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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO
UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA
Regina Broco Lima da Silva
A RODA DA CONVERSA NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
a constituição da criança como sujeito
Americana
2016
Regina Broco Lima da Silva
A RODA DA CONVERSA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: a constituição da
criança como sujeito
Dissertação apresentada como exigência para
obtenção do grau de Mestre em Educação no
Programa de Mestrado em Educação, área de
concentração: Educação Sociocomunitária, sob
orientação da Profa. Dra. Renata Sieiro
Fernandes.
Co-orientação Profa. Dra. Norma Silvia
Trindade de Lima.
Americana
2016
Silva, Regina Broco Lima da.
S591r A Roda da conversa na educação infantil: a constituição da criança como
sujeito / Regina Broco Lima da Silva. – Americana: Centro Universitário
Salesiano de São Paulo, 2016.
112 f.
Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP.
Orientadora: Renata Sieiro Fernandes.
Inclui bibliografia.
1. Educação infantil. 2. Infância. 3. Roda da conversa. 4. Educação
sociocomunitária. 5. Narrativa – Brasil. I. Silva, Regina Broco Lima da. II.
Centro Universitário Salesiano de São Paulo. III. Título.
CDD 372.21
Catalogação elaborada por Lissandra Pinhatelli de Britto – CRB-8/7539
Bibliotecária UNISAL – Americana
Autora: REGINA BROCO LIMA DA SILVA
Título: A RODA DA CONVERSA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: A CONSTITUIÇÃO DA
CRIANÇA COMO SUJEITO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu do Centro
Universitário Salesiano de São Paulo, como
parte dos requisitos para a obtenção do título de
Mestre em Educação – área de concentração:
Educação Sociocomunitária.
Linha de pesquisa:
A intervenção educativa sociocomunitária:
linguagem, intersubjetividade e práxis.
Orientadora: Profa. Dra. Renata Sieiro
Fernandes.
Co-orientadora: Profa. Dra. Norma Silvia
Trindade de Lima.
Dissertação defendida e aprovada em____/____/______, pela comissão julgadora:
__________________________________________
Profa. Dra. Roberta Rocha Borges – Membro Externo
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
__________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos Miranda – Membro Interno
Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL
_________________________________________
Profa. Dra. Renata Sieiro Fernandes – Orientadora
Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL
Dedico este trabalho a todas as crianças
que nos presenteiam, todos os dias, com sua
maneira inusitada, generosa e sensível de ser e
lidar com o mundo tão previsível e endurecido do
adulto.
E à minha mãe querida, hoje ocupando outras moradas, pela
confiança em minha capacidade e incentivo aos meus estudos.
Compartilho com você, mãe, todas as alegrias e conquistas que este
momento representa.
AGRADECIMENTOS
A Deus, de maneira especial, por permitir que eu fosse acolhida em uma família que me
ofereceu, amorosamente, condições materiais e psicológicas para que eu pudesse buscar meu
crescimento pessoal, desenvolvendo-me como sujeito, e caminhar em direção a meus sonhos.
Ao meu marido, Nelson, e meu filho, Nelsinho, pelo distanciamento em determinados
momentos e compreensão por esta etapa tão especial na minha vida.
Às crianças queridas, pela postura de coragem e entrega ao inusitado, que não só me serviram
de exemplo, mas de aprendizado, conduzindo-me a maneiras outras de viver.
À amiga Elenir, pelo incentivo em muitos momentos de dificuldade, pelo companheirismo nos
estudos e nos desabafos, nas possibilidades de trocas e na esperança de novos caminhos de
parceria.
À amiga Celly, pela parceria e união de esforços em busca de um sonho: o mestrado.
Às professoras companheiras de caminhada, próximas e distantes, meu reconhecimento pela
perseverança e confiança na educação.
À orientadora deste trabalho, Professora Doutora Renata Sieiro Fernandes, pelo aceite
carinhoso ao meu convite, marcando um reencontro feliz depois de muitos anos. Postura
comprometida e sorriso que acolhe.
À co-orientadora deste trabalho, Professora Doutora Norma Silvia Trindade de Lima, pela
acolhida tão respeitosa e afetuosa. Pelo olhar atento, a escuta sincera e os encaminhamentos
pertinentes aos meus objetivos e ideias. Um encontro muito feliz.
À Professora Doutora Roberta Rocha Borges, pela postura sensível e respeitosa para com a
infância, deixando transparecer intencionalidade e empenho com mudanças tão almejadas na
educação.
Ao Professor Doutor Antonio Carlos Miranda, pela leitura sensível do meu trabalho, com
apontamentos e colocações singulares e afetuosas.
Às crianças, professoras, auxiliares de sala, funcionários e instituições que se envolveram direta
ou indiretamente com esta pesquisa assumindo atitude espontânea, receptiva e pacienciosa,
contribuindo não só para que meus estudos se materializassem nesta dissertação, bem como
ganhassem riqueza.
Em especial, aos meus anjos da guarda Elaine e Giselle, por acolherem meus medos e angústias,
fortalecendo e encorajando minhas capacidades, tecendo cuidados singulares em todo esse
processo maravilhoso de descobertas, todavia salpicado de receios e aflições.
[...] a educação é, em muitos casos, um processo em
que se realiza o projeto que o educador tem sobre o
educando, [mas] também é o lugar em que o
educando resiste a esse projeto, afirmando sua
alteridade, afirmando-se como alguém que não se
acomoda aos projetos que possamos ter sobre ele,
como alguém que não aceita a medida de nosso saber
e de nosso poder, como alguém que coloca em
questão o modo como nós definimos o que ele é, o que
quer e do que necessita, como alguém que não se
deixa reduzir a nossos objetivos e que não se submete
a nossas técnicas. (LARROSA, 2008)
RESUMO
A realização da roda da conversa pode ampliar a voz da criança no espaço educativo, por vezes
tão silenciada? Pode a roda da conversa ampliar a participação da criança como sujeito ativo
no espaço educativo? A presente pesquisa pretende discutir o silenciamento ou a amplitude da
voz da criança por meio da roda da conversa no espaço educativo. A intenção é discutir a prática
da roda da conversa, verificar e refletir em que medida tal proposta possibilita a ampliação da
constituição da criança no espaço educativo como sujeito ativo, bem como discutir situações
que favoreçam a criança a posicionar-se e ampliar sua participação não só no processo de
construção de conhecimento, mas nos acontecimentos dentro do espaço educativo. Para tanto,
a pesquisa de campo acontece em duas instituições escolares: uma particular e a outra pública,
um Centro de Educação Infantil (CEI), ambas no interior de São Paulo. A metodologia adotada
é qualitativa, utilizando a observação participante na escola particular, a observação total no
CEI, diário de campo, entrevistas semiestruturadas e desenhos das crianças do CEI, assim como
as narrativas, que permitem a reflexão e a discussão dos processos. Tem como sujeitos
participantes uma professora pesquisadora, uma professora, uma auxiliar de sala e vinte e três
crianças no total, na faixa etária entre 3 e 6 anos de idade. A análise dos dados é pautada em
autores que refletem sobre a infância como acontecimento, tais como Jorge Larrosa e Walter
Kohan. Célestin Freinet e Janusz Korczak participam com debates acerca da criança como
sujeito ativo no espaço educativo, contando ainda com contribuições de Loris Malaguzzi a
respeito da experiência em Reggio Emilia. A construção das narrativas tem aporte em Walter
Benjamin. O trabalho contribui com reflexões sobre situações nas quais a voz das crianças é
ampliada ou silenciada, indicando que o espaço educativo, ao se desprender de movimentos
rígidos e deterministas, leva a criança a se refazer e a interpretar-se continuamente como sujeito. Precisamos conceber a criança em sua potencialidade e inteireza numa relação de parceria com
o adulto, priorizando o fomento de práticas democráticas e escuta responsiva, revendo pensares
e fazeres no espaço educativo e concebendo a pedagogia das infâncias. Proposta esta condizente
com a educação sociocomunitária, que busca promover o processo de emancipação humana,
concebendo, assim, a educação como “apropriação-construção” visando à autonomia social.
Palavras-chave: Educação infantil. Infância. Roda da conversa. Educação
sociocomunitária. Narrativa.
ABSTRACT
Can the realization of a round of conversation broaden the child’s voice on the educational
space, sometimes so silenced? Can the round of conversation broad the child’s participation as
an active subject on the educational space? The following research intends to discuss the
silencing or the amplitude of the child’s voice via round of conversation on the educational
space. There’s the intention of discussing the round of conversation, verify and reflect in what
gage does it enable the amplification of the child’s constitution on the educational space as an
active subject, just as well discuss situations that help the child position herself and widen her
participation not only in the process of knowledge construction, but also in the affairs inside the
educational space. For this purpose, the field research happens in two schools: a private school
and a children’s educational center (CEI), both in the countryside of São Paulo. The
methodology adopted is qualitative using the participating observation in the privet school, total
observation in the CEI, field diary, semi-structured interviews and CEI’s children drawings, as
well as narratives, which allows a reflection and discussion of the processes. Having as
participating subjects: a researcher professor, a teacher, a class auxiliary and a total of twenty
three children from ages three to six. The data analysis is lined in authors who reflect about
infancy as event, such as Jorge Larrosa and Walter Kohan. While Célestin Freinet and Janusz
Korczak contributed to the debates about children as active subject in the educational space,
allied with contributions from Loris Malaguzzi regarding the experience in Reggio Emilia. The
narratives construction has support in Walter Benjamin. The work contributes with reflexion
about situations in which the voices of the children are amplified or silenced, indicating that the
educational space when detached from rigid and determinist movements makes the child rebuild
herself and interpret herself continuously as a subject. We need to conceive a child on their
potentiality and wholeness in a relationship of partnership with the adult, giving priority to the
fostering of democratic practices and responsive listener, reviewing thoughts and doings in the
educational space by designing pedagogy of childhoods. This proposal consistent with the
socio-communitarian education, which seeks to promote a process of human emancipation, by
designing thus education as “appropriation-building” aiming at the social autonomy.
Keywords: Children’s education. Infancy. Round of conversation. Social community
education. Narrative.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
• a. C. - antes de Cristo
• AG - Agrupamento
• AIP - Avaliação Institucional Participativa
• ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
• BDTD - Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações
• CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
• CEMEI - Centro Municipal de Educação Infantil
• CEI - Centro de Educação Infantil
• CPA - Comissão Própria de Avaliação
• D. O. - Diário Oficial
• ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
• EMEI - Escola Municipal de Educação Infantil
• FAACG - Fundação Antônio-Antonieta Cintra Gordinho
• LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
• NEPP - Núcleo de Estudos de Políticas Públicas
• PUC-Campinas - Pontifícia Universidade Católica de Campinas
• RMC - Região Metropolitana de Campinas
• SME - Secretaria Municipal de Educação
• UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 - Desenho da roda da conversa elaborado por João.....................................96
Ilustração 2 - Desenho da roda da conversa elaborado por Lucas...................................97
Ilustração 3 - Desenho da roda da conversa elaborado por José......................................98
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Produções com proximidade ou distanciamento com o presente trabalho (2011 e
2012) (CAPES)........................................................................................................................59
Quadro 2 - Produções com proximidade ou distanciamento com o presente trabalho (2003 a
setembro de 2015) (BDTD).....................................................................................................63
À GUISA DE INTRODUÇÃO
MEMORIAL: A criança como sujeito: novos olhares para a infância
O tema que hoje escolho como foco do meu trabalho de pesquisa há muitos anos me
acompanha em minha trajetória como professora de educação infantil. Ele foi constituindo-se
aos poucos, na mesma medida em que minha prática diária foi me transformando e
aproximando-me de algumas reflexões a respeito da infância.
Como professora de educação infantil na Prefeitura Municipal de Campinas há vinte e
quatro anos, sou tocada diariamente por questionamentos, comentários e falas de crianças que
me deixam encantada de maneiras muito peculiares e interessantes de não apenas ver, mas de
estar no mundo, as quais marcam o que é ser criança.
Cotidianamente eu percebia a euforia e a ansiedade com que as crianças chegavam ao
espaço educativo, ávidas por contar as novidades trazidas de casa, das convivências e vivências,
e, assim, a roda da conversa acontecia quase imperativamente. Nesses momentos,
posicionávamo-nos em círculo, visualizando o rosto e as feições um do outro e dessa maneira
muitos exercícios eram praticados ao mesmo tempo, tais como: organizar mentalmente a
sequência de ideias, permitindo o maior entendimento de todos, aprender a ouvir, vivenciar
opiniões contrárias sem se alterar, aceitando as diferenças. Esses momentos foram ampliando-
se e não ficávamos apenas nas novidades; ali tomávamos decisões e fazíamos
encaminhamentos, realizávamos votações, planejávamos nossa semana e nossos trabalhos,
buscando trazer a participação de todos no processo de organização do trabalho desenvolvido
dentro do agrupamento1.
Apesar de acreditar no diálogo como forma de resolução de conflitos, creio que precisei
vivenciar algumas situações para que isso ficasse mais nítido.
No ano de 2001, fui convidada por uma amiga para trabalhar em uma escola particular
no interior de São Paulo; era uma experiência nova para mim, que só havia trabalhado no ensino
público. Tratava-se de um grupo pequeno de nove crianças, mas, com muitos debates e
colocações no momento de roda, ali fazíamos nossos combinados, expúnhamos nossas ideias e
pensamentos. Havia crianças mais tímidas e outras com mais posicionamento, e comecei a
perceber situações de exclusão durante as partidas de futebol que eram demonstradas pelos
1 O termo agrupamento foi uma nomenclatura utilizada com base na resolução SME n. 23/2002, publicada no
Diário Oficial do Munícipio no dia 13/11/2002, para designar crianças matriculadas e divididas em turmas por
idade aproximada: Agrupamento I – crianças de 3 meses a 1 ano e 11 meses; Agrupamento II – crianças de 2 a
3 anos e 11 meses e Agrupamento III – crianças de 4 a 6 anos.
vários comentários a respeito do que é ser um bom jogador. Apesar de minhas falas durante o
jogo, precisei trazer para a roda da conversa e abrir a questão para que todos pudessem se
posicionar e falar de seus sentimentos. Foram momentos muito ricos para todos. De um lado,
os que estavam sentindo-se excluídos puderam, sem o intermédio do adulto, colocar-se para o
outro e dizer a respeito de seu incômodo. Por outro, aquele que se sentia o líder precisava ouvir
os colegas, deparando-se com críticas a seu modo de agir. Vivenciamos uma grande mudança
na turma, inclusive com vários comentários dos pais, afirmando as transformações benéficas.
Essa experiência foi muito marcante e não só reforçou minhas crenças, mas permitiu
muitas outras reflexões no intuito de trazer a criança à fala de si, do que sente, de como quer
ser tratada, do que gosta ou não.
Hoje, com uma visão mais ampla, faço minhas observações da criança no espaço
educativo como um todo, não só restrito ao agrupamento, mas procurando focar em quais
situações ela é tratada como sujeito? Sua historicidade, seus desejos e opiniões são considerados
no planejamento de festas e eventos? Pensa-se muito pela criança e talvez pouco na criança.
Por que ela não é ouvida? A roda da conversa parece uma situação oportuna para que a voz da
criança, por vezes tão silenciada, seja ampliada a ponto de indicar alterações substanciais no
planejamento escolar. Movimento este que me conduziu à pedagogia das infâncias2, buscando
evidenciar fazeres educativos direcionados às infâncias nas suas singularidades.
Tantas memórias... Em busca das raízes... Constituindo-me sujeito
Ser professora, para mim, nunca foi um momento de dúvida, sempre tive isso muito
decidido em mim, e algumas vivências me ajudaram a formar essa opinião.
Minha mãe querida, Vanda, hoje falecida, era professora de segundo grau, como era
então chamado o ensino fundamental. Ela dava aulas de história e ocupava um lugar de destaque
no meu imaginário de mulher/mãe pelo que viveu e pela postura que tinha em casa conosco.
Nascida em Bariri/SP, uma cidade interiorana, muito pequena, segunda filha de quatro
irmãs, ao completar 18 anos decide, com uma amiga, morar e estudar em Campinas. Apesar de
sua mãe dizer: “Isso não vai dar certo”, com firme propósito e muito diálogo explicou sua
intenção. Chegando a Campinas, ingressou como aluna da PUC-Campinas, cursando história
no período noturno. Como não poderia ser diferente, trabalhava durante o dia como secretária
2 Pedagogia das infâncias refere-se aos estudos das práticas educativas voltadas para a pluralidade das infâncias,
as quais se constituem em diferentes tempos e lugares diversos, que se configuram e reconfiguram nas múltiplas
relações cotidianas (PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2013, p. 16).
bilíngue para custear os estudos e a estadia, já que seus pais não tinham como ajudá-la
financeiramente. Seus conhecimentos eram vastos, assim como sua vivacidade e grande
disposição para ler, debater os mais variados assuntos, dona de muitos e diversos saberes – e
de muita sabedoria também. Minha mãe me encantava quando discorria a respeito de algum
assunto que estava estudando na escola, acompanhando-me até nos estudos da faculdade,
ocupando lugar de parceria nas leituras e nas produções escritas.
Essa conexão apaixonada e curiosa por novos conhecimentos e novas visões de mundo,
suscitadas pelos livros, constituiu-me no que sou hoje, uma pessoa interessada pela relação
entre teoria e prática. Isso é algo que faz parte de mim e me impulsiona a melhorar cada vez
mais, sempre pensando em meu vínculo com as crianças, em meu trabalho e em minha postura
de professora. A conduta de minha mãe também me fornecia apoio e referencial, sempre
tranquila, ponderada, sensata, utilizava o diálogo como modo de entendimento, palmadas ou
qualquer tipo de repreensão mais rígida não existiam em minha casa, uma boa conversa sempre
prevalecia. Fui crescendo com alguns valores e referenciais que se foram consolidando não só
em minha vida, mas em meu trabalho: diálogo, sensatez e discernimento, mesmo nas situações
mais críticas. Minha escolha profissional também foi muito influenciada pelo modelo de minha
mãe como professora.
Morei por muitos anos em uma casa com quintal e rua pouco movimentada, onde podia
me esbaldar nas brincadeiras. Nessa casa estão as lembranças mais nítidas da minha infância.
As brincadeiras na rua ocupam um espaço grande e querido em minhas recordações. Adorava
brincar de pega-pega e suas variações, mamãe da rua e outras diversões que exigiam destreza e
rapidez. Eu era muito hábil nessas brincadeiras, e os eventuais tombos, dos quais ainda trago
marcas nos joelhos, contavam com os cuidados do meu pai nos curativos com o bendito remédio
que ardia até a alma e alguns sopros para amenizar a dor. Ainda me lembro de minha mãe
chamando a mim e a meus irmãos no portão: “Tá na hora de entrar, tomar banho e jantar”.
Então não podíamos mais sair, só no dia seguinte. Que tristeza abandonar os amigos e tantas
outras ideias que juntos tínhamos planejado, o tempo parecia correr mais veloz que nossas
pernas nas brincadeiras.
Televisão não era uma de minhas paixões. Eu achava muito chato ficar ali, parada, só
assistindo; gostava mesmo era de brincar. Nem as bonecas me encantavam mais que a diversão
com meus irmãos, no quintal, em meio aos pés de laranja e manga, ou à noite quando
inventávamos os teatros, cineminhas e sessões de música, na qual imitávamos alguns cantores,
ao som de alguns vinis de meus pais e uma vitrola. Tínhamos também uma coleção de
disquinhos coloridos com histórias, que guardo comigo até hoje, e muitos trechos já tínhamos
decorado. Minha história predileta era Alice no país das maravilhas. Ela causava-me grande
encantamento, com alguns trechos e músicas, como no momento em que Alice caía no buraco
da árvore, permitindo-me inúmeras possibilidades de vivências e lugares. Seria real um buraco
que nos conduz a outro mundo? Como seria um mundo diferente deste em que vivo? Uma
rainha brava e rabugenta? E um coelho apressado com seu relógio? Sem dúvida, a festa de
“desaniversário” me conduzia a maneiras outras de ver as coisas, como se tudo tivesse um lado
avesso.
Aos domingos, visitávamos meus avós paternos, Olga e Sebastião. Minha avó
esmerava-se nos quitutes para nos agradar e preparava verdadeiras delícias, uma mesa farta.
Guardo na memória seu olhar buscando a confirmação de que acertara no sabor e que estava
agradando muito ao nosso paladar. E meu avô, com uma história particular e muito interessante,
abordava-nos para algumas horas de conversa. De família simples e sem condições de
prosseguir os estudos além do quarto ano primário, fazia-nos recomendações de livros que leu
e mostrava vários escritos de sua autoria: cartas, registros, diários, bilhetes, enfim, uma relação
harmoniosa entre leitura e escrita e um prazer e encantamento por esse universo que saltava aos
olhos, que me envolvia não só pela beleza, mas pelo exemplo de vida. Hoje conto com a
felicidade de ter comigo essa coleção de escritos, o que me permite a escolha de um deles para
compor este memorial.
Em 1932 residia em Olimpia. Trabalhava como praticante grátis na estação da
Estrada de Ferro São Paulo Goiás.
Quando em julho, surgio a revolução Constitucionalista. Nos últimos dias de julho,
pedi permissão aos meus Paes para ingressar nas fileiras de voluntários.
Concordaram.
Não me lembro data. Alistei-me como voluntario. Com mais alguns voluntários, segui
para São Paulo (capital).
Já noite, na estação da Luz, pessoas nos esperavam. Em dois veículos, fomos para um
certo grupo escolar na Avenida Paulista.
Colchoes distribuídos pelo chão. Passamos a noite.
Dia seguinte, forneceram café e pão. Logo após pessoal em forma. Recebemos
casquetes, e marchamos para o bairro do Pacaembu, onde deram instrução militar.
Na época Pacaembu era barrancos, buracos e pedregulhos.
Foi um corre, pula, jogar se no chão e rastejos.
Dia seguinte, instruções. Ao anoitecer, no pátio todos soldados em forma.
Procederam a chamada. O Capelão benzeu a turma. Em caminhões viemos para São Paulo.
Chegando mais ou menos à 1 da madrugada. Fomos para a Av. Tiradentes nos alojamentos
do 7º da cavalaria. Passamos a noite. Dia seguinte, quartel impedido. Não tivemos café.
Perto das 14 horas, puseram no pátio 2 meios tambores de ferro, com virado de feijão preto,
farinha de mandioca e carne seca. Formou fila. Todos comeram. Depois fila na torneira. Não
tiraram o sal da carne seca.
À noite, fomos para a Estação da Luz. Nós soldados não sabíamos o destino.
Embarcamos. Trem partiu. Em Campo Limpo baldeamos, e seguimos para Bandeirantes.
Final da linha da Estrada de Ferro Bragantina.
Na nossa chegada, não tinha luz, e chovia e muita lama. No escuro, uma pessoa nos
orientava e nos levou a um comodo. Onde passamos a noite. Nesse comodo não tinha nada.
Chão cimentado. Molhados como estávamos, a roupa enxugou no corpo. Dia seguinte, todos
tossiam.
De manhã, assistimos ao longe o aeroplano Vermelhinho soltar bombas num lugar
que deviam chamar Mãe dos Homens3.
Entre vários materiais escritos, fiz a escolha desse por parecer ser o que ele gostaria que
eu escolhesse, talvez pelo orgulho que sentia em ter a oportunidade de defender sua nação. Em
suas memórias, que guardo com carinho, há medalhas entregues aos ex-combatentes, recortes
de jornal, livretos explicativos da Revolução e tantos outros registros.
Hoje devo muito a todas essas situações vividas e suas repercussões no meu modo de
ser, que não só me constituíram, mas me impulsionaram a cursar o mestrado e a continuar essa
caminhada, iniciada por meu avô e por minha mãe, de buscar uma relação possível entre os
livros e a vida, entre nossas crenças e os mestres que as alimentam buscando um paralelo entre
sonho e felicidade/realização.
Sinto que vivenciei situações de diálogos e argumentações em oposição a atitudes
autoritárias, o que me permitiu uma maneira diferenciada de olhar a infância e sua maneira
única de ser e estar no mundo. A infância aproxima-se muito de vivências intensas e de
possibilidades de novos olhares para o mundo, e como professora não podia me eximir da quase
tarefa de buscar reflexões acerca da criança no espaço educativo. Alguns questionamentos que
3 Tive o cuidado de registrar na íntegra o conteúdo e a forma com que meu avô escreveu, não fazendo correções.
povoam meus pensamentos permitem interlocuções, nesta dissertação de mestrado, em uma
tentativa de ampliar reflexões e lançar-me em autores e práticas que podem ampliar a
visibilidade de algumas hipóteses, pôr em xeque outras e, quiçá, indicar possibilidades de novos
caminhos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 20
CAPÍTULO I: VARANDO A VIDA ENTRE SENHAS E CONSENTIMENTOS: O DEVIR-
CRIANÇA INAUGURANDO O NOVO............................................................................................25
1.1 A infância na contemporaneidade: a criança como sujeito.........................................................25
1.2 O devir-criança e o espaço educativo..........................................................................................28
1.3 Propostas curriculares..................................................................................................................36
CAPÍTULO II: DA CIRCULARIDADE À RODA, DA NÃO FALA À FALA: O HOMEM
CONSTITUINDO-SE SUJEITO ........................................................................................................43 2.1 O significado do círculo... conduzindo à roda.............................................................................43
2.2 De infans a sujeito ativo: desvendando uma trajetória................................................................47
2.3 Célestin Freinet............................................................................................................................49
2.4 Janusz Korczak............................................................................................................................51
2.5 Para além das concepções: em busca da alteridade.....................................................................55
CAPÍTULO III: MOVIMENTOS DE ESCUTA: DEIXANDO O CONHECIDO.........................58 3.1 Pesquisa bibliográfica: proximidades e distanciamentos ...........................................................58
3.2 Encontro com os sujeitos: as crianças.........................................................................................68
3.3 Caracterizando os campos de pesquisa. ......................................................................................72
3.3.1 A escola particular..............................................................................................................72
3.3.2 Revisitando o CEI...............................................................................................................73
3.4 Caracterização dos sujeitos da pesquisa: afinal, quem são eles? ................................................74
3.5 Procedimento de construção de dados.........................................................................................75
3.6 Procedimento de discussão de dados...........................................................................................77
CAPÍTULO IV: ENTRE PERCEPÇÕES E SABERES: CABENDO, DESCABENDO E
SEGUINDO O CAMINHO..................................................................................................................79
4.1 Visualizando os dados: construindo saberes................................................................................79
4.2 Diário de campo da escola particular: permitindo outras percepções.........................................86
4.3 Vamos, crianças, a roda vai começar..........................................................................................88
4.4 Entrevista semiestruturada...........................................................................................................90
4.5 O que dizem as crianças sobre a roda da conversa? Desenho como fonte
documental.........................................................................................................................................94
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................................99
REFERÊNCIAS..................................................................................................................................105
20
INTRODUÇÃO
Remo pelos barrancos
E remo no sentido contrário
Para avistar mais uma vez
O lugar da infância.
(BREGALDA, 2012, p. 71)
Ao longo de muitos anos como professora em instituições de educação infantil, vivi um
processo crescente de observar a criança, buscando caracterizar as infâncias em suas
peculiaridades, em sua maneira singular de ser e estar no mundo4.
Caminhei no sentido contrário do que assistia e vivenciava nas escolas nas quais
trabalhei. O que via e ouvia das crianças parecia desconectar sentimentos e fazeres por mim
concebidos para aquele ambiente, que, em minha opinião, necessitava promover trocas e o fazer
coletivo por meio de práticas dialógicas capazes de alcançar as diversas infâncias. Entretanto
me deparei com vivências que desconsideravam pessoas como sujeitos, em sua inteireza,
passando a agir e exigir das crianças atitudes uniformizadas, como se elas formassem um
rebanho, uma massa homogênea.
E não me refiro apenas às crianças. Ao lançar um olhar atento e carinhoso para meus
colegas, vejo pessoas que também deixaram para trás, perdidos no caminhar, seus sonhos,
desejos e princípios, desenvolvendo subterfúgios que permitissem a sobrevivência. Não me
aprofundo nessas questões, pois elas não constituem o foco deste estudo, mas deixo aqui
registrado meu respeito por pessoas que enfrentam dificuldades diariamente e que, muitas
vezes, sucumbem diante de tantas situações de desrespeito e destituição de singularidade no
interior de espaços denominados educativos.
Prossegui ampliando minhas reflexões acerca de como a criança é vista dentro do espaço
educativo, da maneira como é acolhida ou não sua opinião, solicitações e desejos, enfim seus
direitos, assim como a consideração de suas histórias pessoais, pela perspectiva de ser a criança
considerada sujeito. Remei pelos barrancos tentando avistar a infância, muitas vezes distorcida
e mal interpretada pelo adulto, e começando a entender que precisamos falar das infâncias de
maneiras distintas e variadas, para além do que, à primeira vista, possam parecer e nos indicar.
