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A Música do Silêncio Patrick rothfuss Ilustrações de Nate Taylor Tradução Renato Carreira

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A Música do Silêncio

Patrick rothfuss

Ilustrações de Nate Taylor

TraduçãoRenato Carreira

INTRODUÇÃO DO AUTOR

Talvez seja melhor não comprar este livro.Sim, bem sei que não é o tipo de coisa que um

autor deva dizer. O departamento de marketing não gos-tará disto. O meu editor terá um ataque. Mas prefiro ser completamente franco.

Em primeiro lugar, se não leu os meus outros livros, não é aconselhável começar com este.

Os meus dois primeiros livros são O Nome do Vento e O Medo do Homem Sábio. Se deseja experimentar a minha escrita, comece por aí. São a melhor introdução ao meu mundo. Este livro fala de Auri, uma das per-sonagens dessa série. Fora do contexto desses livros, será provável que acabe por se sentir bastante perdido.

Em segundo lugar, mesmo que tenha lido os meus outros livros, parece-me que será justo avisar que esta história é um pouco estranha. Não quero estragar a surpresa, mas bastará dizer que é... diferente. Não faz muitas coisas que se esperarão de uma história clássica. E, se procura uma continuação da história de Kvothe, não a encontrará aqui.

Por outro lado, se gostaria de aprender mais sobre Auri, esta história tem muito para lhe oferecer. Se adora palavras, mistérios e segredos. Se sente curiosidade acerca da Subcoisa e da alquimia. Se deseja saber mais acerca das minúcias escondidas do meu mundo...

Nesse caso, este livro poderá ser para si.

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O FUNDO DISTANTE DAS COISAS

Quando Auri acordou, soube que tinha sete dias.Sim. Estava bastante segura disso. Ele viria visitá-la

no sétimo dia.Era muito tempo. Muito tempo para esperar. Mas

não era assim tanto para o que precisava de ser feito. Se quisesse ser cuidadosa, pelo menos. Se quisesse estar preparada.

Ao abrir os olhos, viu uma sugestão de luz ténue. Uma coisa rara, abrigada como estava no Manto, o mais privado de todos os seus sítios. Significava que o dia seria branco. Um dia profundo. Um dia de descoberta. Sorriu, sentindo a excitação borbulhar-lhe no peito.

Havia luz suficiente para conseguir ver o contorno pálido do seu braço enquanto os dedos encontravam o conta-gotas na mesa de cabeceira. Desenroscou a tampa e deixou cair uma gota no prato de Foxen. Esperou um momento para o ver colorir-se lentamente com um azul de brilho ténue.

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Auri moveu-se com cuidado e afastou o cobertor de forma a que não tocasse o chão. Saiu da cama, com o chão de pedra parecendo-lhe quente sob os pés. A ba- cia repousava sobre a mesa perto da cama, junto a uma lasca do seu sabonete mais doce. Nada daquilo mudara durante a noite. Isso era bom.

Auri deixou cair outra gota diretamente sobre Foxen. Hesitou, sorriu e deixou cair uma terceira gota. Não haveria meias-medidas num dia de descoberta. Pegou no cobertor, dobrando-o uma e outra vez e man-tendo-o junto ao queixo para o impedir de roçar o chão.

A luz de Foxen continuou a crescer. Primeiro, um cintilar mínimo, uma partícula, uma estrela distante. Depois, uma parte maior dele começou a brilhar com a intensidade de um pirilampo. A luz cresceu mais ainda até ser envolvido por um brilho trémulo. A seguir, sentou-se com orgulho no seu prato, parecendo uma centelha verde-azulada ligeiramente maior que uma moeda.

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Auri sorriu-lhe enquanto o via despertar e preen-cher o Manto com a sua luz azul-clara mais verdadeira e luminosa.

