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Revista Eletrônica Fundação Educacional São José

9ª Edição ISSN: 2178-3098

A INTERTEXTUALIDADE NAS OBRAS BOCA DE CHAFARIZ (1993), DE RUI

MOURÃO, E CIDADE DO SONHO E DA MELANCOLIA (1971), DE GILBERTO DE

ALENCAR

Cássia Aparecida Braz Araújo1

RESUMO

O presente artigo refere-se ao estudo da intertextualidade. Esse fenômeno ocorre na

literatura comprovando que os textos não se isolam no seu sentido original, pois são

influenciados por outros antecessores. O objetivo aqui proposto é destacar exemplos de

intertextualidade, ao trazer aproximações entre as duas obras: Boca de chafariz, de Rui

Mourão, e Cidade do sonho e da melancolia, de Gilberto de Alencar, estabelecendo um

diálogo entre as mesmas. Além disso, permite uma nova leitura, uma vez elas têm em comum

a temática da valorização da cidade de Ouro Preto.

Palavras-Chave: Intertextualidade. Boca de chafariz. Cidade do sonho e da melancolia. Rui

Mourão. Gilberto de Alencar.

ABSTRACT

This article refers to the study of intertextuality. This phenomenon occurs in the

literature showing that the texts do not go off in its original meaning, because they are

influenced by other predecessors. The goal here is to highlight examples of intertextuality by

bringing approaches between the two works: Boca de chafariz, Rui Mourão, and Cidade do

sonho e da melancolia, Gilberto de Alencar, establishing a dialogue between them. It also

allows a new interpretation, since they share the theme of recovery of the city of Ouro Preto.

Keywords: Intertextuality. Boca de chafariz. Cidade do sonho e da melancolia. Rui

Mourão. Gilberto de Alencar.

1 Cássia Aparecida Braz Araújo, Mestranda em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Endereço:

Av. Governador Valadares, 404/304 – Manoel Honório – Juiz de Fora – MG. CEP: 36045-000. Tel (32) 3231-

2747. E-mail: [email protected]

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9ª Edição ISSN: 2178-3098

O presente artigo pretende abordar o tema “a presença da intertextualidade”, nas obras

Boca de chafariz (1993), de Rui Mourão, e Cidade do sonho e da melancolia (1926), de

Gilberto de Alencar tendo como pressuposto teórico a obra de Graça Paulino, Ivete Walty e

Maria Zilda Cury – Intertextualidades: teoria e prática –, além de outros autores. O assunto

será identificado em parte dos fragmentos das obras em que ambas descrevem o espaço da

cidade de Ouro Preto: Boca de Chafariz (1993), 3ª edição, de Rui Mourão e Cidade do

Sonho e da Melancolia, versão póstuma de 1971, 2ª edição, de Gilberto de Alencar.

O tema é pertinente, pois, todo texto é oriundo ou influenciado por outros

antecessores, a fim de ratificar seu sentido, esclarecê-lo ou contradizê-lo. Para Paulino, Walty

e Cury (1995), apesar de cada produção literária ser aparentemente individual, na verdade,

elas formam uma grande teia, pois:

[...] Cada “descoberta” só acontece com a apropriação de conhecimentos anteriores.

Se assim não fosse, o caminho do homem teria de ser todo novamente construído a

cada nova conquista. Por exemplo, a bússola foi fundamental, não só para as viagens

marítimas no século XVI, como também para as viagens espaciais [...] (PAULINO,

WALTY E CURY, 1995, p. 12).

Assim como não há nova “descoberta” sem que estivesse ligada a um conhecimento

anterior, também cada produção textual dialoga essencialmente com as precursoras, uma vez

que cada texto possui uma proposta de significação, a qual, porém, não está totalmente

construída, pois depende dos leitores, de sua recriação e consciência para completá-lo,

concluí-lo. O leitor participa, tanto quanto o escritor, do jogo intertextual.