4 O uso da primeira pessoa do singular se faz necessário na construção das narrativas e de minhas reflexões
particulares, que são marcadas por um posicionamento mais subjetivo e individualizado no processo da pesquisa.
E o uso da primeira pessoa do plural é intencional, na medida em que busco trazer as diversas vozes que se
entrelaçam e formam o presente texto, em uma tentativa de me posicionar com o aporte teórico.
21
Adotando a perspectiva de uma pedagogia da infância, em uma tentativa de “mostrar as
potencialidades de cada criança e para dar a cada uma delas o direito democrático de ser
escutada e reconhecida como cidadã na comunidade” (Rinaldi apud BORGES, 2014, p. 11),
abarcando as particularidades das crianças em vez de padronizar.
No presente trabalho, a criança é concebida como sujeito de historicidade, de
conhecimentos, de sentimentos, de pensamentos e opiniões. Há uma intenção de olhar e escutar
as infâncias, na contemporaneidade, distanciando-se de algumas concepções que analisam esse
período etário, baseando-se no desenvolvimento psicológico. Nessa perspectiva, a problemática
desta pesquisa é refletir sobre o silenciamento e a amplitude da voz da criança, entre 3 e 6 anos,
por meio da roda da conversa no espaço educativo. É comum a criança estar ávida por contar
as novidades de sua casa, mostrar algo interessante que descobriu, enfim, falar de vivências e
acontecimentos de sua vida, do que a impressionou ou a encantou, a ponto de querer
compartilhar com as demais crianças. Portanto aqui busquei refletir acerca de situações de
acolhimento ou não dessa necessidade na realização da roda da conversa, uma vez que no
espaço educativo a criança precisa lidar com várias intervenções que, muitas vezes, acabam
provocando o silenciamento de sua voz, tendo em vista que sua opinião em muitos momentos
não é considerada.
Surgem, então, algumas questões importantes acerca do assunto: No espaço do
agrupamento escolar, o professor pode oferecer encaminhamentos que propiciem a criança
ampliar sua voz por meio da roda da conversa? Não só no intuito de expor ideias e pensamentos,
mas buscando uma interlocução com os colegas, contribuindo para a organização do trabalho
que se pretende no coletivo?
Interessa aqui discutir a criança produzindo-se enquanto sujeito ativo, dentro do espaço
educativo, tendo como recorte a roda de conversa.
Desse modo, há uma intenção, na presente pesquisa, de contemplar os seguintes
objetivos: discutir a roda da conversa, verificar e refletir em que medida tal atividade possibilita
a ampliação da participação da criança, de maneira que ela se posicione não só no processo de
construção do conhecimento, mas nos acontecimentos dentro do espaço educativo, favorecendo
possibilidades de debates e trocas entre seus pares e com os adultos. Discutir a criança
produzindo-se enquanto sujeito ativo, bem como situações que favoreçam ou não essa
possibilidade na dinâmica da roda da conversa.
A metodologia adotada é a qualitativa, uma vez que busco tratar da realidade em sua
totalidade, não a dividindo em unidades menores para serem quantificadas ou isoladas, mas sim
levando “em conta todos os componentes em suas interações e influências recíprocas”, como
22
bem salienta André (1995, p. 14), pois “a observação é chamada de participante porque parte
do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada,
afetando-a e sendo por ela afetado” (ANDRÉ, 1995, p. 24). O campo de investigação abarca
duas escolas: uma particular e a outra pública, um Centro de Educação Infantil (CEI), ambas
no interior de São Paulo. Assim, são analisadas duas realidades educacionais distintas e a roda
da conversa como prática pedagógica, em cada uma delas. São utilizadas a observação
participante na escola particular, a observação total no CEI, diário de campo, entrevista
semiestruturada e desenhos das crianças do CEI, assim como as narrativas, que permitem uma
reflexão e discussão dos processos. Como sujeitos participantes, temos uma professora
pesquisadora, uma professora, uma auxiliar de sala e vinte e três crianças no total na faixa etária
entre 3 e 6 anos.
A pertinência desse estudo refere-se às reflexões que consideram o aporte da roda da
conversa enquanto possibilidade de a criança constituir-se como sujeito no espaço educativo,
dando visibilidade às suas inquietações, curiosidades e observações e, com isso, promover
debates, troca de ideias e construção coletiva de metas e objetivos entre os pares, tendo o
professor como mais um componente e parceiro do grupo, em uma relação dialógica,
perseguindo uma concepção mais democrática e participativa de educação:
Ainda está distante a prática pedagógica (e/ou uma prática social) que se baseia em
relacionamentos por meio do diálogo, algo tão essencial no trabalho da Educação
Infantil. A pedagogia do diálogo, da escuta e do pensamento deve imperar nas
instituições educacionais, pois é ela que mantém a escola viva. (Malaguzzi apud
Dalhlberg et al. apud BORGES, 2014, p. 11)
Segundo o aporte teórico, tais procedimentos buscam dar lugar à criança como
protagonista de suas ações, buscando um contraponto e uma forma outra de visualizar e
promover a escuta socialmente às infâncias na atualidade. Compreendendo que o espaço
educativo e as infâncias não devem ser vistos como preparatórios ou localizados à margem da
sociedade, mas ocupando espaço político de direito em uma coletividade. Apesar de
vivenciarmos situações de controle e manipulação de várias esferas, massivamente pela mídia,
que em muitos momentos nos enxerga como meros consumidores, a criação de linhas de fuga
nos permite manifestar nossas singularidades agindo na contramão do que nos é imposto.
A análise dos dados é pautada em autores que refletem a respeito da infância como
acontecimento, tais como Jorge Larrosa e Walter Kohan. Célestin Freinet e Janusz Korczak
participam nos debates acerca da criança como sujeito ativo no espaço educativo, contando com
23
contribuições de Loris Malaguzzi a respeito da experiência em Reggio Emilia, na educação da
primeira infância. A construção das narrativas tem aporte em Walter Benjamin.
A infância traz consigo utopias e sonhos para uma sociedade, formas diferentes da que
vivemos e vale-se do espaço educativo com objetivos sociais relacionados à ampliação de
vivências de participação e trocas, bem como fazeres coletivos em seu cotidiano. Pensar as
infâncias indica uma preocupação iminente com o presente e com formas educacionais
condizentes com essa proposta.
Em parceria com tais pressupostos, alia-se a proposta de investigação em educação
sociocomunitária que, nas palavras de Gomes (2009, p. 6):
surgiu do estudo da identidade histórica de uma prática educativa, a educação
salesiana. Em suas origens históricas, ela se fundava na articulação de uma
comunidade civil – de religiosos e cidadãos comuns – em torno de um projeto
educacional, que participou e promoveu transformações sociais em seu tempo e lugar
histórico.
Podemos perceber que se encontra implícito nessa concepção um “processo educacional
marcado por intervenções educativas que articulam a comunidade para transformações sociais”
(GOMES, 2009, p. 6). Dessa forma, podemos apontar uma concepção de educação que carrega
em si um comprometimento com a constituição do sujeito de direito articulado com as
transformações sociais, princípios que também delineiam o estudo em questão.
A discussão dos dados está organizada com base nos diálogos e na construção das
narrativas que permeiam a roda da conversa, assim como nas ponderações e inferências da
pesquisadora.
A inclusão de alguns desenhos das crianças permite enriquecer as narrativas, sendo esses
trabalhos compreendidos não só como forma de expressão, ou ainda exposição de pensamento
e sentimento, mas, principalmente, são “elevados ao status documental” (GOBBI, 2004, p. 20).
Busco, dessa forma, indicar sua relevância, assim como uma forte intenção de apresentar
documentos elaborados por crianças, registrando suas “inventividades”, e não retratos da
realidade, distanciando-as das intencionalidades primeiras dos adultos.
A pesquisa bibliográfica busca dissertações e teses no período de 2003 a setembro de
2015, com proximidades e distanciamentos com o presente estudo, o que nos permite visualizar
a relevância do assunto, uma vez que esta pesquisa busca ampliar as possibilidades da
participação da criança como sujeito ativo por meio da realização da roda da conversa nos
espaços e tempos educativos.
24
O presente estudo segue apresentando quatro capítulos. No primeiro deles figura a
contextualização do problema de pesquisa, articulando-o com o objetivo do trabalho. O
segundo capítulo objetiva incluir concepções de Paiva (1996) a respeito de Freinet, assim
como contribuições de Korczak (1983) acerca da valorização dos momentos de diálogo e
planejamento coletivo nas reuniões-debate, finalizando com algumas reflexões sobre
alteridade, buscando compreender os princípios que podem propor outros caminhos. Por sua
vez, o terceiro capítulo apresenta a pesquisa bibliográfica realizada buscando no mundo
acadêmico quais produções nos últimos dez anos possuem semelhanças com o presente
estudo, bem como caracteriza os sujeitos e campos de pesquisa: duas escolas na região do
interior de São Paulo, uma pertencente ao ensino público e a outra à rede particular,
finalizando com o processo de construção e discussão dos dados. O quarto capítulo apresenta
a análise dos dados coletados à luz dos referenciais teóricos, procurando, inicialmente,
caracterizar a metodologia, os sujeitos e os procedimentos. E, por fim, as considerações finais
são apresentadas.
25
CAPÍTULO I – VARANDO A VIDA ENTRE SENHAS E CONSENTIMENTOS: O
DEVIR-CRIANÇA INAUGURANDO O NOVO
Para se varar a vida
é preciso continuar letra a letra,
número a número,
decorando as senhas e as palavras exatas
que engolimos com café,
e tudo sem o nosso consentimento,
goela abaixo,
mas precisamos concluir o relatório
precisamos ser eficazes, fazer bonito.
(BREGALDA, 2012, p. 32)
O presente capítulo inicia-se indicando características da sociedade em que vivemos
que talvez nos leve a crer que apenas varamos a vida em vez de vivê-la, prosseguimos letra a
letra, número a número, envoltos em um sistema que exige decorar senhas e agir de maneira
exata, apenas engolimos o café e concluímos o relatório de modo eficaz e bonito. Distantes de
nossas particularidades, mas muito próximos das exigências do controle em que somos
capturados e massificados. Em contrapartida, o deparar com a infância nos convida a outras
maneiras de vivenciar o que chamamos existência, e, ao nos sentir tocados, aceitamos o convite
e experimentamos devires, movimentos que nos aproximam de quem somos enquanto sujeitos.
1.1. A infância na contemporaneidade: a criança como sujeito
Na sociedade contemporânea, ao mesmo tempo denominada disciplinar e de controle,
prevalecem, além dos mecanismos disciplinares, outros mais sutis que nos capturam e
interferem em nossos processos de produção de subjetividade, limitando nossas potencialidades
enquanto sujeitos, como aponta Araújo (2006). Processos estes que nos capturam, adultos e
crianças, concebendo a infância de forma normativa e destituída de singularidades.
Ao lançar olhares e reflexões sobre as crianças em uma tentativa de compreender mais
profundamente como vivenciam a infância5 e como esta é vista e concebida na sociedade atual,
5 Neste trabalho apresentamos significações distintas para os termos infância e infâncias. Infância, no singular, é
interpretada como experiência, como possibilidade de vivências intensas que acontecem em um tempo mais largo
associado à criação e seus devires. Infâncias, no plural, compreendem maneiras de nos referir as mais variadas
formas de expressão aliadas à criança, marcando sua alteridade, em oposição a formas estereotipadas e rígidas de
caracterizá-la.
26
surge o questionamento, escopo deste estudo, a respeito das possibilidades de a criança
produzir-se enquanto sujeito ativo com a amplitude de sua voz por intermédio da roda da
conversa no espaço educativo. Pautando-nos no conceito de “devir-criança”, buscamos discutir
a infância como multiplicidade, acontecimento e possibilidade, em oposição à ideia de
linearidade, cronologia e previsibilidade, como discute Kohan (2004) acerca das contribuições
de Deleuze e Guattari.
A criança traz em si maneiras inusitadas e múltiplas de ser, que muitas vezes foge à
lógica do adulto e faz repensar. Lembro-me de uma situação com um garotinho em que,
enquanto aguardávamos a vez de nos servir no refeitório, ele me lançou a seguinte pergunta:
– Você tem medo de bicho-papão?
Respondi:
– Não...
– E de vampiro?
Respondi já curiosa, querendo saber aonde ele pretendia chegar:
– Também não.
Então completei, tentando mostrar que também tinha medos.
– Eu tenho medo de ladrão.
De repente veio a resposta tão inesperada quanto a pergunta inicial
– Ah... mas o ladrão só rouba as coisas da gente. (Diário de campo, 06/08/2016).
Fiquei por algum tempo pensando na resposta, e em especial no trecho “só rouba”, que
para mim era o pior de tudo e me causava muito mais que medo, e para ele soava como algo
irrelevante. Na sociedade capitalista e consumista na qual vivemos, em que o ter prevalece ao
ser, vivenciamos sentimentos distintos, eu como adulta já impregnada por essa lógica, e o
menino enquanto criança, preocupado com o bicho-papão e vampiros, entendendo que esses
seres levariam a sua existência, e não os seus bens materiais.
Pensar as infâncias como maneiras inusitadas e inventivas de ser que se ligam ao que
ainda não sabemos nos permite refletir sobre os devires. Nietzsche (apud DELEUZE, 1992)
apresenta-nos o termo “devir” como acontecimento, algo que escapa à história, o original. A
história não é a experimentação, ou seja, o evento em si, o acontecimento, ela apenas designa o
conjunto e a sucessão das condições de uma experiência, reportando-se ao que já aconteceu.
No devir, há uma criação do novo, há “o que Nietzsche chama de intempestivo”, como elucida
Deleuze (1992, p. 210-211).
Reportar às três metamorfoses de Nietzsche (2013) também nos permite alargar a
compreensão acerca da criança, ao mesmo tempo em que vem ao encontro da concepção de
infância contemplada neste trabalho. Nietzsche (2013), ao se referir às três metamorfoses do
espírito, mostra a primeira, que faz alusão ao camelo, um animal que suporta pesadas cargas,
27
rejubilando-se, mas que, quando sobrecarregado, dirige-se ao deserto e, na solidão, transforma-
se em leão na tentativa de conquistar a liberdade. Luta com o dragão “tu deves”, impondo o seu
“eu quero”, em uma investida de romper com valores milenares em busca de sua liberdade, mas
ainda não consegue criar novos valores. Nesse momento, ocorre a terceira metamorfose: o leão
transforma-se em criança, que traz consigo “inocência, esquecimento, um recomeço”
(NIETZSCHE, 2013, p. 43).
Nessa analogia, o espírito humano inicia-se como camelo para atingir o último estágio
como criança, adotando uma lógica de evolução que abandona a posição de suportar o peso das
cargas – o que lhe é imposto pelas gerações passadas – para tornar-se criança, inaugurando o
novo, trazendo o descompromisso de perpetuar o que já foi determinado, abrindo-se novos
caminhos.
Voltando ao espaço educativo, observamos propostas de atividades sendo transmitidas
de maneira sistemática às crianças e, mesmo que muitas delas tenham sido elaboradas
conjuntamente, ao serem realizadas saem do plano das ideias e passam para o real, mas o
imaginário da criança atua sem cessar e muitas outras possibilidades não planejadas podem
acontecer. A criança faz incessantes convites aos adultos para que ingressem na viagem do novo,
produzindo infância, como elucida Abramowicz (2015). Nesse momento, inúmeras
possibilidades disruptoras são lançadas como garoa fina, que pode nos atingir, modificando-
nos, deixando-nos molhados, impregnados e envolvidos com a experiência, que, diferentemente
do que foi planejado, agora se enriquece, transforma-se, torna-se dialógico, colocando adultos
e crianças em condição de troca, não mais em oposição e hierarquia, mas em sintonia. Abrem-
se possibilidades para o adulto permitir-se contaminar por essa outra maneira de vivenciar o
agora e acessar as infâncias dentro de si.
Abramowicz (2015, p. 76) nos provoca ainda mais, mexendo com nossa postura
autoritária e sisuda de adulto, quando afirma que infância é uma experiência, não uma etapa
cronológica, e que não tem a ver com idade, com cronologia, “etapa psicológica ou a uma
temporalidade linear”, com situações que ocupam uma linha fixa de sucessão. “Está ligada ao
acontecimento; vincula-se à arte, à inventividade, ao intempestivo, ao ocasional, vinculando-
se, portanto, a uma des-idade”. O adulto pode deixar-se envolver por essa outra maneira de
conceber a prática da vida, assim como o soldado que aos poucos se despe da armadura, que o
faz parecer forte e superior, e permite-se atravessar pela infância, deixando-se vivenciar devires,
ampliando capacidades de criação. Muda-se a postura perante a vida, permitindo-se invenções
e produções, em vez de imposições: “o poder da vida opondo-se ao poder sobre a vida”
(ABRAMOWICZ, 2015, p. 76).
28
1.2. O devir-criança e o espaço educativo
O devir-criança permite trazer implícito um olhar e uma escuta para as infâncias,
buscando outra temporalidade, ligada à revolução, à experimentação e à criação. Assim, como
nas metamorfoses de Nietzsche (2013), o leão surge para resgatar a liberdade perdida, mas não
consegue criar e inaugurar uma nova liberdade, somente a criança cria a “liberdade libertada”
que vai além do passado e do futuro, e que se inscreve no incerto, uma liberdade que não se
sustenta no conhecido. “A liberdade é a experiência da novidade, da transgressão, do ir além do
que somos, da invenção de novas possibilidades de vida” (LARROSA, 2009, p. 98).
A liberdade que se encontra na criança, tão distante do leão enquanto força que impõe e
amedronta, faz-nos repensar sobre a criação das linhas de fuga, que nascem das conquistas,
lutas, tensões e criações que envolvem nosso cotidiano dentro e fora das relações e das
instituições. O que nos possibilita tomar certo distanciamento do controle que nos captura nessa
sociedade consumista e controladora, em que até mesmo a liberdade é uma mercadoria – que
consumimos e que nos consome – e, portanto, nos subjetiva nessa perspectiva.
Na possibilidade de transgressão é que residem indicativos de novos recomeços e outros
caminhos, que rompem com noções lineares e cronológicas no tempo, buscando
acontecimentos e possibilidades, proporcionando, assim, novas construções que podem
permitir outros “processos de subjetivação” que podem ser conceituados como as maneiras
próprias e singulares que constituem nossas maneiras de ser e estar no mundo, inventando novas
possibilidades de vida e interferindo nas potencialidades do sujeito, e logo das relações sociais.
Nesse sentido, justificamos a relevância de repensarmos a noção de infância dentro do
espaço educativo:
A infância como um outro não é o objeto (ou o objetivo) do saber, mas é algo que
escapa a qualquer objetivação e que se desvia de qualquer objetivo: não é o ponto de
fixação do poder, mas aquilo que marca sua linha de declínio, seu limite exterior, sua
absoluta impotência: não é o que está presente em nossas instituições, mas aquilo que
permanece ausente e não abrangível, brilhando sempre fora de seus limites. Assim, a
alteridade da infância não significa que as crianças ainda resistam a serem plenamente
capturáveis por nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições; nem sequer
significa que essa apropriação talvez nunca poderá realizar-se completamente.
(LARROSA, 2013a, p. 185)
A criança, com sua alteridade, sua maneira singular de ser e de estar no mundo, carrega
consigo infinitas possibilidades de refazer o hoje, escrevendo um futuro inusitado, permitindo
o revolucionário para além de nossos saberes e práticas institucionalizadas. Nesse sentido, há a
29
intenção de abordar a criança como sujeito, dentro do espaço educativo, com toda a sua
potencialidade e proposição de mudanças.
Parece-nos relevante adulto e criança ingressarem juntos, como parceiros, em uma
jornada na qual cada passo constrói o próximo. Não há uma maneira única de percorrer o que
foi planejado, mesmo que coletivamente; o inusitado, o imprevisto, o imprevisível é a todo o
momento garantido pelas crianças, fazendo do caminho um processo dialógico de construção.
Para compreendermos, com mais amplidão, os conhecidos espaços educativos
destinados às crianças hoje, são necessárias algumas explicações acerca da sociedade pós-
industrial, na qual vivemos, sob um controle disciplinar por meio de uma ligação extrema entre
as exigências de produção e as maneiras de apropriação dos indivíduos. Formalizando, assim,
uma correspondência entre as exigências econômicas e sociais, criando uma relação estreita
entre capital e força de trabalho, intensificando ao máximo o controle em uma tentativa de gerar
mais produtividade e capital, conforme discute Araújo (2006).
Atualmente, vivemos um capitalismo pós-industrial ou “rizomático”, que, em vez de
buscar outras formas de aprisionamento, complementa as já existentes em uma tentativa de
abarcar a vida como um todo, englobando todos os sujeitos como um só corpo, como nos aponta
Barbalho (2007).
O sistema disciplinar que ocorria no interior das instituições agora se encontra por toda
parte, ou seja, no social como um todo. Vivemos em uma sociedade de controle que,
diferentemente da disciplinar, cujo poder aparecia de forma hierárquica e vertical, agora se
expressa de maneira ilocalizável, não tendo mais uma aparência definida, mas sim dispersa no
emaranhado das redes sociais, que ficam à nossa espreita, na tentativa de capturar nossos
pensamentos, desejos e intenções. Costa (2004) dá-nos indícios da característica desse controle
– biopolítico – por meio das atividades de modulação quando esclarece:
[...] o importante parece ser essa atividade de modulação constante dos mais diversos
fluxos sociais, seja de controle do fluxo financeiro internacional, seja de realização
constante do consumo (marketing) para regular os fluxos de desejos, não esqueçamos,
da expansão ilimitada dos fluxos de comunicação. (COSTA, 2004, p. 162)
Atentarmo-nos para essas atividades de modulação permite-nos desenvolver
mecanismos de percepção para o tanto que possamos ser sugados, transformados e
recondicionados pelo marketing, pela lógica do consumismo, que se vale dos mais diversos
fluxos de comunicação para determinar modos de vida.
Na sociedade de controle, não observamos mais métodos de “interceptação de
mensagens”, vivenciamos um processo mais apurado e sutil de “rastreamento de padrões de
30
comportamento”, como nos coloca Costa (2004). Ao mesmo tempo em que esse controle nos
transmite a sensação de fazer parte de um grupo considerado conectado e ligado às últimas
informações e novidades do mercado, somos, em contrapartida, totalmente rastreados,
manipulados e transformados em seres que apenas consomem. Apesar de vivenciarmos
intensamente os mecanismos de controle, somos, em muitos momentos, impelidos por nossas
singularidades a agir na contra mão de movimentos homogeneizadores, criando linhas de fuga
que nos permitem sintonia com nossas reais necessidades.
Neves (1997) nos dá indicativos de como o Brasil encontra-se em um quadro ainda mais
complexo, na medida em que não vivemos em uma sociedade somente de controle, apesar de a
vivenciarmos mais intensamente, ainda que tenhamos em várias instituições um funcionamento
mais típico da sociedade disciplinar. Quando observamos a mídia, por exemplo, notamos
indícios dessa sociedade de controle; no entanto, nos espaços educativos ainda prevalecem
mecanismos tipicamente disciplinares.
Dependendo do equipamento social (escola, empresa, posto de saúde) a que estejamos
ligados e sua proximidade com o Estado, podemos perceber um funcionamento típico
da sociedade de controle disciplinar, sendo então fundamental que cartografemos, a
cada situação, que regras estão em funcionamento. (NEVES, 1997, p. 90)
A autora suscita-nos a não apenas apurar nosso olhar e escuta, tornando-os atentos,
buscando “cartografar” regras implícitas, mas a produzir reflexões acerca das naturalizações
criadas por essas lógicas totalitárias e homogeneizadoras. Tal movimento se faz necessário e
prudente, nesse momento, para que, pela identificação das linhas de força que se configuram e
capturam nossos desejos e modos de vida, possamos “buscar a invenção de estratégias que
apontem/desmontem essas naturalizações produzidas”, permitindo linhas de fuga (NEVES,
1997, p. 90).
Buscamos interpretar as ressonâncias produzidas em nós acerca dos mecanismos de
controle nos apelos constantes de propagandas e produtos de consumo nessa sociedade de
comunicação, de informação frenética, de novidades, de selfs nas redes sociais, assim como
nossas aspirações e desejos capturados e distorcidos a todo o momento.
Assim como os adultos, as crianças também são impactadas pelas mídias de massa,
sofrendo estímulos constantes e abusivos para um consumismo desenfreado. Nesse momento,
compactuamos com as colocações de Ferreira (2004) analisando a infância hoje: falta de
espaços para brincar, o que impossibilita o exercício da infância; incompreensão e
incomunicabilidade com o adulto; exposição excessiva aos meios de comunicação e imagens
estereotipadas e apelativas; condenação da criança à execução de trabalhos maçantes e
31
repetitivos, como os adultos, ou trabalhos de “mentirinha” cujo objetivo real é a transmissão de
conteúdos fragmentados e dissociados de sua aplicação no cotidiano, e não a busca prazerosa
pelo conhecimento, como modo de solução de problemas reais.
Observamos comerciais e outdoors produzidos diretamente para o público infantil, e
crianças bastante pequenas com tablete e celular nas mãos, muitas vezes não só com a
permissão, mas com o incentivo dos adultos. Uma reflexão mais ampla a respeito dessa questão
não envolve somente os familiares, mas os espaços educativos enquanto instituições
“produtoras de subjetividade” e propositoras de “experiências de si”, constituindo o sujeito.
Pautando-nos em Larrosa (2008), podemos compreender “experiências de si” como
vivências que se produzem e constituem-se no decorrer da história e pelas quais “o sujeito se
oferece a seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se
narra, se domina” (LARROSA, 2008, p. 43), em um processo contínuo e constante de
experiências acerca de si com relação a determinadas problematizações envoltas em práticas,
tendo caráter eminentemente contingente e singular. Alargando tal discussão, Foucault (apud
DELEUZE, 1992) nos fornece indícios para a compreensão dos processos de produção de
subjetivação:
[Foucault] reorientava toda sua pesquisa em função do que chamava de modos de
subjetivação. Não era, de maneira alguma, um retorno ao sujeito: era uma nova
criação, uma linha de ruptura, uma nova exploração onde mudavam as relações
precedentes com o saber e o poder. (DELEUZE, 1992, p. 131)
A referida citação nos oferece indícios para que possamos ampliar nossa compreensão
acerca do sujeito como um indivíduo inacabado e suscetível de mudanças e transformações
sucessivas e constantes por intermédio dos modos de subjetivação, capaz de interferir nas
relações já existentes entre o saber e o poder, inaugurando novos modos de ser e estar no mundo.
Larrosa (2008) faz algumas reflexões acerca das práticas e discursos pedagógicos
enquanto produtores de pessoas e afirma que não podemos analisar o “sujeito individual”
apenas por essas práticas e nem independente delas, mas por uma complexa articulação, tanto
das práticas quanto dos discursos pedagógicos, permitindo a constituição do sujeito como ele
é.
Podemos definir a subjetivação como uma experiência de si, que constitui o sujeito, pois
é “histórica, particular e contingente” estabelecendo uma relação consigo mesmo. Precisamos
aqui ter em mente as cinco respectivas dimensões fundamentais que constituem os dispositivos
pedagógicos de produção e mediação da experiência de si: óptica (o que é visível no sujeito
para si); discursiva (o que o sujeito pode e deve dizer de si); jurídica (o sujeito julga a si mesmo
32
de acordo com normas e valores); narrativa (é contando suas histórias que o sujeito dá a si uma
identidade no tempo); e a prática (o que o sujeito pode e deve fazer consigo).
Larrosa (2008) brinda-nos com indícios de como espaços e tempos educativos nos
conferem identidade, promovendo ações sobre nós que podem visar a transformações,
priorizando sujeitos singulares. Ou, de outra maneira, espaços que buscam a manutenção de
normas e valores condizentes com a sociedade consumista e controladora em que vivemos,
criando subjetividades alienadas e padronizadas. Desse modo, tais espaços favorecem uma
consonância com as exigências da sociedade pós-industrial, em que se priorizam a
produtividade e a apropriação dos corpos em uma relação estreita entre capital e produtividade.
Quando lançamos um olhar mais apurado para a infância, observamos modos de vida
produzidos por essa lógica, que fabrica desejos e aspirações, atuando de forma direta e
contundente. Lógica esta que, por um lado, promove a retirada de espaços e condições de
vivenciar a espontaneidade, a criatividade, conduzindo a uma restrição do brincar que envolve
o corpo e suas possibilidades de movimento, e, por outro lado, fomenta uma produção de
subjetividades canalizadas para o consumo.
