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Os teólogos puritanos de Westminster afirmaram que há uma distância tão grande entre Deus e o homem, que além deste homem dever toda obediência ao seu criador, ele não pode receber de Deus nenhum bem ou desfrutar de Seu amor se não for por Sua graça e condescendência. Mas aprouve a Deus beneficiar o homem através de um relacionamento de amor, por Ele iniciado, e com consequências de vida e morte. Este é um relacionamento pactual. A isso a Confissão de Fé de Westminster e outras Confissões Reformadas chamam de Pacto ou Aliança.

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2 Revista Os PuRitanOs 3•2009

EDITORIAL Manoel Canuto

Os teólogos puritanos de Westminster afirmaram que há uma distância tão grande entre Deus e o homem, que além deste homem dever toda obe-

diência ao seu criador, ele não pode receber de Deus ne-nhum bem ou desfrutar de Seu amor se não for por Sua graça e condescendência. Mas aprouve a Deus beneficiar o homem através de um relacionamento de amor, por Ele iniciado, e com consequências de vida e morte. Este é um relacionamento pactual. A isso a Confissão de Fé de Westminster e outras Confissões Reformadas chamam de Pacto ou Aliança.

Então, Deus toma a iniciativa e estabelece um relacio-namento de amor entre duas partes, fazendo promessas, sob condições, e apresentando consequências de caráter eterno. Temos diversos exemplos de pactos na Bíblia e que contam com a presença de todos estes elementos envolvidos, como os que Deus fez com Noé, Abraão, Davi e com Adão. Com Adão Deus fez um pacto no qual Adão é o representante de toda a humanidade e assim ele age como representante de todos os seus descendentes, to-dos os homens.

Deus faz com Adão “um pacto de vida na condição de obediência pessoal, perfeita e perpétua, da qual a árvore da vida era o testemunho; e proibiu de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, sob pena de mor-te” (CM Perg. 20). Este pacto é chamado de “pacto ou aliança de obras” porque havia uma condição envolvida: obediência perfeita à lei de Deus. Foi chamado assim de “aliança de obras” também para fazer diferença com a “aliança da graça” que descansa em bases diferentes. No pacto de obras é prometido ao homem alcançar vida eterna, se Adão obedecer a Deus perfeitamente. De uma forma ou de outra, tremenda seria a repercussão deste ato de Adão e extensiva a toda a raça humana porque ele

era o representante de todos os homens dele gerados. A repercussão disso e seu resultado seria de que ele, caso obedecesse, poderia comer da árvore da vida e assim re-ceber a vida eterna, jamais poderia pecar e morrer. Isso seria imputado a todos os homens se o “primeiro” Adão obedecesse. O que podemos ver é que o homem teria um nível de vida muito superior ao que Adão teve ao ser cria-do, livre de cair, livre do pecado e da morte.

É necessária aqui uma consideração importante. Em sua essência, esta aliança também é uma “aliança de graça” porque graciosamente Deus promete vida eterna em um relacionamento de amor com Ele como galardão. Na mensagem/artigo do Dr. Murray, o que nos chama a atenção é a manifestação do amor gracioso de Deus na “aliança de obras”. Vemos o amor de Deus no fato de Ele mesmo iniciar a aliança; na simplicidade do seu mandamento; na clareza da sua ameaça; no tamanho da sua recompensa; na “espora” da sua motivação; na curta duração da sua prova. Nela vemos toda a graciosidade do nosso bom Deus especialmente na figura do segundo Adão, que ao contrário do primeiro Adão, obedece per-feitamente às exigências da “aliança de obras” em nosso lugar. Como diz o Dr. Murray, se você acha que não tem nada a ver com o primeiro Adão, não tem também nada a ver com o segundo Adão. Johannes G. Vos comentan-do o CM disse: “assim como o primeiro Adão trouxe o pecado ao mundo, o segundo Adão trouxe- nos justiça e vida eterna. Adão foi o nosso representante na aliança de obras; Jesus, o nosso representante na aliança da graça. Aqueles que rejeitam a doutrina da aliança de obras, não têm o direito de reivindicar as bênçãos da aliança da gra-ça, porque os dois são paralelos, e juntos ou se mantém de pé ou caem, como prova Romanos 5”.

Boa leitura.

Aliança de Obras

REVISTA OS PURITANOSAno XVII - Número 3 - 2009

EditorManoel [email protected] Editorial

Josafá Vasconcelos e Manoel CanutoRevisoresManoel Canuto; Linda OliveiraTradutoresLinda Oliveira; Marcos Vasconcelos, Márcio Dória, Josafá VasconcelosProjeto Gráfico e CapaHeraldo F. de AlmeidaImpressão

Facioli Gráfica e Editora Ltda.Fone: 11- 6957-5111 — São Paulo-SPOS PURITANOS é uma publicação trimestral da CLIRE — Centro de Literatura ReformadaR. São João, 473 - São José, Recife-PE, CEP 52020-120Fone/Fax: (81) 3223-3642E-mail: [email protected] CLIRE: Ademir Silva, Adriano Gama, Waldemir Magalhães.

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Cristo na Aliançadas ObrasAliança é um relacionamento de amor que é iniciado e imposto por Deus, com consequências de vida e morte

Dr. David Murray

Gênesis 2:8-18Romanos 5:12-21

Gostaria de fazer três afirmações introdutórias sobre as Alianças na Bíblia.

Em primeiro lugar quero dar uma definição do que é uma Aliança → Aliança é um relacio-namento de amor que é iniciado e imposto por

Deus, com consequências de vida e morte. Quando a maioria das pessoas pensa em uma aliança, em um pacto, elas imaginam se tratar de um acordo comercial, algo frio que ocorre no mundo dos negócios. Mas não é assim! Uma aliança é um relacionamento de amor. Além disso, as pessoas pensam em uma aliança como sendo duas pessoas que fazem um acordo mútuo; pes-soas que estão negociando algo mutuamente aceitável. Uma delas diz: “Eu vou lhe dar isso e você vai me dar aquilo, em troca”. A outra pessoa então, vem com uma contraproposta e por fim encontram um meio termo. Mas uma aliança não é assim. Uma aliança vem de um lado único; é algo que vem e é imposto por Deus. Mui-tas pessoas pensam no conceito de aliança como algo que tem consequências mínimas e que se não der cer-to não terá resultados muito graves. Mas uma aliança não é assim, ela tem consequências de vida ou morte. Então, o que é uma aliança? Uma aliança é um relacio-namento de amor, iniciado e imposto por Deus com consequências de vida e morte.

TIPOS DE ALIANÇAAchamos na Bíblia dois tipos de aliança:

(a) Aliança de obras (trabalho) e então, salário. Nes-te tipo de aliança, alguém tem de fazer um tipo de obra para ganhar um tipo de salário. Seria assim: Obra, obra, obra e depois salário. É este tipo de aliança que vere-mos agora.

(b) Aliança de graça e então, gratidão. Em lugar de obra e salário, temos a graça seguida de gratidão. Nela Deus vem e diz: Aqui está uma dádiva, tome-a, deleite-se com ela e veja como você pode mostrar sua grati-dão por ela! Este conceito não é muito familiar aos ho-mens. Não vemos muito deste tipo de atitude hoje. De fato, este é um conceito desconhecido hoje. Trabalho e depois salário nós entendemos, mas graça e depois gratidão, disso nada entendemos. Mas as pessoas que viveram na época bíblica estiveram bem familiarizadas com este conceito de graça-gratidão. Arqueólogos têm descoberto muitas antigas alianças entre as nações da-quela época e elas tinham cinco partes.

1) A primeira parte era uma introdução, ou inicia-ção. Normalmente nesta introdução o grande rei no-meava o rei menor. Esta iniciação falava do grande rei como aquele que iniciava a aliança e o pequeno rei como aquele que recebia esta aliança.

2) Na segunda parte da aliança havia uma descrição de todas as maravilhosas coisas que o grande rei tinha feito ao rei menor. Por exemplo. “Eu tenho feito todas estas guerras por você; eu tenho protegido sua cidade; tenho proporcionado todos negócios comerciais que lhe beneficiam; veja todas as grandiosas coisas que eu tenho feito por você, meu pequeno rei”.

3) Na terceira parte desta aliança havia uma expli-cação; o grande rei explicava ao pequeno rei como ele podia demonstrar sua gratidão por tudo que lhe tinha feito. Ele dizia: “Se você quer manter nosso relaciona-mento saudável, aqui estão algumas regras para ajudá-lo a fazer isso”.

4) A quarta parte da aliança envolvia motivações. Havia muitas promessas de recompensa para o peque-no rei se ele fosse obediente às exigências do grande rei. Mas havia também ameaças para o pequeno rei caso não obedecesse.

5) A última parte da aliança era algo administrativo, era algo ligado ao gerenciamento da aliança. Por exem-

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plo. Como seria a renovação daquela aliança; como o documento pactual de-veria ser guardado ou arquivado.

Estes são pontos muito importantes. Primeiro a aliança é iniciada pelo rei. Isso nos chama a atenção para a graça deste grande rei que mostra ao peque-no rei como manter um relacionamen-to saudável e lhe promete recompensa caso corresponda em tudo.

Vemos, então, que o povo do passa-do conhecia e compreendia bem este conceito. Como veremos neste estudo das Alianças, parece que Deus tomou um conceito conhecido daquela época e usou-o para comunicar ao seu povo a sua GRAÇA e como o povo deveria res-ponder a esta graça.

A Aliança das obras & salário → Algumas vezes na Bíblia nós vemos alianças, mas a Bíblia, para descrevê-las, não usa a palavra “aliança”. Porém, o mero fato de não existir a palavra escrita, isso não significa que não seja uma aliança. Por exemplo, a aliança que Deus faz com Davi em 2 Samuel 7 é de fato uma aliança, mas a Bíblia não menciona a palavra “aliança” na-quele contexto. Porém, mais tarde, no livro de 2 Samuel 23:5 e no Salmo 89:3,28,34,39, a Bíblia se refere àque-

le evento e usa a palavra aliança para descrevê-la.

Na aliança que trataremos aqui em Gênesis 2 não vamos achar a palavra

“aliança”. Mas temos aqui todos os ele-mentos de uma aliança de obras e en-tão, salário. Mais tarde, nos livros dos profetas Jeremias e Oséias, veremos que esta aliança de obras é chamada de “aliança”. Portanto, o que vamos considerar aqui no Capítulo 2 de Gêne-sis, é a aliança de obras e então, salário.

Creio que você conhece o pano de fundo aqui e o seu contexto. Deus deu a Adão um mundo lindo para se deleitar nele. Deu-lhe um jardim. E no meio do jardim Deus colocou uma ár-vore ― a árvore do conhecimento do bem e do mal. E disse: “Desta árvore não comerás e se comerdes, morrerás”. Isso implica em que, se ele obedecer, então terá vida. Se há trabalho e este trabalho ou obra é obedecer ao manda-mento, então haverá salário, e se há sa-lário, ele será vida. Ao ouvir tudo isso, você pode ficar pensando: “Isso parece tão frio e legalista! Será que Deus é as-sim mesmo, um Deus de obra e salário como se Ele fosse um empregador? Por acaso existe amor nesta aliança?”. É esta questão que eu gostaria de res-ponder. Gostaria de mostrar o amor de

Deus nesta aliança de obras e salário, de sete maneiras.

O AMOR DE DEUS NA ALIANÇA(1) Em primeiro lugar nós vemos o

amor de Deus no fato de Ele mesmo iniciar a aliança. Adão, como criatura de Deus, devia-lhe obediência total. Se Adão obedecesse perfeitamente, ele es-taria simplesmente cumprindo com seu dever e não podia reivindicar nenhuma recompensa especial. Deus não lhe de-via nada, pois estaria apenas fazendo o que devia fazer. Mas é aqui que vemos o amor de Deus, porque Ele permitiu que um ato levasse Adão a adquirir alguma coisa. Deus está permitindo que Ele próprio fique “devendo” alguma coisa a Adão. Deus está permitindo que Ele mesmo seja devedor a Adão. Deus não precisava fazer isto. Deus não ganha nada fazendo esta aliança. Mas Ele faz esta aliança com o propósito de dar e não de receber. Isso é amor.

Vejamos uma ilustração. Imagine-se andando por uma estrada. De repente você vê ao lado do caminho um bebê. Se deixar este bebê sozinho ele morrerá. Mas você o toma e leva para casa e o en-trega a seu empregado, dizendo: “Crie este bebê para mim”. Além disso, você faz toda provisão para esta criança dando-lhe comida e bebida para que ela cresça com saúde. Quando esse bebê crescer ele estará lhe devendo tudo que é. Agora ele irá trabalhar como seu servo, em sua casa, em seu jardim, mas você não lhe paga nada. Na verdade ele é que lhe deve toda sua vida e não pode reclamar de nada, porque estará rece-bendo justiça, estará recebendo o que lhe é justo. Então, imagine novamente aquele bebê agora já crescido, já ho-mem, e você se achega a ele e diz: “Veja aquela árvore. Digo-lhe que não coma do fruto desta árvore por um tempo. Se você conseguir fazer isso, então não será mais um servo em minha casa e sim meu filho. Eu o receberei em minha

Aliança é um relacionamento de amor que é iniciado e imposto por Deus. Quando a maioria das pessoas pensa em uma aliança, ela imagina ser um acordo comercial, algo frio no mundo

dos negócios. Mas não é assim!

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casa, na minha família, e ainda lhe da-rei uma vida muito melhor”. Isso é puro amor, não é? Mas imagine você sendo este servo. Você ficaria completamente maravilhado e diria: “Meu senhor não precisa fazer isso comigo! Eu lhe devo tudo que tenho; que amor tão grande tem para comigo em me dar esta opor-tunidade, este privilégio tão grande!”. Pois é exatamente esta situação que nós vemos aqui no capítulo 2 de Gênesis. Adão já tinha uma vida excelente, mas agora ele recebe a promessa de uma vida ainda melhor. Você pode imaginar Adão pensando: “Ó, Deus, não precisa tomar esta iniciativa e fazer isso, como Tu és gracioso para comigo!”. Isso é o amor de Deus manifesto no fato de que é Ele que inicia a aliança.