Falar em autonomia de um texto é utópico. Na semiose cultural, o texto é sim

caracterizado por um “momento” privilegiado entre sua produção e recepção, pois ninguém

esgota sua “extensão simbólica”, conforme Paulino, Walty e Cury (1995).

Os significados de uma produção literária não se esgotam em um texto, mas invadem

outras linguagens, e também por elas é invadida. Hoje é indispensável a intertextualidade para

a compreensão da literatura, como Barthes (1987, p.48) afirma: “O texto não é uma linha de

palavras, mas um espaço multidimensional, no qual uma variedade de escritas, nenhuma delas

original, se encontram e se batalham”.

A concepção de que um texto não esgota o significado em si mesmo, pode ser

observado em trechos das obras citadas, quando os escritores referem-se à valorização e

reconhecimento da Escola de Minas, fixada em Ouro Preto. Alencar (1971) afirma em sua

narrativa que essa Escola é referência até na Europa, e os diplomas por ela expedidos são

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confiáveis:

A Escola de Minas, que lá existe, é tida, sob esse aspecto, como o estabelecimento

porventura mais notável de todo o país. Considerada a melhor da América do Sul,

atraindo alunos até da Europa, nela ainda se encara o ensino como qualquer coisa

merecedora de respeito... Não se contenta em distribuir diploma a rapazes ansiosos

por enfiarem no dedo um anel de grau, com o qual possam partir, confiadamente [...]

(ALENCAR, 1971, p. 88).

Mourão (1993) apresenta o reconhecimento de tal Escola, e o esmero de um pai a fim

de que o filho consiga adentrá-la:

Napoleão se lembrava do que dissera, em sua terra o velho doutor Marcondes: “ Se

o rapaz deseja mesmo estudar geologia, mande-o para Ouro Preto. (...) Que coisa

sem graça fazer um curso desses numa cidade como Belo Horizonte”. O pai levara

o conselho à risca. Antes dos exames finais, já investigava sobre o cursinho que

melhor preparava candidatos à famosa Escola de Minas e Metalurgia fundada por

Claude-Henri Gorceix. (MOURÃO, 1993, p. 48).

O conceito de intertextualidade iniciou-se, conforme Paulino, Walty e Cury (1995),

com os estudos do russo Mikhail Bakhtin, quando identificou diversas vozes da sociedade se

entrecruzando num texto, caracterizando, então, o romance moderno como dialógico. Na

estrada de Bakhtin, caminhou a francesa Julia Kristeva, que desenvolveu o conceito de

intertextualidade, em que afirmou, consoante Paulino, Walty e Cury (1995, p.21-22): “... todo

texto é um mosaico de citações, todo texto é uma retomada de outros textos. Tal apropriação

pode-se dar desde a simples vinculação a um gênero, até a retomada explícita de um

determinado texto”.

Paulino, Walty e Cury (1997) e Carvalhal (2006) apresentam o termo intertextualidade

como oficialmente registrado por Julia Kristeva, em 1966, na obra A palavra, o diálogo, o

romance, e reafirmado, no ano seguinte, com O texto fechado, quando se refere ao

entrecruzamento num texto, de expressões, de assuntos, tomados de outras obras.

Afirma Nitrini (1997) que Julia Kristeva cunhou o conceito de intertextualidade,

acreditando que os textos são compostos a partir da feitura de outros textos, formando um

grande diálogo intertextual. Assim, ela define intertextualidade:

O termo intertextualidade designa esta transposição de um ou de vários sistemas de

signos num outro, mas já que este termo foi frequentemente entendido no sentido

banal de ‘critica das fontes’ de um texto, preferimos o de ‘transposição’ que tem a

vantagem de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro exige

uma nova articulação. (NITRINI, 1997, p. 163).