Quando buscamos inter-relações nos espaços e tempos educativos, observamos práticas
extremamente marcadas pela disciplina, enrijecendo rotinas, horários, usos de ambiente e
materiais. Podem aqui ser indicadas várias situações que exemplificam tais colocações nos
espaços educativos, observando determinações de horários para cada grupo de crianças, sem
possibilidades de alterações, materializados em quadros afixados nas paredes, enrijecendo o
uso de lugares dentro do espaço educativo, apoiando mecanismos disciplinares e incentivando
sua continuidade e perpetuação. Se, por um lado, vemos lógicas de subjugação das crianças,
acreditando que diferentes faixas etárias não sabem e não podem conviver, pois não teriam
respeito e cuidado umas com as outras, por outro fragmentamos o ambiente educativo em
pequenos trechos, que só podem ser utilizados naquele determinado espaço de tempo. No
entanto, a cada vez que agimos na contra mão dessas lógicas totalitárias e homogeneizadoras e
propomos oportunidades de intercâmbios e convivências, deparamo-nos com crianças maiores
cuidando das menores, ou então os pequenos desfrutando e compartilhando da brincadeira dos
grandes.
Da mesma forma acontece com as rotinas desenvolvidas no interior das salas de aula,
que não são revistas e por isso mantidas independentemente da demanda de cada dia e de seus
sujeitos.
No momento em que materiais são controlados por adultos, que deliberam e ordenam
quando, onde e como eles devem ser usados, agimos em uma lógica de julgamento da criança
33
como incapacitada de ter iniciativas, opiniões e ações sobre um ambiente que deveria ter sido
estruturado para ela e/ou com ela, para que pudesse intervir, organizar, rever e reverter, e não
ficar passivamente aguardando o comando do adulto.
Refletir a respeito de como a criança vivencia, e como produz suas subjetividades no
espaço educativo, com respeito a esses processos tão lineares e maçantes, faz-nos pensar na
necessidade de linhas de fuga e de ruptura – criação e aberturas de canais que permitam
colocações e avaliações por parte das crianças, o que indicaria mudanças. Podemos citar, como
exemplo, atitudes mais flexíveis e estruturadas, com base em um plano de trabalho construído
coletivamente que buscaria uma escuta das crianças interligada com as proposições da
professora, bem como contemplaria a demanda dos trabalhos a serem concluídos. E que
incorporaria, portanto, o inusitado, o imprevisto e o imprevisível.
Faz-se necessária a construção de um processo de argumentação e valorização da voz
das crianças, não com um encantamento ingênuo e vazio de sentidos por parte do adulto, mas
com uma postura dialógica, porque também o adulto se faz com e por intermédio das crianças.
Ao observarmos a sociedade contemporânea e seus mecanismos de controle, vemos uma
infância capturada, com crianças manipuladas e encarceradas em etapas do desenvolvimento,
em projetos quantificáveis e cronológicos, movimentos que as levam a pensar no futuro,
distanciando-as do hoje e do agora – e, por sua vez, a escola como uma instituição que em
muitos momentos reforça tais procedimentos.
A cada vez que os planejamentos são totalmente estruturados, sem ao menos conhecer
as crianças, e executados, de forma inflexível e metódica, instauramos uma realidade hipotética
e muitas vezes baseada nas perspectivas daquela faixa etária (etapas do desenvolvimento) e
deixamos de nos ater aos diferentes interesses, curiosidades e peculiaridades daquele grupo.
Quando a sucessão cronológica das atividades a serem realizadas sobrepõe-se aos
questionamentos e às necessidades que vão surgindo durante a execução desses planejamentos,
os fazeres vão ganhando um caráter preparatório e sequencial, ligando-se mais ao futuro que à
riqueza do presente, contribuindo para que a criança construa uma visão normativa e linear de
si mesma, fechando possibilidades de mudanças e de invenções.
Parece-nos pertinente entrelaçar a concepção de infância apresentada no presente estudo
com a afirmação de Hannah Arendt trazida por Larrosa (2013b, p. 40) a respeito de educação:
“a essência da educação é a natalidade, o facto de que os seres humanos nascem para o mundo”.
Pertinente também compreender a educação por três perspectivas apontadas por Larrosa
(2013b) baseando-se em Arendt: duplo amor, dupla responsabilidade e dupla entrega, o que nos
permite inúmeras possibilidades de novos olhares e escutas para a educação. O amor aqui
34
colocado não tem relação somente com a infância, mas com o amor que sentimos pelo mundo
a ponto de assumir a responsabilidade por ele, em um processo de parceria, doando nossa cota
de cuidado e ações, visando a melhorias para o lugar em que vivemos. E a dupla entrega coroa
todo esse processo no sentido em que nos coloca em uma posição de disponibilidade nessa
relação. Interessante salientar que o amor também está direcionado para as crianças, pois, a
partir do instante em que as acolhemos por meio da educação e não a abandonamos à própria
sorte, há um chamamento para que se estabeleça um vínculo, uma relação.
Em contrapartida, não podemos “arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender
alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a
tarefa de renovar um mundo comum” (LARROSA, 2013b, p. 40). Há um processo complexo e
harmonioso que se forma deixando transparecer a infância como aquela que “abre
possibilidades de mundo”, e a educação assumindo o papel de “dispositivo”, inaugurando
outros tempos e espaços, ou seja: “a possibilidade de um tempo outro que interrompa a
continuidade dos tempos e também a possibilidade de um espaço outro que interrompa a ordem
social das fixações e das pertenças” (LARROSA, 2013b, p. 42, grifos do original)
A educação, por essa perspectiva, não estabelece condições, mas abre possibilidades,
inaugurando criações, explorações e descobertas “promovendo infâncias” (ABRAMOWICZ,
2015).
No entanto, olhando com minúcia e cautela para a realidade que permite pensar a
educação que temos, é que fui conduzida a muitos questionamentos, quais sejam: Qual é a
identidade de nossos espaços educativos e qual identidade gostaríamos que fosse? Se temos
espaços e tempos tão controlados e enrijecidos, como podemos querer que nossas crianças
sejam democráticas e flexíveis? Projetos pedagógicos e planejamentos elencam objetivos
recheados de palavras bonitas: cidadãos críticos e conscientes; porém, como concretizar essa
proposta se o que as crianças vivenciam as forçam a aceitar o que está posto? Não há indagações
sobre se gostam – e, mesmo que digam, não são ouvidas ou consideradas. Pensar na identidade
do que oferecemos às nossas crianças nos espaços ditos educativos parece-nos por demais
penoso, e talvez seja necessário nos reportarmos a situações e realidades que forneçam indícios
de mudanças.
A abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância nos alimenta de
possibilidades e olhares múltiplos não só para a educação como um todo, mas para nossos
fazeres e pensares educativos. As palavras de Malaguzzi (1999, p. 73) (apud EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 1999, p. 73) nos auxiliam nas reflexões:
35
Acredito que nossas escolas mostram a tentativa que tem sido feita de se integrar o
programa educacional com a organização do trabalho e com o ambiente, para que
possa haver movimento, interdependência e interação máximos. A escola é um
organismo dinâmico e inexaurível e possui suas dificuldades e controvérsias, mas,
sobretudo, alegria e capacidade para lidar com as perturbações externas.
Malaguzzi (apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999) indica-nos um trabalho
centrado na “pedagogia da relação” que, apesar de sustentar o foco na criança, mantém vivo
um canal de ligação e comunicação entre professores, família e crianças, ou seja, os três
protagonistas do processo educativo. Há uma inter-relação entre adultos e crianças, pois os
papéis entre eles são complementares: “fazem perguntas uns aos outros, ouvem e respondem”
(Malaguzzi apud EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 79).
Considerar a criança “especialista de sua própria vida” confere-lhe outro patamar de
relações e possibilidade de trocas.
A escola da criança começa quando terminam as suas condições assistenciais e de
suplência e se constrói, assumindo como estratégia geral a centralidade das crianças,
dos professores, das famílias, do ambiente e dos ambientes de trabalho. A
tentativa de agregar as bases organizacionais e as da projectualidade e da investigação
educativa é o que diferenciou e assinala o nosso compromisso. (Malaguzzi apud
STROZZI, 2015, grifos do original).
A partir do momento que compreendemos a criança como participante dos pensares e
fazeres no espaço educativo, apontando o que deve ser mantido e o que necessita de mudanças,
começamos a construir outros parâmetros de relação e diálogo baseados em uma construção
coletiva, em uma inter-relação, assumindo um panorama pelo qual as relações ganham
centralidade.
1.3. Propostas curriculares
Não podemos deixar de trazer para reflexão algumas leis que ditam parâmetros para o
trabalho desenvolvido nos espaços e tempos educativos que indicam a concepção de criança
que deve permear nossas ações. A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil (BRASIL, 2010) está articulada com as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Básica (BRASIL, 2013, p. 86) indicando a concepção de criança como:
sujeito histórico e de direitos que se desenvolve nas interações, relações e nas práticas
cotidianas a ela disponibilizadas e por ela estabelecidas com adultos e crianças de
diferentes idades nos grupos e contextos culturais nos quais se insere. Nessas
36
condições ela faz amizades, brinca com água ou terra, faz de conta, deseja, aprende,
observa, conversa, experimenta, questiona e constrói sentidos sobre o mundo e suas
identidades pessoal e coletiva, produzindo cultura.
Com essa citação, podemos perceber a compreensão da criança como sujeito histórico,
pertencente a uma época, detentor de direitos e que se constitui de maneira individual e coletiva
em sua identidade, ou seja, forma-se sujeito nos diversos contextos de que participa, por meio
de variadas práticas e pensares, o que nos permite indagações a respeito das construções
subjetivas que permeiam os espaços educativos e as relações estabelecidas entre os diversos
sujeitos que compõem esses ambientes.
Em alinhamento com as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil, temos no
Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil um documento:
concebido de maneira a servir como um guia de reflexão de cunho educacional sobre
objetivos, conteúdos e orientações didáticas para os profissionais que atuam
diretamente com crianças de zero a seis anos, respeitando seus estilos pedagógicos e
a diversidade cultural brasileira. (BRASIL, 1998, p. 6).
Com um caráter reflexivo, o referencial foi debatido em vários espaços educativos
destinados as crianças pequenas, permitindo um diálogo mais próximo com as práticas
desenvolvidas. Na tentativa de estabelecer uma ponte com o presente trabalho, lancei-me em
uma interlocução com o referido documento na investida de verificar se há alguma menção à
realização da roda de conversa.
O Referencial Curricular para a Educação Infantil (BRASIL, 1998) é um documento
composto de três volumes. O primeiro deles apresenta “uma reflexão sobre creches e pré-
escolas no Brasil” com fundamentações a respeito de criança, educação, instituição e
profissional, indicando um trabalho que priorize “pluralidade e diversidade ética, religiosa, de
gênero, social e cultural das crianças brasileiras”, propiciando propostas que favoreçam e
valorizem a diversidade brasileira. Nesse volume aparece a intenção de realizar uma
fundamentação teórica e um delineamento em linhas gerais sobre como devem acontecer as
práticas. Pode-se perceber então uma ênfase na interação social indicando a necessidade de
promover “situações de conversa” garantindo a troca, a comunicação e a expressão das crianças.
Na questão relativa à “organização do tempo”, há indicação de três modalidades: “atividades
permanentes, sequência de atividades e projetos de trabalho”. Nas atividades consideradas
permanentes, definidas como “aquelas que respondem às necessidades básicas de cuidados,
aprendizagem e de prazer para as crianças, cujos conteúdos necessitam de uma constância”,
encontramos a indicação da roda da conversa, logo, como estratégia permanente, acompanhada
37
de outras propostas: brincadeiras no espaço interno e externo, roda de história e ateliês ou
oficinas de desenho, pintura, modelagem e música (BRASIL, 1998, v. 1, p. 55 ).
O segundo volume “é relativo ao âmbito de experiência Formação Pessoal e Social”
favorecendo os “processos de construção da Identidade e Autonomia das crianças”. No tópico
referente às atividades permanentes, busca-se explicitar cada uma das propostas citadas no
primeiro volume, registrando uma identificação da roda da conversa e do faz de conta como
situações que “constituem-se em situações privilegiadas para a explicitação das características
pessoais, para expressão dos sentimentos, emoções, conhecimentos, dúvidas e hipótese quando
as crianças conversam entre si e assumem diferentes personagens nas brincadeiras”, como
atividade de expressão (BRASIL, 1998, v. 2, p. 62). Há também uma menção ao
desenvolvimento da autonomia, na medida em que favorece situações de escolha de atividades
e propostas a serem desenvolvidas pelo grupo.
Finalizando com o terceiro volume, intitulado “Conhecimento de mundo”, que é
direcionado para a “construção de diferentes linguagens e relações com os objetos de
conhecimento: Movimento, Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e
Sociedade e Matemática”. Quando focamos no item de linguagem oral e escrita, observamos
um apontamento referente à roda da conversa agindo como um dispositivo que pode não ser
democrático nem dialógico:
O trabalho com a linguagem oral, nas instituições de educação infantil, tem se
restringido a algumas atividades, entre elas as rodas de conversa. Apesar de serem
organizadas com a intenção de desenvolver a conversa, se caracterizam, em geral, por
um monólogo com o professor, no qual as crianças são chamadas a responder em coro
a uma única pergunta dirigida a todos, ou cada um por sua vez, em uma ação
totalmente centrada no adulto. (BRASIL, 1998, v. 3, p. 119)
Compreendemos que, assim como o trabalho com a linguagem oral não pode restringir-
se apenas à roda da conversa, esta por sua vez também não pode ficar atrelada somente à questão
da oralidade e de suas possibilidades de ampliação. Pensar na roda da conversa exige
movimentos mais amplos de escuta, articulação, resolução de conflitos, relatos e vivências, que
nos permitem lidar com nossas histórias, medos e desejos, buscando não só a construção de um
trabalho coletivo, mas um reconhecimento enquanto sujeitos e autores de nossa vida.
Ainda no terceiro volume, no item das Orientações Didáticas, há a transcrição de um
trecho de roda da conversa no qual a criança foi questionada a respeito de suas faltas e, ao
responder, teve dificuldade em explicar sobre sua doença. A professora foi questionando e
auxiliando para que todos entendessem que a doença era catapora. Em seguida, há uma ênfase
na importância de o professor auxiliar a criança na construção da fala para que todos pudessem
38
entender, aliada a uma postura de facilitador para que ocorra interlocução e participação de
todos. Em outros momentos, agindo como “evocador de lembranças”, trazendo objetos que
possam desencadear lembranças ou mesmo enriquecer as narrativas das crianças.
Encontramos mais adiante algumas indicações de como deve ser organizada a roda da
conversa visando à “ampliação do universo discursivo das crianças”:
Pode-se [sic] organizar rodas de conversa nas quais alguns assuntos sejam discutidos
intencionalmente, como um projeto de construção de um cenário para brincar, um
passeio, a ilustração de um livro etc. Pode-se, também, conversar sobre assuntos
diversos, como a discussão sobre um filme visto na TV, sobre a leitura de um livro,
um acontecimento recente com uma das crianças etc. (BRASIL, 1998, v. 3, p. 138)
O documento indica a roda da conversa como:
o momento privilegiado de diálogo e intercâmbio de ideias. Por meio desse exercício
cotidiano as crianças podem ampliar suas capacidades comunicativas, como a fluência
para falar, perguntar, expor suas ideias, dúvidas e descobertas, ampliar seu
vocabulário e aprender a valorizar o grupo como instância de troca e aprendizagem.
A participação na roda permite que as crianças aprendam a olhar e a ouvir os amigos,
trocando experiências. Pode-se, na roda, contar fatos às crianças, descrever ações e
promover uma aproximação com aspectos mais formais da linguagem por meio de
situações como ler e contar histórias, cantar ou entoar canções, declamar poesias, dizer
parlendas, textos de brincadeiras infantis etc. (BRASIL, 1998, v. 3, p. 138)
Ainda buscando interlocuções com documentos que objetivam refletir a respeito das
concepções e fazeres no espaço educativo, na sequência construímos diálogos com um texto,
ainda em fase de construção, intitulado A educação infantil na Base Nacional Comum
Curricular. Parte integrante de uma documentação mais ampla (Base Nacional Comum
Curricular – BRASIL, 2015), visto que abrange todos os níveis de ensino, pretende, valendo-
se dessa versão inicial elaborada pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da
Educação, colher contribuições da sociedade como um todo, para posterior elaboração de uma
segunda versão e encaminhamento ao Conselho Nacional de Educação, órgão que se
responsabiliza pela aprovação ou não do documento.
O referido documento inicia-se apontando um movimento em nosso país, nas últimas
décadas, de construção de “uma nova concepção sobre como educar e como cuidar de crianças
de zero a cinco anos em instituições educacionais”, em uma tentativa de rompimento com dois
modos de atendimento que vêm acontecendo historicamente: “o assistencialismo, que
desconsidera a especificidade educativa das crianças dessa faixa etária”, por um lado, e “o
escolarizante, que se orienta, equivocadamente, por práticas do Ensino Fundamental”, por outro
lado (BRASIL, 2015, p. 18).
39
Pensar em uma educação situada na demanda dos sujeitos, situados nos espaços e
tempos educativos do qual fazem parte, aproxima-nos das reflexões do presente trabalho, uma
vez que tais reflexões consideram opiniões e proposições ligadas a acontecimentos e situações
reais que afetam a vida dos sujeitos envolvidos, que coletivamente podem buscar soluções.
Mais adiante o documento enfatiza a importância das relações na construção de
conhecimentos não só com “parceiros adultos”, mas com “companheiros de idade”, salientando
“a especificidade dos recursos que utilizam, tais como a corporeidade, a linguagem e a
emoção”, na maneira como as crianças se relacionam com o mundo, tudo aliado a um trabalho
pedagógico cujo foco seja “a formação pela criança de uma visão plural de mundo e de um
olhar que respeite a diversidade” (BRASIL, 2015, p. 18). Esses pressupostos estão em
consonância com várias colocações desta dissertação, uma vez que enfatiza a linguagem e as
emoções como canais privilegiados de comunicação da criança com o mundo, em relação direta
com a visão de sujeito ativo que fala de si, narrando suas vivências e experiências, bem como
participa de planejamentos e decisões coletivas por meio das rodas de conversa.
Ainda no documento em questão, há a indicação de três princípios que devem guiar os
projetos pedagógicos dos espaços educativos:
éticos: autonomia, responsabilidade, solidariedade, respeito ao bem comum, ao meio
ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades;
políticos: direitos de cidadania, exercício da criticidade, respeito à ordem
democrática;
estéticos: sensibilidade, criatividade, ludicidade, liberdade de expressão nas
diferentes manifestações artísticas e culturais (BRASIL, 2015, p. 19)
Quando nos atemos aos direitos de cidadania, somos conduzidos a formas ampliadas de
participação, considerando relevantes modos de pensar e de organizar cada sujeito e coletivos
que compõem o ambiente educativo. Entrelaçando com o que acabamos de citar, o documento
indica “seis grandes direitos de aprendizagem que devem ser garantidos às crianças na
Educação Infantil: conviver, brincar, participar, explorar, comunicar, conhecer-se”. Pertinente
com o presente trabalho, ressaltamos o item participar, uma vez que coloca a criança em uma
situação de “protagonismo tanto no planejamento, como na realização das atividades
recorrentes da vida cotidiana, na escolha das brincadeiras, dos materiais e dos ambientes,
desenvolvendo linguagens e elaborando conhecimentos” (BRASIL, 2015, p. 19).
Observamos no item “campo de experiências: escuta, fala, pensamento e imaginação”
uma menção à importância da realização das rodas de conversa: “participar ativamente de rodas
40
da conversa, de relatos de experiência, de contação de histórias, elaborando narrativas”
(BRASIL, 2015, p. 24).
Não obstante, já no âmbito municipal, encontramos ecos da lei federal quando fora
instituída a Comissão Própria de Avaliação (CPA), em 2008, com objetivo de construir
“conhecimento sobre sua própria realidade, com a finalidade de planejar as ações destinadas ao
aprimoramento institucional e à superação das dificuldades” (PREFEITURA MUNICIPAL DE
CAMPINAS, 2014). Tais ações preveem a participação de cada um dos sujeitos que compõem
os espaços e tempos educativos, permitindo ampliar vozes em um movimento de criação e
recriação do cotidiano, aprimorando e permitindo uma sintonia com as expectativas individuais.
Nessa perspectiva, os espaços e tempos educativos precisam acolher o sujeito em sua
completude definindo-se como:
Lugar educativo para onde o sujeito se dirige na sua inteireza, com o seu corpo, as
suas emoções, a sua história, os seus acontecimentos, as suas dúvidas, as suas
curiosidades de conhecer e de entender: entender a si mesmo e o mundo com os outros
e através dos outros. [...] é no confronto, na troca, na ação, na discussão e na
negociação que se constrói não só o próprio saber, mas o si e o outro si, isto é, o
mundo. (Rinaldi apud STROZZI, 2015)
Além disso, quando focamos nas competências e quais sujeitos são viabilizados nesse
processo, observamos uma menção direta à criança, como pode ser observado no seguinte
trecho:
Das competências:
Art. 8º a partir das prioridades estabelecidas coletivamente e elencadas no projeto
pedagógico, a CPA deverá:
IV - incentivar a participação de todos os sujeitos das unidades educacionais, nas
diferentes etapas do processo de avaliação interna;
IX - garantir, por meio de múltiplos registros, a participação das crianças, sujeitos do
processo de avaliação institucional participativa (AIP), conforme fundamentos
estabelecidos nas diretrizes curriculares da educação infantil na região metropolitana
de Campinas (RMEC). (PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2014)
Quando refletimos acerca da menção à participação das crianças, explicitamente
identificadas como sujeitos, reconhecendo sua potencialidade, tendo em vista que sua opinião
pode ser expressa por ela própria, e não por intermédio do adulto.
Podemos observar um avanço no sentido de que a criança não é somente considerada
em seus direitos e por meio da opinião do adulto, mas por sua voz, por sua opinião e desejo, o
que promove indicativos de alterações nos espaços e tempos educativos.
Alinhando com as reflexões aqui suscitadas, busco em Peter Moss (2009) algumas
contribuições trazidas por uma linha de raciocínio em que o autor argumenta em prol da
41
introdução da política na creche, enfatizando a relevância dos espaços e tempos educativos
como palcos de práticas democráticas.
Moss (2009, p. 1) inicia seu texto apresentando dois importantes fenômenos em muitos
países que justificam a implementação de “práticas políticas democráticas”: “aumento do
interesse governamental na educação infantil, conduzindo a uma expansão do atendimento, e a
necessidade de revitalizar políticas democráticas”.
Acreditamos que não só promover, mas fortalecer tais práticas vem ao encontro da
problemática discutida no presente trabalho: a ampliação da voz da criança no espaço educativo,
permitindo que ela se constitua como sujeito, uma vez que esse processo indica que crianças
podem envolver-se com outros nas decisões que as afetam, ou seja, a participação democrática.
Elencamos então alguns motivos que justificam a relevância das práticas políticas
democráticas: “participação democrática” exercendo relação direta com cidadania; crianças e
adultos envolvidos nas tomadas de decisões de assuntos que lhes afetam; forma-se um
movimento de resistência à opressão e “exercício descontrolado do poder”; e, por último, “a
democracia permite que a diversidade prospere”. Podemos refletir a respeito do que foi exposto
e do grande elo que se estabelece entre diversidade e democracia, mostrando a importância de
se criar espaços e tempos não só de acolhimento às singularidades de cada um, mas percebê-las
e considerá-las significativas nas tomadas de decisão e solução de conflitos e desafios.
Moss (2009) apresenta mais um argumento para reforçar a importância das práticas
políticas democráticas, o que nos remete à questão contemporânea de “despolitização na vida
pública”, deixando transparecer que “instituições estabelecidas e as práticas de democracia
representativa estão em um estado debilitado”, gerando descrédito por parte de muitas pessoas,
que não se sentem consideradas em suas opiniões e necessidades e, assim, acabam afastando-
se e pouco se envolvendo nesses movimentos.
Tais práticas democráticas necessitam ser fomentadas em todas as esferas: nacional ou
federal, regional e local, ativando possibilidades de criação de “espaços democráticos”, como
reforça Moss (2009). Por motivos óbvios, vou atentar-me ao interior do espaço educativo,
buscando refletir acerca da participação da criança nas decisões e planejamento. Não podemos
separar as esferas como se fossem mundos à parte, isolados e sem relação um com outro, mas
penso que a proposta de adotar práticas democráticas necessite englobar as várias esferas que
compõem a educação.
Se, por um lado, fomentar práticas democráticas nos espaços educativos faz-se
importante, por outro, buscar compreender a circularidade e o círculo como possibilidades de
constituição do sujeito merece destaque no presente estudo. A seguir, o capítulo II inicia-se com
42
reflexões sobre o círculo e a circularidade, permitindo movimentos que conduzem às rodas de
conversa, aliado a debates em torno da infância considerada “sem fala” ainda nos dias atuais,
conceituada como sujeito histórico, com direito a opinião e participação nos fazeres e pensares
dos espaços educativos. O capítulo ainda apresenta contribuições de Célestin Freinet e Janusz
Korczak sobre um olhar e escuta diferenciados para a criança como sujeito ativo, finalizando
com as contribuições de Jorge Larrosa (2013) sobre a alteridade da criança em relação ao adulto.
43
CAPÍTULO II – DA CIRCULARIDADE À RODA, DA NÃO FALA À FALA, O
HOMEM CONSTITUINDO-SE SUJEITO
No miúdo do ir vivendo
é que que a gente desconfia
que o outro é mistério a decifrar.
Quando se atravessa um córrego
andando sobre uma pinguela,
dá uma friagem na barriga.
É o medo do tombo, do lodo,
do podre da matéria.
Acho que é isso, o avançar do homem,
desde o seu surgimento.
(BREGALDA, 2012, p. 37)
Quando remontamos à história e acompanhamos alguns movimentos dos agrupamentos
humanos, observamos que miudezas espalhadas pelo caminho nos fazem deparar com o outro,
em um confronto de singularidades que nos caracteriza enquanto humanos. Talvez confirmando
o que apenas desconfiávamos: há um mistério a decifrar, no córrego a atravessar, o medo do
tombo e o frio na barriga, uma mistura de medos e receios que nos acompanham desde do
surgimento da humanidade em um processo de avanços e retrocessos, mas sobretudo de
constituição do que somos hoje enquanto sujeitos.
Círculos e circularidades nos acompanham e nos constituem em nossos contatos e
confrontos com o outro, percorrendo trilhas, inaugurando descobertas e nos conectando
conosco em processos contínuos.
2.1. O significado do círculo... conduzindo à roda
Antes mesmo de pensar na roda de conversa nos espaços educativos, objeto do presente
estudo, há que se refletir sobre os significados do círculo e da circularidade na humanidade, ou
seja, como espaço de produção da subjetividade, sociabilidade e coletividade, que promove
ligações e compreensões como modos primeiros de constituição do sujeito.
As formas arredondadas ocupam a natureza: as nuvens, o sol, a lua, não só o planeta
Terra, mas os demais, fazendo-nos perceber quanto o ser humano está relacionado a esse
formato. Nosso corpo também apresenta uma predominância dessa forma nos órgãos, nas
extremidades dos ossos, no cérebro, rosto, olhos, boca, ouvido, nas células e no princípio da
44
vida, que pode ser representado pelo óvulo e o espermatozoide, que ao se unirem apenas
ampliam a forma arredondada gerando, multiplicando e criando formatos semelhantes.
Um ponto pode ter um significado maior do que imaginamos, criando inter-relações que
talvez não nos chame atenção em um primeiro momento, mas que nos conduzem a novos
olhares para a maneira como o ser humano relaciona-se com seus pares não só na atualidade,
mas em períodos muito distantes.
Anterior às formações circulares que utilizamos nos dias atuais: encontro de amigos,
algumas brincadeiras infantis, mesas de refeição, reuniões de trabalho, entre outras, podemos
nos atentar para a existência dessa maneira de se organizar do ser humano em períodos remotos.
Agrupamentos humanos que viviam por volta do ano 3.000 a.C., ao enfrentar baixas
temperaturas, refugiavam-se em cavernas, buscando ampliar as chances de sobrevivência. De
prática nômade, no início esses agrupamentos viviam da caça, da pesca e da coleta de frutos. O
sedentarismo e a descoberta do fogo marcaram decisivamente suas vidas, permitindo aquecer
ainda mais o ambiente, chamando a todos para se posicionarem ao redor da fogueira, que, ao
mesmo tempo em que iluminava as feições, aquecia o corpo e agia como um chamamento para
o relato de fatos e acontecimentos por meio de gestos, sons e até desenhos nas paredes das
cavernas. Olhos atentos, deixando-se embarcar naquela aventura de medo ou coragem, ao
mesmo tempo em que expandia no peito um forte sentimento de pertencimento àquele grupo.