(2) Em segundo lugar vemos o amor de Deus na simplicidade do manda-mento. Imagine mais uma vez aquele servo no jardim. Você se achega a ele e diz: “Vou lhe dar uma oportunidade de ser meu filho”. Mas para isso lhe dá um livro de mil páginas cheio de regras, escrito em uma língua desconhecida. Você lhe diz: “Leia, é só isso que precisa fazer! Você terá a recompensa, vale à pena tentar!”. Todos os dias seu servo diria: “Mas, o que eu devo fazer? Eu não sei o que fazer!”. Mas se ao invés disso você dissesse: “Veja aquela única árvore, não a toque”. Que alívio, “é uma coisa tão simples para mim!”, ele diria. Nin-guém tem a coragem de dizer que isso é algo complicado. Devemos nos lembrar que Adão já tinha em si uma disposição natural de obedecer. De fato era mais fácil para Adão obedecer do que deso-bedecer. Veja quanto amor é manifesto na simplicidade deste mandamento.

(3) Em terceiro lugar vemos o gran-de amor na clareza da ameaça. Vamos olhar novamente para o jardim. Ima-gine que você diga àquele servo: “Não coma daquela árvore, mas eu não vou

lhe revelar as consequências que virão sobre você se me desobedecer”. O servo ficaria pensado? “O que vai me aconte-cer? Pode me acontecer alguma coisa boa ou alguma coisa ruim, ou alguma coisa não tão ruim assim..., o que me acontecerá? Não sei o que fazer, não te-nho segurança em nada do que poderá me acontecer”. Mas, veja a natureza da aliança aqui. “No dia que dela comerdes, certamente morrerás”. Não pode ser mais claro, concorda! É muito claro: “Se você comer, você morrerá!”. Lembre-se ainda que Adão, de posse do conheci-mento perfeito que tinha, devia saber o que significava a morte. É verdade que não havia morte no mundo ainda, mas Deus não teria falado uma coisa assim sem ter-lhe explicado o que significava a morte física e a morte espiritual, a morte eterna. É algo muito claro e as-sustador. Mas também é muito amoroso.

É certo que todos nós temos a ex-periência de ver nossos filhos nos de-sobedecendo e nós os disciplinando. Algumas vezes eles nos dizem: “Papai, você nunca nos disse que isso iria nos acontecer”. Infelizmente muitas vezes nós temos de concordar com eles. Por isso, é uma demonstração de amor quando são colocadas claramente as consequência e os limites à desobedi-ência. Foi o que Deus fez aqui.

(4) Em quarto lugar nós vemos o amor de Deus no tamanho da recom-pensa. Qual era a recompensa. Não está explícito no versículo 17, mas está implícito. Não foi dito: “Se dela comer-des, morrerás, e se não comerdes, tudo fica no mesmo”. Vejamos no final do v. 3, depois da queda e no capítulo 22, Deus protegendo e guardando o cami-nho de volta para o jardim, para a árvo-re da vida, para que o homem dela não coma e viva eternamente. Parece que Deus colocou perante Adão a recom-pensa de uma vida “melhorada”, algo bem melhor, se ele passasse na prova. Se fizermos uma comparação entre tra-balho e salário, concluímos que seria trabalhar tão pouco ou fazer tão pouco, para receber muito.

Mais uma vez vamos pensar naque-le servo do jardim. Imagine se você dis-sesse ao seu servo que ele iria labutar e labutar por vinte anos e depois de to-dos estes anos lhe prometesse dar ape-nas um real por dia, em seu salário. Ele pensaria: “Isso não vale a pena”. Mas se, ao contrário, você prometesse que ele seria seu filho, seu herdeiro, que parti-ciparia de sua casa e receberia todos os privilégios e tudo o que ele precisa-ria fazer era apenas não comer de uma árvore, isso seria profundamente mi-sericordioso, tão generoso, tão amável.

Em lugar de obra e salário, temos a graça seguida de gratidão. Nela Deus vem e diz: Aqui está uma dádiva, tome-a, deleite-se com ela e veja como você

pode mostrar sua gratidão por ela!

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Veja o tamanho da recompensa e tudo por tão pouco.

(5) Em quinto lugar vamos conside-rar a espora da motivação1. Vamos a Romanos 5 onde temos a exposição de Paulo deste capítulo 2 de Gênesis. Pau-lo apresenta Adão como representante de toda a raça humana. Paulo mostra claramente que um está representan-do muitos. Vemos no v. 12: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos peca-ram”. Também no início dos vv. 17, 18, 19: “Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte...”; “Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condena-ção...”; “Porque, como, pela desobediên-cia de um só homem, muitos se torna-ram pecadores...”. Em outras palavras, Adão representava um por todos. Deus estava deixando que a obediência de um homem fosse imputada a toda a hu-manidade. Mais uma vez digo que Deus não teria escondido essa realidade de Adão. Se Paulo sabia, será que Adão não sabia? Que incentivo tão grande foi este para motivá-lo à obediência!

Você quando é um homem solteiro que teve muito trabalho para fazer du-rante o dia e no outro dia, pela manhã, quando toca o despertador, você pode dizer: “Estou muito cansado hoje; será que eu tenho mesmo de ir ao trabalho? Eu vou dormir mais um pouco e depois eu enfrento as consequências; talvez receba uma advertência, ou até perca meu emprego, mas... não tem proble-mas”. Quando solteiro você pode até agir assim, porém depois você se casa e se vê com filhos. Agora irá pensar:

“Bem, agora o problema não tem a ver apenas comigo, mas se eu ficar dor-mindo meus filhos vão passar fome”. Bem, isso ajuda a tirar você da cama, certo? Agora você está sendo motivado

pelo fato de que muitos outros estão dependendo de sua obediência.

Pense em Adão naquele jardim. Adão está sabendo que, por sua sua obediên-cia, pode ganhar uma vida maravilhosa para si e para todas as pessoas que dela irão desfrutar eternamente. Isso não é uma motivação muito grande? “Adão, você pode fazer isso pelo mundo intei-ro!”. Que incentivo! Então, há o amor de Deus na espora da motivação.

(6) Também o amor de Deus se ma-nifesta na curta duração da prova. Deus poderia ter mantido Adão em suspense pelo resto de sua vida..., dez anos, vinte anos, cem anos..., sempre com aquela prova diante dele. Mas nós não cremos que Deus tenha feito isso. Ele permitiu a permanência temporária (por um tem-po) do “um”, para ganhar a vida eterna dos “muitos”. Você pode até perguntar onde encontramos isso na Bíblia.

A. Em primeiro lugar na natureza de Deus. Ele é um Deus gracioso.

B. Como veremos mais adiante, te-mos aqui a árvore de vida. Ela está sen-do colocada diante de Adão como uma recompensa e quando ele falha, isso lhe é tirado para que não viva eterna-mente. Parece que há uma recompensa material, física e visível que é colocada diante de Adão para que ele logo usu-frua dela. Mas acima de tudo a razão é a seguinte: Era necessário esta pro-va se encerrar antes da concepção do primeiro filho de Adão, pois o pecado é transmitido na concepção. E se um filho fosse concebido antes do final da prova, teríamos duas raças no mundo: Os que eram da raça do pai, o diabo, mas que haviam gerado um filho perfeito.2 [VIDE NOTA] Já imaginou? Isso é impossível! Por isso, acreditamos que esta prova ti-nha uma duração bem curta.

Mais uma vez pensemos no servo do jardim. Seu senhor poderia dizer-lhe: “Eu quero 50 anos de obediência”. Isso é demais. Mas se o senhor disser que é alguns dias, apenas algumas

semanas, isso manifesta amor; é uma prova verdadeira, não é uma prova cruel, mas tem amor nela. Aqui temos amor na curta duração da prova.

(7) Em sétimo lugar vemos amor na provisão de um sinal pactual. Como ve-remos em nossos estudos, toda aliança bíblica tem o seu sinal. Cada aliança tem uma promessa verbal e uma ilus-tração física. Deus falou e também de-senhou uma ilustração para estimular e encorajar a obediência. O sinal nesta aliança é a árvore da vida. Quando o pacto foi quebrado, esta árvore foi tira-da. Há algumas discussões sobre esta questão. Foi permitido a Adão comer da árvore da vida durante a prova? Será que esta árvore lhe deu fortale-cimento e um encorajamento extras para obedecer? É possível e seria mais uma vez uma manifestação de amor. A outra possibilidade é que aquela árvore estava sendo colocada perante ele como uma recompensa para que aproveitasse dela depois que passasse pela prova. Como Deus lhe prometeu vida melhor, Deus também ilustrou esta vida. O senhor falou para o servo no jardim: “Não toque naquela árvore! Mas aqui há uma árvore para você dela desfrutar, se obedecer”.

O que nos sugere a árvore da vida? Isso não nos sugere que seria uma árvo-re mais verde do que a mais verde e mais frutífera das árvores da Amazônia? Uma árvore que manifestava e ilustrava para Adão uma vida maravilhosa que o espe-rava, se ele obedecesse. Então uma vida de escravo se tornaria uma vida de filho. Uma vida de estado incerto se tornaria em uma vida de estado permanente em que nunca poderia cair dele. Vendo esta árvore todos os dias e imaginando aque-la vida que ele iria gozar, isso seria um amável sinal da parte de Deus. Especial-mente porque o Novo Testamento des-creve esta árvore como representando o Senhor Jesus Cristo o Filho de Deus.

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É interessante que no último livro da Bíblia Deus nos traz de volta à ár-vore da vida. Vemos em Ap. 22.2: “No meio da sua praça, e de um e de outro lado do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a cura das nações”. E o v. 14: “Bem-aventurados aqueles que lavam as suas vestiduras [no sangue do Cordeiro], para que lhes assista o direito à árvore da vida, e entrem na cidade pelas por-tas”. Lemos no Salmo 1 do homem pie-doso que é descrito como uma árvore verde que fica junto ao rio e está cheia de frutos. Quem é este homem piedoso? É o Senhor Jesus Cristo. Então, quando chegamos ao último capítulo da Bíblia, vemos Cristo no centro do céu sendo representado em linguagem simbólica como a recompensa do seu povo, ali-mentando-o, sarando-o. Este povo tem o direito à arvore da vida.

Voltando ao jardim do Éden vemos que, de alguma forma, Deus, o Pai, está oferecendo a Adão um relacionamento especial com Deus, o Filho. O que era impressionante para Adão não era, em primeiro lugar, estar na mesma casa e ter todos os privilégios de um filho, mas o que o impressionava era ter um irmão como Jesus, o Filho de Deus. Que espe-rança! Que amor na provisão deste sinal! Seria este, um pacto frio, comercial e le-galista? Não! Mesmo sendo uma aliança de obras e salário, é uma aliança repleta do amor de Deus. Deus abre nosso cora-ção e nos manifesta sua natureza gene-rosa. Essa aliança nos mostra acima de tudo o desejo que Deus tem de ter um re-lacionamento de amor conosco. Será que Ele poderia ser mais gracioso? Será que Ele deixou alguma coisa faltando? Isso nos mostra claramente como Deus dese-ja um relacionamento pactual com seres humanos como nós. Ele não deseja isso porque falta alguma coisa em si mesmo, mas Deus faz uma aliança conosco para dar e não para receber.

Mas, mesmo assim, o que aconteceu? Podemos ver em Romanos 5: Um pecado. E qual o resultado? Podemos relacionar todo nosso choro, toda nossa lágrima, toda nossa miséria a este primeiro pe-cado. Quantas ilustrações tristes das consequências terríveis que o pecado tem trazido a terra. Podemos ver toda repercussão desastrosa em nossas pró-prias vidas, todo caminho de destruição que temos deixado atrás de nós. Tudo isso tem origem neste único momento. Todos nós temos uma lista de pecados cometidos em nossas vidas, mas sabe qual o pecado que fica em cima da lista? É o mesmo pecado que está em cima de todos nós: o pecado de Adão.

É isso que o apóstolo Paulo nos ensina em Romanos 5. Pelo pecado de um, muitos se tornaram pecadores. Como nosso representante, tudo que Adão fez pertence também a nós. Mas você pode dizer: “Isso não é justo! Eu não estava lá no Éden, eu não tenho nada a ver com isso. Como Deus pode me acusar daquele pecado? Eu assumo responsabilidade pelos meus pecados, mas não aquele pecado de Adão. Não é justo que o pecado de um homem tantos anos atrás, em um lugar tão dis-tante, se torne o meu pecado também!”.

Mas se você não aceita ter caído em Adão, você não pode ser salvo em Cris-to. É exatamente isso que Paulo ensina no capítulo 5 de Romanos. Você não pode receber a salvação pela obediên-cia de UM se não aceitar a condenação que recebeu pela desobediência do um. Se você diz do pecado de Adão: “Eu não aceito! Não é justo!”. Então, você não pode dizer da justiça de Cristo: “Ela é justa, eu quero esta justiça”.

Você deve se humilhar debaixo do plano de Deus e dizer: “Eu aceito o peca-do de Adão como o meu pecado; eu acei-to o primeiro Adão como meu repre-sentante, mas eu aceito o último ADÃO como meu representante também”. E qual dos dois é o mais poderoso?