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Exemplificando o entrecruzamento dos textos nas obras referendadas, tomemos como

exemplo um personagem, Antônio Dias, o bandeirante paulista. Rui Mourão, em Boca de

Chafariz (1993), traz um personagem de mesmo nome, o qual afirma não ter sido o

descobridor da cidade, mas apenas o bandeirante que conseguiu lá chegar e se fixar: “[...] parti

chefiando bandeira para descobrir ouro e plantar colonização nestas bandas, então perdidas

num mundo perdido [...]” (MOURÃO, 1993, p. 16). Já na obra Cidade do Sonho e da

Melancolia (1971), de Gilberto de Alencar, este fato é narrado, com riqueza de detalhes:

Os primeiros bandeirantes que escalaram as serranias em meio das quais o Itacolomi

se alteia, sobrepujando as nuvens, foram os chefiados por Antônio Dias. (...)

Estabeleceram-se no local onde hoje existe o bairro que tomou o nome do chefe de

bandeira. (...) A terra, ferida de leve, mal rasgada na superfície, à margem dos

córregos, expunha a avidez dos ousados devassadores do sertão imensos e

fantásticas jazidas de ouro. (ALENCAR, 1971, p. 39-40).

Nos fragmentos transcritos a seguir, é observada a preocupação das obras ao

retratarem o estado lastimável das edificações na cidade de Ouro Preto, especificamente a

casa de Tomaz Antônio Gonzaga, sobre a qual a obra Cidade do Sonho e da Melancolia

(1971), em linguagem rebuscada e gramaticalmente impecável, expõe a situação:

Em Ouro Preto nada há, absolutamente nada, que não ateste com viva eloquência o

criminoso desamparo a que os governos relegaram a cidade lendária; tudo fala da

indiferença irritante com que eles encaram friamente, sem sobressaltos, o destino de

quanto por lá ainda existe de belo e digno de carinhoso cuidado; tudo demonstra, à

evidência, o deliberado propósito de deixar que o tempo complete o trabalho de

destruição, iniciado com a mudança da capital.

Descendo pela Rua Cláudio Manoel, antiga do Ouvidor, víamos andados alguns

passos, à esquerda, o prédio onde morou Gonzaga – um sobrado vulgar, ao gosto da

época, com uma porta única ao canto e dez ou doze janelas para a rua, de uma das

quais, a última do pavimento superior, podia o poeta, que ali tinha a própria sala de

estudos, distinguir, lá muito em baixo, no fundo do vale, a casa de Marília [...], bem

pouco seria preciso para salvar e conservar Ouro Preto! (ALENCAR, 1971, p. 71,

29, 16)

Como os textos são um mosaico em sua constituição, na obra Boca de Chafariz

(1993) a situação lastimosa da referida construção foi colocada em uma placa na entrada do

museu da república, em Ouro Preto, já numa linguagem mais coloquial, irreverente,

demonstrado a gravidade da situação:

Jair Inácio lamentava que o general não tivesse atentado para o texto à porta do

museu-república estudantil:

Esta mostra tem a finalidade de chamar a atenção das autoridades do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional para o lastimável estado em que se encontra a casa de

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Tomaz Antônio Gonzaga. As contribuições espontâneas dos visitantes destinam-se à

constituição de um fundo que, descontada naturalmente a quota para o porre

homérico, permitirá o início de uma obra que não pode mais ser retardada.

(MOURÃO, 1993, p.115)

Em ambas narrativas foi destacada a preocupação com o estado do imóvel, a ponto

desta constar numa placa de um lugar público de referência. Assim, a obra Boca de Chafariz

(1993) ratificou a ponderação da obra Cidade do Sonho e da Melancolia (1971).

A intertextualidade pode se manifestar através de diversas modalidades e formas,

porém, neste trabalho, será enfatizada a paráfrase, a qual não compromete o texto, pois possui

uma relação intertextual única, precisa, uma vez que retoma parte da construção,

acrescentando-lhe o sentido ou reafirmando-o. Paráfrase é, segundo PAULINO, WALTY E

CURY (1995):

Quando a recuperação de um texto por outro se faz de maneira dócil, isto é, retomando seu

processo de construção em seus efeitos de sentido... Também resumir ou recontar uma história

é parafraseá-la. Na verdade, a semiose cultural se compõe, predominantemente, de processos

parafrásticos, visto que os sentidos e os mecanismos de linguagem tendem a repetir-se e

cristalizar-se numa operação de natureza ideológica. (PAULINO, WALTY E CURY, 1995, p.