Oriolo (2015, p. 126) auxilia em nossas reflexões e apresenta outras características
atribuídas ao círculo que induzem a pensamentos quando nos dispomos em roda: “o círculo tem
o centro como organizador e ponto de conexão; não tem ponta, primeiro ou último lugar; todos
olham para o centro, veem-se, estabelecem contato, que pode ser de estranhamento, de
alteridade, de equidade ou de pertencimento”.
A relação do homem com as formas circulares parece ser mais íntima do que
imaginamos, considerando que, mais que gerar proximidades e interações, funda-nos enquanto
sujeito. Realizar formações circulares nos induz a algumas posturas internas: nossos olhares se
cruzam, visualizamos as fisionomias, que indicam sentimentos mais que pensamentos, ouvimos
e conhecemos maneiras outras de viver e agir, permitindo ampliar nossos conhecimentos a
respeito do outro e de suas peculiaridades.
Ao mesmo tempo em que ressignificamos quem somos, como vivemos ou agimos nas
mais diversas situações, alguns relatos nos remetem às nossas memórias, como dardos
buscando semelhanças ou diferenças em nossas experiências. Não há como negar movimentos
de introspecção, mas que em seguida se lançam no coletivo construindo relatos orais, como um
pêndulo que oscila, dentro e fora, criando uma interação entre interior e exterior.
45
Realizando o movimento de nos permitir divagar em nossas reflexões a respeito de
muitos momentos vividos em roda, podemos notar como permanecemos longos períodos
voltados para o nosso interior, confabulando e construindo correlações, e depois nos lançamos
nos relatos e narrativas, buscando ou não consonâncias com o outro.
A formação circular cria o antagônico: concentração e dispersão, falas, relatos, opiniões
oriundas dos mais variados pensamentos, formas variadas de compreensão e encaminhamento
misturam-se, como em um redemoinho. Penso que a prática constante da roda da conversa
promove, aos poucos, um equilíbrio por meio do qual alguns aprendem a ouvir mais, enquanto
outros se colocam mais, aprendizados múltiplos que nos conduzem a diferentes maneiras de
nos conhecer, reconhecer, ampliar, adaptar e conviver.
Pensar nessa disposição também pode apresentar a conotação de controle e disciplina,
partindo do princípio de que é possível olhar e controlar a todos, acompanhando gestos e
expressões, reprimindo movimentos e conversas. Oriolo faz alusão ao panótipo de Bentham:
Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas
janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida
em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas
janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o
exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um
vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um
operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando
exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. [...]
O dispositivo panótipo organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e
reconhecer imediatamente. (Foucault apud ORIOLO, 2015, p. 127-128)
Não necessitando do uso da força, o sistema vale-se do controle e do poder de vigia
sobre os corpos, graças ao seu método de observação, como uma máquina que conta com a
vigilância que assegura o seu funcionamento imediato.
Um intenso controle também permeia a sociedade capitalista em que vivemos, que busca
a acumulação de capital por meio da divisão do trabalho seguindo o mesmo princípio do
panoptismo, assim como o controle disciplinar muito forte nas instituições – inclusive a escolar.
Em contrapartida, o círculo também pode significar outros movimentos mais
relacionados a sintonias e união, como nos aponta Oriolo (2015, p. 130):
Esse mesmo círculo pode significar movimento no sentido de vida, totalidade,
expressão de culturas e estabelecimento de olhares. Também é a possibilidade do
encontro de grupos e comunidades, expressão de manifestações culturais, ritualidade
e celebração.
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Em uma sociedade complexa e contraditória como a nossa, deparamo-nos e precisamos
lidar com várias situações permeadas ora pela opressão, ora pela liberdade, ora pela retração,
ora pela expansão, e que, pela própria estrutura de dualidade, “possibilitam movimentos de
resistência, luta e ressignificação” que nos aponta diferentes possibilidades sintonizadas com
nossas singularidades.
A forma circular, assim como a roda:
pode ser entendida como forma de transmissão dos saberes e conhecimentos, o
encontro de gerações e culturas, a rememoração da história de comunidades e grupos
para a apropriação e ressignificação da cultura. Essa forma circular representa, muitas
vezes, a essência de um trabalho coletivo que se efetiva por meio de comunidades.
(ORIOLO, 2015, p. 130)
O movimento de buscar contrapontos entre a circularidade e as rodas de conversas
realizadas nos espaços educativos nos permite refletir sobre possibilidades de controle como
um panóptico, mas também proporcionando ricas possibilidades de interação e convivência nas
diferenças.
Quando buscamos termos no dicionário que nos apontem definições para as palavras
“assembleia” e “roda de conversa”, encontramos para o primeiro termo “reunião de pessoas
para determinado fim”, e para o segundo “agrupamento de pessoas” (FERREIRA, 2010, p. 70
e 672). Tais significações indicam apontamentos centrais em nossas discussões: reunir pessoas
por meio de conversas ou diálogos, debater assuntos inerentes a esse grupo e, portanto,
centrados em determinados fins pelos quais reflexões se ampliam. Quando imaginamos adultos
nessas situações de debates, parece-nos mais próximo do que vivenciamos socialmente, mas,
ao supor crianças pequenas, talvez isso possa suscitar em nós questionamentos de como se
podem viabilizar tais momentos.
Pensar na infância hoje, com suas implicações na sociedade e nos espaços e tempos
educativos, suscita-nos indagações sobre o modo de seu entendimento no passado e de como
fora sua trajetória até os dias atuais, permitindo maiores esclarecimentos e entendimentos desse
processo e de seus percalços, remetendo-nos a momentos em que infância fora considerada
“sem fala” (infans).
2.2. De infans a sujeito ativo: desvendando uma trajetória
Iniciando esse caminho e buscando autores que possam amplificar nosso debate,
recorremos à etimologia latina da palavra “infância”. Kohan (2009) nos conduz a duas
47
compreensões: “esse termo está formado por um prefixo privativo in e fari, ‘falar’, daí seu
sentido de ‘que não fala’, ‘incapaz de falar’”. Contudo, o termo refere-se também àqueles que,
mesmo em idade mais avançada, “treze ou catorze anos”, que já passaram da idade dos que
“não falam”, mas que “não estão ainda habilitados para testemunhar nos tribunais: infans é
assim ‘o que não se pode valer de sua palavra para dar testemunho’” (Castello; Márcico apud
KOHAN, 2009, p. 40-41).
Observamos, desse modo, que a etimologia da palavra “infância” associa as crianças a
termos como “não habilitados, incapazes, deficientes, ou seja, a toda uma série de categorias
que encaixadas na perspectiva do que elas ‘não têm’ são excluídas da ordem social” (KOHAN,
2009, p. 41).
Percebemos uma exclusão da infância da vida social, sendo as crianças marginalizadas
e barradas das instituições sociais, uma vez que sua palavra não tem valor, não devendo ser
considerada, acrescida da perspectiva da falta que ocupou e ainda ocupa “os mais nobres
ideários pedagógicos, discursos filosóficos e saberes científicos da Modernidade” (KOHAN,
2009, p. 41). Apesar de observarmos pareceres oficiais a respeito do reconhecimento da criança
como sujeito social de direito, não é isso que vemos em muitos espaços educativos, que ainda
funcionam regidos pelas naturalizações dos adultos em uma lógica totalitária e
homogeneizadora.
Com o intuito de estabelecer uma linha reflexiva que permita dar visibilidade ao
processo percorrido pelo entendimento social da infância e das crianças, passando pela “não
fala” até os dias atuais, em que vemos referências em documentos oficiais reconhecendo tal
faixa etária como participante dos fazeres e planejamentos coletivos nos espaços educativos,
apresentamos a seguir algumas transformações ocorridas na França, atingindo os níveis
econômico, político, social e cultural em um momento de “crise moral causada pela transição
de uma concepção religiosa de mundo para outra laica”, com profundas mudanças na escola,
que passa então a utilizar a disciplina para moldar a criança, transformando-a no adulto ajustado
às regras sociais (Singer, 2010, p. 27).
Singer (2010) traz contribuições nesse sentido começando por Durkheim e suas ideias.
Émile Durkheim “viveu entre 1858 e 1917, período em que o mundo passa por profundas
transformações, especialmente a implantação da instrução laica, pelo Ministério da Instrução
Pública, em 1882, na França” (SINGER, 2010, p. 27-28). A escola tornou-se laica e obrigatória
para todas as crianças entre 6 e 13 anos. Tal mudança acontece como repercussão do
“movimento social iniciado na década de 30, quando as crianças começaram a deixar as
fábricas”, unindo-se aos fortes apelos das comunas operárias para que suas crianças recebessem
48
educação (Rodrigues; Fernandes apud SINGER, 2010, p. 28). A educação de cunho
extremamente racionalista vem reforçando “o respeito à razão, à ciência, às ideias e aos
sentimentos que configuram a moral democrática” (Rodrigues; Fernandes apud SINGER, 2010,
p. 28).
Durkheim (apud SINGER, 2010, p. 28) identifica a escola, nesse momento, como
marcada de modo radical pela disciplina: “na escola, efetivamente, existe todo um sistema de
regras que predeterminam a conduta da criança. [...] Há assim uma variedade de obrigações às
quais a criança está forçada a se submeter”. É importante salientar que a escola nesse momento
histórico vem imbuída de “normalizar os desviantes [...] percebendo a criança como ‘tábula
rasa’ na qual os educadores podem inscrever o seu desejo” (SINGER, 2010, p. 28). Sendo assim,
Durkheim posiciona-se de maneira questionadora diante de uma “tradição de pensamento que
coloca a hereditariedade como destino inquestionável das futuras gerações, legitimando as
desigualdades sociais e fortalecendo a doutrina de exclusão dos degenerados”, como nos
esclarece Singer (2010, p. 28).
Ainda segundo Singer (2010, p. 29), Durkheim aponta várias prerrogativas que
acompanham a disciplina, tais como a imposição da autoridade funcionando como “um freio à
vontade individual”, tornando-se “peça fundamental de todo o processo educativo”, aliada a
imposição de normas preestabelecidas indicando regras e deveres rígidos, reforçando a imagem
da criança marcada pela falta: “faltam-lhe todas as qualidades morais, ela é egoísta e associal”.
Nesse momento, a educação atua como regeneradora de uma infância que precisa ser
domesticada como se fosse um animal selvagem, que não teria condições de conviver em
sociedade com os adultos.
Aliada a postura disciplinadora e impositiva da escola, surge a necessidade da punição
para fortalecer e engrandecer a regra, mas não a punição física, uma vez que sendo “a sociedade
moderna avessa à violência física, também das nossas escolas ela deve ser banida, o que não
significa banir o sofrimento” (SINGER, 2010, p. 30). Nesse momento, o que observamos é a
“substituição da dor física pela dor psíquica”, levando a criança a sentir-se culpada antes mesmo
da acusação, o que a faz internalizar a maneira como deve agir em cada situação, sendo assim
conduzida a comportamentos estereotipados e cada vez mais distantes de seus anseios e
opiniões. A imposição às regras produz na criança uma obrigação/submissão para que se siga
toda e qualquer regra de caráter social, deixando transparecer uma conotação de que ela só será
aceita socialmente se passar pela porta estreita e dolorosa da punição e da disciplina, que a
molda, transformando-a em alguém avesso a suas aspirações e desejos.
49
A atuação do professor vai ganhando cada vez mais um caráter de controle sobre as
crianças, para que não se distanciem desse caminho rígido e estreito ditado pela escola, visando
a um modelo de homem que a sociedade deseja alcançar.
O movimento da Escola Nova, em oposição a muitos preceitos da educação tradicional,
pretendia atribuir à criança um papel ativo em sua própria educação, o que vinha ao encontro
das ideias de Célestin Freinet, que defendia a importância de serem respeitadas as diferenças
individuais e de serem criados ambientes na escola para atender aos interesses e necessidades
de todas as crianças, como nos aponta Sampaio (1994).
Podemos citar alguns pedagogos que contribuíram nas formulações e preceitos da
Escola Nova: “o catalão Francisco Ferrer (1849-1909), o americano John Dewey (1859-1952),
a italiana Maria Montessori (1870-1952), o belga Ovide Jean Decroly (1871-1932) e o francês
Adolphe Ferrière (1879-1960)” (SINGER, 2010, p. 75). De uma forma mais ampla, podemos
dizer que tais personalidades tiveram grande influência da psicologia, em uma tentativa de
tornar o aprendizado motivador para a criança, buscando adequar o aprendizado as várias etapas
do desenvolvimento.
2.3. Célestin Freinet
Freinet (1896-1966) nasceu em Gars, Sul da França, recebeu grande influência de
Ferrière e pode ser considerado um dos precursores do movimento da Escola Nova. Teceu
várias críticas à educação de sua época, caracterizando-a como: burocratizada, distante da
família, teórica, dogmática, produzindo passividade do aluno, pautada em um intelectualismo
excessivo, desumana, autoritária, propositora de conteúdos estanques e defasados em relação à
realidade social e o progresso científico, valendo-se de métodos que impedem o interesse, a
descoberta e o prazer infantil, conduzindo à evasão e à frustração das crianças, conforme nos
aponta Paiva (1996).
Professor aos 24 anos de idade, Freinet (apud PAIVA, 1996) observava a insatisfação e
a frustação das crianças diante de uma educação autoritária, distante da vida e do cotidiano. Em
contrapartida, notava as inúmeras possibilidades de outros fazeres que foram acontecendo e
possibilitando mudanças de interesse e da aprendizagem das crianças nas várias situações que
organizava.
Freinet, então um educador francês, foi influenciado por pensadores como Jean-Jacques
Rousseau, um dos principais filósofos do Iluminismo, de modo que podemos apontar alguns
princípios concordantes entre esses pedagogos que são encontrados no legado freinetiano:
50
respeito pela criança, permitindo que seus interesses e necessidades sejam o guia do trabalho
no ambiente educacional, valorização de uma vida mais próxima da natureza e de produtos
naturais, enfatizando a sensibilidade, sem menosprezar a razão ou o homem como indivíduo
(vida, liberdade, felicidade, como um ser moral e social) e uma forte relação do pedagógico
com preocupações políticas e sociais (PAIVA, 1996).
Tais preceitos nos permitem visualizar a concepção de criança e ambiente educacional
preconizados por Freinet, buscando descontruir alguns pilares da educação tradicional que não
valorizavam os direitos das crianças. Para ilustrar, podemos pensar na posição ocupada pelo
professor de forma hierarquizada e distante do aluno, tido como detentor do saber, cabendo ao
estudante apenas assimilar o que lhe é passado, como uma folha em branco, que aos poucos vai
sendo preenchida e os conteúdos vistos como centrais no processo de aprendizagem.
Podemos ainda apontar como eixos da pedagogia Freinet: a livre expressão; a
cooperação; a autonomia e o trabalho, que são baseados nos direitos das crianças (exprimir
sentimentos e ideias não só oralmente, mas também por meio do desenho e da escrita);
comunicar-se com os outros (conferências, correspondência e intercâmbios entre turmas ou
escolas diferentes); criar, agir e conhecer (ateliês de trabalho), organizar-se (planos de trabalho
anual, mensal ou semanal); e avaliar-se (assembleias, exposição dos trabalhos realizados e auto
avaliação). Tal proposta pressupõe uma relação do professor com a criança baseada na
confiança, promovendo movimentos de apropriação dos fazeres firmados em pressupostos
construídos coletivamente.
Focar o eixo da livre expressão, permeado por essa concepção de criança como sujeito
detentor de historicidade, opinião, necessidades e desejos, vem ao encontro da realização da
roda da conversa como “instrumento pedagógico que se constitui como um espaço para a
expressão, reflexão e organização do grupo” (FERREIRA, 2004, p. 39). Essas indicações
encontram ressonância nas orientações contidas em documentos oficiais, tais como os
Referenciais Curriculares para a Educação Infantil (BRASIL, 1998, v. 3, p. 138), que menciona
a roda da conversa como possibilidade de “as crianças ampliar suas capacidades comunicativas,
[...] momento privilegiado de diálogo e intercâmbio de ideias [...] alguns assuntos sejam
discutidos intencionalmente, como um projeto de construção de um cenário para brincar, um
passeio, a ilustração de um livro, etc.
A riqueza desse momento de roda acontece no exercício diário de acolher as novidades
que cada um compartilha com os amigos, no contar histórias, fortalecendo o processo de
narrativas, e no planejar juntos as intenções e os fazeres, formando então parcerias.
51
Quando debatemos assuntos inerentes ao universo das crianças, pautando-nos nas falas
e colocações do grupo, observando as demandas de trabalhos já iniciados ou apenas sugeridos,
construindo o plano de atividades coletivo, iniciamos um processo de reconhecimento das
crianças enquanto sujeitos ativos no processo de aprendizagem.
Reconhecer que as crianças possuem uma maneira singular de ser e estar no mundo
permite-nos outros posicionamentos, outras percepções e escutas, movimentos que podem nos
conduzir a caminhar além de nossas concepções.
Para falar de mudanças históricas nesse modo de tratar a criança, podemos trazer aqui
Janusz Korczak, médico judeu que fora bastante influenciado pelas ideias da Escola Nova (apud
SINGER, 2010). Em sua trajetória profissional, Korczak aceita trabalhar em um orfanato,
contribuindo com seus preceitos para a transformação desse espaço, criando então uma
república, fortalecendo o movimento da escola democrática.
Defendendo os princípios da “justiça, fraternidade, igualdade de direitos e obrigações”,
Korczak instituiu o Lar das Crianças, um orfanato em Varsóvia, Polônia, que se transformou
gradualmente em uma República de Crianças, como relata Singer (2010).
Korczak defendia princípios e valores que se opunham à educação autoritária e
hegemônica, promovendo um ambiente de respeito e escuta das crianças.
2.4. Janusz Korczak
Janusz Korczak, cujo nome verdadeiro era Henryk Goldszhmit, nasceu em 1878, filho
de judeus liberais, pai advogado e mãe vinda de família progressista. Demonstrava grande
resistência às regras institucionais impostas pela escola russa onde estudava, comportamento
que o acompanhou durante a infância e adolescência. Apaixonado por livros, lia
incessantemente, o que o fez fundar um círculo de “Livre Pensamento” com debates a respeito
de “socialismo e nacionalismo”.
Em virtude da insistência do pai, Korczak cursou medicina, mas tinha como sonho
tornar-se escritor. Em 1899, recebeu menção honrosa pela escrita de um drama que assinou com
o pseudônimo de Janusz Korczak, “um herói de um romance histórico polonês daquele século”
(SINGER, 2010), passando então a adotar tal pseudônimo.
Com o objetivo de ampliar seus estudos sobre a obra de Johann Heinrich Pestalozzi,
viaja para Zurique em 1901, pois já demonstrava muito interesse pelos fundamentos da
educação, assim como por crianças carentes. Nessa viagem conheceu Stefa Wilczinska, filha
de família aristocrata e estudiosa da pedagogia. Foi nesse momento que entrou em contato com
52
obras de pensadores da Escola Nova. Entre os vários textos de Korczak publicados com críticas
à educação tradicional, que lhe conferem fama como médico, educador e escritor, podemos
destacar o romance A criança do salão.
Em 1911, Korczak deixou o hospital e aceitou o convite de Stefa para atuar como
médico no orfanato criado por ela, em Varsóvia. Nesse momento, já havia concluído seus
estudos em pedagogia. Após várias viagens buscando conhecer orfanatos em outros países,
Korczak mostra-se decepcionado com a ênfase na rotina, deixando esses espaços muito
semelhantes a prisões, por isso, com Stefa, realiza mudanças no ambiente do orfanato
transformando-o em uma república.
Korczak aliava-se aos pensadores da Escola Nova quanto às críticas que faziam à
educação tradicional, porém considerava que esses estudiosos focavam demais o
desenvolvimento de atividades específicas, buscando o interesse da criança, e não se
aprofundavam nos questionamentos sobre a essência da educação, como nos elucida Singer
(2010).
Em seu trabalho com crianças, Korczak conduzia suas ações com base em alguns
princípios: “considerava a infância uma chave para a compreensão da humanidade, não um
período de transição, mas um momento absoluto, com sua própria beleza”, assim como “o
educador não deveria sobressair-se em relação ao educando”, como nos salienta Singer (2010).
Podemos perceber em Korczak um olhar e escuta diferenciados para a infância, com
capacidade de argumentação e opinião, salientando a importância de a tomada de decisões partir
do coletivo, buscando a criação de um ambiente democrático.
Korczak proclamava a criança como ser racional, que compreende bem suas
necessidades, dificuldades e fracassos. Isto significa que ordens despóticas e leis
dogmáticas não são adequadas ao ambiente educativo, sendo preferível a
compreensão e confiança. Acreditava que com a justiça para com a criança, seria
lançada a base para a justiça social; se a criança crescesse num ambiente onde os
adultos fossem justos com ela, sem oprimir sua liberdade, quando crescida, ela
também seria justa com seu semelhante e livre dos complexos que impulsionam o
sentimento de vingança. (SINGER, 2010, p. 78)
Ele via a criança no agora, não em uma preparação para o futuro, um vir a ser. Dessa
forma, são ideias que se aproximam do referencial teórico discutido nesta dissertação, ou seja,
não inscrever a infância na história entendida como passado, presente e futuro.
Korczak teve uma morte trágica (apud SINGER, 2010), o que o faz ainda mais
permanecer vivo em nossa memória como alguém que foi fiel às suas ideias de uma educação
diferenciada e de cuidado com a infância. Durante a Segunda Guerra Mundial, Korczak não
53
permitiu que seus órfãos educandos fossem sozinhos para a câmara de gás em Treblinka,
conduzidos pelos nazistas, e seguiu com eles, não os abandonando.
Korczak (1983) nos faz relatos de algumas reuniões-debate, trazendo um olhar sensível
e apurado para a infância, buscando o diálogo como forma de resolução de conflitos e criação
de oportunidades de crescimento por meio do autoconhecimento.
Com a afirmação “a criança não pensa nem melhor, nem pior que o adulto; pensa de
forma diferente”, podemos conhecer um pouco mais da maneira de Korczak (1983, p. 304) de
compreender a criança, respeitando-a em sua maneira singular, evitando diminutivos ou
trejeitos que acabam mais por diminuir e estereotipar em vez de compreender. Com isso,
promovendo a aceitação da maneira de ser infantil. “Durante muito tempo, pensei que a melhor
maneira de me dirigir a elas fosse usando palavras fáceis, que evocassem imagens convincentes,
próprias para captar a sua atenção” (KORCZAK, 1983, p. 305). O autor fala como se
precisássemos de artifícios para atrair a atenção da criança e sermos compreendidos, mas,
Korczak continua: “o que é importante é falar pouco, afetuosa e francamente” (KORCZAK,
1983, p. 305). Ou seja, quando nos apresentamos de maneira franca e aberta para a criança,
quando a convidamos para trocas baseadas no respeito e no seu reconhecimento como sujeito
de direito, igualmente quando deixamos transparecer nossa condição de sujeito emancipado.
Korczak (1983) apresenta-nos, de modo objetivo, como devem ser organizadas e
conduzidas as reuniões-debate como uma maneira de comunicação entre o educador e as
crianças, de modo que possa “mobilizar a consciência coletiva” (p. 305).
Em vez de convocar as crianças para repreendê-las, fazer queixas ou ditar obrigações,
ou ainda exigir soluções para questões que nem o adulto conseguiu encaminhar, deve-se
realizar, sim, um momento sem pressões ou segundas intenções, porém com postura “honesta
e atenta” por parte do educador. Este não deve ocupar lugar de destaque ou tomar para si a
responsabilidade da condução dos debates, premeditando um fechamento ou conclusão, mas
ser um parceiro nas reflexões, apresentar planos de ação que, confrontados com outros, devem
passar por debates e questionamentos de todos os presentes.
“Um bom entendimento com as crianças não é uma coisa gratuita, é algo que se
consegue com esforço” (KORCZAK, 1983, p. 305). Há que se construir um clima de “dignidade
e confiança” que ocupe esses espaços coletivos, que permeie as relações individuais e construa
subjetividades singulares. “É preciso que a participação das crianças às deliberações e à votação
não seja obrigatória” (KORCZAK, 1983, p. 306).
54
Entre os vários mecanismos criados por Korczak para ampliar a comunicação,
descentralizando as decisões, buscando a ampla participação de todos os adultos e crianças, não
podemos deixar de citar o tribunal de arbitragem, o jornal e o quadro para registro de queixas.
O tribunal de arbitragem era visto como “o primeiro passo para a emancipação da
criança, a elaboração e proclamação de uma Declaração dos Direitos da Criança” (KORCZAK,
1983, p. 307). Buscando pôr “fim ao despotismo” e à centralização de todas as decisões nas
mãos do educador, inclusive ficando refém do seu bom ou mau humor, naquele dia eram criadas
instâncias para que os conflitos fossem tratados com “imparcialidade e seriedade”. Ao contrário
de apontar culpados e imputar penas e sanções, o tribunal seguia regido por um belíssimo
princípio: “se alguma criança agiu mal, começamos por perdoá-la” (KORCZAK, 1983, p. 308).
A partir disso, uma série de motivos que justificavam tal atitude eram apresentadas: a criança
podia ter agido por ignorância, de forma involuntária, ou por não conseguir livrar-se dos maus
hábitos, ou até por instigação de um companheiro. No entanto, em todos os casos, afirma
Korczak, a criança é sempre merecedora de uma segunda chance, de uma compreensão de toda
a situação e dos envolvidos, e não só da compreensão do ato em si e da confiança, mas talvez
mais que isso, merecedora da crença no ser humano e na sua capacidade de mudar, redimir-se
e tornar-se mais respeitoso para com seus semelhantes. “Um tribunal ainda não é a justiça, mas
fazê-la reinar deve ser seu principal objetivo; um tribunal talvez não seja a verdade, mas a
verdade é a sua maior aspiração” (KORCZAK, 1983, p. 308).
O jornal trazia textos que eram lidos em voz alta e permitiam uma ligação entre uma
semana e outra, cumprindo o assim um papel de registro e divulgação dos acontecimentos do
orfanato: “cada nova iniciativa, cada reforma, cada problema que aparece, cada reclamação,
encontra imediatamente o seu eco sob a forma de uma nota curta, de um pequeno artigo ou de
um editorial” (KORCZAK, 1983, p. 307). Korczak (1983, p. 307) defendia que não só as
crianças e os jovens, mas os educadores também precisam “controlar sua própria conduta, e o
jornal se torna um perfeito regulador das palavras e atos”, “uma crônica viva dos erros que se
comete e dos esforços que faz para se corrigir”.
É interessante observar o posicionamento do educador e sua relação com as crianças,
como alguém que também erra e está em processo de aprendizagem, o que traz um conceito de
espaço educativo como aquele em que todos aprendem, constituímo-nos sujeitos passíveis de
recriações, a todo o momento, por meio da relação com o outro.
O quadro para registro de queixas constituía-se de um painel afixado na parede para
a anotação de reclamações, chamando os envolvidos para comparecerem perante o
tribunal. Cada noite, o secretário do tribunal inscreve as queixas num livro próprio
55
para isso, e a partir do dia seguinte ele recebe os depoimentos das testemunhas. Esses
podem ser orais ou escritos (KORCZAK, 1983, p. 308).
Todos do orfanato podiam fazer uso desse quadro e assim presenciar suas reclamações
sendo tratadas com respeito e seriedade, fazendo das interlocuções maneiras positivas de
resolução de conflitos.
Quando refletimos sobre processos democráticos que influenciam as relações nos
tempos e espaços educativos, permitimo-nos ultrapassar concepções, buscando maneiras
diferenciadas de conceber a infância. Ao lançar olhares atentos e reflexivos acerca da relação
entre adulto e criança, deparamo-nos com a alteridade e o tanto que nos tornamos disponíveis
e abertos para proposições outras que delineiam novos caminhos.
2.5. Para além das concepções: em busca da alteridade
A alteridade da infância é algo muito mais radical: nada mais,
nada menos que sua absoluta heterogeneidade em relação a
nós e ao nosso mundo, sua absoluta diferença.
(LARROSA, 2013a, p. 185)
Larrosa (2013a) instiga-nos a pensar em duas infâncias, uma delas bastante familiar, que
observamos nos livros, instituições e fazeres, indicando modos de falar e agir com as crianças,
como se a conhecêssemos muito. Tais pressupostos marcam pensares e fazeres no ambiente
educativo, indicando práticas e propostas, agindo em consonância com formas padronizadas e
estereotipadas. No entanto, no cotidiano, o que nos salta aos olhos é uma heterogeneidade
instigante, uma absoluta diferença, marcando a infância como um outro, que nos escapa por
mais que pretendamos capturá-lo: “
A experiência da criança como um outro é a atenção à presença enigmática da
infância, a esses seres estranhos dos quais nada se sabe e a esses seres selvagens que
não entendem a nossa língua” (LARROSA, 2013a, p. 186).