Olhou em redor, ali estava a sua cama perfeita. Tinha o tamanho ideal. Perfeita. Observou a cadeira em que se sentava. A sua caixa de cedro. A sua minúscula taça de prata.

A lareira estava vazia. E, sobre ela, o lintel: a sua folha amarela, a sua caixa de pedra, o seu frasco de vidro cinzento com alfazema seca no interior. Nada era outra coisa qualquer. Nada era qualquer coisa que não devesse ser.

Havia três saídas do Manto. Um corredor, uma passagem e uma porta. Esta última não era para ela.

Auri saiu para o Porto pela passagem. Foxen continuava a repousar no seu prato e a sua luz era ali mais fraca, mas continuava a ser suficiente para lhe permitir ver. O Porto não estivera muito movimentado nos últimos tempos, mas, mesmo assim, Auri verificou cada coisa. Na garrafeira, havia metade de um prato de louça partido, tão fino como a pétala de uma flor. Por baixo, um livro de couro impresso em oitavo, um par de rolhas, um minúsculo novelo de cordel. Num dos lados, a sua bela chávena de chá branca esperava-o com paciência que Auri invejava.

Na prateleira colocada na parede, um naco de resina amarela num prato. Uma pedra negra. Uma pedra cinzenta. Um pedaço de madeira liso e plano. Afastado

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de tudo o resto, um frasco minúsculo, abrindo a boca com fecho de arame como uma ave faminta.

Na mesa ao centro, um punhado de bagas de aze-vinho repousava sobre um pano branco limpo. Auri olhou-as por um momento e levou-as para a prateleira, um sítio a que se adequavam mais. Olhou à sua volta e acenou com a cabeça. Tudo estava bem.

Voltando ao Manto, lavou a cara, as mãos e os pés. Despiu a camisa de dormir e dobrou-a antes de a guardar na caixa de cedro. Espreguiçou-se, satisfeita, erguendo os braços e colocando-se em bicos de pés.

A seguir, enfiou o seu vestido preferido, o que ele lhe tinha oferecido. O seu toque era doce sobre a pele. O nome de Auri ardia como fogo dentro dela. Seria um dia ocupado.

Auri pegou em Foxen, aninhando-o na palma da mão. Atravessou o Porto, passando por uma racha na parede. Não era uma racha grande, mas Auri era tão pequena que mal precisou de se virar de lado para evitar raspar nas pedras partidas. Não era nada apertado.

A Dianteira era uma sala alta com paredes direitas e brancas de pedra talhada. Era um sítio vazio, onde só havia ecos e o seu espelho de corpo inteiro. Mas, naquele dia, havia outra coisa. Um leve indício de sol. Infiltrava-se pelo topo de uma porta em arco que tinha sido bloqueada com entulho: madeira partida, blocos

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de pedra caídos. Mas ali, mesmo no topo, uma pitada de luz.

Auri ergueu-se diante do espelho e pegou na escova de cerdas pendurada da armação do espelho. Escovou os nós do sono do seu cabelo até o fazer pairar à sua volta como uma nuvem.

Fechou a mão sobre Foxen e, sem o seu brilho azul-esverdeado, a sala ficou escura como a escuridão. Arregalou os olhos e não conseguiu ver nada além da ténue mancha de luz que passava pelo entulho atrás dela, no alto. Luz pálida e dourada que caiu sobre o seu cabelo pálido e dourado. Sorriu ao seu reflexo no espelho. Parecia o sol.

Erguendo a mão, descobriu Foxen e avançou rapi-damente para o extenso labirinto da Rubrica. Bastou um minuto para encontrar um cano de cobre com o tipo adequado de revestimento de tecido. Mas encontrar o sítio certo seria o verdadeiro desafio, não é? Seguiu o cano pelos túneis redondos de tijolo vermelho durante quase meio quilómetro, cuidadosa para não o perder de vista entre os inúmeros outros canos emaranhados.