30).

Paráfrase, no grego (para-pharasis), possui significado de repetição ou continuação de

uma sentença, ou seja, remete-a à cópia e à imitação. Conforme o dicionário de Beckson e

Ganz2, citado por Sant’anna (2000, p. 17), “paráfrase pode ser uma afirmação geral da ideia

de uma obra, como esclarecimento de uma passagem difícil. Em geral ela se aproxima do

original em extensão”, como o trabalho de tradução num discurso científico.

A paráfrase, contudo, não se confunde com o plágio3, que é uma apropriação ilegítima,

pois a primeira explicita a intenção de dialogar com o texto destacado, evidenciando sua

fonte.

É muito tênue o limite entre as narrativas, devido à influência de um texto em outro.

Baseando-se nos conceitos apresentados de paráfrase, há o exemplo de um fragmento em que

existe correlação entre as narrativas, quando a narrativa Boca de Chafariz (1993), de Rui

Mourão, levanta a possibilidade de Cláudio Manuel da Costa não ter cometido suicídio, mas

sim, ter sido assassinado, apresentando a motivação e modo como se deu o fato, ou seja, os

dados comprobatórios para sua suspeita ou hipótese:

2 BECKSON, Karl & GÀNZ, Arthur. Literary Terms: A Dictionary. New York, Farrar-Strauss and Giroux,

1965. 3 “Copiar ou imitar, sem engenho, as obras ou os pensamentos dos outros e apresentá-los como originais”.

Disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=plagiar,. Acesso em 8 mar 2012.

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João Rodrigues compreendeu, seria arriscado se Cláudio tivesse que enfrentar novo

interrogatório. E o drama psicológico vivido no tribunal acabava sendo até um ponto

positivo, criava boa oportunidade. De madrugada, lá embaixo naquele casarão, o

silêncio era completo. Havia um companheiro, mas em cela separada. Talvez se

pudesse conseguir a substituição da guarda.

O brutamontes, de candeia à mão, abriu a porta do segredo, o companheiro seguia-o

na semi-escuridão como uma sombra. Não deram tempo para que o preso chegasse a

acordar. Caíram-lhe em cima com um tapa-boca, mãos fortes e joelhos firmes a

impedir que sequer se debatesse. O cadarço, passado em torno do pescoço, foi

apertado. Demoradamente. A tarefa mais difícil: fazer com que o corpo já sem vida

ficasse dependurado pelo laço numa das tábuas da estante. Como esta, pela altura,

não chegava a impedir que os pés da vítima se amontoassem tortos no chão, tiveram

que aguardar o início do enrijecimento muscular para deixá-lo naquela posição, o

braço direito fazendo força na prateleira superior, o joelho firme na outra, embaixo.

(MOURÃO, 1993, p. 225).

Já na obra Cidade do Sonho e da Melancolia (1971), de Gilberto de Alencar, foi

narrado anteriormente: “Censura-se furiosamente essa fraqueza, não provada com segurança

absoluta [...] como é que se pode tomar em tamanha conta a fraqueza de Cláudio Manoel,

levado ao suicídio, ou mais provavelmente assassinado na tremenda casa dos Contos, em

Ouro Preto...” (ALENCAR, 1971, p.23). Nesses fragmentos, observa-se a ratificação da ideia,

apresentada de formas distintas: uma mais detalhada e a outra mais sucinta. Entretanto, Boca

de Chafariz (1993), de Rui Mourão, recria e reforça a probabilidade de assassinato

apresentada por Gilberto de Alencar, na obra Cidade do Sonho e da Melancolia (1971),

levantada há mais de cinquenta anos, baseando-se na primeira edição que é de 1926.