Larrosa (2013a) convida-nos a reflexões acerca da infância que promovem uma maneira
outra de conceber esses “seres estranhos”, que apresentam formas diferenciadas de agir, pensar
e interagir com o mundo, parecendo-nos selvagens por algumas vezes.
Há todo um repertório de conhecimentos construídos, buscando determinar e prever
atitudes e comportamentos denominados como típicos ou esperados em determinadas faixas
56
etárias, como podemos observar nas mais diversas áreas, conforme nos apresenta Larrosa
(2013a).
Dessa maneira, temos a psicologia indicando satisfações, medos, necessidades e
peculiaridades no sentir e pensar; a sociologia apontando o desamparo, a miséria e a violência
das quais sofrem as crianças; bibliotecas e especialistas a discorrerem a respeito das
necessidades e desejos dos pequenos; todo um mercado direcionado para essa faixa etária, assim
como programas de televisão, livros e objetos que pretendem agradar às crianças.
Apesar disso, não podemos reduzir a infância aos nossos saberes, aprisionada em nossas
práticas e concepções, há que se ir além, em busca de outra forma de relação com a criança,
talvez com a construção de “uma imagem a partir do encontro com a infância” (LARROSA,
2013a, p. 197) – encontro este como “sujeito da experiência”, e não como “sujeito da
apropriação”.
O sujeito da apropriação é aquele que devora tudo que encontra, convertendo-o em
algo à sua medida. Mas o sujeito da experiência é aquele que sabe enfrentar o outro e
está disposto a perder o pé e se deixar tombar e arrastar por aquele que lhe vai ao
encontro: o sujeito da experiência está disposto a se transformar numa direção
desconhecida. (LARROSA, 2013a, p. 197)
Agora uma pergunta que não quer calar ressoando em minha mente: a que ponto estamos
dispostos a “perder o pé” nesse encontro com as crianças, no ambiente da educação infantil?
Por que precisamos, a todo o momento, exercer o controle de propostas e situações, delimitando
objetivos e metas? Tais reflexões podem nos acompanhar em nossos fazeres diários na educação
infantil, preenchendo nossa inquietação e fadiga com o que urge por mudanças, perseguindo
nossos encantamentos primeiros, que indicam novos caminhos.
Conceber movimentos que permitam esse encontro com a infância, como nos instiga
Larrosa (2013a), faz-nos pensar na roda da conversa como um momento em que podemos
promover uma “aproximação singular” do adulto com a criança, do velho com o novo,
sensibilizando nossos saberes e posicionamentos, o que nos permite novos percursos e
caminhos, adotando assim novas posturas. “Só na espera tranquila do que não sabemos e na
acolhida serena do que não temos, podemos habitar na proximidade da presença enigmática da
infância” (LARROSA, 2013a, p. 196).
Assim, não mais instituindo concepções a serem praticadas, delimitando metodologias,
mas nos constituindo como sujeitos que se permitem nomear “sujeitos da experiência”, que se
entrelaçam em uma dança harmoniosa de reconhecimentos e vivências intensas da experiência.
57
[...] o sujeito da experiência seria algo como território de passagem, algo como uma
superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos,
inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. (LARROSA, 2002, p.
24)
Talvez nos permitindo conceber a educação não mais pela ciência e pela técnica, mas
pela experiência e pelo sentido, abrindo-nos para as vivências e para o tanto que isso pode nos
transformar, assumindo riscos, mas também nos permitindo ser marcados e afetados,
disponibilizando-nos a novos caminhos e sabores.
Diante do exposto, devemos agora refletir sobre o matéria da presente pesquisa,
considerando que, quando focamos um tema para estudo, precisamos pensar sobre sua
relevância no cenário social e, para tanto, a realização de buscas nas produções acadêmicas
sobre tal assunto nos permite avaliar sua singularidade ou não, por meio do contato com outros
trabalhos. O capítulo III nos permite justamente conhecer o panorama das produções
acadêmicas dos últimos dez anos que tratam de tema semelhante, elencando proximidades e
distanciamentos com a presente dissertação.
58
CAPÍTULO III – MOVIMENTOS DE ESCUTA: DEIXANDO O CONHECIDO...
O instinto é ir sempre
sem parar,
e perante a nossa finitude,
num instante deslizei do meu silêncio
para tentar entender e ouvir o mundo,
foi o que fiz,
pensei, repensei...
Toda sabedoria, a angústia prende.
Um achado e pronto,
outro engano aos olhos.
(BREGALDA, 2012, p.42)
Quando nos encontramos envolvidos em um estudo, muitas vezes precisamos nos dar
conta de nossa finitude, precisamos deslizar do nosso silêncio para ao menos tentar ouvir o
mundo, em movimentos de pensar e repensar. Nesse momento, damo-nos conta de que a
sabedoria prende a angústia, na intenção de não nos enganar, mas o caminho está repleto de
achados. Entre tantas produções acadêmicas com temas semelhantes ao aqui proposto, podemos
realçar nossos objetivos e problemática compreendendo a relevância do presente estudo.
3.1. Pesquisa bibliográfica: proximidades e distanciamentos
Aliada a estudos e reflexões, amparada por uma opção metodológica, a realização de
buscas de dissertações e teses, utilizando a mesma problemática, qual seja, o silenciamento ou
a amplitude da voz da criança pela via da roda da conversa no espaço educativo, permite alargar
nossa compreensão do que vem sendo produzido no mundo acadêmico.
Por meio de combinações das palavras-chave: “educação infantil”, “infância”, “roda da
conversa” e “educação sociocomunitária” iniciei pesquisas no banco de teses da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
A pesquisa bibliográfica foi realizada no mês de setembro de 2015, e o referido banco
disponibilizou apenas material referente aos anos de 2011 e 2012, o que me fez recorrer também
à Biblioteca Digital Brasileira de Tese e Dissertações (BDTD), tornando a pesquisa
bibliográfica mais completa. Dessa forma, nesse outro órgão, foi possível visualizar pesquisas
abrangendo o período de 2003 a 2015, utilizando os mesmos critérios de busca na CAPES, ou
59
seja, a combinação das palavras-chave anteriormente mencionadas, problemática debatida neste
trabalho.
A seguir, apresentamos o Quadro 1 com detalhes referentes aos estudos encontrados:
palavra-chave, ano da publicação, número de teses e dissertações e quais delas se relacionam à
problemática desta pesquisa, no Banco de Teses da CAPES.
Quadro 1 – Produções com proximidade ou distanciamento com o presente
trabalho (2011-2012)
Palavras-chave Ano Número de
produções
encontradas
Número de
produções com
proximidades com
o tema da
pesquisa
Educação infantil,
infância
2011 a 2012
Dissertações 264
Teses 46
Total 310
Dissertações 5
Teses 1
Total 6
Educação infantil,
roda da conversa
2011 a 2012
Dissertações 3
Teses 1
Total 4
Dissertações 1
Teses 1
Total 2
Educação infantil,
educação
sociocomunitária
2011 a 2012
0
0
Educação infantil,
infância, roda da
conversa
2011 a 2012
0
0
Educação infantil,
infância, educação
sociocomunitária
2011 a 2012
0
0
Educação infantil,
infância, roda da
conversa, educação
sociocomunitária
2011 a 2012
0
0
Fonte: Banco de Teses da CAPES.
Elaboração da pesquisadora.
Ao observarmos as produções acadêmicas coletadas no Banco de Teses da CAPES
(Quadro 1), podemos notar que com relação à conjugação das palavras-chave “educação
infantil” e “infância”, foram encontradas 264 dissertações e 46 teses, somando 310 trabalhos.
Desses, procuramos fazer uma leitura dos resumos, inicialmente, buscando indícios de
proximidade ou não com a problemática discutida no presente trabalho.
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A leitura dos resumos das dissertações permitiu que fosse feita a separação dos trabalhos
que tangenciavam com o estudo em questão, na medida em que abordavam uma concepção de
infância que se aproxima da aqui apresentada, atingindo um total de seis estudos, sendo cinco
dissertações e uma tese.
Com relação aos seis trabalhos, atentamo-nos aos seguintes itens: problemática
discutida, objetivo, metodologia e conclusão, agrupando as produções segundo as semelhanças.
As dissertações “Agora eu...”: um estudo de caso sobre as vozes das crianças como
foco da pedagogia da infância, de autoria de Renata Cristina Dias Oliveira (2011), Será que eu
posso falar alguma vez aqui? Algumas reflexões sobre o que falam as crianças da/na escola, de
Deylla Wiviane de Araújo Batista (2011), e Crianças, interações e formas de sociação6 em uma
unidade de educação infantil, de Jacqueline Pádua de Oliveira (2012), enfocam a relação do
espaço educativo com a voz das crianças e quanto essas manifestações interferem ou não no
processo educativo, entendendo os pequenos como sujeitos atuantes, capazes de
posicionamento perante as vivências na escola de educação infantil.
Podemos apontar a proximidade desses aspectos das referidas pesquisas com o presente
trabalho, tendo em vista que se enfatiza uma concepção de infância tratando a criança como
sujeito ativo, ocupando um posicionamento participativo não só no processo de ensino-
aprendizagem, mas nas vivências e experiências do espaço educativo.
O objetivo das três dissertações citadas é refletir a respeito de que maneira a voz da
criança entrelaça o cotidiano escolar, o que se aproxima da presente dissertação, na medida em
que também aponto aqui para a necessidade de buscarmos caminhos para que a voz da criança,
em vez de silenciada, possa ser ampliada e participativa no espaço educativo.
A metodologia adotada nas pesquisas é qualitativa, com inspiração etnográfica,
utilizando caderno de campo, foto, vídeo, portfólios das crianças e diário de bordo, no caso da
primeira dissertação mencionada; na segunda, é adotada a observação participante; na terceira,
utilizam-se notas de campo, gravações e registro fotográfico. A proximidade desses trabalhos
com esta dissertação pode ser indicada por tratar-se de uma metodologia qualitativa com
pesquisa participante, utilizando diário de campo, diário de bordo, falas e desenhos das crianças.
Analisando a conclusão apresentada pelas três pesquisas, há a indicação do
favorecimento de alguns aspectos da criança permitindo: “valorização e potencialização da
6A autora apresenta sociação, termo proposto por Georg Simmel, como diferente de socialização, caracterizando-
se como uma forma mais pura de interação entre os indivíduos, apresentando como conclusão em sua dissertação
que “as crianças viabilizam a vivência de diferentes tipos de sociação: o enfrentamento de conflitos, a negociação
de interesses, a construção de amizades, a criação de estratégias para viabilizar o acesso a brincadeiras e o
planejamento das mesmas” (OLIVEIRA, 2012, resumo).
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autonomia infantil, encorajamento de ações perante desafios e construção de processo
significativo de aprendizagem” (OLIVEIRA, 2011), “reflexões acerca de uma escola que é
organizada hegemonicamente pelos adultos” (BATISTA, 2011) e “As interações entre as
crianças, dessa forma, possibilitam a construção das competências sociais e contribuem para a
produção – não apenas para a reprodução – da cultura” (OLIVEIRA, 2012). Vale ressaltar que
os trechos selecionados foram retirados do resumo.
As dissertações A cidade pensada pelas crianças: conceitos e ações políticas para a
consolidação da participação infantil, de Fabiana Moura Arruda (2011), e Infância e
cidadania: o que dizem as crianças, de Nagila de Moura Brandão (2012), buscam refletir sobre
indicativos de ampliação da participação das crianças na cidade, na primeira dissertação, e
reflexões a respeito das experiências de cidadania das crianças e de como elas entendem esse
conceito, na segunda. Trata-se de problemáticas que se distanciam da pesquisa ora apresentada,
considerando que o foco aqui é apenas o espaço educativo.
Na tese A experiência de aprender com as crianças nos acontecimentos cotidianos, de
Cristiana Callai de Souza (2011), discute-se a problemática de silenciamento “das narrativas,
singularidades e experiências das crianças” em razão de um “saber legítimo”, o que se aproxima
das discussões aqui levantadas, tendo em vista que também refletimos sobre situações nas quais
a voz da criança é silenciada, em vez de ampliada, negando suas experiências e saberes. Em
contrapartida, busca-se, no trabalho mencionado, tornarem visíveis as maneiras outras de ser e
de ver, próprias das crianças, elementos que também objetivamos demonstrar nesta pesquisa.
Passando para o segundo item do quadro, conjugando as palavras-chave “educação
infantil” e “roda da conversa”, observamos uma dissertação e uma tese com pontos em comum
com o presente trabalho.
Na primeira, intitulada Rodas da conversa: uma análise das vozes infantis na
perspectiva do Círculo de Bakhtin, de Viviane Maria Alessi (2011), há um foco na roda da
conversa indicando esse momento como propício para o desenvolvimento da oralidade, tendo
como objetivo a análise da fala das crianças na perspectiva dos integrantes do Círculo de
Bakhtin7.
7 O termo Círculo de Bakhtin deve-se às reflexões e obras decorrentes dos estudos de um grupo de intelectuais. A
autora “elegeu a teoria debatida pelos integrantes do Círculo de Bakhtin, principalmente Valentim Volochínov
e Mikhail Bakhtin. Em uma perspectiva dialógica de linguagem e que considera o homem como ser de
linguagem, o aporte teórico dos intelectuais pertencentes ao Círculo de Bakthin enfatiza a importância da
alteridade na constituição dos sujeitos, ou seja, a interação permanente com o outro contribui para a formação
da consciência do homem” (ALESSI, 2011, resumo).
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Há, inicialmente, uma proximidade com o trabalho aqui apresentado, citando a roda da
conversa, porém com outra perspectiva, sendo o referencial teórico baseado em Valentim
Volochínov e Mikhail Bakhtin, pois a intenção é de analisar os discursos. Enquanto na presente
dissertação procuramos focar as possibilidades oferecidas pela roda da conversa para que a
criança amplie sua voz e participação no espaço educativo.
A conclusão é de que “a infância precisa ser considerada, também, como um tempo de
diálogo”, mostrando a importância das interlocuções entre adultos e crianças no espaço
educativo, o que, de certa forma, aproxima-se de minhas reflexões, mas, diferentemente de
Alessi (2011), utilizo outros referenciais teóricos para indicar a criança como sujeito ativo com
vistas à ampliação de sua voz e possibilidades de participação.
A tese indicada no quadro e intitulada A roda da conversa na educação infantil: uma
abordagem crítico-colaborativo na produção de conhecimento, de Claudia Gil Ryckebusch
(2011), busca, por meio de um estudo de caso, “analisar para entender criticamente a
organização discursiva dos alunos e da professora pesquisadora, na atividade de
‘Roda de Conversa’, numa sala de educação infantil de uma escola privada, localizada na cidade
de São Paulo”, sendo que a “metodologia utilizada insere-se no quadro da pesquisa crítica de
colaboração”. Essa tem proximidade com o tema roda da conversa, mas também difere desta
pesquisa, na qual não há o objetivo de analisar o discurso.
Podemos ainda apontar como proximidade o fato de, assim como Ryckebusch, também
eu atuar como professora pesquisadora. A conclusão apresentada foi de “promover
transformações nos modos de agir dos alunos e desta professora pesquisadora, ampliando
nossas possibilidades de desenvolvimento e de atuação no próprio contexto”, o que se aproxima
de minhas reflexões, uma vez que também considero relevante a realização de trocas entre os
adultos e as crianças, promovendo mudanças em ambos.
Quando nos atemos à conjugação das demais palavras-chave: “educação infantil e
educação sociocomunitária”, “educação infantil e roda da conversa”, “educação infantil,
infância e educação sociocomunitária”, “educação infantil, roda da conversa e educação
sociocomunitária”, não são encontrados resultados no período compreendido de 2011 a 2012,
o qual foi permitido visualizar na CAPES.
Apesar das dissertações e teses apresentadas indicarem a criança como um sujeito ativo,
devendo ela ser considerada na educação infantil como tal, não há aproximação com a roda da
conversa como ocorre em minhas reflexões. Ainda que alguns trabalhos tragam a roda da
conversa, esta é vista por uma perspectiva de análise do discurso, não com a problemática
empreendida nesta dissertação.
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A seguir apresentamos o Quadro 2 pela pesquisa realizada na BDTD, no período de
2003 a setembro de 2015.
Quadro 2 – Produções com proximidade ou distanciamento com o presente
trabalho (2003 a setembro/2015)
Palavras-chave Ano Número de
registros
encontrados
Número de
registros
relacionados ao
tema da pesquisa
Educação infantil;
infância
2003 a 2015 Dissertações 446
Teses 172
Total 618
Dissertações 6
Teses 3
Total 9
Educação infantil;
roda da conversa
2006 a 2015 Dissertações 11
Teses 4
Total 15
Dissertações 1
Teses 0
Total 1
Educação infantil;
educação
sociocomunitária
2011
Dissertações 1
Teses 0
Total 1
Educação infantil;
infância; roda da
conversa
2008 a 2015
Dissertações 3
Teses 1
Total 4
Educação infantil;
infância; educação
sociocomunitária
---
Dissertações 0
Teses 0
Total 0
---
Educação infantil,
infância, roda da
conversa, educação
sociocomunitária
---
Dissertações 0
Teses 0
Total 0
---
Fonte: Banco de Teses da BDTD.
Elaboração da pesquisadora.
Ao analisar o Quadro 2, podemos verificar que, no período de 2003 a 2015, ao conjugar
as palavras-chave “educação infantil; infância”, foram encontradas 446 dissertações e 172 teses,
em um total de 618 produções acadêmicas. Assim como na busca no Banco de Teses da CAPES,
também foi realizada a leitura dos resumos, buscando proximidades e distanciamentos com o
presente trabalho, pautando-nos nos seguintes itens: problemática discutida, objetivo,
metodologia e conclusão.
Entre as 446 dissertações, podemos apontar seis produções que possuem pontos em
comum com o presente trabalho. Assim como nas análises do quadro anterior, buscamos
agrupar as dissertações com problemáticas semelhantes, conforme se segue: Nas tramas do
cotidiano: adultos e crianças construindo a educação infantil, de Silvia Neli Falcão Barbosa
(2004); A participação infantil nos processos de gestão na escola da primeira infância, de
64
Clarisse Veríssimo Isaia (2007); Infâncias e direitos das crianças na educação infantil: uma
análise a partir do projeto político pedagógico, de Fabiana Soares Pimentel (2013), Culturas
infantis: crianças plurais, plural da infância no cotidiano da educação infantil, de Gleisy
Vieira Campos (2013); Narrativas infantis: estudo da agência da criança no contexto de uma
creche universitária, de Ceciana Fonseca Veloso de Melo (2010); e Crianças na
contemporaneidade, de Juliana Costa Muller (2014).
É possível apontar, nas dissertações citadas, uma problemática que envolve a
participação da criança no contexto político pedagógico dos espaços e tempos educativos. Há
um consenso, nos referidos trabalhos, em apresentar a criança como sujeito produtor de cultura,
o que pode ser observado nas interações com outras crianças, nas negociações dos conflitos,
nas organizações das brincadeiras, entre outros, entendendo sua potencialidade dentro da
educação infantil como participante das práticas sociais e pedagógicas. A aproximação da
problemática das produções apresentadas com a presente dissertação deve-se ao fato da
concepção de criança como sujeito ativo, devendo ser considerada como participante dos
fazeres no espaço educativo.
Quanto aos objetivos, podemos apontar, em Barbosa (2004), a análise das interações
entre adultos e crianças em uma escola pública de um município do Rio de Janeiro,
evidenciando uma metodologia que entende a criança como “sujeito da pesquisa”. Na
dissertação de Isaia (2007), há a intenção de observação e reflexão sobre processos de
participação da criança na gestão escolar, indicando a possibilidade de novos caminhos.
Em Pimentel (2013), observamos o objetivo de ampliar a percepção por parte do adulto
da “linguagem imaginativa” da criança, até mesmo a utilizando como subsídio para “práticas
educativas mais próximas dos interesses e necessidades das crianças”.
Campos (2013) visa “compreender como as crianças vivenciam e produzem suas
culturas, nas relações entre pares no espaço-tempo do recreio, nas atividades coletivas, livres e
dirigidas, e nas festividades realizadas no pátio do Centro Municipal de Educação Infantil em
Itabuna/BA”. Cada trabalho, em particular, tangencia com a presente dissertação na medida em
que também traz uma possibilidade de ampliação da participação da criança nas propostas
pedagógicas dos espaços e tempos educativos, apontando suas potencialidades e singularidades,
interagindo de maneira mais dialógica com o adulto.
Na dissertação de Melo (2010), apresenta-se como objeto de estudo a análise das
narrativas de crianças de 4 anos de uma creche universitária, assim como a análise de seu projeto
pedagógico. O objetivo é fornecer indicativos para que o professor amplie a participação da
criança, gerando o seu desenvolvimento integral, uma vez que a considera em sua totalidade.
65
Como ponto de contato com o presente trabalho, podemos indicar a reflexão acerca do
alargamento da participação da criança na ação do professor.
No tocante à metodologia, podemos apontar que todas as pesquisas são qualitativas.
Barbosa (2004) entende a criança como o sujeito da pesquisa; Isaia (2007) utiliza a pesquisa
ação; Melo (2010) apresenta pesquisa de campo, observação dos sujeitos, consulta de
documentos e coleta de informações concedidas pelos profissionais das instituições. Pimentel
(2013) realiza pesquisa-ação sobre as culturas da infância; Campos (2013) traz a observação
das atividades infantis, fotografias, vídeo e nota de campo; e Muller (2014) atua com a
“intervenção didática na perspectiva da mídia-educação, cujo campo de estudo foi o Núcleo de
Desenvolvimento Infantil”.
Quanto às conclusões, Barbosa (2004) faz um “convite a olhar para criança, a partir do
que lhe é específico”, refletindo a respeito da sua maneira singular de ser, entendendo que a
criança é produtora de cultura. Em Isaia (2007), “vislumbra-se uma possível descentralização
de poder dos adultos que trabalham na escola de educação infantil”, vivenciando a infância
como “sujeito de participação”. Já em Melo (2010) reflete-se acerca de algumas ações docentes,
orientando as “práticas pedagógicas não apenas com o intuito de escutar as vozes das crianças,
mas de entender, estimular e compartilhar conhecimentos, numa troca entre cultura de pares
(criada pelas relações entre crianças) e cultura adulta (amparada pela criança), formando uma
verdadeira comunidade aprendente”.
Pimentel (2013) permite-nos refletir a respeito da criação de “práticas educativas mais
próximas aos interesses e necessidades das crianças”, valendo-se de um maior conhecimento
da “linguagem imaginativa infantil”.
Em Campos (2013), “os modos de formação e de organização dos grupos, as relações
de amizade, as estratégias de participação nas brincadeiras, a negociação de conflitos, a
construção de ações conjuntas coordenadas e as relações com as regras escolares são analisadas
como elementos estruturantes de uma cultura infantil”. Para Muller (2014), é necessário
“ampliar o repertório cultural infantil e suas possibilidades de expressão e comunicação fazendo
da tecnologia uma aliada para o desenvolvimento da criança”.
Diante das reflexões suscitadas pelas referidas dissertações, é possível observar
aproximações com o presente trabalho de pesquisa no tocante à ampliação da participação da
criança nos fazeres dos espaços e tempos educativos, levando-se em conta sua capacidade
imaginativa e sua produção cultural, porém tais reflexões não se referem à roda da conversa
como uma das possibilidades de constituição da criança como sujeito ativo, permitindo uma
66
mudança do seu posicionamento no espaço educativo, debate este que procuro apresentar na
presente dissertação.
Entre as 172 teses indicadas na pesquisa da BDTD, conforme indicado no Quadro 2, foi
possível apontar três produções com pontos de proximidade com este trabalho: O lugar da fala
da criança na ação docente em instituições de educação infantil, de Regina de Jesus Chicarelle
(2010); Sobre infância e sua educação, de Caroline Machado Momm (2011) e O privilégio de
estar com as crianças: o currículo das infâncias, de Loide Pereira Trois (2012). Nas três
produções, discute-se o conceito de criança como sujeito participante nas decisões e fazeres na
educação infantil, levando-se em conta sua maneira de ser.
Na tese de Chicarelle (2010), identifica-se como objetivo a reflexão acerca de que forma
a fala das crianças interfere na ação do professor, no interior de instituições de educação infantil.
Debate que se aproxima bastante da presente discussão, na medida em que também busco
refletir sobre as maneiras de ampliação da voz da criança no espaço educativo. Já Momm (2011)
traz reflexões acerca do tema infância e educação na chamada “crise da modernidade e crise da
razão”.
Trois (2012) busca refletir sobre as marcas deixadas pelas crianças no currículo,
constituindo assim o currículo das infâncias. Tal estudo se aproxima deste na medida em que
apresenta de que modo a participação da criança pode promover mudanças no rol de fazeres e
pensares na educação infantil.
Com relação à metodologia, podemos apontar que, nas referidas teses, em Chicarelle
(2010) houve uma divisão em dois grupos que foram posteriormente comparados e, a partir
disso, criadas as categorias para os diferentes tipos de fala: participação da criança e do docente.
Em Momm (2011), pretende-se como metodologia a revisão bibliográfica discutindo infância
e educação com base nos autores Walter Benjamin e Hannah Arendt.
Já em Trois (2012) a fotografia é utilizada como modo de pensar, visibilizar e registrar
a infância, partindo dos conceitos da fotoetnografia, estabelecendo os pontos centrais de
observação, utilizando a fotografia como narração.
Com relação à conclusão, Chicarelle (2010) “mostra pistas importantes à ação docente
na educação infantil, apontadas como preponderantes no alargamento do lugar da fala da
criança, desencadeando o seu desenvolvimento integral”. Em Momm (2011), há a “conservação
de um diálogo crítico com a tradição, de maneira que a relação entre as gerações se constitua
não como dominação, mas possibilidade do novo, chance que nos é conferida a cada
nascimento”. Conforme Trois (2012), “o currículo das infâncias como diálogo intenso entre
67
adultos, crianças, objetos e o mundo balizado por experiências em que o tempo não controla o
humano, e o silêncio não cala os sujeitos”.
Apesar de as produções apresentadas indicarem a relevância de reflexões acerca das
relações entre crianças e adultos nos espaços e tempos educativos, buscando uma maior
visibilidade para as considerações das crianças, não há a indicação da roda da conversa como
uma das possibilidades para que isso ocorra, promovendo a criança como um dos protagonistas
nesse ambiente, o que é contemplado no presente estudo.
Quando se conjugam as palavras-chave “educação infantil e roda da conversa”,
percebemos a incidência de uma dissertação, a saber: No descomeço era o verbo: um convite a
Manoel de Barros para a roda da conversa na educação infantil, de Glenda Matias de Oliveira
(2015). A problemática discutida é “a construção de (re)significações da roda no campo da
Educação Infantil” por meio da ampliação da participação dos presentes em suas
singularidades, tendo como parceria nesse processo a poesia de Manoel de Barros.
Observamos, nesse caso, que “a metodologia foi baseada na epistemologia qualitativa
de González Rey, de caráter construtivo-interpretativo e dialógico. Foi adotado, também, o
método cartográfico, cuja gênese se deu a partir dos trabalhos conceituais de Deleuze e Guattari,
e que compreende a pesquisa como experiência e processo inacabado”. A construção das
informações fora por meio de leitura e análise do projeto pedagógico da instituição, diário de
campo, observação participante, oficinas e entrevistas. Como conclusão, Oliveira (2015) aponta
a “roda da conversa como um espaço potente para a experiência do devir e a construção
identitária”, indicando novos caminhos e outras possibilidades de fazeres. A roda da conversa
concebida como momento de “encontro e experiência” entre a criança e o adulto, cada um com
suas vivências e conhecimentos, mas que juntos inauguram novas possibilidades.
A última dissertação apresentada traz algumas proximidades com esta pesquisa, tanto
na concepção de criança nos espaços e tempos educativos como sujeito ativo quanto na maneira
como é concebida a roda da conversa como encontro e acontecimento, permitindo e propiciando
novos fazeres e caminhos, evitando movimentos rígidos. Contudo não há o mesmo foco, uma
vez que buscamos discutir o silenciamento ou a amplitude da voz da criança pela via da roda
da conversa nos espaços e tempos educativos.
Na conjugação das palavras-chave “educação infantil e educação sociocomunitária”,
“educação infantil”, “infância e roda da conversa”, “educação infantil”, “infância e educação
sociocomunitária” e “educação infantil, infância, roda da conversa e educação
sociocomunitária” não foi encontrado nenhum resultado no período de 2003 a setembro de
2015, na BDTD.
68
Ao refletir sobre as produções acadêmicas mencionadas, podemos apontar a relevância
do presente estudo uma vez que buscamos ampliar as possibilidades da participação da criança
enquanto sujeito ativo por meio da roda da conversa nos espaços e tempos educativos.