Então, sem qualquer aviso, o cano dobrou-se e mergulhou na parede curva, abandonando-a. Que coisa malcriada. Havia muitos outros canos, claro, mas os mais pequenos, de estanho, não tinham qualquer revestimento. Os canos gelados de aço polido eram demasiado novos. Os canos de ferro eram tão ávidos que quase se tornavam embaraçosos, mas os seus reves-

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timentos eram de algodão e isso traria problemas com que não desejava preocupar-se naquele dia.

Por isso, seguiu um grosso cano de barro que avan-çava aos tropeções. Acabou por se enterrar no chão, mas, no ponto em que se curvava, o revestimento de tecido pendia solto e esfarrapado como a camisa de uma criança de rua. Auri sorriu e puxou a tira de tecido com dedos delicados, tendo muito cuidado para não a rasgar.

Por fim, acabou por conseguir. Uma coisa perfeita. Um pedaço de linho acinzentado e fino tão longo como o seu braço. O tecido estava cansado mas disposto a colaborar e, depois de o dobrar uma vez, virou-se e correu a grande velocidade pelo Sombral, com cada passo ecoando e aproximando-a mais dos Doze.

Os Doze eram um dos raros sítios que mudavam na Subcoisa. Era suficientemente sábio para se conhecer, suficientemente corajoso para ser o que era e suficien-temente desvairado para se transformar sem deixar de ser completamente verdadeiro. Neste sentido, era muito único e, apesar de nem sempre ser seguro ou gentil, Auri não conseguia deixar de sentir afeição por ele.

Naquele dia, o espaço arqueado e alto estava como esperava que estivesse, iluminado e animado. A luz do Sol entrava pela grelha aberta no alto, penetrando até ao vale profundo e estreito daquele sítio em mutação. Passava por canos, vigas de suporte e pela linha reta e forte de um antigo passadiço de madeira. O ruído afastado da rua descia até ao fundo distante das coisas.

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Auri ouvia o som de cascos sobre o empedrado, intensos e redondos como um estalar de dedos. Ouvia o trovejar distante de uma carroça de passagem e a mistura difusa de vozes. Entre tudo aquilo, erguia-se o choro alto e furioso de um bebé que quereria certa-mente mama e não a recebia.

No fundo dos Doze Amarelos, havia um lago amplo e profundo com água cristalina. A luz do Sol que vinha do alto era suficientemente intensa para que Auri conseguisse ver até ao fundo do segundo emara-nhado de canos abaixo da superfície.

Já tinha palha ali e três frascos aguardavam numa estreita saliência de pedra junto à parede. Ao olhar tudo aquilo, Auri franziu a testa. Havia um frasco verde, um frasco castanho e um frasco transparente. Havia um frasco com fecho de arame, um frasco com tampa de enroscar e um frasco com rolha grossa como um punho. Tinham formas e tamanhos diferentes, mas nenhum deles parecia certo.

Exasperada, Auri lançou as mãos ao ar.Correu de volta ao Manto, com os pés descalços

embatendo contra a pedra. Quando chegou, olhou o frasco de vidro cinzento com a alfazema no interior. Pegou-lhe, observou-o com cuidado e voltou a pousá-lo no sítio a que pertencia antes de correr em sentido inverso.

Apressou-se a passar pelo Porto, desta vez saindo pela porta inclinada e não pela racha na parede. Atra-vessou o Salgueiro, com Foxen projetando sombras

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mirabolantes nas paredes. Enquanto corria, o seu cabelo estendia-se atrás dela como um estandarte.

Desceu pelas escadas em espiral através da Casa Escura, descendo sem parar. Quando ouviu finalmente o ruído da água e o tilintar do vidro, soube que tinha chegado aos Clinques. A luz de Foxen não tardou a ser refletida pelo lago de águas negras que engolia o fundo da escadaria.