Sant’Anna (2000) afirma que a aplicação do conceito de paráfrase depende do leitor,

pois se este não possui conhecimentos de outros textos, não “ouvirá” a conversa entre o texto

original e o que agora ele tem em mãos. Esse recurso é percebido por leitores que detêm mais

informações, maior tempo e volume de leitura. Na intertextualidade, a paráfrase fala de uma

relação entre as semelhanças, onde há o reforço de significados, condensando-os.

Assim como os textos sugerem uma polifonia de vozes, por ser uma rede interligada,

também o leitor estabelece diversas associações durante a leitura, conforme seus

conhecimentos e consciência crítica, independente da vontade do escritor. Pontos até mesmo

não perceptíveis ao autor podem ser identificados na recepção dos textos, conforme diz

Paulino, Walty e Cury (1995):

os textos [...] são lidos de diversas maneiras, num processo de produção de sentido

que depende do repertório textual de cada leitor, em seu momento de leitura.

Qualquer assunto pode, em princípio, propiciar um processo de relações entre textos

lidos. O tema da cidade, por exemplo, pode levar o leitor a associar textos que não

têm uma intertextualidade na produção. (p. 54).

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Essa polifonia pode ser observada nas obras, no fato relacionado a Tiradentes

(Joaquim José da Silva Xavier), importante ícone da Inconfidência Mineira, e o único

condenado à morte, citado em Boca de Chafariz (1993): “Sem outra perspectiva imediata,

aos 29 anos me incorporei a Regimento dos Dragões da Capitania, aonde cheguei ao posto de

alferes” (MOURÃO,1993, p. 58).

Ratificando a polifonia, a obra Cidade do Sonho e da Melancolia (1971) revela que,

para a maioria dos críticos do movimento da Inconfidência, os inconfidentes foram: “Gonzaga

foi um poltrão lamentabilíssimo; Cláudio Manoel um pobre velho doente e pusilânime;

Tiradentes um ignorante e um doido; Alvarenga outro covarde” (ALENCAR, 1971, p. 20).

Nesses fragmentos, podem ser observadas as vozes dos narradores, bem como dos críticos da

época.

As leituras dos receptores são condicionadoras de novas leituras, onde “o mesmo texto

lido, em épocas diferentes, torna-se outro, pois, nesse intervalo de tempo, o repertório do

leitor se alterou” (PAULINO, WALTY E CURY, 1995, p. 57).

Também “toda crítica, por sua vez, já tem um caráter intertextual, na medida em que

escreve um texto sobre outro, valendo-se, na maioria das vezes, de muitos outros textos como

referência ou apoio” (PAULINO, WALTY E CURY, 1995, p. 58). As produções literárias

formam uma grande rede, cada uma isoladamente, autor ou receptor, tecendo entre fios e nós.

Importa que o fio não seja cortado, mas continue num constante processo de movimento, de

interação.

Outro exemplo de intertextualidade onde o fio de interação mais uma vez se manifesta

nas obras é quando da narração da cobrança do imposto taxado sobre a mineração: um quinto

do que foi extraído. Alencar (1971), em riqueza de detalhes, mostra como era a tentativa de

escamoteamento do ouro das autoridades locais:

Em vários pontos de Ouro Preto, pelas esquinas, veem-se nichos vazios, de madeira

pintada a óleo, pregados, a certa altura, no ângulo dos sobrados vetustos. Datam dos

primeiros tempos de Vila Rica. Abrigavam outrora imagens de santos, ali colocadas

para afugentarem certos fantasmas terríveis que, quase todas as noites, desciam das

montanhas circunvizinhas, e correrias macabras e ameaçadores, diante dos quais os

transeuntes retardatários fugiam dominados pelo terror. Se os nichos, com os santos,

afugentavam ou não os tais fantasmas, é o que não se sabe bem... O que parece

averiguado é que os vultos de máscara não passavam de faiscadores, que colhiam o

ouro, às escondidas, pelas minas das redondezas, e iam vendê-lo na povoação. Para

evitar o pagamento do célebre e exagerado imposto do quinto à ávida gente da

governança, recorriam àquele meio; tidos como almas penadas, como almas do

outro mundo, errantes pela cidade adormecida, ninguém se aproximava deles, e

calmamente podiam, assim, levar a efeito seu comércio com os compradores, que

conheciam o plano e sobre ele, por interesse próprio, guardavam silêncio absoluto.