Após entrar em contato com o panorama das produções acadêmicas nos últimos dez
anos, prosseguimos dando continuidade aos aspectos metodológicos, começando pelo que nos
fez iniciar tal estudo: as crianças.
3.2. Encontro com os sujeitos: as crianças
Uma proposta de estudo que pretende refletir sobre as possibilidades de ampliação da
participação da criança enquanto sujeito ativo, por meio da roda da conversa no espaço
educativo, necessita de uma escolha metodológica que priorize movimentos de inter-relação
com os preceitos associados aos fenômenos humanos e sociais e que pressuponha, ainda, uma
abertura e escuta acolhedora do adulto diante do que a criança possa indicar, como nos elucidam
Sarmento e Gouvea (2009, p. 13):
Cabe-nos como pesquisadores e profissionais que atuam junto a estes sujeitos
concretos, crianças, não superpor o nosso discurso ao discurso infantil, retomando a
origem etimológica, que ao nomear a criança, define uma infans: a dos sem fala.
Parafraseando Freud, cabe-nos, em nossas práticas, indagar a este intrigante sujeito:
afinal, o que quer uma criança?
Dilthey (apud ANDRÉ, 1995, p. 14), filósofo e historiador, alega que “os fenômenos
humanos e sociais são muito complexos e dinâmicos” para serem regidos e submetidos a leis
da física ou da biologia que buscam generalizar. Há contribuições de Weber (apud ANDRÉ,
1995) sobre essas reflexões, nas quais o autor alega que há objetivos diferenciados quanto ao
foco de estudo da ciência física, comparando com a social, uma vez que, nessa última, “a
investigação deve se centrar na compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos às suas
ações” (ANDRÉ, 1995, p. 14), os quais devem estar inseridos em um contexto, permitindo uma
concepção diferenciada do pesquisador e das pesquisas nas áreas social e humana.
Outros pesquisadores de questões humanas e sociais concordam com Weber e Dilthey
e defendem a perspectiva de conhecimento que se tornou conhecida como idealista-subjetivista.
Da mesma maneira que há a defesa de uma nova visão de conhecimento, aparece também a
crítica à concepção positivista de ciência, de onde nasce um debate entre o quantitativo e o
qualitativo. Ainda segundo André (1995, p. 14):
69
Não aceitando que a realidade seja algo externo ao sujeito, a corrente idealista-
subjetivista valoriza a maneira própria de entendimento da realidade pelo indivíduo.
Em oposição a uma visão empiricista de ciência, buscando a interpretação em lugar
da mensuração, a descoberta em lugar da constatação, valorizando a indução e
assumindo que fatos e valores estão intimamente relacionados, tornando-se
inaceitável uma postura neutra do pesquisador.
O trabalho aqui exposto pretende-se qualitativo tendo em vista que prioriza a linha de
pesquisa denominada interacionista, distanciando-se dos posicionamentos positivistas. Há uma
intenção de “olhar de dentro”, como afirma André (2001, p. 14), “trabalhos em que se analisa
a experiência do próprio pesquisador”, com a postura de interpretar a própria experiência do
pesquisador, ligado ao interesse de fazer comparações com outra realidade, ampliando as
possibilidades de reflexões, aproximações e distanciamentos, sempre com abertura ao novo que
emerge do campo das relações e dos sujeitos.
Adotando um posicionamento de professora pesquisadora, acredito em uma
proximidade entre teoria e prática, em um processo dialógico e de construção, como nos indica
Tezani (2004, p. 2):
Pesquisar é filosofia, no sentido de apreciar a sabedoria, levando a indagações e
questionamentos, envolvendo a capacidade de criação, elaboração, unindo teoria e
prática, e proporcionando o aprender a aprender e o diálogo com a realidade. Com
esta proposta, a pesquisa é considerada primordial ao processo educativo e à
construção do conhecimento.
Aliada a essas proposições, André (2001) colabora com o debate trazendo contribuições
de Miranda acerca da problemática do professor pesquisador que focam as relações entre os
conhecimentos acadêmicos e os conhecimentos oriundos da prática, enfatizando tal literatura
como forma de contrapor o elitismo acadêmico.
Essa literatura, segundo ela, tem vários méritos: (a) valoriza a ação do professor como
caminho para sua autonomia e emancipação; (b) busca propósitos justos e generosos
ao dar voz ao professor para melhorar a prática, combater as desigualdades e a
exclusão; (c) faz uma crítica salutar às universidades e às suas relações com os
profissionais práticos. (Miranda apud ANDRÉ, 2001, p. 56)
Diante dos pontos indicados, podemos enfatizar proximidades com várias prerrogativas
deste trabalho no sentido de não só valorizar, mas de oferecer maior visibilidade aos fazeres e
práticas destinadas às crianças na faixa etária dos 3 aos 6 anos em espaços e tempos educativos,
por vezes tão desvalorizados. Além de reconhecer na figura do professor um pesquisador,
buscando ampliar conhecimentos rumo a sua maior autonomia e emancipação, somado ao
70
desejo de melhoria e otimização da prática em defesa da diversidade, na contramão da exclusão.
Concluindo, promovendo a proximidade entre a universidade e suas produções com os
profissionais práticos, promovendo assim a práxis. Alimentam-se ambos os lados: teorias
indicando possíveis encaminhamentos para questões cotidianas, e práticas revisitadas e
ampliadas à luz dos teóricos.
Observamos uma valorização da subjetividade do pesquisador, rompendo com alguns
paradigmas positivistas que separam pesquisador e agrupamentos humanos e campos de
pesquisa. Buscamos, assim por meio da metodologia qualitativa, uma possibilidade de
construção e interpretação na produção de conhecimento. Não há uma visão da realidade
observada, bem como de seus sujeitos, participantes desta pesquisa, como algo pronto e
acabado, mas em constante processo de criação e recriação com inúmeras interpretações com
atribuição de sentidos, com vivacidades e devires.
No tocante às definições do campo de pesquisa, havia em mim um grande desejo de
refletir, interpretar e analisar a roda da conversa realizada com as crianças no agrupamento, por
isso a opção pela turma que coordeno. No entanto, não era minha intenção realizar a pesquisa
focando apenas o lugar onde eu atuava profissionalmente; eu pretendia uma aproximação com
outra realidade, procurando contrapontos que suscitassem reflexões. Diante do tema roda da
conversa, realizei algumas pesquisas buscando escolas que priorizassem tal prática e a
realizassem de maneira sistemática. Foi quando entrei em contato com uma instituição
particular com uma proposta diferenciada, com a realização diária da roda da conversa, desde
a educação infantil até o nono ano do ensino fundamental.
Desse modo, aponto como critérios para escolha dos campos de pesquisa: a realização
da roda da conversa de forma sistemática, atendimento a crianças de 3 a 6 anos, consentimento
da escola, das professoras e auxiliares, bem como das crianças para a realização das observações
participantes.
O primeiro contato com a escola particular, que fica localizada em uma cidade do
interior de São Paulo, foi por telefone, no mês de março, quando expliquei a necessidade das
observações. Em um segundo momento, fui visitar a escola e então foi esclarecida a exigência
inicial da realização de um mini curso (seis horas durante o sábado) para maior conhecimento
do trabalho desenvolvido na escola. O curso foi oferecido no dia 11 de abril do ano de 2015,
vale divulgar que tal estudo é acontece duas vezes ao ano nessa instituição: em abril e em
outubro, geralmente, buscando transmitir os princípios do trabalho ali desenvolvido, abrindo
possibilidades para os interessados na realização de pesquisas e estágios. Após a realização do
mini curso, foi possível efetuar o agendamento das datas em que eu gostaria de fazer as
71
observações participantes, que aconteceram na média de uma a duas vezes por semana, sempre
com a mesma turma (crianças de 4 e 5 anos), no período da tarde, oposto ao meu turno de
trabalho, no período de abril a junho de 2015.
Finalmente, quando chega o dia de conhecer as crianças da escola particular, minha
curiosidade é enorme e eu mal podia esperar. A secretária da escola já havia me passado o nome
da professora, e lá fui eu ao encontro dela. Caminho em meio a plantas e árvores, parecendo
estar em um bosque, subo uma rampa e logo avisto três portas, uma ao lado da outra, há
mochilas penduradas nos ganchos e o som característico do espaço educativo: burburinho de
crianças.
Bato na porta e vou girando a maçaneta para entrar, já imaginando a professora muito
envolvida em seus afazeres com as crianças. A auxiliar de sala me cumprimenta e, em seguida,
eu me apresento dizendo meu nome e meu objetivo naquele espaço e tempo. A professora da
sala me cumprimenta e pergunta se eu gostaria de sentar à roda. Tudo me parece muito familiar
e logo me acomodo, com as pernas cruzadas, ao lado de duas crianças e de tantas outras com
olhares cheios de curiosidade. Logo percebo que sou o assunto primeiro e, diante da
possibilidade oferecida pela professora, falo:
– Olá, meu nome é Regina, e sou professora também! De crianças da mesma idade de
vocês! Estou estudando também. O que eu faço se chama mestrado e quero saber mais
sobre a roda da conversa. Como vocês a fazem todos os dias, virei alguns vezes para
aprender com vocês, tudo bem? Posso anotar algumas coisas de vez em quando?
– Não!
– Sim!
– Onde fica sua escola?
– Minha mãe também estuda.
– Você vem todo dia? (Diário de Campo, 23/6/2015)
A professora dá continuidade aos demais assuntos da roda, e eu fico ali observando cada
rostinho e cada expressão.
Após a escolha dos dois campos de pesquisa, utilizo as seguintes nomenclaturas: CEI
para designar a escola pública na qual atuo como professora e escola particular para a outra
instituição.
Conhecer os sujeitos isolados de seu contexto não nos permite conhecê-los em sua
inteireza, por isso pretendo a seguir discorrer brevemente sobre suas realidades, para que
possamos compreender ainda mais os fazeres e pensares em cada um dos espaços educativos
contemplados na presente pesquisa.
72
3.3. Caracterizando os campos de pesquisa
Definidos os dois campos de pesquisa, procuro elencar alguns itens para serem
observados nas duas realidades, quais sejam: região da escola, estrutura física, crianças
atendidas e sala atendida na pesquisa.
3.3.1. A escola particular
Uma das escolas pertence à rede particular de ensino de Campinas e desenvolve uma
proposta educativa que se apresenta como diferenciada desde a educação infantil até o nono
ano do ensino fundamental, buscando nas ideias de Célestin Freinet pressupostos para o
trabalho educativo desenvolvido. A sua localização pertence à região norte da cidade, em um
bairro predominantemente residencial, um pouco afastado da área central. A referida instituição
recebe crianças, preferencialmente, de outros bairros mais distantes, tendo como um de seus
atrativos a sua proposta educativa diferenciada. Tal proposta preconiza os seguintes pilares
apresentados em seu site: desenvolvimento da capacidade criadora, de atitudes de participação
no grupo, de exercício de cidadania, de pesquisa e abertura para a aprendizagem.
O espaço da escola possui muitas plantas e árvores próximas às salas de aula do segundo
ao nono ano, contando com a presença de uma tartaruga no ambiente, promovendo um convívio
intenso com a natureza. Há grande proximidade entre as famílias, crianças e funcionários, uma
vez que são organizados eventos e festas que favorecem esses encontros, além de a escola
oferecer seu espaço para algumas famílias que comercializam produtos.
Na educação infantil, há duas turmas em cada período atendendo a crianças de 2 e 3
anos em uma sala e crianças de 4 e 5 anos em outra, tanto no período da manhã quanto no
período da tarde. A classe de primeiro ano, ensino fundamental, divide espaço com as salas da
educação infantil, mantendo proximidade e grande entrosamento entre si. Há também uma
aproximação física das salas entre o segundo e quinto ano, assim como entre o sexto e nono
ano, com duas turmas de cada série, uma por período (manhã e tarde).
Cada uma das turmas, da educação infantil até o quinto ano, realiza uma votação para a
escolha do nome da turma. É um processo que envolve debates, sugestões e votações, buscando
um nome que caracterize aquele grupo, por isso necessita ser refletido e repensado, requerendo
73
tempo até que se finalize. O nome da turma conduz a um projeto de estudo a respeito do tema
escolhido.
Nessa escola, também há atendimento em período integral para todas as turmas,
conforme a necessidade da família, o que acarreta acréscimo na mensalidade. Para esse
atendimento, há propostas variadas envolvendo arte e recreação, como teatro, música,
brincadeiras, jogos e também acompanhamento na lição de casa.
As turmas possuem um número máximo de vinte e cinco crianças, contando com uma
auxiliar exclusiva para cada sala nas turmas da educação infantil ao quinto ano, passando para
uma auxiliar a cada duas salas nas turmas maiores. A roda da conversa é uma prática que
percorre todos os grupos e acontece no início e final do período, geralmente. A escola funciona
em dois turnos, totalizando onze turmas em cada período, sendo uma sala para cada idade. A
sala escolhida para a pesquisa atende a crianças de 4 a 6 anos, formando um grupo de dezessete
pequenos, uma professora e uma auxiliar de classe, funcionando no período da tarde.
Assim que chegam ao espaço educativo, as crianças ficam espalhadas por todo o
ambiente interno e, logo que toca o sinal, elas seguem para suas respectivas salas, onde a
professora as recebe para o início das atividades. Mesmo no interior das salas, os encontros e
conversas são muito intensos, demonstrando grande proximidade e troca de novidades entre as
crianças até que todos se acomodam para a roda da conversa.
3.3.2. Revisitando o CEI
A outra instituição escolar é pertencente ao ensino público municipal, então denominada
CEI 8, um espaço educativo destinado somente a crianças de 3 a 6 anos, localizada na região
norte da cidade, recebendo crianças preferencialmente do próprio bairro e proximidades.
O espaço educativo conta com um grande ambiente ao redor da construção das salas,
com árvores e plantas variadas. Atendendo, em sua maioria, a famílias que trabalham e
necessitam da escola pública. São também recebidas crianças de um abrigo localizado nas
proximidades.
8 Conforme decreto n. 18.664, Prefeitura Municipal de Campinas (2015): Art. 1° Ficam alteradas as denominações
dos Centros Municipais de Educação Infantil (CEMEIs) e das Escolas Municipais de Educação Infantil
(EMEIs) para Centros de Educação Infantil (CEIs).
74
O funcionamento acontece em dois turnos: duas turmas de agrupamento III por período;
um agrupamento II em período integral; e um agrupamento misto (II e III), ficando a critério
da família a escolha pelo período parcial ou integral.
Há um processo de votação para escolha do nome das turmas, o que geralmente indica
um projeto para o estudo do tema escolhido. Os funcionários recebem as crianças no portão,
auxiliando no caminho para a sala, os maiores já o fazem sozinhos.
Como mencionado anteriormente, atuo como professora desse espaço educativo, no
agrupamento III B, período da manhã, uma turma de vinte e sete crianças. Realizo diariamente
a roda da conversa, buscando contemplar vários aspectos: novidades que se podem definir como
narrativas que as crianças nos contam, trazendo aspectos de seu cotidiano e que nos permitem
conhecê-las mais, planejamentos coletivos, temas a serem estudados nos projetos, observações,
críticas ou reivindicações das crianças, organização e marcação de nossos eventos no
calendário, escolha do ajudante do dia.
Apesar de atuar como professora na rede pública há muitos anos, ocupar o lugar de
professora pesquisadora faz com que eu me sinta diferente. Olhar para as crianças desse lugar
confere-me uma postura de ampliar a escuta, registrar acontecimentos e falas, tecendo muitas
reflexões. Tudo isso me deixa eufórica e bastante instigada a realizar leituras, buscando
contrapontos e possibilidades de troca.
Para mim, comentar sobre a infância permite reflexões mais generalizadas, mas focar
nos sujeitos participantes da pesquisa fornece proximidade.
3.4. Caracterização dos sujeitos da pesquisa: afinal, quem são eles?
Repensar a infância e a maneira como a criança vem constituindo-se na
contemporaneidade, em especial no ambiente educacional, faz com que eu repense práticas e
fazeres inerentes a esse espaço e que podem favorecer a constituição de sujeitos singulares e
críticos.
Na pesquisa, os sujeitos são duas professoras, uma auxiliar de classe e vinte e três
crianças de 3 a 6 anos, no total.
Entre esse total de sujeitos, temos aqueles do CEI: uma professora, que é a pesquisadora,
e dezessete crianças; e na escola particular: uma professora, uma auxiliar de classe e seis
crianças.
75
A escolha pela faixa etária compreendida entre os 3 e 6 anos, objeto deste estudo,
justifica-se pela afirmação da infância a partir de capacidades, e não de ausências, como nos
acrescenta Kohan (2009, p. 41):
pensar a infância desde outra marca ou, melhor, a partir do que ela tem e não do lhe
falta: como presença e não como ausência; como afirmação e não como negação,
como força e não como incapacidade. Essa mudança de percepção vai gerar outras
mudanças nos espaços outorgados à infância no pensamento e nas instituições
pensadas para acolhê-la.
Quanto às crianças, são dezessete no CEI, com idade entre 4 e 5 anos, e uma professora
que atua na função há vinte e quatro anos, com formação em pedagogia e especialização em
educação. Já na escola particular, a professora tem formação em pedagogia e atuava, até um
ano antes, como auxiliar de classe, passando depois, no ano de 2015, à professora titular. Já a
auxiliar está concluindo o curso de pedagogia e ingressou recentemente na escola. As seis
crianças possuem entre 4 e 5 anos.
A pesquisa foi realizada no período de abril a junho de 2015, na escola particular, e no
período de julho a setembro no CEI. A escolha dos períodos deu-se em virtude da possibilidade
de início das observações na escola particular, que aconteceram após a realização do mini curso
em abril, no período da tarde, por ser meu contra turno de trabalho. No CEI, busquei coletar
registros no período em que todas as crianças compreendiam a faixa etária escolhida para este
estudo.
3.5. Procedimento de construção de dados
Na presente dissertação, são utilizados como procedimentos na construção de dados a
observação participante na escola particular, e observação total no CEI, diário de campo,
entrevistas semiestruturadas e desenhos das crianças. Na escola particular, foram feitas várias
observações, sempre dividindo espaço com as crianças, a professora e a auxiliar de sala, em
constantes inter-relações, confirmando aquilo que André (1995, p. 24) nos fala: “o pesquisador
tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado”.
Realizando as observações e fazendo os registros no diário de campo, senti necessidade
de ouvir a professora da escola particular a respeito de suas intenções e objetivos para a roda
da conversa e como ela organizava essa atividade com as crianças. Diante de tal necessidade, a
realização da entrevista semiestruturada parecia materializar minha pretensão, considerando
que essa modalidade de entrevista pode ser denominada como:
76
uma das formas para coletar dados. Ela se insere em um espectro conceitual maior,
que é a interação propriamente dita, que se dá no momento da coleta. Nesse sentido,
para nós, a entrevista pode ser concebida como um processo de interação social, verbal
e não verbal, que ocorre face a face, entre um pesquisador, que tem um objetivo
previamente definido, e um entrevistado que, supostamente, possui a informação que
possibilita estudar o fenômeno em pauta, e cuja mediação ocorre, principalmente, por
meio da linguagem. (MANZINI, 2004, p. 9)
Após a elaboração da observação, conversei com a professora da escola particular para
que pudéssemos então nos organizar para a realização da entrevista, no tocante à escolha do
dia, horário e local apropriado. Ela escolheu o momento em que as crianças estavam na aula de
música com a auxiliar de sala. Fui lendo as perguntas em voz alta e, conforme a professora
respondia, eu anotava. Finalizada a entrevista, fiz a leitura das respostas, perguntando se a
professora concordava com tudo o que eu havia registrado e se o que estava escrito representava
de fato a sua fala. Após a concordância, encerramos.
Quando nos propomos a realizar um trabalho de cunho científico, recomenda-se realizar
uma seleção de determinada técnica que contemple a natureza da investigação e a postura de
pesquisador adotada. Conforme exposto anteriormente, a subjetividade, tanto do pesquisador
quanto dos sujeitos pesquisados, é evidenciada e necessária para a construção das reflexões na
presente pesquisa. Quando nos lançamos em busca de teorias que possam dialogar com nossas
hipóteses, iniciamos um processo de entrelaçamento de nossas subjetividades com a realidade
que observamos e seus sujeitos e agrupamentos humanos, permitindo relações muitas vezes
inesperadas, provocando recriações e ressignificações.
Sendo um estudo com e por intermédio das crianças, devemos buscar princípios
indicadores para que nossas atitudes considerem esse sujeito em sua amplitude e potência e,
como bem acrescenta Kramer (2002, p. 46), devemos nos imbuir “de um olhar infantil crítico
(para) aprender com as crianças e não se deixar infantilizar. Conhecer a infância passa a
significar uma das possibilidades para que o ser humano continue sendo sujeito crítico da
história que o produz”.
Sarmento e Gouvea (2009, p. 13) nos permitem alargar nossa percepção acerca dos
estudos envolvendo a criança quando esclarecem que “pensar a criança e a infância, no interior
das ciências humanas e sociais, indica-nos assumir uma perspectiva polifônica”, ou seja, de
muitas vozes, não “superpondo o nosso discurso ao discurso infantil”.
Tratar a criança como sujeito capaz de estabelecer posicionamentos e indicar
encaminhamentos possíveis e necessários é minha posição neste estudo, já que cada vez mais
se busca reconstruir a infância:
77
Nas suas múltiplas articulações com as diversas esferas, categorias e estruturas da
sociedade, configurando uma abordagem renovada (nos planos teórico,
epistemológico e também metodológico) da infância como categoria social e das
crianças como membros ativos da sociedade e como sujeitos das instituições
modernas em que participam (na escola, família, espaços de lazer, etc.).
(SARMENTO; GOUVEA, 2009, p. 13)
As observações realizadas tanto na escola particular quanto no CEI suscitaram
muitas reflexões, produzindo anotações no diário de campo, que foram escritas posteriormente,
em outro ambiente, após cada encontro, uma vez que as interações foram muito próximas.
Segundo Minayo (2012), o diário de campo “é o principal instrumento de trabalho de
observação”, permitindo não só um registro auxiliar para a memória, bem como as impressões
a respeito, passíveis de análise e de reflexão posterior.
Durante a observação, foi realizada uma entrevista semiestruturada com a professora da
escola particular, cujas questões estão no apêndice deste trabalho, e, com base nos registros no
diário de campo, foram construídas narrativas, permitindo expressar situações vivenciadas.
3.6. Procedimento de discussão dos dados
Os dados serão apresentados em forma de narrativa, dialogando com o referencial
teórico adotado nesta pesquisa.
Os procedimentos de discussão e análise dos dados permitem que transpareça como o
corpus do que fora construído e coletado se deixa permear pela polifonia dos sujeitos e
agrupamentos humanos que compõem a complexidade do real, utilizando as narrativas, que,
longe de assumirem a função de relatórios, buscam, assim como o oleiro, deixar marcas na
argila:
A narrativa é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação.
Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como uma
informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida
retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do
oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 2012b, p. 221)
Nas observações, o procedimento foi analisar de que maneira se entrelaçavam, na
realização da roda da conversa, os movimentos vivenciados pelas crianças, professora e auxiliar
de classe e como eram inviabilizadas as situações que consideram a criança sujeito ativo
participante da elaboração do plano coletivo de trabalho.
78
Quanto aos desenhos das crianças, estes foram coletados apenas no CEI, pois na escola
particular ocorreram apenas as observações participantes, sem interferência nas propostas e
atividades desenvolvidas na turma, buscando, assim, somente observar o desenrolar das
propostas. Das dezessete crianças, apenas seis participaram da roda da conversa com narrativas,
acerca das quais busco refletir.
Diante de tantos desenhos, relatos, narrativas, deixei-me envolver em processos de
seleção, observação e construção de sentidos e saberes, a partir de tudo que vi, vivi e senti.
Nesse momento, lancei-me em movimentos de construção e entrelaçamento. Misturaram-se
reflexões, pensamentos e sentimentos, que juntos compõem o capítulo IV, a seguir.
79
CAPÍTULO IV – ENTRE PERCEPÇÕES E SABERES: CABENDO, DESCABENDO E
SEGUINDO O CAMINHO
O olhar de um homem,
desprovido de acabamentos,
mira um modo de alcançar o grande,
o grande sertão,
e o remédio derradeiro.
Aquilo que se diz humano
cabe e descabe num piscar de olhos,
num embrulho,
num escorregão,
ou no canto de um sabiá.
E lado a lado, cabendo e descabendo,
caminha,
a angústia de sofrer
do detalhinho do esquecimento.
(BREGALDA, 2012, p.44)
Ao nos lançarmos para conhecer os sujeitos da pesquisa e os lugares que ocupam,
precisamos nos imbuir de um olhar desprovido de acabamentos, que nos forneça abertura
suficiente para não só ver, mas enxergar o que se nos apresenta. Embora estejamos imbuídos
de nossos preconceitos e impressões outras, pois neste caminhar às vezes até miramos um modo
de alcançar o grande, como se esse fosse o remédio derradeiro. No entanto, lidamos com o
humano, que cabe e descabe num piscar de olhos, fugaz, ligeiro, mas belo como o canto de
sabiá, que nos toca o sentimento. Enfim, percorremos em nossa inteireza, lado a lado com
nossas percepções e sentimentos, cabendo e descabendo, com angústia e talvez sofrimento, e
algumas pitadas de esquecimento: do que fomos, do que seremos e almejamos ser um dia, mas
rumo ao encontro dos dados, construindo, desconstruindo e reconstruindo saberes.
4.1. Visualizando os dados: construindo saberes
Diante de todo o material construído e coletado, compondo um entrelaçado de sujeitos
e agrupamentos humanos, concepções, situações, visões e escutas, surge o questionamento: O
que essas particularidades e singularidades, que se apresentam impregnadas com características
do lugar de onde vieram, querem dizer? Por onde começo? Há uma ponta a ser puxada como
80
se fosse um novelo para ser desenrolado? Talvez essa ponta seja nossa curiosidade aliada à
possibilidade de interlocuções que nos permitem deslocamentos, indicando por onde iniciar.
Então me entrego a movimentos de aproximação e distanciamento, percebendo que o que está
próximo precisa ser visto de longe, e o que está distante tende a se aproximar, percorrendo um
caminho de retomada do meu diário de campo.
As observações participantes e as observações totais permitiram a construção de um
diário de campo, proporcionando uma visão mais ampla das características dos grupos, da
escola particular e do CEI, de suas rotinas, das maneiras como se organizavam para a realização
da roda da conversa e das possibilidades que esse momento oferece de participação das
crianças, cujas impressões agora compartilho.
Observar as práticas pedagógicas com um olhar de pesquisadora provoca em mim
deslocamentos, indicando que não há maneiras únicas de atuar no espaço educativo, mas outros
caminhos e possibilidades possíveis. Observar a maneira como a professora conduz a roda me
faz refletir sobre as possibilidades de as crianças assumirem a condução da conversa com suas
inquietações e curiosidades, ou então a professora seguir uma lista de afazeres para esse
momento: preenchimento do calendário, escolha do ajudante do dia, organização da rotina, que
podem inibir a criança que chegou com tantas inquietações. Como afirma Siste (2003, p. 85):
“a dinâmica das rodas é estabelecida de acordo com as necessidades da turma”, cabendo ao
professor uma escuta atenta e sensível para a dinâmica que se constrói nesse momento. Muitas
vezes há tantas “tarefas” a serem cumpridas na roda que a novidade que a criança trouxe em
mente se perde em meio à realização de todos os trabalhos de organização da rotina, que sem
dúvida são importantes, mas não preponderantes.
Acredito que permitir que esse momento torne-se flexível amplifica a voz da criança,
considerando que as novidades devem ocupar os primeiros momentos, porque, como afirmou
Roberto9, uma criança do CEI: “Quando eu penso e demoro pra falar, eu esqueço. Aí depois
falo outra coisa”. O menino deixa aqui transparecer que inicialmente havia algo em sua mente
para ser dito, mas que acabou esquecendo e que, talvez, o que venha a dizer depois seja apenas
um comentário sobre o que alguém falou, esquecendo o que havia trazido de suas vivências e
experiências fora da escola.
A fala parece ocupar a ponta da língua das crianças, pois, assim que chegam ao espaço
educativo, tantos fatos e acontecimentos parecem querer escapar pela boca, como uma rã
9 Nome fictício, assim como todos os outros, utilizado para preservar a identidade real das crianças envolvidas
nesta pesquisa, conforme explicações e referencial teórico citados nas páginas 98 e 99 (KRAMER, 2002).
81
querendo saltar. É muito interessante, porque é possível ver nos olhos das crianças a vontade
de contar algo logo que chegam, alguns já anunciando: “hoje tenho ótimas novidades para a
roda”, ou então: “tenho uma novidade muito triste”, deixando transparecer a expectativa que
sentem pela chegada desse momento. Pautando-me em Siste (2003, p. 90):
quando as crianças contam suas novidades, elas trazem elementos de sua rotina e vida
fora da escola para a turma, elementos esses muito importantes, porque são expressos
livremente pensamentos, desejos, sentimentos.