Havia dois frascos empoleirados num nicho pouco profundo. Um era azul e estreito. O outro era verde e atarracado. Auri inclinou a cabeça e fechou um olho antes de estender a mão para tocar o verde com dois dedos. Sorriu, pegou-lhe e voltou a correr pelas escadas acima.

No caminho de regresso, passou pelos Saltos para mudar de ares. Correndo por ali fora, saltou a primeira fissura profunda no chão fraturado com a flexibilidade de uma bailarina. Saltou a segunda fissura com a leveza de um pássaro. Saltou a terceira com o ímpeto de uma rapariga bonita parecida com o sol.

Chegou aos Doze Amarelos ofegante. Enquanto recuperava o fôlego, guardou Foxen no frasco verde, acomodou-o cuidadosamente com palha e encaixou o arame no aro de borracha, selando bem a tampa. Aproximou-o da cara, sorriu e beijou o frasco antes de o pousar cuidadosamente junto à margem do lago.

Despiu o seu vestido preferido e pendurou-o num cano brilhante de latão. Sorriu e tremeu um pouco,

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sentindo peixes nadando-lhe nervosamente dentro da barriga. A seguir, subindo para cima de si mesma, reu-niu o cabelo flutuante com as duas mãos. Escovou-o para trás e prendeu-o, torcendo e atando com a tira de velho linho cinzento. Quando terminou, ficou com uma longa trança que lhe pendia até ao fundo das costas.

Mantendo os braços cruzados junto ao peito, deu passos pequeninos para se colocar diante do lago. Mer-gulhou um dedo na água e a seguir o pé todo. O frio da água fê-la sorrir. Era fresco e doce como menta. Depois a seguir, baixou-se devagar, ficando com as duas pernas penduradas sobre a água. Equilibrou-se assim por um momento, mantendo o corpo nu suspenso com as mãos, longe da pedra fria no limiar do lago.

Mas não podia evitá-la. Ganhou coragem e dei-xou-se descer. Não havia menta nenhuma na margem de pedra fria. Era um frio que mordia com raiva o seu eu mais tenro e posterior.

Virou-se nesse momento e começou a baixar-se para a água. Desceu devagar, dando aos pés até encontrar a pequena projeção rochosa. Rodeou-a com os dedos dos pés, com a água a meio das coxas. A seguir, inspirou pro-fundamente algumas vezes, fechou os olhos com força e arreganhou os dentes antes de abrir os dedos, sub-mergindo as suas posterioridades. Guinchou um pouco e o frio cobriu-lhe o corpo todo com pele-de-galinha.

Passado o pior, fechou os olhos e mergulhou tam-bém a cabeça. Enchendo o peito de ar e pestanejando,

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esfregou a água dos olhos. Veio nesse momento o seu grande arrepio de corpo inteiro, enquanto um braço cobria os seios. Mas, quando passou, a careta de des-conforto transformou-se num sorriso.

Sem a sua auréola de cabelo, Auri sentia-se pe-quena. Não era a pequenez pela qual ansiava todos os dias. Não era a pequenez de uma árvore entre árvores. De uma sombra subterrânea. E não era apenas pequenez de corpo. Sabia que não havia muito de si. Quando lhe apetecia ver-se com maior atenção ao espelho de corpo inteiro, a rapariga que via era minúscula como uma criança que mendigasse pela rua. A rapariga que via era tão magra. As suas maçãs do rosto eram altas e delicadas. As suas clavículas pareciam forçar a pele.

Mas não. Com o cabelo preso e molhado, sentia-se... menor. Sentia-se esmagada. Ténue. Mais difusa. Fraca. Ansiosa. Teria sido completamente desagradável sem a tira de linho perfeita. Sem ela, não se sentiria apenas como um pavio encolhido. Sentir-se-ia verdadeiramente macambúzia. Valia a pena fazer as coisas da forma certa.

Por fim, o último dos seus tremores cessou. Os peixes continuavam a nadar-lhe na barriga, mas o sor-riso que ostentava era ávido. O amanhecer dourado que vinha do alto atingia o lago, direito, claro e firme como uma lança.