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(ALENCAR, 1971, p. 40 e 41).

Mourão (1993), mesmo numa narrativa mais breve, porém elucidativa, apresenta a

explanação do mesmo fato:

Vila Rica – destemperado reduto de violência. A que chegava pelo fisco, por

exemplo, alguém conseguia a ela escapar? Dona exclusiva das riquezas do subsolo,

a Metrópole concedia direitos de mineração aos que a isso se habilitassem, contra

prestação de pagamento pesado, correspondente à quinta parte do produto extraído.

E aí é que tinha início a estória. O cristão que jornadeava fruto do seu pingado suor,

da luta diária contra os perigos do sertão, contra a permanente grande ameaça dos

aventureiros, está claro, escondia, escamoteava cheio de silêncios aquilo que ia

obtendo. Fazia o possível para ludibriar a fiscalização da Intendência do Ouro.

(MOURÃO, 1993, p. 175)

O leitor, detentor de uma gama de informações, observará a intertextualidade não só

entre estas obras, mas também destas com a história documental da cidade de Ouro Preto. A

intertextualidade é um recurso ímpar para o aumento da produtividade intelectual, porque, na

medida em que se alcança mais deste recurso, a leitura e, consequentemente, a produção

textual, torna-se mais prazerosa e significativa. Intertextualidade implica conhecimento geral

do mundo, para que se possa identificar, relacionar uma obra com outra já existente. Um texto

conversa com outro por diversos motivos, então, na medida em que o leitor alcança as

ligações realizadas pelo escritor, habilita-o a compreender melhor a produção textual que

possui.

Um exemplo dessa conversa entre as obras analisadas pode ser encontrado quando os

autores, em questão, referem-se a Aleijadinho: sua dor e sofrimento são observados nas duas

obras ficcionais. Mourão (1993) traz: “quando tiveram início as minhas provações, nenhuma

transformação da minha personalidade parecia estar a caminho. Reagi apenas como um

ferido. Atingido por doença deformante e incurável, o meu corpo ia se fazendo asqueroso, as

minhas carnes apodrecendo” (1993, p. 80). E Alencar (1971) ressalta: “mas, atacado pelo

escorbuto, que lhe corroeu as mãos, lhe deformou o rosto, o transformou num monstro, de

todos tinham horror, o artista infeliz como que ficou, daí em diante, com a alma envenenada.

Revoltou-se. Fez-se mau e vingativo” (1971, p. 78).

Texto algum esgota em si mesmo todo sentido, pois não é uma unidade de linguagem

produzida e acabada. Porém, contém uma informação, um conhecimento, uma ideia ou um

ponto de vista de modo autossuficiente. Fiorin e Savioli (1999) afirmam que

nenhum texto é uma peça isolada, nem a manifestação isolada de quem o produziu.

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De uma forma ou de outra, constrói-se um texto para, através dele, marcar uma

posição ou participar de um debate de escala mais ampla que está sendo travado na

sociedade. (FIORIN e SAVIOLI, 1999, p. 13).

Assim, o episódio sobre a revolta que antecedeu a Inconfidência, em Ouro Preto, o

qual também referendou um codinome “morro da queimada” a uma elevação na cidade é

narrada na obra Cidade do Sonho e da Melancolia (1971) da seguinte forma:

Pertencia a mina maravilhosa a Paschoal da Silva Guimarães, um dos fundadores de

Vila Rica, opulento senhor de centenas de escravos e de numeroso bando de

estipendiados, para os quais mandara edificar todo um extenso arraial, a desbobrar-

se morro acima.

Companheiro de Felipe dos Santos, tendo dado a este mão forte para a sedição,

Paschoal da Silva Guimarães foi preso, tão depressa se verificou o malogro da

revolta.