Acredito que cada vez que as crianças trazem elementos de suas vidas, de seu cotidiano
e vivências, elas se fortalecem enquanto sujeitos nos espaços educativos, pois seus
pensamentos, desejos e sentimentos são considerados, e elas se valem da roda da conversa para
compartilhar um acontecimento com as demais crianças. Concomitante a esses processos, há
reverberações do que cada um diz a respeito do outro, ampliando reflexões e considerações
acerca de si e de suas experiências, como nos salienta Siste (2003, p. 90):
A Roda de Conversa é um momento fundamental na relação afetiva entre a professora
e as crianças e das crianças entre si. Também permite às crianças tomar consciência de
alguns fatos da vida, da diversidade cultural existente nas várias famílias representadas
por cada criança, ou, conforme o acontecido, se liberar de e/ou desdramatizar algumas
situações.
Diante de tais considerações, podemos alinhavar com o que Larrosa (2008) indica como
“processos de subjetivação”, que permite novas possibilidades de vida interferindo nas
potencialidades do indivíduo enquanto sujeito ativo, em consonância com as experiências de
si, na medida em que conduz a uma relação consigo mesmo, ativando singularidades. Ao
mesmo tempo em que une as pessoas afetivamente, alimentando sentimentos de aceitação e
pertencimento ao grupo.
Tais observações me conduzem a movimentos introspectivos de autoanálise da prática,
e percebo questionamentos sobre a maneira como organizo a roda da conversa. Logo os
pensamentos me trazem situações vivenciadas. Quando nos acomodamos em uma roda, há
muitas outras rodas menores, há burburinhos, as crianças se reencontram mostrando que a
distância entre o ontem e o hoje abarca uma coleção de acontecimentos, curiosidades, fatos
assustadores, descobertas que simplesmente vão deixando os pensamentos, passando a ocupar
a fala por meio das narrativas. Nesse momento, o sorridente bom-dia indica dois movimentos
para as crianças: a roda vai começar e logo o disparo em cada um de movimentos internos de
selecionar o que vai contar, entre tantas possibilidades de narrativas. O olhar permanece atento
a cada fisionomia.
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Maria começa a nos contar: “Meu gato tá com uma mania... quando ele vê gente com
bastante carne aqui [mostra o braço próximo ao ombro], ele vai assim bem
devagarinho [rasteja no chão para mostrar] e faz assim [mostra um movimento das
unhas como se estivesse arranhando] e tira um pedacinho de pele da pessoa”. Eu
pergunto: “Mas onde ele aprendeu isso?” Ela responde: “Na rua... Eu falo pra ele:
Chano, não vai pra rua que você aprende coisa má com o ladrão, mas ele vai.” (Diário
de Campo, 17/5/2015)
Diante do relato, muitos assuntos podem ser engatilhados, iniciando processos de
debates por meio dos quais cada um pode dizer sua opinião e vivências: Quem mais tem animal
de estimação? Quem não tem e gostaria muito de ter? Quem já teve um animal muito querido
que morreu? Quais sentimentos brotaram no coração após a morte do bichinho querido? Agora
entrando em um tema extremamente polêmico, entre outros que surgem com frequência e nos
faz deliciar diante das hipóteses de cada criança: o que acontece depois que morre? Então
ouvimos as mais variadas opiniões: “vai para o céu”, “fica embaixo da terra”, “vira anjo”,
cabendo ao professor evitar conclusões e fechamentos, porém fomentar e incentivar as mais
variadas colocações, que trazem implícitas concepções e crenças muitas vezes transmitidas
pelas famílias. Tais exercícios nos permitem lidar com opiniões contrárias às nossas, que muitas
vezes nos instigam a repensar nossas afirmações ou não, como nos acrescenta Siste (2003, p.
91): “A Roda de Conversa vai além de estabelecer simplesmente um momento de bate-papo
com a turma, é um momento de incentivo ao exercício da cidadania, da democracia, do
exercício de ouvir o outro e ser ouvido por ele também”.
Podemos perceber que há movimentos de conversa coletiva entrelaçada com outros que
partem de algumas trocas com o colega ao lado, assim como nas rodas de conversa de adultos,
quando por vezes queremos apenas comentar nossa opinião com quem está ao nosso lado, o
que não significa que não estamos atentos e participantes com o assunto em pauta na roda como
um todo.
Perceber a potencialidade da roda da conversa foi algo que progressivamente tomou
posse de minhas reflexões e do quanto eu poderia promover o seu aprimoramento, cuidando
para que a criança tomasse esse espaço com suas narrativas, questionamentos e opiniões. Um
processo crescente de me permitir ser conduzida, a pessoa adulta da roda, foi acontecendo,
iniciando ou propondo assuntos, para que os movimentos vindos das crianças pudessem tomar
forma e garantir espaço. Podemos apontar como uma das potencialidades da roda e colaboração
nos processos de constituição da criança como sujeito ativo a garantia desse espaço como
propício para a resolução de conflitos, como nos aponta Siste (2003, p. 91):
83
Conversando, definimos juntos o que fazer para garantir uma convivência harmoniosa.
A Roda de Conversa é um instrumento fundamental na gestão de conflitos, pois
estimulam-se o tempo todo o diálogo, a troca de experiências e saberes. [...] Assim como
com os pequenos, com os maiores também nos utilizamos da Roda de Conversa para
definirmos os limites que orientam nossa convivência, colocamos em discussão
problemas que porventura surjam nesse convívio.
Diferentemente das situações impostas pelo adulto, apontando culpados, exigindo
pedidos de desculpas ou impondo sanções, na roda da conversa no espaço educativo
estabelecem-se processos nos quais cada um fala de si, de quanto determinada situação o afetou,
cabendo a ambas as partes buscarem soluções que contentem os envolvidos e não só ao adulto.
Novamente retomando meu diário de campo do CEI, trago uma situação em que uma
criança, cuja mãe trabalha com costura, trouxe como presente para todos cones de plástico que
antes continham linha. Incentivei para que ela distribuísse para todas as crianças. Logo um
diálogo começa a se formar:
– Isso é de pirata. — Disse Bianca ao posicionar o cone nos olhos tentando avistar ao
longe.
– Eu também quero.
– Piratas do Caribe. Eu assisti.
– A gente pode fazer um mapa do tesouro.
– Como podemos organizar? O que mais tem um pirata? Fui lançando
questionamentos, ao mesmo tempo em que me deixava envolver por várias propostas
que se constituíam de forma coletiva.
– Aquele negócio no olho.
– Um chapéu assim. [Mostrando com gestos como deveria ser feito].
– Podemos fazer uma brincadeira de caça ao tesouro — disse Mateus. (Diário de
Campo, 28/5/2015)
Nos dias seguintes, organizamos várias brincadeiras envolvendo piratas e mapas do
tesouro. As crianças desenharam o mapa e resolvemos esconder alguns objetos no parque
simbolizando os tesouros, e, enquanto um escondia, os demais, com o mapa nas mãos, tentavam
encontrá-lo. Nesse momento, podemos perceber a potencialidade da roda amplificando a voz
das crianças, quando, a partir de um objeto trazido de casa, foram criados debates e ideias,
promovendo assim novas brincadeiras.
Nossas conversas sobre piratas continuaram por mais alguns dias, gerando as mais
inusitadas ideias, e, como não podia deixar de ser, também ocorriam as “dramatizações”,
movimentos envolvendo corpo e gesto, em que a criança, muito diferentemente do adulto,
permite envolver-se por inteiro, porque só relatar não é suficiente, precisava de mais. Os colegas
também não ocupam somente a posição de espectadores, mas participam das músicas e danças.
84
“O próprio da criança não é ser apenas uma etapa, uma fase numerável ou quantificável da vida
humana, mas um reinado marcado por outra relação – intensiva – com o movimento” (KOHAN,
2004, p. 3).
Confeccionamos chapéus de piratas com folhas de jornal e o faz de conta ganhou ares
de real, outra criança trouxe um colete de tecido que ajudou a compor ainda mais o figurino e
brincamos muitas vezes de pirata, tesouros escondidos e mapas.
Nesse momento, acolher as sugestões das crianças traduz a busca por uma nova maneira
de conceber as infâncias no espaço educativo, como sujeitos capazes de proposições,
argumentações e sugestões de mudanças, que pode nos conduzir a uma maneira outra de
conceber os fazeres educativos. A escuta atenta e acolhedora da criança pode nos conduzir a
caminhos outros que nos aproximem de vivências mais autênticas e consonantes com nossas
necessidades.
Quando nos desprendemos de movimentos de controle que enrijecem pensares e fazeres
nos espaços educativos, deixamos de querer transformar as crianças em seres padronizados, que
se distanciam do que são hoje e agora, e inauguramos outra forma de pensar e fazer educação,
até mesmo despertando em nós potencialidades criadoras.
Talvez possamos pensar a educação de outra forma. Quiçá consigamos deixar de nos
preocupar tanto em transformar as crianças em algo distinto do que são, para pensar
se acaso não seria interessante uma escola que possibilitasse às crianças, mas também
aos adultos, professoras, professores, gestores, orientadores, diretores, enfim, a quem
seja, encontrar esses devires minoritários que não aspiram a imitar nada, a modelar
nada, mas a interromper o que está dado e propiciar novos inícios. Quem sabe
possamos encontrar um novo início para outra ontologia e outra política da infância
naquela que já não busca normatizar o tipo ideal ao qual uma criança deva se
conformar, ou o tipo de sociedade que uma criança tem que construir, mas que busca
promover, desencadear, estimular nas crianças, e também em nós mesmos, essas
intensidades criadoras, disruptoras, revolucionárias, que só podem surgir da abertura
do espaço, no encontro entre o novo e o velho, entre uma criança e um adulto.
(KOHAN, 2004, p. 11)
Compartilhar momentos vividos com o outro, mas revisitados e revividos por todos nós,
parece ter uma proximidade incrível com a infância e com uma maneira única de tocar a
memória. Precisamos perceber que “a infância não é apenas uma questão cronológica: a
infância é uma condição da experiência” (KOHAN, 2004, p. 3). A cada movimento de escuta e
envolvimento nas invenções lúdicas das crianças, vivenciamos a infância.
Houve uma situação em que uma criança contava um filme a que havia assistido no
cinema e o quanto isso a encantou. Ao narrar, falou das corujas que voavam muito alto e quanto
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as aves conversavam. Em alguns minutos, era como se estivéssemos em uma floresta cercada
por animais, não estávamos mais conversando, mas experimentávamos ser bicho, o que torna o
faz de conta algo real. Passear pela floresta fingindo ser animais envolveu a todos, cada um foi
escolhendo o bicho que mais se afinava e logo começava a imitá-lo no jeito de andar, emitindo
sons característicos. Observando o envolvimento e o grande prazer de todos na brincadeira que
se formava, nas ações e intenções de cada um, questionei sobre outras possibilidades de
organização, ampliando ainda mais o faz de conta e o cenário de floresta.
O que vocês acham da gente combinar de todo mundo trazer no dia do brinquedo10
um animal ou algo de floresta pra gente transformar a nossa sala? Percebi que muitos
gostaram da ideia e já indicaram o que trariam, enquanto outras meninas que se
envolviam mais nas brincadeiras de casinha e uso de maquiagens trazidas de casa não
se empolgaram tanto. No dia do brinquedo, várias crianças trouxeram bichos de
pelúcia e de plástico, outros que não haviam trazido nada lamentaram. Lancei
perguntas ao grupo: Como vamos fazer? O que tem numa floresta? Várias respostas
vieram: árvores, plantas, macaco, onça e tantos outros animais. Bruna sugeriu que
encostássemos as mesas num canto; Pedro deu a ideia de desenhar o que estivesse
faltando. Cada criança foi organizando uma parte: empurrando mesas, tirando
cadeirinhas, pegando papel e lápis para desenhar. Penduramos as árvores e
espalhamos os animais e logo uma história começou. Bruna começou a dizer que
naquela floresta havia caçadores que perseguiam os animais e que estes deveriam se
esconder embaixo das mesas, que seriam as cavernas. Assim como as crianças,
também escolhi um animal e me deixei envolver pela brincadeira. Ao sinal do caçador
se aproximando, deveríamos ir para outro lado, e assim sucessivamente. De repente o
caçador soltava um gás e todos dormiam, mas havia um animal que ajudava a todos.
(Diário de Campo, 1/5/2015)
Diante do exposto, vale recorrer a Prado e Ferreira (2014, p. 302), que nos elucidam:
E, ao contarmos nossas histórias, estamos, de algum modo, procurando preservá-las
do esquecimento, criando, inclusive, a possibilidade de elas poderem ser contadas de
outras maneiras, em outros diversos espaços-tempo, abrindo brechas para
reinterpretações e para outras novas histórias. Como já antecipou Walter Benjamin
(1985), os múltiplos sentidos que são possíveis às narrativas se constroem nos olhares
de outros, na relação com outras histórias.
Quando narramos, permitimos que nossas singularidades e modos peculiares de ver e
sentir o mundo sejam compartilhados, oferecendo aos ouvintes oportunidades muito
diferenciadas de retomada das memórias, revendo e ressignificando o vivido e o sentido.
Compõe-se um jogo por meio do qual todos os participantes são convidados a entrar no mundo
complexo dos sentidos e significações, que, longe de serem estáticos, adotam diferentes sabores
e cores em um processo contínuo, como em uma aquarela em que cada tom, ao se encostar no
outro, mistura-se, produzindo o inesperado.
10 Dia do brinquedo: proposta por meio da qual se elege um dia na semana para que cada criança traga um
brinquedo de sua casa para o espaço educativo, permitindo ampliar brincadeiras e interações com os colegas.
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Quando nos permitimos uma aproximação com a criança buscando a participação e o
envolvimento nas brincadeiras, podemos perceber quanto pode haver admiração e gostar,
estabelecendo uma relação de parceria e sintonia, ao mesmo tempo em que experimentamos
recuperar e vivenciar a infância que existe em nós, nos permitindo ser permeados pela
experiência, saboreando o devir-criança. Acionamos linhas de fugas que nos conduzem a
lugares e relações outras com a criança e também conosco, instaurando um ambiente de troca,
encantamento e prazer.
4.2. Diário de campo da escola particular: permitindo outras percepções
Os espaços e tempos educativos da escola particular permitem observações
diferenciadas que me chamam atenção, como uma agitação maior das crianças, pois as
argumentações, opiniões e sugestões delas parecem ter espaço garantido, gerando muitas trocas
com os adultos. Diferentemente do CEI, onde a exigência pelo silêncio e o manter-se sentado
parece maior. Na observação, também foram considerados a composição do espaço educativo,
os materiais e o mobiliário como articuladores da concepção implícita de infância e educação.
Os registros contemplam esses aspectos, que aqui considero relevantes nas reflexões.
Esses aspectos referem-se especificamente ao uso exclusivo das produções das crianças
da escola como decoração nas paredes, não tendo elas apenas função ornamental, mas servindo
de informativo aos visitantes e pais, e de registro para as crianças, conferindo identidade e
valorização dos estudos e trajetória percorrida pelo grupo, bem como trocas entre as turmas,
provocando comentários, questionamentos e admirações por parte das demais salas.
Diferentemente do CEI, que ainda decora boa parte dos murais internos com as produções do
adulto, e não das crianças que ocupam aquele espaço. Há poucas situações de exposição dos
trabalhos das crianças.
A disposição dos materiais no interior das salas, acomodados em prateleiras baixas e
abertas, é acessível às crianças das duas turmas daquele espaço, manhã e tarde. Tais materiais
são matéria-prima para as produções: papel sulfite, tesoura, lápis de cor, canetinhas, tinta
guache, borracha, apontador, pincel e outros que talvez sejam utilizados em estudos mais
específicos, como lupa e conta-gotas. No CEI ainda observamos muitos materiais trancados em
armários ou em prateleiras altas, inacessíveis às crianças.
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Há alguns livros de história e um ou dois jogos de encaixe e construção, uma caixa para
as produções finalizadas e outra para aquelas que estão por terminar, além de alguns materiais
confeccionados pelas crianças para auxiliar na organização do dia: fichas individuais com nome
e desenho para o sorteio dos ajudantes, calendário, fichas com desenho e escrita das atividades
que compõem a rotina e o livro da vida, que guarda fatos e acontecimentos significativos da
turma com desenhos, colagens e escritas.
Há um cuidado com o espaço que pertence às crianças, o que fica evidente pelas
características marcantes na maneira de dispor e guardar os materiais, mantendo, talvez aos
olhos do adulto sistemático, certa desordem, mas que para os pequenos confere uma
proximidade, identidade e posse, no sentido mais amplo e completo, gerando a sensação de
pertencimento. Uma criança não é “bagunceira”, utilizando uma expressão comum em alguns
ambientes por parte do adulto em relação à criança, mas está em processo de aprendizagem, e
como tal vivencia situações que oscilam entre mais e menos organização. O que também
acontece com o adulto, que deve evitar sobrepor a ação de arrumar acima de outras que
merecem relevância.
Elencar várias características de ambos os espaços educativos contemplados nesta
pesquisa nos permite apontar movimentos da escola particular de sintonia com a pedagogia da
infância, na medida em que evidencia os fazeres e produções das crianças, expondo e compondo
o espaço educativo, ao contrário do que acontece no CEI.
Nesse sentido, é preciso tecer as reflexões sobre o trabalho das Instituições da
Educação Infantil e acreditar em uma Pedagogia da Infância na qual todas as crianças
sejam concebidas como cidadãs competentes, produtores de cultura, especialistas de
sua própria vida. Reconhecer a competência dessas crianças possibilita desenvolver a
escuta responsiva necessária para organizar as várias dimensões da pedagogia – os
espaços e os tempos pedagógicos; os materiais; a organização dos grupos; as
interações; as observações; o planejamento (pelo currículo emergente); a
documentação, a avaliação e os projetos que concretizam a co-construção das
aprendizagens. (Oliveira-Formosinho apud BORGES, 2014, p.15)
Relembrando alguns pressupostos inerentes às pesquisas qualitativas, vale enfatizar o
seu acontecimento por meio de um processo dinâmico, relacional e contínuo. Pesquisador e
sujeitos participantes da pesquisa entrelaçam suas subjetividades e maneiras de ser e pensar na
construção do conhecimento, que vai ganhando forma e colorido, a cada encontro e a cada
reflexão, despontando em vivacidade e em novas possibilidades e caminhos, como uma via de
mão dupla, na qual as duas partes permitem ser refeitas.
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O olhar e a escuta do pesquisador e seus sujeitos de pesquisa não buscam a realidade
estática e pura, mas os movimentos que a permeiam, em alguns momentos, e os que a
atravessam em outros, como em um balanço de mar, em que, ao se enrijecer, talvez você seja
engolido pelas ondas, exigindo talvez sensibilidade e argumentações em uma busca de conhecer
os sujeitos e seu contexto, evitando preconceitos e visões preconcebidas.
Revisitar o diário de campo traz à memória as situações vividas, ressignificando minhas
práticas e concepções, permitindo, por meio das narrativas, uma “faculdade de intercambiar
experiências” (BENJAMIN, 2012a), uma abertura para entrelaçamentos. A seguir, pretendo,
por meio de narrativas, evidenciar trechos do meu diário de campo tanto da escola particular
quanto do CEI.
4.3. Vamos, crianças, a roda vai começar...
Todos estão sentados em roda e “duas crianças trouxeram de casa livros de histórias para
serem lidos, entregando-os para a professora”. Naquele momento, fico tentando adivinhar o que
ela iria fazer: ler na roda uma vez que foi trazido para aquele momento, ou iria deixar a leitura
para outro momento intitulado “hora da história”.
Mas o que presencio em seguida é a professora fazendo a leitura do primeiro livro,
uma história longa, mas a concentração é grande, todos muito atentos! Primeiro ela lê
e depois mostra as figuras. Logo em seguida, pega a outra história. Surgem algumas
perguntas no meio, como a curiosidade sobre um personagem, e algumas crianças
arriscam uma resposta, mas logo retornam à escuta atenta. Em outro momento,
questiono sobre a leitura dos livros, se isso sempre acontece na roda, e o que ela me
responde é que às vezes, sim, e outras vezes não, mas que também acontece num
momento específico da rotina. Isso me chama atenção! O livro trazido de casa é uma
novidade da roda e tem a urgência de ser contemplado naquele momento, e não
guardado para depois, o que vai ao encontro da necessidade da criança naquele
instante, não só de quem trouxe o livro, mas dos amigos que são instigados pela
curiosidade. O livro parece atrair muito a atenção dessa turma”. (Diário de Campo,
15/5/2015).
Quando releio trechos do diário de campo, faço inter-relações com a prática de
professora e considero quanto a atitude de desprender-se de movimentos rígidos pode permitir
interlocuções com a criança. No tocante à prática como professora pesquisadora, busco agora
no diário de campo uma situação em que a criança trouxe para a roda um livro elaborado por
ela e sua prima, duas folhas de sulfite grampeadas, mas que seguiam alguns parâmetros de um
livro editado: título, desenhos e textos escritos em cada página e o nome dos autores. Diante do
89
material, fui instigada a não só visualizá-lo, convidando a criança que o trouxe para fazer a
leitura, como lançar um convite para a turma: “Alguém gostaria de fazer livros como este?”
Percebi o aceite de muitos e o quanto essa possibilidade de se transformar em um autor de livros
mexeu com as crianças, e por muitos dias seguimos produzindo histórias, fictícias ou reais,
falando de monstros, super-heróis ou vampiros, o que nos permitiu escutar preciosidades como:
a primeira viagem para a praia, churrasco em família e casa de vó.
Podemos apontar as situações relatadas como indícios de atitudes mais flexíveis e
abertas às proposições das crianças por parte do adulto, tendo em vista que surge um
acontecimento inesperado que pode ser negligenciado ou acolhido pela professora. Na medida
em que é acolhido, surgem outras proposições, como nesse caso do livro confeccionado pela
criança, que permitiu a confecção de tantos outros livros pelas outras crianças, contando suas
histórias de vida.
Movimentos que permitem outra relação com as experiências vividas e com os ouvintes:
O narrador retira o que ele conta da experiência: da sua própria experiência ou da
relatada por outros. E incorpora, por sua vez, as coisas narradas à experiência dos seus
ouvintes” (BENJAMIN, 2012b, p. 217).
Como narradores, buscamos em nossas experiências os nossos relatos, como quando as
crianças se propõem a não apenas contar, mas a registrar o que viveram e sentiram, permitindo-
nos conhecer um pouco mais de suas experiências e de como isso foi sentido e vivenciado.
Folheando o diário de campo e revisitando minhas memórias, logo me vem outra
situação que pede para ser contada.
Crianças entrando, eu na porta da sala aguardando e dizendo um caloroso bom- dia a
cada um, quando de repente avisto, ao longe, Beatriz com duas sacolas nas mãos
parecendo muito cheias, mas do quê? Quando Beatriz passou por mim, não me contive
e perguntei: “O que tem nas sacolas?” Ela fez um gesto para que eu me abaixasse,
queria me falar ao ouvido: “Eu trouxe brinquedinhos que não queria para todo
mundo”. Preocupada com a quantidade, indaguei: “Quantos tem?” Ela não sabia dizer
e então fizemos a contagem. O número de presentes, que era como Beatriz os
chamava, inclusive porque foram embrulhados um a um com papel de revista por ela
e a irmã, era suficiente para todos. Quando nos acomodamos na roda, Beatriz foi logo
explicando que tinha muitos brinquedos que não brincava mais, mas que estavam bons
e que havia trazido um para cada criança, e logo começou a distribuir. Percebi que
alguns gostaram muito, enquanto outros nem tanto, foi então que sugeri para que
trocassem com o amigo, procurando observar se o amigo também queria fazer a troca.
Gosto de propor situações que exigem organização e entendimento entre eles,
evitando muitas atitudes de adultos que impõem ações e situações acreditando que a
criança não tem condições de resolver. Fiquei observando os diálogos e as diferentes
maneiras de cada um se colocar. Foi uma experiência muito interessante, pois no final
todos ficaram satisfeitos e agradecidos a Beatriz, mas acredito que muito mais que um
brinquedo, cada criança envolvida ganhou lições de sabedoria: dividir e doar o que
não usa mais, conversar com o amigo sobre a possibilidade da troca, aceitando
inclusive um não como resposta, fazendo da roda da conversa um espaço para trocas
e aprendizados múltiplos. (Diário de Campo, 29/4/2015)
90
Induzida por movimentos de interlocução entre minha prática como professora e as
observações realizadas na escola particular, a elaboração da entrevista semiestruturada ampliou
o diálogo e troca entre os dois campos de pesquisa, permitindo reflexões e análises.
4.4. Entrevista semiestruturada
No decorrer das observações participantes, fui sentindo que precisava ouvir um pouco
mais a professora da escola particular, buscando saber como considerava a roda da conversa
em seu trabalho e que relevância dava a essa proposta. Elaborei a entrevista pautando-me em
alguns critérios: poucas questões, para que pudéssemos extrapolar o que estava posto,
permitindo outros apontamentos que talvez não tivessem sido contemplados pelas perguntas
formuladas; questões diretas, buscando contemplar de que maneira a professora organizava e
considerava a roda da conversa.
Realizar a entrevista me fez estar em contato com diversos sentimentos, o que me
permitiu ocupar posições diversificadas: primeiro como pesquisadora buscando pontos
tangíveis com minhas leituras e indagações, depois como professora entrevistando uma colega
de profissão, permitindo um movimento de ampliação de suas concepções a respeito do seu
trabalho, do que acredita e se empenha para colocar em prática.
Comecei a entrevista pedindo que a professora falasse sobre como a roda foi
constituindo-se durante o ano, até chegar ao que ela era naquele momento, e se havia relações
com o que já tinha sido trabalhado no ano passado. Ela começou me explicando que o grupo
contava com sete crianças novas e dez que já frequentavam o espaço educativo e, portanto,
participantes da roda em anos anteriores, o que lhes conferia familiaridade com essa formação.
Diferentemente dos novos, os mais antigos já estavam acostumados a opinar diante dos vários
assuntos tratados, mas a expectativa e a euforia com poder falar dominavam a todos, exigindo
alguns combinados.
Revisitando meu diário de campo, lembro-me de várias situações que recebiam
colocações, por parte das crianças, a respeito do tempo que cada um tinha para falar e de que
fulano falava muito, exigindo de todos certa atenção para essa questão e encaminhamentos que
nos conduziam a combinados coletivos, em uma tentativa de democratizar e ouvir a maioria das
colocações. Quando buscamos uma conexão com os referenciais teóricos, podemos
compreender nas colocações de Paiva (1996), quando trata a respeito dos pensamentos de
Freinet, a importância da livre expressão como um dos pilares do trabalho a ser desenvolvido
91
com as crianças, evidenciando que a roda da conversa é um momento privilegiado e organizado
para acolher essa necessidade da criança.
Prosseguindo com meu roteiro de entrevista, pedi à professora que comentasse sobre o
significado da roda para ela, enquanto profissional, explicando sobre suas intenções e objetivos
com a realização de tal atividade. Sua primeira colocação foi: “um dos principais momentos:
decidir junto, organizar e pensar no trabalho a ser desenvolvido”, deixando transparecer a
relevância que esse momento possui no que é desenvolvido com as crianças, quando ela disse
“decidir junto”, indicando uma das características mais fortes desse momento, ou seja, a troca,
o debate e o delineamento de um trabalho que se pretende coletivo. A professora prossegue: “é
o início das pesquisas”, indicando que não há um planejamento a priori que será apenas
comunicado às crianças, mas a criação de um espaço para colher opiniões, promovendo
reflexões, incitando cada um a dizer o que pensa. Como na arte da costura, em que, a cada
movimento da agulha, a linha se entrelaça ao tecido e algo muito diferente do que era no original
vai sendo formado, causando apreciação e sentimento de pertencimento a todos os envolvidos,
pois é possível se ver naquela produção coletiva.
Na sequência, a professora fez comentários sobre os debates acerca de qualquer mal-
estar no grupo, indicando a roda como um “momento para conversar sobre algum problema.
Não há um dia específico para avaliar. Na roda final, fazemos avaliação e as crianças podem
dar opinião do que não estão gostando”. Identificar linhas de fuga (Neves, 1997), quando se
refere a “momento para conversar sobre algum problema”, remete-me ao incentivo do diálogo
na resolução de conflitos, evitando naturalizações e padronizações por parte do adulto.