Auri inspirou fundo e voltou a expirar, agitando os dedos dos pés. Tornou a inspirar fundo e expirou mais devagar.

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Uma terceira inspiração. Segurou o frasco de Foxen com uma mão, soltou a pedra que rodeava o lago e mergulhou.

O ângulo da luz era perfeito e Auri viu o primeiro ema-ranhado de canos com perfeita clareza. Rápida como um vairão, virou-se e passou por ele com facilidade, não se deixando tocar por nenhum dos canos.

O segundo emaranhado vinha logo a seguir. Pres-sionou um velho cano de ferro com o pé para se impedir de afundar e usou a mão livre para se impelir de uma válvula, mudando de velocidade e passando pelo espaço estreito entre dois canos de cobre grossos como pulsos.

A lança de luz dissipou-se enquanto descia, sobrando apenas o brilho azul-esverdeado de Foxen. Mas a sua luz era velada ali, filtrada pela palha, pela água e pelo vidro verde grosso. Auri formou um O perfeito com a boca e libertou duas nuvens de bolhas de ar. A pressão aumentou enquanto descia e formas parcamente iluminadas passavam por ela na escuridão. Um passadiço antigo, uma laje inclinada, uma velha trave de madeira coberta de algas.

Os seus dedos esticados tocaram o fundo antes que os olhos o vissem e Auri varreu com a mão a pedra lisa que quase não via. Para trás e para diante. Para trás e para diante. Com movimentos rápidos mas cautelosos. Por vezes, havia coisas afiadas ali.

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Até que os seus dedos sentiram algo longo e liso. Um pau? Prendeu-o com o braço e deixou-se flutuar para cima, em direção à luz distante. A mão livre encon-trou canos familiares, puxando e orientando-se, tor-cendo-se através do labirinto de formas vistas a custo. Os pulmões começaram a doer-lhe um pouco e libertou uma nuvem de bolhas de ar enquanto subia.

A sua cara rompeu a superfície perto da margem e a luz dourada iluminou o que tinha encontrado: um osso branco e limpo. Longo, mas não de uma perna. De um braço. O axial primário. Passou os dedos pelo osso e sentiu uma costura minúscula que o rodeava como um anel, mostrando que tinha sido partido e que sarara há muito. Estava repleto de sombras aprazí- veis.

Sorrindo, Auri pousou-o. A seguir, inspirou pro-fundamente três vezes seguidas, segurou Foxen com firmeza e voltou a mergulhar no lago.

Daquela vez, ficou com o pé preso entre dois canos depois de passar o segundo emaranhado. Que azar. Franziu a testa, puxou e, após meio momento, conse-guiu libertar-se. Expirou metade do ar que guardava e moveu as pernas com força, mergulhando como uma pedra em direção à escuridão do fundo.

Apesar de ter começado mal, a nova captura foi fácil. Os seus dedos prenderam um aglomerado de qualquer coisa antes mesmo de tocarem o fundo. Não percebia o que era. Algo de metal, algo liso e algo duro

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misturando-se. Prendeu a sua descoberta contra o peito e voltou a subir.

Daquela vez, não segurou o que encontrara com o braço por receio de perder uma parte. Por isso, aninhou o frasco de Foxen entre o braço e o tronco e impeliu-se com a mão esquerda. Sentiu-se equilibrada e rompeu a superfície sem sequer precisar de expelir o resto das suas bolhas.

Espalhou o emaranhado na margem do lago. Um velho cinto com fivela de prata tão manchada que era negra como carvão. Um ramo com folhas trazendo um caracol espantado. E, por fim, pendendo de um pedaço de cordel apodrecido enrolado ao ramo, uma chave esguia tão longa como o seu primeiro dedo.

Auri beijou o caracol e pediu-lhe desculpa antes de devolver o ramo à água a que pertencia. O couro do cinto estava virado do avesso, mas a fivela soltou-se com um puxão mínimo. As duas coisas ficariam melhor separadas.

Apoiando-se na rocha, começou a tremer em pequenas ondas. Desciam-lhe pelos ombros e pelo peito. Os seus lábios tinham passado de rosa a rosa pálido matizado de azul.

Ergueu o frasco de Foxen e verificou que a tampa estava bem apertada. Olhou a água, sentindo os peixes na sua barriga nadando com entusiasmo. A terceira vez seria a mais sortuda.

Auri encheu os pulmões e mergulhou novamente, torcendo habilmente o corpo e encontrando com a mão

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todo o tipo de apoios úteis. Mergulhou em direção à escuridão. À pedra. À madeira. A luz ténue de Foxen passou a ser tudo o que via, colorindo-lhe a mão esten-dida de um azul-esverdeado pálido. Seria assim a mão de uma ninfa aquática.

Os nós dos seus dedos roçaram o fundo e girou um pouco para se orientar. Esperneou e moveu a mão à sua volta, vasculhando com método o fundo do lago em pedra negra. Viu qualquer coisa brilhar e os seus dedos tocaram algo sólido e frio, algo liso que misturava linhas duras. Era algo cheio de amor e respostas, tão cheio que sentiu o conteúdo jorrar com um toque mínimo.

Durante dez batimentos de coração, Auri pen-sou que estaria preso à pedra. A seguir, libertou-se e percebeu a verdade. Era uma coisa pesada. Após um momento longo e escorregadio, os seus dedos minús-culos encontraram uma forma de puxar aquilo para cima. Era metal maciço, grosso como um livro. Tinha uma forma estranha e era pesado como uma barra de irídio puro.

Auri puxou o objeto para junto do peito e sen-tiu-lhe os vértices pressionando-lhe a pele. A seguir, dobrou os joelhos e impeliu-se com toda a força do fundo, usando os dois pés e olhando o brilho distante da superfície.

Movimentou as pernas mas mal se moveu. O peso da coisa de metal puxava-a para baixo. O seu pé bateu com força num cano grosso de ferro e aproveitou para

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se impelir novamente. O impulso para cima cessou assim que o seu pé deixou o ferro para trás.

Os pulmões começavam a protestar. Os estúpidos queriam ar, mesmo estando meio cheios. Expirou uma boca cheia de bolhas, tentando enganá-los, sabendo que cada bolha perdida a aproximaria mais do fundo e sabendo que continuava distante do último emara-nhado de canos.

Tentou prender a coisa de metal debaixo do braço para conseguir subir. Mas a sua superfície lisa escapou--lhe um pouco dos dedos. No pânico repentino que se seguiu, moveu as mãos, tentando segurar o que lhe escapava, e o frasco de Foxen bateu contra uma forma oculta. Escorregou e fugiu-lhe aos dedos.

Auri moveu a mão livre, mas conseguiu apenas afastar Foxen ainda mais com os nós dos dedos. Estacou por um momento. Deixar cair o metal seria impensável. Mas Foxen. Acompanhara-a desde sempre...

Viu o frasco ser apanhado por uma corrente e passar um trio de canos de cobre inclinados. Os seus pulmões enfureciam-se. Cerrou os dentes e segurou uma saliência de pedra próxima com a mão livre, empurrando-se para cima.

Os pulmões começavam a ceder dentro dela e expeliu lentamente as suas bolhas, mesmo sem ter visto ainda o emaranhado mais baixo. Sem Foxen, a escuridão era total, mas, pelo menos, subia, impelindo-se com movimentos súbitos e desajeitados, usando os apoios

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estranhos que conseguisse encontrar. Deu às pernas, mas de pouco servia, carregada como estava com o naco pesado de amor aguçado e duro que segurava tão firmemente contra o peito. Seriam as respostas que continha a tornarem-no tão pesado?