Mensagem proferida por Dr. David Murray no XVIII Simpósio Os Puritanos, em Maragogi/Pe/2009. Dr. David Murray é ministro Presbiteriano e profes-sor de Velho Testamento e Teologia Prática no Puri-tan Reformed Theological Seminary, Michigan, USA.Notas: 1. A espora é um acessório de metal usado para incitar o cavalo. 2. Aqui Dr. Murray está enfa-tizando Adão como o representante federal da raça humana. Assim ele infere que, se Eva ficasse grávida antes da queda, seu filho não poderia dizer o que a Bíblia diz de todos os homens: “Eis que em iniquida-de fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51:5). Existindo um ser humano concebido ou gerado antes da queda, isto complicaria o papel de Adão como representante federal. O que o Dr. Murray está pressupondo é que o pecado original é transmitido por geração. Assim, ele conclui que, se uma criança já tivesse sido gerada no ventre de Eva antes da queda, duas raças haveria no mundo: uma que está em pecado, e a outra que não.

“Bem-aventurados aqueles que lavam as suas vestiduras [no sangue do Cordeiro], para que lhes assista o direito à árvore da vida, e entrem na cidade pelas portas”.

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Eu estou Sozinho“Estou sozinho e aflito” (Sl. 25:16)

No fundo, todos experimentam uma sensação de solidão. Isso não está sempre claro na rotina da vida diária. Muitos nunca entenderam o significado deste vazio. Para eles a vida nada mais é do que viver em sociedade com os outros. Eles não sabem o que é estar sozinho porque eles estão sempre com outras pessoas.

Isto mudará quando questões cruciais da vida começarem a penetrar as profundezas de sua alma. Então o homem irá perceber que ele está sozinho. Há momentos na vida, quando uma mãe não pode ajudar seu filho, quando um marido não pode ajudar sua esposa, e quando amigos não podem se ajudar. Quando ele chega ao fim de seus dias, o homem está sozinho. Ele está sozinho quando a dor lança-se em seu corpo. Ele está sozinho quando as mágoas o afligem. Ele está sozinho quando as cargas o abatem e o arrependimento o atormenta em sua alma. Ele está sozinho quando o pecado o aflige e a luta contra o pecado é individual-mente experimentada. Ele está sozinho quando a morte, com o seu frio domínio se agarra a ele e ele deve adentrar o portão escuro da morte para individualmente encontrar Deus do outro lado da sepultura.

Os mais severos sofrimentos acontecem enquanto experimentamos esta solidão. Desde que uma pessoa seja capaz de derramar o seu coração para outros, desde que olhos amoro-sos permaneçam fixos nele, desde que haja aqueles que emprestem um ouvido atencioso quando você derrama o seu lamento, desde que haja um coração cheio de compaixão para sofrer junto com você, desde que haja um ombro para se confortar, e desde que haja mãos amigas para te ajudar – o sofrimento é muitas vezes suportável.

Mas quando uma pessoa tem que lutar, carregar fardos e trabalhar sozinha, então sentimen-tos de total desolação nos dominam. De onde vem este sentimento de desolação? Por que isto nos faz sentir completamente abandonados? É porque colocamos a nós mesmos nesta posição de abandono. Nós abandonamos a Deus e por essa razão nós estamos abandona-dos. Nós viramos as nossas costas para Deus e como resultado nos viramos uns contra os outros. No meio da vida nós podemos estar tão sozinhos. Mesmo quando estamos rodeados por aqueles que nos amam, o vazio daquele sentimento de solidão permanece. E aqueles que não conseguem entender esse vazio em vida, ainda vão experimentar solidão na morte. O salmista entende a causa da sua solidão. É por isso que ele dirige sua oração a Deus com esta petição: “Volta-te para mim e tem compaixão, porque estou sozinho e aflito”. Somente Deus pode preencher o vazio na sua vida. Você compreende que está sozinho? Você sabe a causa desse vazio? Somente o Senhor pode satisfazer essa urgente necessidade.

Por Rev. Frans Bakker. Esta meditação foi adaptada pelo Rev. C.R Procee das obras do antigo Rev. Frans Bak-ker, ministro em Christelijke Cereformeerde Kerken na Holanda. Essas meditações de um autor contemporâneo demonstram as origens e afinidades “experimentais” que nossas igrejas querem manter com nossas raízes e heranças. Rev. Procee é o pastor da Igreja Reformada Independente de Hamilton, Ontário.

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Calvino — Vivendo para a Glória de Deus

Por Dr. Joel Beeke CONTINUAÇÃO DA EDIÇÃO ANTERIOR

Por volta de 1541 os católicos Romanos pareciam fazer progresso em empurrar Genebra de volta para o catolicismo. O cardeal Jacopo Sadoleto

(1477-1547), o bispo reformador de Carpentras, tinha escrito uma carta pública aos genebrinos, arrazoando com eles para que retornassem à Santa Madre Igreja. O Conselho da cidade de Genebra pediu para Calvino responder, o que ele fez, com efeito, em sua Resposta a Sadoleto, um dos melhores sumários primitivos da posição doutrinária da igreja Reformada. Reconhecen-do a necessidade de uma liderança protestante forte, o conselho da cidade convidou Calvino para retornar à Genebra. Após relutantemente concordar em fazê-lo, Calvino prontamente aplicou-se ao duro trabalho de reformar Genebra. Essa tarefa consumiu os últimos vinte e quatro anos da sua vida. O segundo ministério de Calvino em Genebra pode ser dividido em duas par-tes: anos de oposição e anos de apoio.

Anos de Oposição (1541-4555) Em Genebra, uma das primeiras responsabilidades de Calvino foi escrever várias leis para a nova república. Ele rascunhou uma nova ordem de culto, um novo catecismo e uma nova ordenança o que foi na sua totalidade, com várias emen-das, eventualmente aprovado pelo Conselho da cidade. Calvino ofereceu uma estrutura igreja/sociedade que cultivaria a participação do poder entre a igreja e o esta-do como dois reinos separados. A estrutura de Calvino, que foi grandemente influenciada por Bucer, ressoaria em graus variados, através de todo continente europeu.

As Ordenanças Eclesiásticas, que definiram clara-mente a ordem da vida congregacional, deu à igreja Reformada autonomia em assuntos de fé e de moral. A igreja devia escrever seu poder através de quatro ordens de ministérios: Pastores, doutores (i.e., profes-sores e conferencistas), presbíteros e diáconos.1 Os

pastores deviam pregar com mais frequência, engajar-se fervorosamente na oração intercessora, para ad-ministrar fielmente os sacramentos, e para pastorear conscientemente a congregação. Os doutores deviam objetivar o treinamento teológico dos seminaristas e pastores, prover palestras teológicas regulares, ins-truir os jovens e guardar a pureza doutrinária da igreja. Os presbíteros, que eram leigos, eram respon-sáveis por assistir os pastores em manter supervisão e disciplina sobre as vidas dos membros. Eles deveriam também engajar-se em oração intercessora continua. Os diáconos estavam divididos em duas ordens ― a primeira para administrar os recursos da igreja e dar uma supervisão administrativa; a segunda, para visitar os doentes e necessitados e conduzir a igreja no minis-tério de misericórdia e caridade.

Os pastores e doutores formavam um grupo cha-mado a Companhia Venerável, que se reunia semanal-mente para estudo da bíblia. Calvino moderava a Com-panhia Venerável e apresentava suas recomendações aos conselheiros da cidade. Os pastores e presbíteros encontravam-se em um corpo chamado Consistório uma vez por semana para subministrar aconselha-mento pastoral, censura, e escolher novos membros. Os diáconos também se reuniam semanalmente para levar a cabo suas tarefas.2

Ao lado desta estrutura eclesiástica, a cidade for-mava uma pirâmide de três Conselhos que incluía o menor e mais poderoso Conselho de vinte-e-quatro (usualmente chamado o Conselho da cidade) e os maio-res, menos poderosos conselhos de sessenta e de cem. Nem o lado eclesiástico nem o civil de Genebra obtinha totalmente seus objetivos mas conseguiam trabalhar juntos a despeito de uma tensão não resolvida, por muitos anos. Por exemplo, todos os conselhos da cida-de tinham alguma voz ativa na escolha dos presbíteros da igreja, mas aos próprios pastores era permitida a escolha dos pastores.

O Segundo Ministério de Calvino em Genebra (1541-1564)

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DR. JOel beeke

O rumor de que Calvino foi um tira-no em Genebra e governava com mão de ferro é visivelmente falso. Calvino nunca manteve um ofício civil em Ge-nebra. Ele nem mesmo foi um cidadão da cidade até bem adentrado em 1540, e a primeira metade de 1555, quando os seus inimigos (os Libertinos) não conseguiram ser reeleitos para o Con-selho da cidade.

Qualquer que tenha sido a influência que Calvino exerceu em Genebra du-rante os anos de 1540 à primeira meta-de de 1550, ela foi baseada na autorida-de moral da sua pregação, ensino e sa-bedoria. Mesmo então, o Conselho da cidade frequentemente operava contra-riamente aos seus julgamentos e reco-mendações. Por exemplo, Calvino que-ria a celebração da Ceia semanalmente, mas o Conselho da cidade insistiu que a Comunhão deveria ser administrada apenas quatro vezes por ano. Além dis-so, Calvino também enfrentou batalhas maiores com diversos indivíduos, in-cluindo o humanista reformado Sebas-tian Castellio (1513-1563), o líder do conselho, Ami Perrin, o livre-pensador Jacques Gruet, o ex-Carmelita Jerome Bolsec (d. 1584), o violento Philibert Berthelier, e o anti-trinitariano Michael Servetus (c. 1511-1553). Batalhas pro-longadas com cada um destes homens foram um pesado tributo sobre Calvino no meio destes anos atarefados.

A despeito da formidável oposição, Calvino manteve um intenso programa de pregação. Até 1549, Calvino prega-va duas vezes no domingo, em um dos dois cultos matinais, e novamente à tarde. Ele também falava três vezes du-rante a semana.3 Em Outubro de 1549, o número de sermões aumentou de uma vez em dias alternados a uma vez por dia, por ordem do Conselho da ci-dade.4

A frequente e fiel pregação de Calvino frutificou na conversão indivi-dual dos genebrinos. No devido tempo, o Conselho da cidade também inclinou–se ao modo de Calvino.

Anos de Apoio (1555-1564) → Quan-do os Libertinos foram derrotados em 1555, o Conselho da cidade finalmen-te tornou-se encorajador de Calvino e concedeu por longo tempo o disputado direito de excomunhão ao Consistório. Genebra tornou-se a cidade de Calvino, finalmente! Nos últimos nove anos da sua vida, Calvino executou muitas das suas longas e acariciadas visões. Em sua década final Calvino revelou sua competência como um capaz profes-sor de teologia, um escritor bíblico, um pregador fiel, um sábio conselheiro e um líder da igreja amadurecido.

Em 1558, Calvino estabeleceu a aca-demia de Genebra que foi dividida em uma “escola particular” (schola privata)

para instrução elementar e uma “escola pública” (schola publica), que oferecia estudos mais avançados nas línguas bíblicas e em teologia. O amigo e suces-sor de Calvino, Theodore Beza, serviu como o primeiro reitor da escola. Os estudantes vieram do mundo inteiro para a academia. Quando Calvino mor-reu, a escola tinha 1.200 estudantes junior e 300 estudantes sênior. Ho-mens treinados para o ministério abri-ram o leque de Genebra para muitos outros países da Europa. A maioria foi para a França, onde o movimento refor-mado cresceu cerca de 10 por cento da população antecedente ao massacre do dia de São Bartolomeu. Um número sig-nificante de pastores e líderes leigos foram também para a Bretanha (e.g., John Knox, o reformador da Escócia), Alemanha (e.g. Gaspar Olevianus, o re-formador do Palatinado), e a Holanda (e. g. os irmãos Marnix, líderes do movi-mento reformado ali). Naqueles países, os seguidores de Calvino ― frequente-mente com sua assistência ― adotaram diversas declarações confessionais para fortalecer a causa da Reforma. Eventualmente, a academia evoluiu para a Universidade de Genebra.

Em 1559, Calvino completou sua edição final definitiva das Institutas, que se tornaram o livro mais famoso da Teologia Reformada já escrito. Se-guindo a estrutura completa do Credo dos Apóstolos, Calvino dividiu este tra-balho em quatro livros. O primeiro li-vro é sobre Deus o criador, e o homem, trazido à criação por Deus.

Este livro discute a providência de Deus e a superintendência de Deus so-bre todas as coisas. O segundo livro cobre a queda do homem no pecado, o caráter do pecado e a obra de Cristo em redimir o homem do pecado. O ter-ceiro livro explica como o Espírito San-to aplica a redenção à humanidade. O quarto livro é primariamente sobre a Igreja de um ponto de vista positivo, a

Em tudo Calvino comprometeu-se com Deus e Sua glória e ansiava apenas promover a preeminência de Cristo na

dependência do Espírito.

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CalvinO — vivenDO PaRa a GlóRia De Deus

deformação da Igreja na idade média e, finalmente, o relacionamento adequa-do da Igreja com o Estado.

Calvino escreveu muito mais obras em sua última década, incluindo co-mentários, sermões e tratados sobre uma grande variedade de assuntos. Ele também escreveu, do seu gabinete de trabalho e do seu leito de doença, en-corajando e instruindo pastores e cren-tes perseguidos, através de toda a Eu-ropa, a perseverarem nas doutrinas da graça. Ele foi um conselheiro espiritual e prático para milhares. Aos seus ami-gos ministros juntos ao redor do seu leito de morte, Calvino disse: “Deus me deu graça para escrever o que tenho escrito tão fielmente como estava em meu poder. Não falsifiquei uma única passagem das Escrituras, nem lhes dei uma interpretação errada para o me-lhor do meu conhecimento”.5

Considerando suas obras póstumas, os escritos colecionados de Calvino en-cheram cinquenta e nove grandes vo-lumes de folio no Corpus Reformato-rum (uma série de 101 volumes de obras importantes da reforma) e doze volumes de Suplementa Calviniana.6 Isto inclui comentários sobre vinte e quatro dos trinta e nove livros do Anti-go Testamento e vinte e quatro dos vin-te e sete livros do Novo Testamento (todos, exceto 2 e 3 João e Apocalipse). A fidelidade bíblica, a praticidade e profundeza experimental dos escritos de Calvino são insuperáveis na história protestante.

No final da sua vida, entretanto, Calvino viu seu mais importante traba-lho em Genebra como “proclamando a Palavra de Deus” e “instruindo crentes na sã doutrina”. Embora ele estivesse pesadamente envolvido em pastorear pastores e pessoas, o centro de seu mi-nistério era pregar o evangelho. Em 1561 Beza reclamou numa carta a Fa-rel que mais de mil pessoas ouviram Calvino pregar por dia.7 O próprio

Calvino dizia repetidamente que é atra-vés da pregação que Deus se revela em julgamento e misericórdia, trazendo de volta corações à obediência, confir-mando a fé dos crentes e edificando e purificando a igreja.

Calvino pregava seus sermões de memória sem textos preparados. Seu método de pregar era como o de Zwin-glio e alguns pais da igreja, como João Crisóstomo (c. 347-407). Ele não esco-lhia um único texto ou passagem isola-da. Ao contrário, ele pregava constan-temente através de livro após livro da Bíblia, frequentemente tirando a me-lhor parte do ano para completar um livro da bíblia. Aos Domingos ele se concentrava no Novo Testamento, ex-ceto por uns poucos salmos nas tardes dos Domingos, interrompendo seu mé-todo apenas nos dias de festa especial como Natal ou Páscoa. Durante a sema-na ele pregava no Antigo Testamento, livro por livro.8 T. H. L. Parker observa:

“Aqueles em Genebra que ouviam Do-mingo após Domingo, dia após dia, e não fechavam seus ouvidos... recebiam um treinamento de Cristianismo tal, que foi dado a poucas congregações na Europa desde os dias dos pais”.9 E nas palavras de Steve Lawson: “A pregação de Calvino era bíblica em sua substân-cia, sequencial em seu padrão, direta em sua mensagem, extemporânea em sua entrega, exegética em sua aborda-

gem, acessível em sua simplicidade, pastoral em seu tom, polêmica em sua defesa da verdade, apaixonada em seu alcance e doxológica em sua conclu-são”.10 Era também prática e experi-mental em sua ênfase.

Os últimos anos de Calvino foram cheios de esforços evangelísticos, par-ticularmente na França, mas também, tão distante quanto o Brasil. Os minis-tros e missionários treinados em Gene-bra também plantaram igrejas na Ho-landa, Itália, Polônia, Alemanha, Un-gria, Inglaterra e Escócia. Em toda parte o conselho de Calvino foi busca-do e alegremente dado.11

Morte e influência de Calvino → A saúde de Calvino não poderia acom-panhar sua incrível carga de trabalho. Durante os últimos anos da sua vida ele lutou com numerosas doenças. Mé-dicos, colegas reformadores, estudan-tes e amigos advertiram-no para deixar de trabalhar, mas sua resposta era:

“Que! O meu Senhor me acharia, negli-gente?”.12 Como foi observado no início de seu projeto biográfico, ele morreu em 27 de Maio de 1564, com a idade de cinquenta e cinco anos. Foi-lhe ga-rantido o seu desejo de ser sepultado num caixão simples de madeira, num túmulo não demarcado, de modo que a glória humana não roubasse Deus da exclusiva glória que Ele merece.

Qualquer que tenha sido a influência que Calvino exerceu em Genebra, ela foi baseada na autoridade moral da sua

pregação, ensino e sabedoria.

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Soli Deo Gloria (a glória de Deus so-mente) é o que a vida e a teologia de Calvino têm em toda parte. Este é o tema comum de Calvino o teólogo, Calvino o reformador, Calvino o pas-tor-conselheiro, Calvino o membro da igreja, Calvino o evangelista e Calvino o escritor. Em todas as áreas da sua vida pessoal e ministerial Calvino com-prometeu-se de todo o coração com Deus e sua glória e ansiava apenas pro-mover a preeminência de Cristo na de-pendência do Espírito.

Primeiramente através dos seus es-critos, a influência de Calvino tem per-manecido através dos séculos e per-meou milhões de corações. Hoje essa influência é comumente chamada cal-vinismo e é um sinônimo aproximado de fé Reformada. A tripla influência do calvinismo de Calvino foi resumida por Burke Parsons como devoção, doutrina e doxologia ― a “devoção do coração ao Deus bíblico, a busca mental da bí-blica doutrina de Deus, e a total rendi-ção do ser à doxologia”.13

A maior influência do calvinismo foi na Grã Bretanha e suas colônias da América do Norte, a Holanda, Ungria e partes da Alemanha. Em todas estas áreas e muito mais ao redor do mundo, incluindo Polônia, Itália, Brasil, África do Sul, Malawi, Zâmbia, Austrália, Nova

Zelândia, Singapura, Coréia do Sul, Chi-na, as Filipinas, Rússia, Egito, Paquis-tão, Índia e Israel, o Calvinismo ainda está sendo propagado hoje. Realmente, o Calvinismo tem um futuro brilhante, pois oferece muito às pessoas que bus-cam crer e praticar todo o conselho de Deus. O Calvinismo objetiva fazer as-sim tanto com a fé de mente-clara quanto com a piedade de coração-aquecido, produzindo uma vida vibran-te no lar, na igreja e na sociedade, para a glória de Deus.

Hoje, o legado de Calvino é extensi-vo a nós de formas adicionais. David Hall sugere dez áreas-chaves em que nossa cultura é diferente por causa de Calvino. Ele inclui, educação, cuidado dos pobres, ética, autonomia da igreja, governo de colegiado, político descen-tralizado, a paridade entre as profis-sões, economia, o Saltério e a impres-são de livros.14

O livro devocional 365 Dias com Calvino objetiva capturar algo da pie-dade devocional autêntica e doxolo-gia15 que promove todo o conselho de Deus. Cotton Mather escreve que John Cotton ao ser perguntado por que em seus últimos dias condescendeu com os estudos noturnos, alegremente res-pondeu “Porque eu amo adoçar minha boca com uma porção de Calvino antes

de dormir”. É nossa oração que este es-pírito de piedade que tanto envolveu Calvino e Cotton possa também pene-trar você enquanto lê este livro.

Prefácio do livro: 365 Days With Calvon, Joel R. Be-eke e Michael A. G. Haykin 1. David F. Wright, “Calvin’s Role in Church History”,

em The Cambridge Companion to John Calvin, ed. Donald K. Mc Kim (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), 284.

2. Derek Thomas, “Reforming the Church” em Joel R. Beeke, Living for God’s Glory: Na Introduction to Calvinism (Lake Mary, FL: Reformation Trust, 2008). 225-7.

3. T. H. L. Parker, The Oracles of God: Na Introduc-tion to the Preaching of John Calvin (Londres: Lutterworth Press, 1947), 33.

4. Parker, Oracles, 39.5. Cited Parker, John Calvin, 154.6. Karl Gottlieb Bretschneider et al. eds., Corpus

Reformatorum, 101 vols. (Halle: Schuvetske, 1863-1900). The Calvin works comprise Series 2 desta coleção, Ioannis Calvini, Opera Quae Su-persunt Omnnia, vols. 29-87. Cf. Robert Rey-mond, John Calvin: His Life and Influence (Fearn, Tain, Ross-shire, UK: Christian Focus, 2004), 13n.

7. David W. Hall, The Legacy of John Calvin: His In-fluence on the Modern World (Phillipsburg, NJ: P & R, 2008), 60.

8. T.H.L. Parker, Portrait of Calvin (Londres: SCM Press, 1954), 82.

9. Parker, John Calvin, 92.10. Steven J. Lawson, “The Preacher of

God’s Word”, in John Calvin: A Heart for Devotin, Doctrine and Doxology, Ed Burk Partsons (Lake Mary, FL: Reformation Trust, 2008). 72-79.

11. Joel Beeke, “Calvin’s Evangelism”, Puritan Refor-med Spirituality (Darlington, UK: Evangelical Press, 2004), Capítulo 3.

12. The Life of John Calvin in The Banner of Truth, 227-228 (1982), 56-7.

13. John Calvin: A Heart for Devotin, Doctrine and Doxology, 5.

14. Hall, Legacy of John Calvin, 13-41.15. Cotton Mather, The Great Works of Christ in

America, vol. 1 (reprinted Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1979), 274.

Confissão de Fé de WestminsterCapítulo VII → Do Pacto de Deus com o HomemI. Tão grande é a distância entre Deus e a criatura, que, embora as criaturas racionais lhe devam obediência como ao seu Criador, nunca poderiam fruir nada dele como bem-aventurança e recompensa, senão por alguma voluntária condescendência da parte de Deus, a qual foi ele servido significar por meio de um pacto. II. O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto foi a vida pro-metida a Adão e nele à sua posteridade, sob a condição de perfeita obediência pessoal.

I. Ref. Jó 9:32-33; Sal. 113:5-6; At. 17:24-25; Luc. 17: 10. II. Ref. Gal. 3:12; Rom. 5: 12-14 e 10:5; Gen. 2:17; Gal. 3: 10.

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A Santidade que o Evangelho Requer“Sede santos porque eu sou santo” (I Pe. 1:16)

John Owen

A santidade bíblica requer contínua batalha espi-ritual para que seja mantida. O diabo, a carne e o mundo lutarão para nos afastar da verdadeira

santidade do evangelho para algo inferior, mas inacei-tável a Deus.

Portanto somos instruídos a “resistir” ao diabo (1 Pe 5.8, 9). Para fazer isso, precisamos nos revestir de toda a armadura de Deus (Ef 6.12, 13).

Devemos “fugir”, “abster-nos” das paixões carnais que fazem guerra contra a alma (1 Pe 2.11).

E compete-nos “não amar o mundo nem as coisas que há no mundo” (1 Jo 2.15). Mas compete-nos ven-cer o mundo pela fé, aquela fé que crê que Jesus é o Filho de Deus (1 Jo 5.4, 5).

Deus não aceitará o desempenho indolente, desani-mado de algumas obrigações com a abstinência de al-guns pecados. Crucificar o pecado, mortificar paixões irrestritas, resistir ao diabo, fugir de apetites carnais e não amar o mundo são obrigações bíblicas que deve-mos manter constantemente enquanto vivermos neste mundo.

Assim como os israelitas foram desalentados e de-sencorajados pelos dez espias quando chegaram pela primeira vez às fronteiras de Canaã, assim muitos que não estão longe do reino de Deus ficam desencoraja-dos e desanimados quando são informados dessa guer-ra espiritual que dura até o fim da vida (Nm 13.32; Mc 12.34). Se não se cuidam, vêem os gigantes espirituais pela frente, mas não vêem o poder e a graça de Cristo. Só aqueles que são de fato “nascidos de novo” entrarão no reino de Deus e batalharão.

Alguns procuram entrar no reino de Deus sem que sejam regenerados, e assim não têm nenhuma força espiritual para lutar contra os inimigos da santidade. Acham que vão vencer pela força da carne somente.

Mas logo a carne se cansa. A pessoa dá desculpas por não continuar com alguns deveres. A carne rece-be muito apoio da mente carnal, não espiritual, não convertida. Um dever atrás do outro é omitido e final-mente abandonado. O dever de conservar o corpo em sujeição é negligenciado (1 Co 9.27).

Os crentes verdadeiros ficam humilhados por terem desertado do dever assim, e retornam pela graça de Deus à diligência de antes (Sl 119.176). Mas os hipó-critas não ficam preocupados demais por estarem ne-gligenciando deveres bíblicos.

O pecado que neles habita está guerreando contra a santidade e prevalecendo, muitas vezes. Ele obtém êxito em desgastar a mente com seus rogos contínuos pelo seu antigo domínio. O hipócrita no passar do tem-po dá atenção ao pecado que reside nele, enquanto que o crente se firma na promessa de que “o pecado não terá domínio” sobre ele (Rm 6.14).

A pessoa não convertida desconhece o meio certo de se achegar ao Senhor Jesus Cristo a fim de ter a gra-ça e o auxílio do Espírito para conservá-la num estado de santidade bíblica. Por isso tem que lutar por si só e logo se satisfaz com aquela santidade que a carne pode produzir. Mas o cristão verdadeiro não se satisfaz com uma santidade que pode ser produzida e existir sem Cristo e seu Espírito. O cristão sabe que sem Cristo ele nada pode fazer, muito menos produzir uma santidade aceitável a Deus (Jo 15.5).

Assim como a ignorância da justiça de Cristo é o motivo pelo qual os homens andam por aí tentando es-tabelecer sua própria justiça, assim a ignorância sobre saber viver de contínuo pela graça e força de Cristo é a razão pela qual muitos se voltam a um padrão mais baixo de santidade, que não é santidade nenhuma.

O Verdadeiro Arrependido → A pessoa não con-vertida não conhece e não pode produzir um arrepen-dimento bíblico verdadeiro. Arrependimento é o dom

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JOhn Owen

de Deus (At 5.31; 11.18; 2 Tm 2.25). É essa graça do verdadeiro arrependi-mento que faz o crente prosseguir atra-vés de todas suas falhas, fraquezas e pecados. É a porta para a santidade e o guardião que conserva os verdadeiros crentes na santidade. O arrependimen-to opera conservando os crentes numa atitude de auto-humilhação sincera, o que vem de sentir a majestade e san-tidade de Deus e reconhecer o quanto aquém da glória dele ficam até mesmo suas melhores obrigações. Aquele que não percebe a graciosa doçura e gran-de utilidade do verdadeiro arrepen-dimento não sabe o que é andar com Deus. Aquele que não consegue provar nenhum consolo espiritual em sua tris-teza advinda dessa graça do arrependi-mento, que pensa que arrependimento tem a ver apenas com a lei e o medo do juízo, não achará fácil viver na prá-tica do arrependimento todos os dias da sua vida.

A santidade bíblica requer obediên-cia constante, habitual em todos os de-veres, e proíbe qualquer pessoa de ter desejos impuros da mente ou da carne.

A nós cabe “aperfeiçoar a santidade no temor de Deus” (2 Co 7.1). Nenhu-ma provisão será feita para a carne sa-tisfazer suas cobiças (Rm 13.14). Estes são os termos do evangelho. Não se

pode negligenciar nenhum dever. Não se pode ceder a nem um só pecado.

O evangelho providencia alívio mi-sericordioso e perdão por aqueles pe-cados diários que nos vencem por cau-sa de nossa fraqueza (1 Pe 4.1, 2). Con-tudo não permite que nenhum pecado seja poupado, nutrido e amado. Uma vida habitual de pecado é inteiramente incoerente com a obediência bíblica (1 Jo 3.6-9).

A perfeição exigida na nova aliança é a sinceridade, a integridade, estar isento de engano, e andar segundo o Espírito e não segundo a carne, em no-vidade de vida (Gn 17.1; 1 Jo 3.7-10).

O Apetite não Mortificado → É por isso que tantos abandonam o evan-gelho. Não conseguem ver o pecado como o evangelho o vê, nem julgar que sejam pecado e vileza aquelas coisas que o evangelho declara serem peca-do. Debaixo dessas trevas e ignorân-cia, toda espécie de apetites imundos são nutridos com estima nos corações das pessoas. Elas estão dispostas a se mostrar insensíveis à culpa de algum apetite não mortificado. O jovem rico que se chegou a Cristo não quis tomar sua cruz e seguir a Cristo por causa do amor ao dinheiro que estava em seu coração.

A bruxa a quem o Rei Saul consultou tinha um “espírito familiar”. A princípio, o diabo é temido, mas depois, à medida que é recebido diariamente, ele se torna um espírito familiar. A pessoa engana-da pensa que o diabo está em seu poder quando na realidade ela é que está no poder do diabo. É o mesmo com qual-quer apetite carnal não mortificado. Torna-se um pecado costumeiro, fami-liar. O homem pensa que ele está con-trolando aquela paixão e pode lançá-la fora quando quiser. Mas na realidade aquela paixão já o controla.

Tais pessoas se dispõem voluntaria-mente a ser ignorantes quanto à exten-são interna, espiritual, dos mandamen-tos do evangelho. Uma mente generosa, liberta de temores supersticiosos pela educação, livrará o homem de todos seus sentimentos de culpa. Assim a pessoa instruída chega a crer que cul-pa por pequenos pecados só promove os interesses dos pregadores. Poucas pessoas podem entender a imundície e poluição do pecado.

“Por que vamos nos preocupar com falhas triviais, pouco importantes?” perguntam. Quão facilmente as pes-soas são enganadas pelas suas corrup-ções quando não têm o senso da santi-dade de Deus e da santidade de sua lei.

Orgulho, ambição, cobiça, amor ao mundo, impureza, ganância, ostenta-ção e ócio — todos pedem a gratifica-ção de um ou outro pecado.

Tais pessoas não são aprovadas por Deus e não têm base sobre a qual espe-rar a bênção ou auxílio dele. Um peca-do faz o homem culpado de toda a lei (Tg 2.10). O salmista disse que se ele contemplasse no coração a iniquidade, o Senhor não o ouviria (Sl 66.18).

Satisfazer o desejo de um só pecado abre a porta para mais pecados.

Satisfazer o desejo de um pecado desvia a alma de usar aqueles meios com os quais todos os outros pecados devem ser resistidos.

A santidade bíblica requer obediência constante, habitual em todos os deveres, e proíbe qualquer pessoa de ter desejos

impuros da mente ou da carne.

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a santiDaDe que O evanGelhO RequeR

As pessoas também se voltam da santidade bíblica porque suas graças não gozam de alta estima em nosso mundo

Os filósofos morais proclamaram seu amor à virtude porque ela andava de mãos dadas com sua própria honra, glória e bom nome pessoal. As virtudes consideradas por eles como as maio-res eram as mesmas vistas e louvadas pelos homens. Os fariseus praticavam sua religião para serem vistos pelos homens. Amor por si e amor de serem louvados pelos homens eram a motiva-ção de toda sua religião.

Mas mansidão, bondade, negação de si próprio, pobreza de espírito, cho-rar pelo pecado, ter fome e sede de justiça, ter misericórdia e compaixão, pureza de coração, honestidade e sim-plicidade de espírito, disposição para sofrer e perdoar injúrias, zelo por Deus, desprezo pelo mundo e temor de pecar

e dos juízos de Deus sobre o pecado não são coisas que os homem louvam.

Mas estas são as jóias preciosas do coração com que Deus se agrada.

O mundo, no entanto, considera-as fracas, supersticiosas, tolas e insensa-tas. O mundo não reconhece que a san-tidade bíblica trata com o coração e a mente que nenhum olho mortal pode ver e com o qual poucos se preocupam. Portanto as virtudes do evangelho são rejeitadas em favor daquelas virtudes que o mundo tem em alta estima.

Quando a grande apostasia teve iní-cio e as igrejas se afastaram do poder e da pureza do evangelho, o primeiro passo foi conseguir que as pessoas ne-gligenciassem as graças principais do evangelho, tais como a necessidade da regeneração e um princípio celestial de vida espiritual; fizeram isso incenti-vando obras esplêndidas de piedade e caridade. Não importava que a mente

delas estivessem poluídas, suas pai-xões não fossem mortificadas, que o coração fosse soberbo e teimoso, e a alma destituída das graças espirituais e celestes, porque essas suas obras ex-teriores gloriosas, vistas e admiradas pelos homens, com certeza as levariam a uma bendita imortalidade na glória eterna.

Este véu hipócrita estando rasgado, cuidemo-nos para que não negligencie-mos deveres externos que são para a glória de Deus e o bem da humanidade em troca de graças interiores somente. A verdadeira santidade do evangelho não só purifica o homem interior, mas também conduz àquelas boas obras

“que Deus preparou de antemão para que andássemos nelas” (Ef 2.10).

Extraído do livro A Apostasia do Evangelho, John Owen, “Editora Os Puritanos”, pp. 139-144

Imagens Mortas“Os que desejam cumprir corretamente o ministério do evangelho devem aprender não apenas a falar e a citar textos, mas também a penetrar a consciência das pessoas, de modo que os homens ve-jam Cristo crucificado e o derramamento de seu sangue. Quando a igreja tem pintores como estes, ela não precisa mais de imagens mortas feitas de madeira e pedra, nem de quaisquer pinturas. Com certeza, as imagens e pinturas foram inicialmente admitidas nos templos cristãos quando os pastores se tornaram mudos e se tor-naram meras sombras ou quando passaram a falar poucas palavras do púlpito, de modo tão frio e negligente, que o poder e eficácia do ministério foram completamente extintos”.

João Calvino. Comentário de João Calvino na epístola aos Galátas, cap. 3, v. 1b.

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O Testamento de CalvinoEm nome do Senhor, Amém. Eu, João Calvino, ministro da Palavra de Deus nesta Igreja de Genebra, sendo afli-

gido e oprimido por várias doenças, as quais levam-me a crer que o Senhor Deus determinou tirar-me deste

mundo com brevidade, resolvi fazer o meu testamento e deixá-lo por escrito da seguinte maneira:

Primeiramente, agradeço a Deus, que tendo misericórdia de mim, a quem Ele havia criado e colocado neste

mundo, não somente me libertou das profundas trevas da idolatria, nas quais eu estava mergulhado, de forma a

levar-me para a luz do Seu Evangelho, fazendo-me participante da doutrina da salvação, da qual sou totalmente

indigno. Não somente isso, mas com a mesma misericórdia e benignidade, graciosa e amavelmente suportou

meus erros e pecados, pelos quais eu merecia ser rejeitado e exterminado; como também concedeu-me tal cle-

mência e bondade, de forma a usar minha assistência na pregação e proclamação da verdade deste Evangelho.

Eu testifico e declaro que é minha intenção passar o que ainda resta de minha vida na mesma fé e religião, as

quais Ele me entregou através do Evangelho. Além disso, declaro que não possuo qualquer outra defesa ou re-

fúgio como salvação, além da adoção gratuita, da qual unicamente ela depende. Abraço de todo o meu coração

a misericórdia exercida para comigo através de Jesus Cristo, o qual expiou meus pecados através dos méritos

de Sua paixão e morte, para que, dessa forma, pudesse expiar todos os meus crimes e erros e afastá-los de Sua

memória.

Testifico e declaro, também, que suplico ardorosamente para que Ele se agrade em me lavar e purificar no san-

gue que meu Soberano Redentor derramou pelos pecados da raça humana, para que, dessa forma, sob a Sua

sombra, eu possa permanecer diante do trono do julgamento.

Declaro ainda que, de acordo com a medida da graça e bondade que o Senhor revelou para comigo, tenho me

esforçado, tanto em meus sermões, como em meus escritos e comentários, em pregar a Sua Palavra, de forma

pura e casta e tenho tentado interpretar fielmente Suas sagradas escrituras.

Testifico e declaro ainda que, em todas as disputas e discussões nas quais tenho me envolvido com os inimigos

do Evangelho, não tenho feito falsificações, e nem me utilizado de artifícios ímpios ou sofísticos; porém tenho

agido sincera e simplesmente na defesa da verdade. Mas, ai de mim! Meu zelo e ardor (se é que merecem esse

nome) têm sido tão descuidados e fracos que confesso ter falhado diversas vezes em executar meu ofício ade-

quadamente e, se não fosse a assistência da bondade ilimitada de Deus, todo aquele zelo teria sido passageiro

e inútil.

Reconheço também que, se a mesma bondade não me tivesse sustentado, os dotes intelectuais com os quais o

Senhor me proveu, seriam uma prova, no dia do juízo, cada vez maior do meu pecado e negligência.

Por todos esses motivos, testifico e declaro que não possuo qualquer outra segurança da minha salvação a não

ser esta e esta somente: que como Deus é o Pai de misericórdia, Ele se revelará a mim como Pai dessa forma, pois

me considero como miserável pecador. Quanto ao restante, desejo que, após minha partida desta vida, meu

corpo seja entregue à terra (conforme o uso e o costume desta Igreja e cidade), até que chegue o dia da feliz

ressurreição.

João Calvino. Extraído do livro “The Reformation” de Hans F. Hillerbrand, págs. 207.208

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Revista Os PuRitanOs 3•2009 17

Evangelho não emPalavras, mas em Poder“Porque o nosso evangelho não chegou até vós tão somente em palavra, mas sobretudo em poder, no Espírito Santo...” (1 Ts. 1:5)

Robert Murray M’Cheyne (1813-1843)

Porque o nosso evangelho não chegou até vós tão somente em palavra, mas sobretudo em poder, no Espírito Santo e em plena convicção, assim

como sabeis ter sido o nosso procedimento entre vós, e por amor de vós.” (1 Ts. 1:5).

Muito feliz é o pastor que pode dirigir ao seu povo estas palavras. Ó! que todos os nossos pastores pudes-sem, verdadeiramente, dizer isto. Porque não é assim? Certamente se fossemos determinados, como Paulo, a “nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado”, se fôssemos cheios do mesmo Santo Espí-rito, se vivêssemos a mesma vida devota e levássemos a mesma mensagem noite e dia, com lágrimas, deve-ríamos ser capazes de usar estas preciosas palavras.

“Aquele que sai chorando, levando a semente para se-mear, voltará com cânticos de júbilo, trazendo consigo os seus molhos”.

O dia de Pentecostes foi a época dos primeiros fru-tos. O dia da colheita está por vir. Os apóstolos tiveram a primeira chuva. Nós esperamos pelo tempo das últi-mas chuvas.

Um ministério mal sucedido → O evangelho che-ga ao povo só em palavras. Quão frequentemente um pastor fiel prega o evangelho e o povo parece bebê-lo com alegria! Uma áurea de eloquência natural ilumi-na tudo o que ele diz ou ele tem um estilo emociona-do e brando que prende a atenção deles, mas nenhum efeito salvífico parece segui-lo. Corações não são quebrantados e nenhuma alma adicionada à Igreja. Assim foi com Ezequiel “Eis que tu és para eles como quem canta canções de amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra” (Ez. 33:32). Estes são aqueles que recebem a palavra em solo pedregoso; eles ouvem a palavra e sem demora, com alegria, a recebem, mas

não tem raiz em si mesmos e ela perdura somente por pouco tempo.

Ó minha alma! tu estás contente em receber o evan-gelho somente em palavra? Pode um faminto ser ali-mentado somente com o aroma do alimento? Ou pode um mendigo tornar-se rico somente ouvindo o tilintar do dinheiro? E pode a minha alma faminta encontrar descanso pelo ouvir dos címbalos do evangelho? É te-meroso cair no inferno sob o som da misericórdia do evangelho.

Mas há alguns que não somente ouvem o evan-gelho, mas conhecem o evangelho; e ainda assim ele chega a eles somente em palavras. Quantas crianças crescem sujeitas a pais piedosos, bem catequizadas nas verdades divinas, bem disciplinadas na Bíblia, ten-do compreensão do evangelho e possuidoras de todo conhecimento; nenhum ponto é novo para elas. E mes-mo assim, não têm visão espiritual; não provam nem vêem que Cristo é bom; não há pedra embaixo de seus pés. Ah! estes são os mais miseráveis de todos os ou-vintes inconversos. Eles afundarão mais baixo do que Cafarnaum. Ah! quantos filhos de pastores, quantos professores de escola dominical, quantos pregadores do evangelho podem saber, que o evangelho os alcan-ça somente em palavras e nunca em poder. Quão triste é perecer apontando para a cidade de refúgio; pregar a outros para então ser rejeitado.

Mas há um caminho mais excelente. Voltemo-nos para meditar nele:

Um ministério bem sucedido → “nosso evangelho che-gou ate vocês em poder”. Que coisa ineficaz o evange-lho parece algumas vezes. O pastor é meio envergo-nhado dele. O povo dorme ante suas mais impactan-tes afirmações. Porém, em outras vezes, o evangelho é evidentemente, “o poder de Deus para a salvação”. Um poder invisível acompanha a palavra pregada, e o templo parece ser a casa de Deus e o portão do céu.

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18 Revista Os PuRitanOs 3•2009

RObeRt MuRRay M’Cheyne

Então a palavra de Jeremias é cumpri-da: “Não é minha palavra fogo, diz o Se-nhor, o martelo que esmiuça a penha?” (Jr.23:29). Então pecadores resistentes são despertados. Idosos, os de meia-idade e crianças pequenas são levados a clamar: “O que devo fazer para ser salvo?” Um silêncio impressionante toma conta da assembléia. As flechas do Rei de Sião penetram no coração dos inimigos do Rei e o povo é humi-lhado sob Ele. Ó pecador! o evangelho chega a ti em poder? O martelo do evangelho tem quebrado teu coração de pedra? O fogo da palavra tem der-retido teu coração gelado? Tem a voz que é “como o barulho de muitas águas” falado de paz para a tua alma?

“Nosso evangelho chegou até você no Espírito Santo”. É Ele, a terceira pessoa da Santa Trindade, que faz com que o evangelho chegue em poder. Era Ele quem “pairava sobre a face das águas”, quando este mundo estava sem forma e vazio, e trouxe vida e beleza a um mundo morto (Gn.1:2). É Ele quem se move sobre a face da natureza silen-ciosa, quando o inverno passa, e traz a vida fresca da primavera para fora do solo frio: “Envias o teu fôlego, e são criados; e assim renovas a face da terra” (Sl.104:30). Mas acima de tudo, é trabalho do Espírito Santo retirar a

futilidade dos corações dos pecadores, de tal forma que eles se voltem para o Senhor (2 Co. 3:16). A mente carnal tem uma inimizade tal com Deus, o pe-cador inconverso está tão morto nos seus delitos e pecados, o homem car-nal é tão ignorante das coisas divinas, que precisa haver o trabalho do Todo Poderoso Espírito, avivando, iluminan-do e tornando-o desejoso, antes que o pecador aceite a Jesus.

Ó pecador! O Espírito Santo veio até você? Doce é a paz que gozam aqueles ensinados por Ele. Quando é tempo de sequidão, pastores militam em vão; eles gastam suas forças por nada e em vão. Eles se sentem como que parados à beira mar, falando às pedras duras, ou às ondas violentas, ou ao indomável vento. Mas, quando o Espírito Santo vem, os mais débeis instrumentos são feitos poderosos, “poderosos em Deus, para demolição de fortalezas”. Ó! Ore por tal tempo.

“Nosso evangelho chegou até vós, em plena convicção”. Este é o efeito na alma, quando a palavra vem com po-der, através da obra do Espírito Santo. A alma, assim instruída, tem uma doce convicção da verdade referente as grandes coisas reveladas no evangelho.

Quando um homem contempla o sol, ele sente uma certeza de que ele

não é trabalho de homem, mas de Deus. Também quando um pecador tem seus olhos ungidos, ele vê a beleza gloriosa e a abundância de Cristo, de forma que seu coração se enche com uma confor-tável certeza da verdade do evangelho. Ele não pergunta por evidências. Ele vê evidência suficiente no próprio Cristo. Ele diz: eu sou todo culpado, Tu és Jeo-vá minha justiça. Eu sou todo débil, tu és Jeová meu estandarte. Eu sou todo vaidade, em Ti habita toda a plenitude da divindade. “O meu amado é meu, e eu sou dele; ele apascenta o seu reba-nho entre os lírios”. É isto que enche o peito com jubilo e paz. É isto que dá um doce senso de perdão e proximida-de com Deus. É isto que nos capacita a orar. Agora podemos dizer: “Então minha alma se regozijará no Senhor; exultará na sua salvação”; “Eu sei que o meu Redentor vive”; “Quem nos sepa-rará do amor de Cristo?”.

Este é o evangelho que chega em plena convicção. Ó! Feliz ministro que pode tomar estas palavras de Paulo e dizer “nosso evangelho não chegou até vós tão somente em palavra, mas sobretudo em poder, no Espírito San-to e em plena convicção, assim como sabeis ter sido o nosso procedimento entre vós, e por amor de vós”.

Tua igreja é tua alegria aqui, e será tua coroa por toda a eternidade.

Quando o Espírito Santo vem, os mais débeis instrumentos são feitos podero-sos, “poderosos em Deus, para demoli-ção de fortalezas”. Ó! Ore por tal tempo.

Pelo conhecimento do evangelho somos feitos: filhos de Deus, irmãos

de Jesus Cristo, compatriotas dos

santos, cidadãos do Reino do Céu,

herdeiros de Deus com Jesus Cristo,

por meio de quem: os pobres são

enriquecidos; os fracos, fortalecidos;

os néscios, feitos sábios; os pecadores,

justificados; os solitários, confortados;

os duvidosos, assegurados; e os escra-

vos, libertados.

João Calvino

Fragmentos do prefácio de Calvino à versão francesa do NT (1534) por Pierre Robert Olivétan. Traduzido por Marcos

Vasconcelos.

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A Suficiência da Escritura e a Regra de Fé de Israel“Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor, vosso Deus, que eu vos mando” (Dt. 4:2)

Tiago Baía e Daniel Souza

O povo do livro de Deuteronômio é formado dos filhos de Israel que saíram do Egito e acabaram morrendo no deserto por terem sido rebeldes

para com a lei de Deus e à liderança de Moisés. A rebel-dia do povo se deu em desconsiderar a suficiência da Escritura ao transgredir o mandamento do Senhor em Deuteronômio 4:2: “Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor, vosso Deus, que eu vos man-do”. Esse texto refere-se ao momento em que Moisés está ordenando aos seus ouvintes a se reportarem para aquilo que o Senhor havia ordenado em sua lei, pois foram testemunhas oculares da revelação do Senhor no Sinai.

Mas como já havia se passado certo tempo, Moisés achou importante lembrá-los que a Palavra do Senhor escrita era completa para conduzi-los à obediência, e por isso ela não poderia ser alterada pelo povo. Ou seja, não poderia ser nem diminuída nem acrescenta-da, excetuando-se as informações que seriam inseridas pelos profetas sob a orientação do Espírito Santo, até o momento em que a Bíblia se tornasse completa com as revelações da Nova Aliança no Novo Testamento. Moisés advertiu aos seus ouvintes que, quando entras-sem na terra prometida, observassem cuidadosamente a lei escrita do Senhor para que não lhes sucedesse o mesmo que ocorreu com os seus pais que morreram no deserto.

A partir de Deuteronômio, a leitura pública da lei do Senhor e a conclamação do povo à obediência se tornam uma constante, tendo como base o modelo mo-saico seguido fielmente por Josué:

“Depois, leu todas as palavras da lei, a bênção e a maldição,

segundo tudo que estava escrito no livro da lei. Palavra

nenhuma houve, de tudo que Moisés ordenara, que Josué

não lesse, para toda a congregação de Israel, e para as

mulheres, e os meninos, e os estrangeiros que andavam

no meio deles” (Js.8: 34-35).

Josué entendeu muito bem que a Palavra escrita, a lei do Senhor, era suficiente para conduzi-lo no seu mi-nistério, pois o próprio Senhor lhe garantiu que assim seria se ele permanecesse fiel a essa lei e se dedicasse à sua meditação diuturnamente.

“Tão somente sê forte e mui corajoso para teres o cuidado

de fazer segundo toda lei que Moisés te ordenou; dele não

te desvies, nem para a direita nem para a esquerda, para

que sejas bem-sucedido por onde quer que andares. Não

cesses de falar deste livro da lei; antes, medita nele dia

e noite, para que tenhas cuidado de fazer segundo tudo

quanto nele está escrito; então, farás prosperar o teu ca-

minho e serás bem-sucedido” (Js.1.7,8; cf. 8:30-35; 24:26).

Essa verdade também se encontra nos escritos dos profetas do Velho Testamento. Deus falou de forma au-dível com o profeta Samuel (1Sm. 3) e o ordenou que escrevesse num livro os regulamentos do reinado de Israel e o colocasse diante do Senhor (cf. 1Sm. 10:25), mostrando o papel do profeta em escriturar aquilo que havia sido revelado oralmente. É interessante notar que Samuel organizou a casa dos profetas (1Sm. 10:5-11) para “estudar a lei de Deus, guardar um registro da história de Israel e para preservar seus próprios escritos proféticos”.1 Por exemplo, Samuel, Natã e Gade registraram a história de Davi (cf. 1Cr. 29:29); Natã, Aías e Ido registraram a história de Salomão (2Cr. 9:29); Semaías e Ido registraram o reinado de Roboão (2Cr. 12:15); Ido registrou a história do rei Abias; Jeú registrou o reinado do rei Josafá (2Cr. 20:34); Isaías registrou as histórias de Uzias e Ezequias (2Cr. 26:22; 32:32); videntes desconhecidos registraram a vida de Manassés (2Cr. 33:19).

As evidências escriturísticas veterotestamentárias apontam fortemente para a realidade de que os livros

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20 Revista Os PuRitanOs 3•2009

tiaGO baía e Daniel sOuza

de Samuel, Reis e Crônicas foram ba-seados e preservados não numa tra-dição oral passada de geração em ge-ração, mas por meio da escrituração da Palavra de profetas em uma escola profética estabelecida pelo profeta Samuel. Quando Deus queria preser-var sua Palavra de forma duradoura e autoritativa para a geração futura do seu povo, Ele mandava o profeta escre-ver aquilo que havia dado por divina revelação, como está registrado nos textos de Jeremias e de Isaías:

“Palavras que do Senhor veio a Jeremias,

dizendo: Assim fala o Senhor, Deus de Is-

rael: Escreve num livro (ênfase nossa) to-

das as palavras que Eu disse” (Jr. 30:1,2).

“Vai, pois, escreve (ênfase nossa) isso

numa tabuinha (ênfase nossa) perante

eles, escreve-os num livro (ênfase nossa),

para que fique registrado para os dias

vindouros, para sempre, perpetuamente”

(Is. 30:8).

Por inferência lógica concluímos

que assim foi com todos os outros es-critos proféticos que entraram no câ-non. Deus ordenava que se registrasse o que era revelado e assim os profetas de Senhor obedeciam (cf. 1Cr. 29:12, 19; Is. 8:1; Jr. 25:13; 36:2, 27-28; Ez. 24:1, 2; 43:11; Dn. 9:2; 12:4; Hc. 2:2). É

tão importante a necessidade da escri-turação da Palavra de Deus que os pro-fetas citavam os escritos dos profetas mais antigos, mostrando exatamente a progressividade da revelação escrita e a intenção de Deus em preservar para o futuro somente a Escritura como norma e padrão de vida para seu povo (cf. Jl. 2:32 e Ob. 17; Am. 1:2 e Jl. 3:16; Jr. 26:18 e Mq. 3:12; Ez. 14:14, 20; Dn. 9:10 e Jr. 29:10; Zc. 7:12; Ml. 4:4).

Além de ser porta voz da Palavra do Senhor para o povo, uma das grandes características do ministério profético no Velho Testamento, era repreender esse povo com base na lei de Deus quando ele se afastasse do que era estabelecido por essa lei, com o pro-pósito de que o povo fosse obediente ao Senhor. Vemos isso registrado pelo profeta Isaías:

“Quando vos disserem: Consultai os ne-

cromantes e os adivinhos, que chilreiam

e murmuram, acaso, não consultará o

povo a Deus? A favor dos vivos se con-

sultarão os mortos? À lei e ao testemu-

nho! Se eles não falarem desta maneira,

jamais verão a alva” (Is. 8:19-20).

Deus, por meio do seu profeta, está proibindo o povo de consultar os adivi-nhos e necromantes ameaçando-o com

a morte se o fizer. Ele diz que a sua lei escrita é suficiente para guiar o seu povo, pois ela é a verdadeira Palavra de Deus e deve ser lida, ensinada e ob-servada pelo povo para nunca mais ser esquecida (cf. Js. 8:30-35; Ne. 8:1-18; Ml. 4:4-6).

Toda essa evidência prova que não há nenhuma tradição oral preservada e citada por um profeta. Mesmo assim, em contrapartida, o católico romano, Blosser, defensor da tradição oral, ain-da tenta argumentar da seguinte ma-neira:

“Na verdade, Krehbiel oferece uma re-

futação bíblica interessante desta su-

posição [Sola Scriptura no Velho Testa-

mento] em 2 Crônicas 29:25 e 35:4, em

que ambos Ezequias e Josias usaram

ensinamentos extra-bíblicos de profe-

tas que haviam morrido há centenas de

anos em suas reformas, em violação à

suposição que apenas aqueles ensinos

preservados nas Escrituras canônicas

são autoritativos. O que é interessante

sobre o primeiro verso (29:25) é que as

instruções de Davi, Gade e Natã obser-

vadas por Ezequias são descritas como

sendo o mandamento do Senhor através

de seus profetas, embora (1) eles estives-

sem mortos há muito tempo na época de

Ezequias e (2) não há registro na Escri-

tura canônica que sirva como base para

as ações de Ezequias. 2

Blosser considera as instruções dos profetas Davi, Gade e Natã como tra-dições orais porque foram preserva-das por vários anos sem ser por meio de registro ou escrituração inspirada. Blosser e Krehbiel falham em perce-ber que Ezequias e Josias não estão seguindo uma tradição oral passada de geração em geração, mas estão seguin-do as instruções inspiradas por Deus e escrituradas pelos profetas Samuel, Natã, Gade, Aías e Ido (cf. 1Cr. 29:29; 2Cr. 9:29) e, que por essa razão, eram a Palavra de Deus escrita. A não ser que os papistas não considerem Escritura

Quando Deus queria preservar sua Pa-lavra de forma duradoura e autoritativa para a geração futura do seu povo, Ele mandava o profeta escrever aquilo que

havia dado por divina revelação.

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a sufiCiênCia Da esCRituRa e a ReGRa De fé De isRael

aquilo que Deus revelou por meio de um profeta, sendo depois escrito. Logo, para a frustração dos católicos roma-nos, as instruções não eram extra-bí-blicas, mas totalmente escriturísticas, por causa de sua forma de preservação (escriturada) e de sua natureza (divina-mente inspirada). Isso pode ser com-provado pela simples razão de que as orientações de Davi, registradas pelos profetas, entraram no cânon do Velho Testamento posteriormente (cf. 1Cr. 6:31ss; 16:4-7, 40-42; 23:13, 24, 30-31; 25:1-6), testificando a necessidade de escrever aquilo que Deus tinha fala-do para guiar o povo pactual e impedir que a lei do Senhor fosse transmitida por uma tradição de viva-voz.

Além do mais, 2 Cr. 35:4 combate a idéia de uma tradição oral: “Preparai-

vos segundo as vossas famílias, segun-do os vossos turnos, segundo a pres-crição (ênfase nossa) de Davi, rei de Israel, e a de Salomão, seu filho”. A pa-lavra “prescrição” pode ser traduzida por “escrito” ou “registrada”, desta forma “é preciso a febril imaginação de um romanista para transubstanciar [transformar] instruções escritas em tradições orais. [...] Ironicamente, Ma-drid [Blosser e Krehbiel] apela[m] para a palavra escrita a fim de estabelecer a alegada autoridade da tradição oral. Porque a tradição oral não pode se es-tabelecer por si mesma”?3 A verdade pura e simples é esta: se a tradição oral depender de si mesma, ela desaba; ine-xistem na tradição oral, preservada por séculos, as instruções de Davi para o povo de Israel. Certamente tentar fun-

damentar uma prática sobre uma tradi-ção oral é o mesmo que construir uma casa sobre a areia (cf. Mt. 7:26-27). A tradição necessita da Escritura para se firmar, porém o Velho Testamento em lugar algum fornece base ou justificati-va para uma tradição oral independen-te e no mesmo nível da Palavra escrita de Jeová.

Extraído da monografia apresentada por Tiago Baía e Daniel Souza ao Seminário Presbiteriano Teológi-co do Nordeste, Teresina-PI, para obtenção do grau de Bacharel em Teologia/2007.1. REYMOND, op. cit., p. 7.2. SUNGENIS, op. cit., p. 48.3. CRAMPTON, Gary W. By Scripture Alone: the suffi-ciency of scripture. Unicoi: Trinity Foundation, 2002, p. 161-162. Visto que as tradições na visão romana têm a mesma autoridade das Escrituras e é base do entendimento ou interpretação da Bíblia, então elas deveriam ser, assim como as Escrituras, auto-sustentáveis. Porém, isso está longe de ser o caso!

Catecismo Maior de WestminsterP.20 → Qual foi a providência de Deus para o homem no estado em que ele foi criado?

A providência de Deus para com o homem no estado em que ele foi criado consistiu em colocá-lo no Paraíso, designando-o para o cultivar, dando-lhe liberdade para comer do fruto da terra; pondo as criaturas sob o seu domínio; e ordenando o matrimô-nio para o seu auxílio; em conceder-lhe comunhão com Deus, instituindo o dia de descanso, entrando em um pacto de vida com ele, sob a condição de obediência pessoal, perfeita e per-petua, da qual a árvore da vida era um penhor, e proibindo-lhe comer da árvore da ciência do bem e do mal sob pena de morte.

Gen. 1:28, e 21:15-16, e 1:26, e 3:8, e 2:3, Exo. 20:11; Gal. 3:12; Gen. 2:9, 16-17.

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22 Revista Os PuRitanOs 3•2009

Um Convite AmorosoVolta, ó Israel, para o SENHOR, teu Deus,porque, pelos teus pecados, estás caídoOs 14.1

Aqui o profeta exorta os israelitas ao arrependimento, mas ainda lhes dá alguma esperança de misericórdia. Isso pode parecer inconsistente, já que antes ele tinha testificado que não havia mais remédio, porque o povo tinha provocado Deus excessivamente. Mas a resposta está à mão e é esta: ao falar anteriormente da destruição final do povo, o profeta havia se referido ao povo como um todo, agora, porém, dirige suas palavras aos poucos que ainda permanecem fiéis. Essa diferença deve ser vista com atenção, caso contrário ficaremos con-fusos em muitas partes da Escritura. Ora, Deus havia mesmo decidido destruí-los e quis que o soubessem pela pregação de Oséias, mas o Senhor sempre teve algumas sementes res-tantes no meio do seu povo eleito. Ainda restavam alguns membros saudáveis, da mesma maneira como num montão de palha ainda encontramos alguns grãos de cereal escondidos. Aqui, deve se aplicar o discurso do profeta especialmente aos eleitos de Deus, os quais, em-bora tenham caído temporariamente e se enredado nos vícios comuns da época, ainda não estão totalmente sem cura. O profeta agora lhes faz um contive amoroso, pois fracassaria com palavras severas sem mesclar alguma esperança de favor, pois bem sabemos que, sem fé, não pode haver esperança de arrependimento.

Oração:Concede, ó Deus onipotente, que assim como agora arrastamos conosco este corpo mortal e, pelo pecado, alimentamos em nós milhares de mortes; — ó concede que, pela fé, volte-mos sempre nossos olhos ao céu àquele poder ilimitado que se manifestará no último dia através de Jesus Cristo, nosso Senhor, para que tenhamos em meio à morte a esperança de que serás o nosso Redentor e desfrutemos da redenção que Cristo completou ao ressuscitar dos mortos; para não duvidarmos que o fruto então produzido por ele, pelo seu Espírito, será também produzido em nós quando o próprio Cristo vier julgar o mundo; para assim camin-harmos no temor do teu nome, sendo realmente contados entre os seus membros; para ser-mos feitos participantes da glória, que, mediante a sua morte, ele adquiriu para nós. Amém.

João Calvino. Devotions and prayers of John Calvin, 52 one-page devotions with selected prayers on facing pag-es. Org. Charles E. Edwards. Old Paths Gospel Press. S/d. Pags. 28 e 29. Tradução: Marcos Vasconcelos, julho/2009. E-mail: [email protected]

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Revista Os PuRitanOs 3•2009 23

Passou a Noite Orando“Retirou-se para o monte, a fim de orar, e passou a noite orando a Deus” (Lucas 6:12)

João Calvino

Retirou-se para o monte, a fim de orar, e passou a noite orando a Deus” (Lucas 6:12). Aqui iremos apenas mencionar o tema da oração, deixando

maior aprofundamento para uma hora mais apropria-da.1 É verdade que nosso Senhor não precisava orar por ele mesmo. Visto, porém, que ele era o cabeça da igreja, e visto que esteve sujeito a todas as nossas en-fermidades, exceto o pecado (sendo inculpável), e visto que ele assumiu nossa natureza e foi verdadeiramente unido a nós, tornou-se necessário para ele, sendo nos-so irmão, orar. De fato, ele nos estabeleceu um exem-plo de oração. Seria bastante errado pensar que oração para ele era apenas fingimento, e que ele simplesmen-te nos mostrou o que fazer sem ser tocado por qual-quer senso de necessidade. Nós veremos em seu devi-do tempo o quão determinado ele era em matéria de oração. Nós mostramos tanta intensidade e fervor que quando clamamos ao Senhor suamos sangue e água? Se nós choramos quando pedimos a Deus em oração, não mostramos que realmente estamos movidos, e que isso não é vergonha alguma, mas que essa necessidade nos compele? Nós lemos no décimo primeiro capítu-lo do São João que Jesus derramou lágrimas quando trouxe Lázaro de volta aos vivos.2

Resumindo, sempre que a Escritura diz que Jesus Cristo orou, nós devemos concluir que ele não apenas se humilhou mas se tornou, para nossa salvação, como nada. Como um nada ― esse é o termo que São Paulo usa para descrevê-Lo.3 Agora, se nosso Senhor se re-signou a uma posição mediana, isso por si só deveria ser algo a ser admirado. Mas escolhendo ser sujeito a todas as nossas enfermidades, ao tomá-las sobre si mesmo, exceto, como eu disse anteriormente, nossas concupiscências (pois nada nele era contrário à justa lei de Deus: ele era livre do pecado e da própria apa-rência do pecado) ― que exemplo de amor foi esse,

amor sem limites! Nós vemos, então, em tudo isso quão necessária era a oração para ele. Assim, quando ele escolhe seus discípulos, pede a Deus, seu Pai, para direcioná-lo e guiá-lo em sua escolha. Pois aqui ele está agindo em sua capacidade como homem; como Deus, tal coisa jamais aconteceria. Mas como nosso cabeça, ele é tão unido a nós que o que é nosso se torna, por transferência, dele; sempre e em todo o lugar ele é nos-so modelo.

Era necessário, então, que Deus guiasse a escolha que ele viria a fazer. É por isso que ele orava tão inten-samente. Não como nós estamos acostumados a orar, descuidados e como uma mera formalidade, ele ficou a noite inteira em oração. Perceba como isso desafia nossa própria prática preguiçosa e fria da oração. Ima-ginamos fazer maravilhas ao orar de manhã e de noite; nós nos sentimos satisfatoriamente espirituais mesmo perante as distrações que ficam em nosso caminho. Mas é muito diferente o exemplo que o nosso Senhor deixou. Ele mantém a vigília até o amanhecer, preocu-pado e em sofrimento de espírito até achar descanso em Deus, colocando diante dele seus muitos cuidados e preocupações por sua igreja.

Se escolhermos argumentar que o que Jesus fez foi exclusivo dele, nós devemos apenas ver o que Davi diz sobre si mesmo, ou como São Paulo ― falando não para se gloriar, mas para instruir crentes em todo o lugar ― passou noite e dia ajoelhado perante Deus.4 Portanto, aprendamos a disciplinar a nós mesmos quando nos sentirmos letárgicos e com preguiça de orar ― ou pior, quando o desejo de orar é apenas um décimo ou um centésimo do que deveria ser. Deixemos o exemplo de Cristo nos motivar a reparar nossa leviana prática de oração. Pelo menos, vamos gemer perante Deus, pedin-do a ele que perdoe nossas faltas, pois elas podem se-lar nosso caminho até Ele, negar-nos acesso, e impedir que nossas preces sejam respondidas.

Isto é o que deveríamos dizer: “Senhor, sou uma po-

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JOáO CalvinO

bre, desprezível criatura, e não mereço olhar para o alto e vos pedir qualquer coisa. Mesmo assim, constantemente estendeis sua mão a mim. Vosso alcan-ce é grande. Mesmo estando longe de vós, não me negai sua graça. A despei-

to de tudo o que fiz, derramai seu po-der sem limites sobre mim, e ouvi meu pedido”. Esta, portanto, é outra verda-de a ser aprendida desta passagem.

Extraído do excelente livro “Beatitudes — Semões sobre as Bem-aventuranças”. Fonte Editorial LTDA,

p. 22-25. 1. Uma referência a Mt 6.5-15 e paralelos, os quais Calvino provavelmente tenha alcançado no começo de 1561. A passagem é tratada com uma certa amplitude em Harm. I, pp 202-14.2. João 11:353. FI 2.7 Cf. Comentário a Fl 2.7, onde Calvino assim traduz o verso: “Ele esvaziou a si mesmo” (OC 52.26). 4. No caso de Davi, Calvino poderia ter tido em mente um verso como Sl 55.17. A referência a Pau-lo é mais clara, Ef 3.14-15 (livremente parafraseado).

Uma Exortação SolenePortanto, assim te farei, ó Israel! E, porque isso te farei, prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus. Am. 4:12

Esta passagem pode ser explicada de duas maneiras: como uma frase irônica, ou como uma simples e grave

exortação ao arrependimento. Se a considerarmos ironicamente, o sentido seria: “Venham agora, encontrem-se

comigo com toda a obstinação de vocês e com tudo o mais que lhes possa valer. Acaso conseguirão escapar da

minha vingança opondo-se a mim, como têm feito até agora?”. E, por certo, ao denunciar o juízo final sobre o

povo, é como se aqui o profeta quisesse tocar de propósito no âmago deles, quando diz: “Encontrem-se agora

com o seu Deus e preparem-se”, quer dizer, “reúnam todas as energias, forças e auxiliares de vocês; apelem a

tudo o quanto esses recursos lhes oferecem”. Mas como no capítulo seguinte o profeta exorta novamente os

israelitas ao arrependimento, e põe diante deles a esperança da graça, esse trecho deve ser tomado com outro

sentido, como se o profeta dissesse: “Já que você se consideram culpados e parecem admitir que buscam sub-

terfúgios inúteis, sendo totalmente incapazes de deter a mão do juiz de vocês, então procurem, pelo menos, ir

ao encontro do seu Deus, antecipando-se à ruína iminente”. Os profetas, depois de ameaçarem de destruição o

povo eleito, sempre amenizavam a aspereza da doutrina deles, visto que sempre havia um remanescente, em-

bora oculto.

Oração:Concede, ó Deus onipotente, que assim como tua palavra nos convida amorosamente a ti mesmo, que não te

fechemos os nossos ouvidos, mas nos antecipemos à tua vara e à tua disciplina; e quando, em razão da estupi-

dez e insensatez com as quais nos embriagamos, tu acrescentas as punições com que nos instas incisivamente

ao arrependimento, ó concede que não continuemos completamente intratáveis, mas que ao final volvamos

nosso coração ao teu serviço, submetendo-nos ao jugo da tua palavra, e aprendamos pelos castigos com que

nos afligistes, e ainda afliges, de sorte que volvamos a ti, de fato e de coração, oferecendo-nos em sacrifício, para

que nos governes conforme a tua vontade, e assim domines todos os nossos sentimentos pelo teu Espírito, para

que durante toda a nossa vida nos empenhemos na glorificação do teu nome, em Cristo Jesus, teu Filho nosso

Senhor. Amém.

João Calvino. Devotions and prayers of John Calvin, 52 one-page devotions with selected prayers on facing pages. Org. Charles E. Edwards, Old Paths Gospel Press. S/d. Pags. 44 e 45. Tradução: Marcos Vasconcelos, setem-bro/2009. E-mail: [email protected]

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Dr. Arthur Miskin

Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo” (João 16:8)

Uma das belezas principais das Escrituras é que elas contém as maravilhosas promessas de Deus, em que em tempos de dificuldades servem como uma âncora e conforto para os filhos peregrinos de Deus. Que conforto maior pode existir do que fixar-se no fundamento seguro da Palavra de Deus e não nas pre-tensões vãs e falhas dos homens? Às vezes, porém, os resquícios da descrença interior, inflamados pelo dia-bo, se levantam de dentro da igreja como uma torrente e nos fazem questionar a bondade de Deus e se estas preciosas promessas realmente se aplicam a nós pes-soalmente. Felizmente, a Palavra também contém o cumprimento de muitas promessas de Deus, que nos provam que suas promessas podem ser confiadas de que Sua Palavra é realmente verdadeira.

João 16:8 dá uma das grandes promessas pentecos-tais de Cristo, preanunciando a vinda do Consolador — o Espírito Santo — e a obra de reprovar ou convencer que Ele realizará nos corações dos homens. Mais tarde, no livro de Atos, temos um exemplo de como esta pro-messa foi cumprida.

1. E na sua obra de convencer → a primeira coisa que o Espírito Santo convencerá o homem é do pecado da incredulidade. O mundo não precisa ser convenci-do da realidade do pecado; o pecado é abundante por todos os lados de tal forma que até os incrédulos têm conhecimento da sua presença perversa. Os homens precisam ser convencidos do pecado particular de não crer em Jesus e como isto é ofensivo à vista de Deus. Ele deu o Seu Filho e os homens recusam-se a crer nEle.

2. O Consolador também convencerá → os ho-mens da justiça de Cristo. Com clareza, eles verão que

Cristo é exatamente aquilo que Ele disse ser: O justo Filho de Deus. Ele não era nenhum impostor, ou mera-mente filho de um carpinteiro, mas “verdadeiramente, este homem era justo”, como o centurião romano de repente confessou (Lucas 23:47). Isto foi provado pelo fato de Deis o ressuscitou dentre os mortos. A ressur-reição de nosso Senhor é a prova incontestável que Ele era e é o Filho imaculado de Deus. Se Ele tivesse ape-nas um pecado, o túmulo teria triunfado sobre Ele; Ele teria morrido no seu próprio pecado e nós estaríamos em nossos pecados: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (1 Co 15:17).

3. O Santo Espírito convencerá → o mundo do juízo do maligno. Através da obra poderosa do Santo Espíri-to os homens não mais será cegados por Satanás com respeito às realidades eternas tais como céu, inferno e o juízo que virá – coisas que no presente eles ridi-cularizam. Ao invés disso, a eternidade abre-se como uma cortina que se desenrola e a verdade de um futuro juízo se torna real, não sendo mais algo a ser escarne-cido, mas tratado com um temor reverente. Através da obra poderosa do Santo Espírito os homens também vêem que Satanás permanece condenado na cruz. Nos-so Senhor morreu no madeiro a fim de que “por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb 2:14). O filho de Deus não é mais cativo pelo medo da morte; com o olho da fé, ele vê a condenação da própria morte. Além do mais, quando Cristo ressuscitou dentre os mortos, Ele foi levantado a um alto lugar acima de todo principado e potestade para governar eternamente sobre seus inimigos der-rotados que permanecem julgados e condenados (Cl 2:15).

Estas palavras de Cristo, então, contém a segura promessa. A Escritura nos revela a maneira como esta promessa foi cumprida. Depois de Pedro ter pregado

Cumprindo a Promessa“Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo” (João 16:8).

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DR. aRthuR Miskin

o sermão de Pentecostes, lemos que aqueles que a ouviram foram compun-gidos de coração ou, mais literalmente, foram convencidos ou apunhalados no coração (At 2:37). A convicção da Pala-vra carrega consigo a noção de culpa e condenação. Com seus próprios co-rações os condenando à vista de Deus, a sentença da morte pesa fortemente sobre eles levando-os ansiosamente a clamar para serem salvos do seu hor-rível fim.

O que disse Pedro para trazer isso à tona? Ele os acusou da culpa de as-sassinato do Messias: “sendo este en-tregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos” (At 2:23). Pedro afirma o senhorio de Jesus Cristo sobre todas as forças do mal quando, citando as palavras de

Davi no Salmo 110, ele diz “Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés” (At 2:34-35), a morte como único ini-migo tem sido vencida.

Quando confrontado com estas ver-dades, aqueles pecadores assassinos de Jerusalém, com o sangue de Cris-to ainda fresco em suas mãos, foram abatidos pela vergonha de sua culpa e clamaram por salvação. Nós somos menos culpados do que eles? De for-ma alguma, porque foram também os nossos pecados que pregaram Jesus na cruz. Se sua culpa, pelo que seu pecado fez com Cristo não o leva à convicção, nada o levará.

Num período curto de tempo, a pro-messa de Cristo encontra cumprimen-to na própria Jerusalém. Isto prova a fidelidade de Deus em fazer acontecer

o que Ele havia prometido. Essa convic-ção pentecostal trazida pelo Espírito Santo, contudo, não foi apenas o cum-primento da promessa. Em letras gar-rafais, nos é soletrado o que significa se tornar um cristão, porque Ele con-tinua até este dia a trabalhar no modo como foi descrito. Isso é o que significa cristianismo experimental. Quando a Igreja cessa em não mais enfatizar a necessidade da convicção trazido pelo Espírito como parte da verdadeira ex-periência cristã, resultará, como vemos em nossos dias, em um cristianismo superficial e insípido. Isto, em contra-partida, produz um cristão superficial e até mesmo espúrio.

Dr. Arthur Miskin é ministro Heritage Reformed onde serve como professor na Escola Teológica Mukhanyo na África do Sul.

Confissão de Fé da Guanabara (1558)Artigo 10

Quanto ao livre arbítrio, cremos que, se o primeiro homem, criado à imagem de Deus teve liberdade e vontade, tanto para bem como para mal, só ele conheceu o que era o livre ar-bítrio, estando em sua integridade. Ora, ele nem apenas guardou este dom de Deus, assim dele foi privado por seu pecado, e todos os que descendem dele, de sorte que nenhum da semente de Adão tem uma centelha do bem. Por esta causa diz São Paulo, que o homem sensual não entende as coisas que são de Deus. E Oséias clama aos filhos de Israel: “Tua perdição é de ti ó Israel”. Ora isto entendemos do homem que não é regenerado pelo San-to Espírito. Quanto ao homem cristão, batizado no sangue de Jesus Cristo, o qual caminha em novidade de vida, Nosso Senhor Jesus Cristo restitui nele o livre arbítrio e reforma a vontade para todas as boas obras, não, todavia, em perfeição, porque a execução de boa vontade não está em seu poder mas vem de Deus, como amplamente este Santo Apóstolo declara no sétimo capítulo aos Romanos, dizendo: “Tenho o querer mas em mim não acho o perfazer”. O homem predestinado para a vida eterna, embora peque por fragilidade hu-mana, todavia não pode cair em impenitência. A este propósito, São João diz que ele não peca porque a eleição permanece nele.

A Confissão de Fé da Guanabara ou Confissão Fluminense é uma das mais antigas confissões reformadas e a primeira confissão redigida na América, na primeira igreja do Brasil.

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Comunhão com CristoPela fé, o crente possui a Cristo e cresce nEle. Além disso, o grau de sua fé, exercido mediante a Palavra, determina seu grau de co munhão com Cristo.

Por Dr. Joel Beeke

A doutrina de Calvino referente à união com Cris-to, se não é o ensino mais importante que inspi-ra todo o seu pen samento e sua vida, é uma das

características mais influentes de sua teologia e ética”, escreveu David Willis-Watkins.1

A Raiz Profunda da Piedade: A União Mística → Calvino não tencionava apresentar teologia como se esta fosse uma doutrina única. Seus sermões, comen-tários e obras teológicas es tão repletos da doutrina da união com Cristo, a ponto de que esta se toma o foco da fé e da prática cristã.2 Calvino disse: ‘’A união da Cabeça com os membros, a habitação de Cristo em nós - em resumo, a união mística - são tratadas por nós com o mais elevado grau de importân cia, de modo que Cristo, tomando-se nosso, nos faz, junta-mente com Ele, participantes dos dons com os quais Ele foi dotado”. 3

Para Calvino, a piedade está arraigada na união mís-tica (unia mystica) do crente com Cristo; assim, essa união tem de ser nos so ponto de partida.4 Essa união se torna possível porque Cristo assumiu nossa natu-reza humana, enchendo-a com suas virtudes. A união com Cristo em sua humanidade é histórica, ética e pes-soal, mas não essencial. Não há qualquer mistura gro-tesca de subs tâncias humanas entre Cristo e nós. No entanto, Calvino afirma: “Cristo não somente se une a nós por meio de um laço indivisível de comunhão, mas também cresce mais e mais em um corpo, conosco, por meio de uma comunhão maravilhosa, até que se tor-na com pletamente um conosco”.5 Essa união é um dos grandes mistérios do evangelho.6 Por causa da fonte da perfeição de Cristo em nossa natureza, os piedosos podem extrair, pela fé, o que necessitarem para sua santificação. A carne de Cristo é a fonte da qual seu povo deriva sua vida e poder.7

Se Cristo tivesse morrido e ressuscitado, mas não houvesse aplicado sua salvação aos crentes, visando à regeneração e à san tificação deles, a sua obra teria sido ineficaz. A piedade mostra que o Espírito de Cris-to está realizando em nós aquilo que já foi realizado em Cristo. Cristo ministra sua santificação à igreja por meio de seu sacerdócio real, de modo que a igreja pos-sa viver pie dosamente para Ele.8

O pulso da teologia prática e da piedade de Calvino era a co munhão (communio) com Cristo. Isso envolve participação (par ticipatio) nos benefícios de Cristo, que são inseparáveis da união com Ele.9 Essa ênfase já se achava evidente na Confessio Fidei de Eucharis-tia (1537), assinada por Calvino, Martin Bucer e Wol-fgang Capito.10 Todavia, a comunhão com Cristo, para Calvino, não era moldada pela sua doutrina sobre a Ceia do Senhor. Pelo contrário, a sua ênfase na comu-nhão espiritual com Cristo ajudava-o a moldar o con-ceito a respeito desta ordenança.

De modo semelhante, os conceitos de communio e participatio ajudavam Calvino a moldar o seu enten-dimento quanto à regene ração, à fé, à justificação, à santificação, à segurança de salvação, à eleição e à igreja, visto que ele não podia falar sobre qualquer dou trina à parte da comunhão com Cristo. Esse é o âmago do sistema de teologia de Calvino.

O Duplo Vínculo da Piedade: O Espírito e a Fé → A comunhão com Cristo se realiza tão-somente por meio da fé produzida pelo Espírito. É uma comunhão real, não porque os crentes participam da essência da natureza de Cristo, e sim porque o Espírito de Cristo une os cren-tes tão intimamente a Cristo, que eles se tornam carne de sua carne e osso de seus ossos. Do ponto de vista de Deus, o Espírito é o vínculo entre Cristo e os crentes. De nosso ponto de vista, a fé é o vínculo. Esses pontos de vista não se chocam, uma vez que uma das principais realizações do Espírito é produzir a fé em um pecador. 11

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JOel beeke

Somente o Espírito pode unir Cristo, no céu, com o crente, na terra. Assim como na encarnação, o Espírito uniu o céu e a terra, assim também na rege-neração o Espírito faz o eleito elevar-se da terra à comunhão com Cristo no céu, trazendo-O ao coração e à vida dos eleitos na terra.12 A comunhão com Cristo é sempre o resultado da obra do Espírito - uma obra maravilhosa e experiencial, mas incompreensível.13 O Espírito Santo é o vínculo que une o crente a Cristo, bem como o instru-mento por meio do qual Cristo é comu-nicado ao crente.14 Conforme Calvino disse a Pietro Martire: “Cresce mos jun-tamente com Cristo em um corpo. Ele compartilha conosco o seu Espírito; e, por meio das operações invisíveis do Espírito, Cris to se torna nosso. Os cren-tes recebem essa comunhão com Cris-to ao mesmo tempo em que recebem o seu chamado, No entanto, dia a dia, eles crescem mais e mais nesta comu-nhão, à proporção que Cristo cresce no íntimo deles”,15

Calvino vai além de Lutero nesta ênfase sobre a comunhão com Cristo. Pois, ele enfatiza que, pelo Espírito, Cristo dá poder àqueles que estão uni-dos com Ele pela fé. Sendo “enxertados

na morte de Cristo, derivamos dessa morte uma energia secreta, assim como o ramo extrai energia da raiz”, es-creveu Calvino. O crente “é energiza do pelo poder íntimo de Cristo, de modo que podemos afirmar que Cristo vive e cresce nele, pois, assim como a alma dá vida ao corpo, assim também Cristo transmite vida aos seus membros”.16

À semelhança de Lutero, Calvino acreditava que o conhecimen to é fun-damental à fé. Esse conhecimento in-clui a Palavra de Deus, bem como a proclamação do evangelho17 Uma vez que a Palavra escrita é exemplificada na Palavra viva, