido. Da última vez ele estava no Alasca.

Os cômodos na casa de Anna, grandes e com o teto baixo, ficavam bonitos com os reflexos da neve, os fogões com azulejos brancos e azuis, os poucos móveis claros que ficavam encostados nas paredes e espelhavam-se no

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piso de parquê que a sra. Sundblom encerava uma vez por semana. Papai sempre queria ter muito espaço livre ao redor, ele era muito grande. E ele gostava de azul, um tom discreto de azul que estava em toda parte e ficava cada vez mais desbotado com o passar dos anos. Por toda a casa do coelho havia uma serenidade profunda, um ar de finalidade.

Mais tarde Anna deixou o livro de lado e decidiu telefonar para a mercearia, algo que não gostava nem um pouco de fazer. A linha estava ocupada, então ela se sen-tou junto à janela da varanda e esperou. Do outro lado da varanda estava o grande monte de neve que o vento no-roeste havia disposto em uma curva fechada, ao mesmo tempo brincalhona e austera. Sobre o pico, afiado como uma faca, a neve caía em um leque translúcido delicado. Todo inverno eram as mesmas linhas, e os montes de neve eram sempre bonitos. Mas o monte era grande e simples demais para chamar a atenção de Anna. Ela ligou mais uma vez e o merceeiro atendeu. Liljeberg já estava de volta? Ela tinha se esquecido de pedir manteiga e sopa de ervilha, não daquelas grandes, apenas uma latinha. O merceeiro não ouviu direito, ele respondeu que a estrada ainda não estava limpa e portanto o caminhão do correio não podia trafegar mas que mesmo assim Liljeberg tinha ido de esqui até a cidade e levaria a correspondência e além do mais um fígado fresco...

Não estou ouvindo!, exclamou Anna Aemelin. Fíga-do de quem? Aconteceu alguma coisa?

Fígado, repetiu o merceeiro, Liljeberg está trazendo um fígado fresco que eu vou reservar especialmente para a senhora, um fígado delicioso... Então ele desapareceu em meio à neve, mais uma vez as linhas tinham apresen-tado problemas. Anna bloqueou o mundo exterior e vol-

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