Governava a capitania o sanhudo conde de Assumar.

E a repressão estadeou-se violentíssima.

Felipe dos Santos, depois de passar pela forca, teve o corpo atado à cauda de quatro

cavalos bravos, para o esquartejamento, realizado com toda a pompa diante do

governador, que viera para a praça assistir ao espetáculo, comodamente repotreado

numa cadeira de alto espaldar, à frente da famulagem curiosa, a ostentar trajes

domingueiros. Os pedações sangrentos do corpo do tribuno audaz foram arrastados

pelas pedregosas ladeiras, abaixo e acima, ao galope dos cavalos árdegos, para

escarmento dos habitantes e maior respeito a El-Rei Nosso Senhor.

[...]

Dias consecutivos lavrou o fogo no arraial destruído.

Morro da Queimada, desde aí, ficou sendo chamado o local pelo povo. (ALENCAR,

1971, p. 55-56)

Em Boca de Chafariz (1993), o mesmo sofrimento, o mesmo desejo de manifestar o

poder por parte da Coroa portuguesa, representado na pessoa do governador é narrado:

[...] Quem não tivesse tomado conhecimento, dias antes, do audacioso anúncio

público do movimento, estava sabendo que por trás de tudo andava Paschoal da

Silva Guimarães, rico minerador e proprietário quase exclusivo do arraial. Mas o

comando verdadeiro no Largo da Câmara, onde a concentração se faria, logo se

transferiu a um chefe de repente apresentado maior: Felipe dos Santos Freire. [...]

Felipe dos Santos agita em Cachoeira do Campo, tentando sublevar a população –

vieram dizer.

Naquela noite, um incêndio de imensas proporções se ergueu em halo avermelhado

projetado amplo sobre o arraial de Ouro Podre. Os soldados de Assumar corriam lá

dentro, numa direção e noutra, saqueando casas, deitando fogo. Os moradores, em

desespero, fugiam da maneira possível. Ruas inteiras ardendo, fazendo subir

sobrelançados, agitados rolos de fumo. Na propriedade principal, de Paschoal da

Silva Guimarães, barricas de alcatrão e pólvora explodiam, iam aos cacos pelos ares.

A ventania da serra, contribuindo para que o processo de destruição mais rápido

fosse, transplantando pés desgarrados de chamas, que grudavam nas coberturas de

palha das casas ainda não atingidas. [...]. O Ouro Podre, ou Morro do Paschoal,

conquistara para todo o sempre um nome a mais: Morro da Queimada.

A entrada de Felipe dos Santos Freire em Vila Rica, acorrentado e algemado, em

meio a uma cavalgada de beleguins improvisados, produziu a maior comoção. Fora

preso no adro da matriz de Cachoeira do Campo. Discursava ao povo, quando uma

revoada de bacamartes chegou até o seu peito. Submetido a sumário julgamento,

naquele mesmo dia ia subir à forca. E quente ainda, o seu corpo seria atado à cauda

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de um cavalo brabo, que aos pinotes o arrastaria ao comprido pelas ruas, de embate

em embate – aos olhos assustados de todos – contra as pedras do calçamento. As

roupas se fariam frangalhos, o sangue se espalharia numa puxada mancha rubra:

Contrapartida, cá em baixo, do incêndio ainda não extinto no alto do morro.

(MOURÃO, 1993, p. 176-178)

Com esses fragmentos, vê-se que os textos não são originais. Não existe texto “puro”,

mas em cada produção é possível identificar um intertexto, uma vez que um texto tende a

falar com outro, ratificando-o ou rechaçando-o. Para isto, é necessário um amplo e

diversificado conhecimento, a fim de que as semelhanças e divergências sejam encontradas,

pois ler não é meramente decodificar signos, determinar palavras-chave, mas é também fazer

inferências, avaliar a intenção do texto. Ao relacionar textos diversos, é obtida maior

profundidade em seu sentido (significado).