Houve comentários da professora a respeito do jornal de parede, que em muitos
momentos vem complementar a roda, esclarecendo: “por meio do jornal de parede,
conversamos sobre algum combinado ou alguma coisa que não está dando certo”. Além disso,
“fazem comentários a respeito da fala do amigo”. Indicando duas situações de roda que
acontecem diariamente, no início e no fim do período, cada um com suas especificidades: a
primeira roda enfatizando o planejamento, incluindo a escolha dos ajudantes do dia, a escolha
dos ateliês, as novidades, e a roda no fim do período, que busca refletir sobre o que foi realizado
no dia, apontando algum problema que precise ser debatido. A professora também comentou a
respeito de uma roda diferente: “acontece também a roda com vela, para leitura de livros
trazidos de casa pela criança”. Essa composição me deixou muito instigada a fazer o mesmo
com as crianças no CEI, uma vez que traz o fogo para o centro da roda, como os homens das
cavernas. Penso e já visualizo os rostinhos sorridentes diante da novidade, entre burburinhos e
agitações, revelando encantamento e um prazer que envolve todo o corpo.
92
Perguntei a respeito de quais pontos considerava essenciais para alcançar seus objetivos
na roda da conversa. Sua resposta elencou quatro pontos que parecem inseridos em uma ordem
de relevância: “escutar o amigo, a valorização do que trazem, a organização da rotina do dia
(muito importante), ajudante do dia”. Nesse momento, sou conduzida a muitas reflexões acerca
do movimento de escutar entre as crianças, permitindo debates cada vez mais ricos, por meio
dos quais elas elaboram cada vez mais suas colocações, deixando de tecer ponderações soltas,
porém mais interligadas com a fala do amigo. Mais um ponto é levantado: “no debate de algum
assunto, trazer contribuições de todos”. Mais uma vez, as reflexões afloram e me pego a pensar
na mudança das crianças no decorrer do ano, na roda da conversa. Havia aqueles que só ouviam,
ou então trocavam comentários apenas com o colega ao lado, e depois passaram a ser os
primeiros a querer falar; havia também os falantes, que muitas vezes queriam dizer de si, sem
relação com as outras colocações, e que aos poucos começaram a ouvir mais e a refazer seus
argumentos. Há um movimento que cresce em espiral, pois os diálogos vão tornando-se mais e
mais complexos, parecendo um turbilhão em alguns instantes, e em outros criando espaços
bastante reflexivos e profundos.
O momento da roda da conversa tem sua finalidade também associada ao planejamento
do trabalho, com uma abertura ao imprevisível que vem da criança quando ouvimos as
novidades, que pode ser um assunto inesperado, um objeto, uma proposta, enfim, há que se
contemplar esses dois aspectos, ambos relevantes. É com base nessa defesa que gostaria de
apresentar um registro do meu diário de campo da escola particular de uma situação em que a
voz da criança foi silenciada, pois, além de não ter oportunidade de mostrar o objeto que trouxe,
sequer foi considerada ou teve chance de argumentar.
Neste dia cheguei um pouco mais cedo e logo vi algumas crianças da sala conversando
e mexendo em algumas folhas próximo ao canteiro lateral, dentro da escola. Abaixei
cumprimentando com um oi e logo perguntei: “O que estão fazendo?” Uma das
crianças me disse: “Estamos fazendo uma casa para a joaninha”. Com as folhas, elas
tinham montado uma cabaninha. Questionei: “Mas será que ela gosta de ficar fechada
aí?” Uma das crianças respondeu afirmativamente ao mesmo tempo em que todos se
empenhavam na construção. Bianca se aproximou do grupo e também sentou no chão
conosco e me disse: “Olha o que eu trouxe para mostrar na roda”, e me mostrou um
saquinho preto e pesado. No mesmo instante, perguntei: “O que é isso?” Ela foi
abrindo e me falando: “Minha mãe achou no lixo”. Eram moedas de vários países.
Disse a ela: “Nossa, são moedas de vários países, posso ver?” E fui pegando e lendo
de onde era diante dos olhos atentos dela. Os dois meninos continuaram seus planos
de proteção para a joaninha e não participaram da nossa conversa. Olhamos várias
moedas, guardamos e logo tocou o sinal para entrar. Já na sala, nos sentamos em roda,
Bianca com as moedas, uma outra criança com um brinquedo que parecia uma espada
e mais uma criança com um livro. A professora iniciou comentando de algumas
demandas que precisavam ser finalizadas, como as peças de argila referentes às
atividades do Dia do Índio, e em seguida teve a escolha dos ajudantes do dia e foram
entregues as fichas da rotina para serem penduradas no varalzinho. A roda logo foi
encerrada, e as crianças que trouxeram coisas para mostrar não puderam fazê-lo.
93
Questiono: a relevância dos assuntos a serem tratados a quem pertence? Penso que
talvez pudesse ter sido ao menos questionado e negociado, buscando argumentações
com relação à urgência das demandas. As três crianças com objetos nas mãos sequer
questionaram a decisão da professora e, ao finalizarem a roda, dirigiram-se às suas
respectivas mochilas para guardar os objetos. E logo se acomodaram nos ateliês
escolhidos e começaram a trabalhar. (Diário de Campo, 22/4/2015)
Larrosa (2008) nos aponta duas dimensões que constituem os dispositivos pedagógicos
de produção e mediação da experiência de si e as quais vemos presente nas situações relatadas,
a saber: a discursiva (o que o sujeito pode e deve dizer de si) e a narrativa (é contando nossas
histórias que nos damos uma identidade no tempo), favorecendo os processos de criação e
recriação do sujeito.
Na tentativa de buscar uma ponte com os pressupostos de Freinet, indicados por Paiva
(1996), pedi que a professora falasse como esse autor considera a roda, em sua opinião, assim
como a escola em que atuava. Sua resposta deixa transparecer poucos conhecimentos a respeito
dos pressupostos de Freinet, revelando ainda que a escola, apesar de promover espaços de
formação para os professores, “tem propostas de temas com textos nos momentos de formação,
promovendo discussões. Mas também há temas levantados pelos professores com textos, leitura
e discussão, em uma frequência de reunião a cada quinze dias. Acontecem também reuniões de
setor e algumas gerais e semanais para orientar e discutir os problemas da sala”. A escola
poderia investir muito mais nas reflexões sobre a roda da conversa, uma vez que tem a presente
prática percorrendo todos os níveis de ensino. E acrescenta, como fechamento do
questionamento: “a escola considera como um momento importante”.
Chegando à última pergunta, solicitei que a professora citasse uma situação que tivesse
nascido na roda da conversa e possibilitado mudanças na sala de aula ou repercutido na escola.
Sua resposta reportou-se mais a situações de sala de aula: “a escolha do nome da turma,
possibilitando vários momentos de construção”. A resposta me permitiu refletir a respeito de
momentos importantes, que não ficaram restritos apenas à escolha de um nome, que por si só
já rende muitos dias de debates e reflexões, mas que trouxeram questionamentos que afloraram
e delinearam o planejamento específico daquele grupo. Tais debates foram indicativos de
pesquisas e construções coletivas, como quando decidiram sobre um castelo que iriam fazer
com caixas de papelão, no tamanho suficiente para que pudessem entrar.
A professora evidencia a posição da criança como sujeito ativo participante do plano
coletivo.
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No debate sobre a questão envolvendo situações da roda da conversa, trazidas pelas
crianças e que repercutiram nas propostas envolvendo todo o grupo, posso indicar um relato do
meu diário de campo no CEI:
Estávamos nos acomodando na roda para iniciar nossas colocações quando a criança,
Taís, inaugurou a conversa com um questionamento: “Por que não temos fantasias na
nossa sala?”, e logo seguida por outras crianças que reforçavam a mesma indagação.
Respondi com outra pergunta: “Vocês gostam de fantasias?” Diante de muitas
respostas afirmativas, percebi que um desafio se instaurava no grupo, que fora
despertado no dia anterior, quando visitamos outra sala da escola e brincamos com
fantasias. Continuamos no assunto com o intuito de elencar quais fantasias gostariam
de ter e possibilidades de aquisição de algumas delas. Com relação à aquisição,
expliquei para as crianças que teria de consultar a diretora, uma vez que a contribuição
espontânea enviada pelas famílias era entregue para ela, que faz a administração da
verba. Após a consulta com a direção, transmitindo os argumentos e intenções
indicados pelas crianças, a resposta foi negativa, mediante a alegação de que já
tínhamos algumas fantasias na escola. Realmente tínhamos algumas fantasias
enviadas pela prefeitura: flores, joaninhas, besouros, mas um pouco distante do que
as crianças gostariam: super-heróis e princesas. Ao retornar para as crianças a
justificativa da diretora, houve a sugestão de pedir aos pais roupas e sapatos que já
não usavam mais. Fizemos coletivamente um bilhete não só pedindo as roupas, mas
justificando nossa intenção. Bilhete digitado e impresso, enviamos para as famílias.
Durante muitas rodas, as crianças trouxeram roupas e sapatos de pessoas da família,
sempre acompanhado de comentários explicações. Foram momentos muito
interessantes, as crianças ficaram empolgadas em trazer e mostrar. Acomodamos
todas as fantasias em um baú e nos divertimos usando vestidos longos, camisas
masculinas, saias etc.” (Diário de Campo, 29/5/2015).
4.5. O que dizem as crianças sobre a roda da conversa? Desenho como fonte
documental
Realizar pesquisas envolvendo crianças nos remete a cuidados necessários e éticos para
que estas não sejam colocadas em situação de exposição e, ao mesmo tempo, garantindo que
ocupem um lugar de respeito com sua identidade. Para tanto, busquei leituras de alguns autores
sobre tal situação. Kramer (2002) amplia nossas reflexões apresentando vários estudos com
escolhas diferenciadas quanto à forma utilizada para denominar as crianças envolvidas na
pesquisa.
Quando trabalhamos com um referencial teórico que concebe a infância como
categoria social e entende as crianças como cidadãos, sujeitos da história, pessoas que
produzem cultura, a ideia central é a de que as crianças são autoras, mas sabemos que
precisam de cuidado e atenção. (KRAMER, 2002, p. 2)
Em um esforço para manter a integridade da criança atendendo às recomendações
contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990,
95
assim como aos pressupostos e referenciais teóricos contidos nesta dissertação acerca do
respeito à infância, optei por utilizar nomes fictícios, como observando anteriormente em nota.
Lançar um olhar para os desenhos produzidos pelas crianças nos permite não só trazer
uma das formas de expressão na infância, mas,
entre tantas possibilidades, permite ao adulto, colocar-se no plano das crianças, vendo
o mundo com seus olhos, não ditando o que elas têm que fazer, mas aprendendo com
elas, sobretudo se evitar a tentação de interpretar somente com olhos adultos o
universo infantil (GOBBI, 2004, p. 6).
Aproximando-me das crianças durante momentos de atividades, questionei de forma
individualizada quem gostaria de fazer um desenho da nossa roda da conversa. Recebi vários
“nãos” como resposta, mas alguns “sins” vieram, e foi um processo muito interessante de
diálogo durante a construção do desenho. Das vinte e oito crianças que compõem o
agrupamento, dezessete se dispuseram a fazer o desenho representando a nossa roda.
A Ilustração 1, elaborada por João, de 4 anos e 7 meses, traz um círculo que liga todos
os presentes, mostrando a disposição física da roda, o que nos permite ver nossas feições e
olhares. Cada um dos presentes aparece com diferenças em suas formas: maiores, menores, com
braços abertos, apontando nossas especificidades, as quais nos constituem como sujeitos,
enriquecendo nossas trocas e interações. Podemos observar que as crianças são a roda, como se
fossem miçangas perpassadas pelo fio que forma o colar. O colar que adorna nossas narrativas,
nossas singularidades, ampliando nosso sentimento de pertencimento. Nesse momento, nos
completamos e nos complementamos, como se cada um, parte integrante do todo, se deixasse
perpassar pela roda, que nos une e nos fortalece em nossas diversidades, mas também como
grupo.
O colar com suas miçangas enriquece nosso imaginário e nos desperta para
interpretações sobre como nos sentimos seguros e conectados quando nos posicionamos em
círculo, formando a roda. O fio nos segura e nos sustenta em nossas diversidades e
singularidades, ao mesmo tempo em que nos fornece proximidade com o outro, não só física,
mas nos momentos de escuta, em que acolhemos as vivências, tristezas e medos uns dos outros.
Quando falamos, nos expomos, mas recebemos o conforto do colega, sua atenção e o
compartilhamento de ideias e sentimentos, somos todos miçangas.
96
Ilustração 1– Desenho da roda da conversa elaborado por João
Fonte: acervo da autora.
A Ilustração 2 é de Lucas. de 5 anos e 7 meses, representando pessoas sorridentes
envolvidas pelo círculo. Talvez seja assim que nos sintamos, permitindo-nos ser envolvidos
pela roda e por suas possibilidades, produzindo relatos, trocas, falando de nós e do outro. Aqui
as crianças estão envolvidas pela roda, como se ela fosse o abrigo, o refúgio, o abraço que afaga
e acalenta nossos medos e incertezas. Mas também a roda como aquela que gesta, e eles fossem
os frutos dela, cuidando e protegendo o mais precioso, o que cada um carrega consigo de
histórias, de desejos e inquietações, como uma semente. Notamos que a primeira criança da
esquerda não tem boca, querendo dizer de sua pouca participação, pois, diante de meu
questionamento a esse respeito, Lucas a nomeou como sendo uma criança que permanece mais
calada. Nas demais, podemos observar duas com a boca aberta e duas apenas sorrindo,
permitindo deduzir as diferentes formas e intensidades de participação de cada um dos
integrantes. Estas também foram nomeadas como crianças que sempre participam bastante,
suscitando as demais a, muitas vezes, colocarem-se afirmando que também querem falar.
97
Durante o desenho de Lucas, fiz algumas perguntas para entender mais as
representações que surgiam no papel: “O que você está fazendo?”, perguntei. Logo veio a
resposta: “Eu tô fazendo as pessoas na roda”, ele respondeu e completou: “As pessoas estão
conversando”. Ao ser questionado a respeito do assunto: “Mostrando o brinquedo no dia do
brinquedo, a gente fala como foi o feriado. Faz o ajudante e o calendário”.
Ambas as ilustrações mostram a força e a potência da roda, e isso é indício de como ela
os amplifica, pois, nas duas ilustrações, as crianças fizeram questão de demarcar a roda com
um cordão, um círculo, que nos une e nos liga, perpassando cada um dos integrantes.
Nossas singularidades são acolhidas e nos sentimos aceitos por inteiro, somos partes
importantes.
A Ilustração 3 nos indica um olho que do centro lança raios que nos atingem como o
sol, que aquece e ilumina nosso interior. Não tenho como falar dessa ilustração sem me referir
à criança que o fez, que progressivamente nos permitiu conhecer um pouco mais de suas
vivências em um abrigo, de sua relação com sua mãe e quanto a roda da conversa a fez se sentir
integrante do grupo e sujeito de sua vida. A mandala com traços soltos abrigam transformações,
Ilustração 2 – Desenho da roda da conversa elaborado por Lucas
Fonte: acervo da autora.
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falas e narrativas que foram sendo oralizadas e gesticuladas, prendendo-nos como redes, como
uma grande toalha de crochê, enredando nossos sentimentos e emoções. Em muitos momentos
nos entreolhamos e nossos olhares falaram mais que as bocas entreabertas. Experimentamos
vivências emprestadas que, em movimentos circulares, misturaram-se às nossas vidas, então
nos questionamos, nos solidarizamos e nos constituímos a cada encontro.
Foram coletados dezessete desenhos no CEI, uma vez que busquei não interferir na
rotina da escola particular. A partir de solicitações, cada criança ficou à vontade para realizar
ou não a ilustração, bem como fazendo ou não depoimentos acerca do que havia desenhado,
apenas pedi que fizessem a nossa roda da conversa. Foram coletados dez depoimentos no total,
muitos deles bastante parecidos, por isso selecionei os que se referiam aos nossos fazeres na
roda, ou aqueles com impressões mais subjetivas.
Ilustração 3 – Desenho da roda da conversa elaborado por José
Fonte: acervo da autora.
99
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No vazio onde queremos entrar
estão os devaneios agarrados,
perdidamente humanos,
e repuxando a ternura para dentro.
A sobrancelha, às vezes, fala mais.
A densidade da solidão,
aumenta e diminui como a poeira,
também possuidora de espessura
inquieta e primitiva.
Muito daquilo que se chama de escrúpulo
vai de abraço ao descascar,
do verniz, do lustroso.
(BREGALDA, 2012, p. 40)
Ao finalizar este trabalho, que exigiu leituras, pesquisas e reflexões, tenho a sensação
de estar envolvida por sentimentos/devaneios por ora agarrados, fazeres que me acompanharam
e que, em alguma medida, me marcaram. No entanto, também saboreio novos vislumbres que
deixam para trás o vazio e a densidade da solidão, que parece aumentar e diminuir, como se
tivesse espessura em uma inquietude primitiva.
Em muitas situações, a sobrancelha falou mais, deu os primeiros sinais de muitos
sentimentos ainda enredados: surpresa, desconfiança, confirmação, encantamento,
cumplicidade. Mas, marcada pelo humano que sou, fui me dividindo entre o escrúpulo e o
descascar, como em um abraço que se necessita sentir e perceber além do verniz e do lustroso.
Talvez seja assim que todos nós nos sintamos em algum momento: tocados e mexidos,
mas, com muitas possibilidades e aberturas de caminhos, ora aparentemente obstruídos ou
nebulosos, mas alimentados com encantamentos e reflexões que nos retiram do lugar antes
ocupado, conduzindo a outro espaço e tempo marcados por maneiras outras de olhar e vivenciar
nossos fazeres e pensares na formação de sujeitos ativos.
Quando repenso os espaços e tempos destinados a cuidar e a educar crianças, deparo-
me com muitas situações e ações impositivas subjugando a capacidade das crianças em opinar
e promover mudanças. Há uma rigidez imposta pelo adulto que me faz rever posturas e
concepções.
Compreendo que rever posicionamentos e olhares para o espaço educativo requer novas
maneiras de ver e conceber a infância, abarcando a criança em sua potencialidade e inteireza,
em uma relação de parceria e troca com o adulto, elencando como prioridade a criação e o
fomento de práticas democráticas que devolvam a cada sujeito que compõe o espaço educativo
100
sua legitimidade e protagonismo nos planejamentos e ações. A pedagogia da infância nos
permite considerar as singularidades inerentes às diversas infâncias que compõem o espaço
educativo.
No momento em que nos permitirmos criar um distanciamento de modelos e
movimentos preparatórios, vamos poder experimentar acontecimentos que buscam como
referenciais as aspirações e os direitos reais não só da criança, mas de outros sujeitos que
compõem o universo do espaço educativo. Movimentos repetitivos e fragmentados de
professores também necessitam ser revistos, para que ele busque outra forma de ser e agir dentro
do espaço educativo, resgatando encantamentos e desejos íntimos e transformadores, ou seja,
as singularidades.
Tal pensamento nos aproxima do “devir-criança”, permitindo uma relação com o
conceito grego de tempo denominado aión, que, em vez de consecutivo e cronológico
(chronos), pode ser alargado pela duração intensa da experiência vivenciada, em uma tentativa
de desprendimento, de rever modelos e chavões que povoam planejamentos e projetos
pedagógicos que buscam indicar maneiras de ser e agir, criando seres sociais nos quais as
crianças devem se transformar, esquecendo-se de experimentar e viver o hoje de maneira
intensa e arrebatadora, próprio de uma criança.
Podemos perceber que, enquanto documentos oficiais ou concepções pedagógicas
indicam a realização da roda da conversa nos espaços educativos destinados às crianças, a
prática em si não garante que ela aconteça de maneira democrática, proporcionando que a
criança seja considerada em sua inteireza e potencialidade, tornando-a um sujeito ativo, pois a
roda pode agir como um dispositivo de controle, que apenas mantém as crianças em lugares
fixos sem direito à expressão própria. No entanto, como um encontro entre adulto e criança,
inaugurando inúmeras possibilidades, há que se permitir vivenciar o devir-criança para sermos
assim perpassados pela infância. Precisamos garantir a abertura para o inesperado e o novo que
brota de relações mais flexíveis e vivências mais intensas.
Talvez, nós adultos, tenhamos muito mais a aprender que a ensinar, reformulando e
revendo paradigmas estabelecidos há muito tempo e perpetuados sem reflexões ou
questionamentos nossos, professores, administradores e orientadores pedagógicos, que
compomos também o universo educacional.
Em alusão as três metamorfoses de Nietzsche (2013), podemos analisar até a que ponto
nos permitimos deixar envolver pela “liberdade libertada” proposta pela criança, ou se ainda
estamos como o camelo, que carrega todo o controle das propostas e atividades desenvolvidas,
delimitando movimentos e falas.
101
Buscamos a construção de um novo olhar escutando nossas crianças, uma escuta atenta,
acolhedora e propositora de mudanças, uma escuta responsiva e qualificada por parte do adulto.
Até mesmo como uma maneira de nos honrar e nos permitir aprender, por meio de uma atitude
receptiva, ampliando nossa inteligência e sensibilidade, despertando nossas infâncias.
Intencionando também reconquistar nossa imaginação, tão negligenciada e desacreditada por
nós mesmos, parecendo esquecida em alguma esquina do passado de nossa infância. Tais
atitudes podem promover não só mudanças no hoje e no agora, mas também resgatar o que
ficou adormecido no passado.
A infância pode ser vista como uma maneira diferente de experimentar e vivenciar os
acontecimentos, de uma maneira mais aberta e vibrante, não quantificável cronologicamente ou
atendendo a objetivos preestabelecidos e preparatórios, mas por meio de sua intensidade.
Quando nossos pensamentos se libertarem de objetivos que se fixam no futuro e
suposições que imaginam moldes para as crianças, limitando nossos diálogos, ações e intenções
dentro do espaço educativo, talvez possamos deixar de fazer imitações e reproduções para
buscar uma nova política da infância, centrada na pedagogia da infância.
Retomando Larrosa (2008) no que se refere às cinco dimensões fundamentais para a
produção e mediação da experiência do eu – óptica, discursiva, jurídica, narrativa e prática –,
lançamos outro olhar a respeito de nossas práticas e discursos pedagógicos buscando uma
dimensão mais aberta e significativa dos fazeres no espaço educativo. A dimensão narrativa faz
com que a criança conte suas histórias em uma inter-relação com as tantas histórias que
compõem seu mundo, fazendo e refazendo a maneira de se ver e estar no mundo, selecionando
o que nos conta de si, em um processo de julgamento interno de acordo com normas e valores,
culminando em uma prática a respeito do que pode e deve fazer consigo mesmo, carregando
implícitas as transformações.
Finalizamos o presente estudo não com o intuito de uma conclusão, mas com indícios
de possíveis caminhos que suscitem maneiras outras de organizar os fazeres educacionais no
espaço educativo levando-se em conta as instituições produtoras de subjetividades e
propositoras de “experiências de si”, constituindo o sujeito por meio de processos de criação e
recriação constantes.
Assim, pensar o espaço educativo com encantamentos e proposições com e por
intermédio das crianças nos permite rever nossas concepções a respeito da infância, buscando
reflexões que desencadeiam maneiras e modos outros de vivenciar as práticas pedagógicas.
Ao longo do presente estudo, aconteceram muitos movimentos que não só enriqueceram
minha prática como professora, mas permitiram a construção de muitas outras possibilidades
102
de fazeres nos espaços e tempos educativos. A seguir faço retomadas das questões que foram
surgindo no decorrer desta dissertação e que me permitem construir as considerações finais
respondendo a cada uma delas, incorporando também os objetivos elencados inicialmente.
Qual é a identidade de nossos espaços educativos e qual identidade gostaríamos que
fosse? Se temos espaços e tempos tão controlados e enrijecidos, como podemos querer que
nossas crianças sejam democráticas e flexíveis? Projetos pedagógicos e planejamentos elencam
objetivos recheados de palavras bonitas: cidadãos críticos e conscientes; porém, como
concretizar essa proposta se o que as crianças vivenciam as forçam a aceitar o que está posto?
Repensar nossas instituições dedicadas a cuidar de crianças nos permitem movimentos
para repensar as infâncias e os cuidados que fornecemos a elas e quanto asseguramos e
garantimos que sejam cumpridos, não permanecendo apenas em leis e documentos oficiais,
visto que acabam não sendo viabilizados no cotidiano dos espaços educativos. A maneira
impositiva e totalitária com que as crianças são tratadas reflete muito do que permeia as mais
variadas relações entre as hierarquias; buscar maneiras outras de diálogos e trocas,
considerando opiniões de vários sujeitos que compõem o espaço educativo talvez promova
movimentos mais democráticos.
A que ponto estamos dispostos a “perder o pé” nesse encontro com as crianças no
ambiente da educação infantil? Por que precisamos, a todo o momento, exercer o controle de
propostas e situações, delimitando objetivos e metas?
Pensar no espaço educativo buscando flexibilidade, planejamento e ações coletivas
talvez pareça distante demais do que vivenciamos, pois há que se iniciar movimentos que talvez
nos indiquem “perder o pé”, em um encontro com o outro que, se por um lado promove ações
coletivas, por outro conduz a processos de constituição das crianças e a nós mesmos como
sujeitos.
Podemos apontar como contribuições do presente estudo um olhar e escuta
diferenciados para as infâncias no espaço educativo, buscando ampliar a participação das
crianças para que esses lugares atendam cada vez mais a seus direitos e opiniões, uma vez que
são organizados para elas mesmas. Há uma intenção de retornar às instituições nas quais
desenvolvi as pesquisas para apresentar as reflexões e a conclusão do presente estudo,
demonstrando gratidão pelo acolhimento à pesquisa e ao pesquisador, ao mesmo tempo em que
poderá incitar análises e reflexões acerca dos pensares e fazeres ali praticados.
Como desdobramentos, podemos apontar oportunidades de reflexão entre os sujeitos
que compõem o espaço educativo e suas concepções sobre infância, assim como debates a
respeito do processo de constituição de cada um enquanto sujeito. O que promove de mudança
103
no educador compreender a infância como acontecimento e criação? O que significa nos deixar
envolver pelas experiências da infância?
Acredito que o presente estudo vem ao encontro de muitos estudos cuja intenção maior
é a consideração da criança como sujeito histórico de direito, pertencente à comunidade que
vive e capaz de opinar sobre assuntos que lhe afetam diretamente, buscando melhorias nas
condições de atendimento das infâncias nos espaços educativos. Reforçando, ainda, processos
de reavaliação da educação que é ofertada às crianças, permitindo que cada vez mais os pensares
e fazeres nos espaços educativos tenham ressonância nos documentos oficiais, conferindo às
infâncias não só respeito, mas olhar diferenciado e “escuta responsiva”, que dão indicativos de
mudanças necessárias. Rever processos e movimentos de conversa e escuta não só na educação
infantil, mas em todos os níveis de ensino, para que a criança e o jovem possam conduzir a roda
da conversa, tendo o professor como parceiro. Além disso, o uso de desenhos das crianças como
fonte de pesquisa com as infâncias.
E mais uma vez:
Vivo pensando pelos barrancos
e neles fico debruçado,
mas remo, de último costume,
sempre na direção contrária
para ver se consigo avistar,
mais uma vez,
o lugar da infância.
É como rever a lição do musgo no muro
sobre o surgimento
das primeiras cores
(BREGALDA, 2012, p. 71)
Reflexões que permeiam o caminho: pensar pelos barrancos e não parar de remar, como
de costume, sempre na direção contrária, para ver se consigo avistar o lugar da infância não só
nos espaços e tempos educativos, mas em mim. Será que preciso ficar debruçada? Como em
uma atitude de devaneio, por meio da qual pensamentos vêm e vão, mas não são capturados
porque talvez o foco seja outro... Não o pensar, mas sim o sentir.
Há uma lição a rever: o musgo no muro, impregnado de odores, mas sobretudo
impregnado de muro, verdejante e cativo no lugar que ocupa. A caminhada nos permite não só
ver, mas multiplicar os silêncios com as palavras, como nos indica Manoel de Barros (2013).
Avistar o surgimento das primeiras cores parece um chamamento a nos envolver com a
infância, e devemos nos entregar sem receio a tantos caminhos e possibilidades que se abrem à
104
nossa frente. Iniciar processos que permitem sermos perpassados pelos devires, acionando
nossas unidades revolucionárias e disruptoras, inaugurando novos começos.
105
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APÊNDICE
Questões da entrevista semiestruturada realizada com a professora da escola particular
1) No início do ano, como a roda foi constituindo-se? O que vem do ano anterior e o que precisa
ser construído?
2) Para você, o que significa a roda da conversa no trabalho desenvolvido com as crianças?
Qual a sua intenção e objetivo como professora na roda da conversa?
3) Quais pontos você indicaria como essenciais numa roda da conversa (para alcançar seus
objetivos)?
4) Em sua opinião, como Freinet considera a roda da conversa? Na escola, como é considerada
a roda da conversa?
5) Cite uma situação que nasceu na roda da conversa e possibilitou mudanças na sala de aula
ou repercutiu na escola?