Por fim, alcançou o primeiro emaranhado de canos, mas tinha os pulmões vazios e o corpo parecia-lhe feito de chumbo. Normalmente, passaria entre os canos com a agilidade de um peixe, sem neles roçar. Mas estava pesada e vazia. Tateou com uma mão e conseguiu passá--los. Bateu com o joelho e raspou freneticamente as cos-tas contra uma superfície que a ferrugem tornava afiada. Esticou um braço, mas, pesada como estava, os seus dedos nem sequer conseguiram tocar o apoio habitual.

Esperneou, ganhou mais quatro ou cinco centíme-tros e, apesar de o ter prendido com tanto cuidado, o cabelo ficou-lhe preso em alguma coisa. Fê-la parar de repente, puxando-lhe a cabeça para baixo e fazendo-lhe o corpo girar na água.

Sentiu-se afundar quase imediatamente. Esbra-cejou em desespero. Bateu com a canela num cano, espalhando dor por todo o seu corpo, mas não perdeu tempo e usou o cano agressor para apoiar o outro pé, empurrando com força. Subiu como uma rolha saltando de uma garrafa, com velocidade suficiente para que o cabelo se libertasse da coisa rude que o prendera. O puxão violento da cabeça para trás, forçou-lhe a boca a abrir-se.

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E começou a afogar-se. Engasgando-se com a boca cheia de água. Mas, enquanto a água lhe enchia o nariz e a garganta, o que Auri mais receava era pensar que a mão lhe podia escapar e que deixaria cair o pedaço de metal pesado de volta à escuridão. Perder Foxen fora mau. Ficaria cega e sozinha na escuridão. Ficar presa nos canos e asfixiar também era horrível. Mas nenhuma daquelas coisas estava errada. Deixar o metal escorregar para a escuridão não podia acontecer. Era impensável. Era tão inadmissível que a assustava.

O seu cabelo soltara-se e flutuava à sua volta como uma nuvem de fumo. Segurou com a mão um cano curvo, confortante e familiar. Puxou-se para cima, vol-tou a estender a mão e encontrou outro apoio. Cerrou os dentes, asfixiou, puxou e segurou.

Rompeu a superfície, enchendo os pulmões com violência e tossindo. Depois, voltou a mergulhar.

No segundo seguinte, voltou a conseguir subir a custo. Daquela vez, a mão livre

segurou a pedra na margem do lago. Auri ergueu a coisa para

fora de água e fê-la embater

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contra a pedra com o som de um sino. Era uma engre-nagem de latão brilhante, grande como um prato. Muito mais grossa do que o seu polegar. Tinha um buraco ao centro, nove dentes e uma aresta irregular onde, muito tempo antes, um décimo dente fora arrancado.

Estava repleta de respostas verdadeiras, amor e luz acolhedora. Era bela.

Auri sorriu e vomitou meio estômago cheio de água sobre as pedras. Voltou a vomitar, virando a cabeça para não salpicar a engrenagem de latão brilhante.

Tossiu, encheu a boca com água e cuspiu-a de volta ao lago. A engrenagem era pesada como um coração sobre as pedras frias dos Doze Amarelos. A luz do alto fazia-lhe brilhar a superfície como ouro. Parecia um pedaço de sol que tivesse resgatado às profunde- zas.

Voltou a sorrir e tremeu. A seguir, tocou-a com um dedo. Sorriu enquanto a olhava. Tinha os lábios azuis. Tremeu. O seu coração estava cheio de alegria.

Depois de se içar da água, Auri olhou o lago no fundo dos Doze. Apesar de saber que não devia, esperou ver Foxen flutuando à superfície.

Nada.A sua expressão era solene. Pensou em regressar.

Mas não. Três vezes. Eram assim as coisas. Mas pen-sar em deixar Foxen na escuridão era suficiente para