O fim específico da paráfrase é o fazer literário, que oferece condição relativa ao leitor

de ver ou não a interface que o autor criou, como que cozendo uma colcha de retalhos em sua

produção textual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme a proposta inicial conceituou-se intertextualidade, fundamentando-se na

obra de Graça Paulino, Ivete Walty e Maria Zilda Cury: Intertextualidades: teoria e prática,

além de outros autores. Assim, com base nas definições de intertextualidade apresentadas,

confirmando que todo texto é oriundo ou influenciado por outros antecessores, pode-se

considerar que há intertextualidade entre as obras Boca de Chafariz (1993), de Rui Mourão,

e Cidade do Sonho e da Melancolia (1971), de Gilberto de Alencar, pois os romances não só

narram sobre o mesmo espaço, Ouro Preto, como é possível identificar semelhanças entre os

textos, nas diversas passagens apresentadas.

Os tipos de intertextualidade são vários, bem como a posição dos estudiosos e

pesquisadores, enquanto procuram intensificar as experiências e as possibilidades da situação

intertextual. Compreende-se a posição e as dificuldades dos cientistas da língua escrita e do

discurso oral, com a sistematização dos estudos sobre o tema, que é recente para um contexto

tão antigo.

É interessante, muitas vezes, ler uma produção datada e assinada em um tempo

recente, ouvindo a voz distante do texto precursor, como no caso das obras analisadas, pois a

1ª edição de Cidade do Sonho e da Melancolia é datada de 1926. Assim, a obra Boca de

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Chafariz (1993) dialoga com a primeira, apesar de terem entre si uma distância temporal de

sessenta e sete anos.

Quando bem elaborada e sem a presunção de esconder o inspirador por detrás da nova

apresentação, a intertextualidade é um exercício de descoberta, de lembranças, de busca de

outras composições, de criatividade, de diversão e oportunidade para outra visão de um

mesmo tema, como os exemplos apresentados.

Em todas as artes existem interações entre as produções, mas a literatura,

provavelmente, é o campo mais favorável para o seu aparecimento, além de prazeroso,

permite a maior participação do leitor, e talvez seja também o que mais exige a relação de

conhecimento com os originais.

A intertextualidade é um campo muito amplo, que permite e exige muito estudo, não

só pela variedade de formas em que se apresenta, mas devido à sociedade estar com a

comunicação e o conhecimento cada vez mais globalizados. É um campo fecundo para a

investigação da comparação entre obras distintas, favorecendo assim os estudos comparativos.

O presente estudo buscou introduzir uma reflexão entre as duas obras referenciadas, a fim de

se possibilitar posteriores pesquisas sobre o tema tratado.

O reconhecimento de que o texto resultante de uma conversa entre textos não é novo,

guarda valor sem depreciar aquele que o apoiou. Pode-se dizer que, muito ao contrário, o

texto original ganha significado maior pelo fato de ter sido lembrado e ter-se prestado a uma

reflexão inspiradora. Isto ocorre nas obras analisadas, pois Boca de Chafariz (1993) vem,

não só reforçar, mas também propagar a obra Cidade do Sonho e da Melancolia (1926),

quando retoma o mesmo tema: a valorização da cidade de Ouro Preto.

REFERÊNCIAS:

ALENCAR, Gilberto de. Cidade dos Sonhos e da Melancolia. 2. ed. Juiz de Fora:

Esdeva,1971.

BARTHES, R. O prazer do texto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada. 4.ed. ver. e ampliada. Digital Source,

São Paulo: Ática, 2006.

FIORIN, José L. & SAVIOLI, Francisco P. Para entender o texto: leitura e redação. 14.ed.

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São Paulo: Ática, 1999.

MOURÃO, Rui. Boca de Chafariz. 3.ed. Belo Horizonte: Villa Rica,1993.

NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP,

1997.

PAULINO, Graça; WALTY, Ivete; CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: teoria e prática.

Belo Horizonte: LÊ, 1995.

SANT'ANNA, Afonso R. Paródia, paráfrase e CIA. 7. ed. São Paulo: Ática, 2003.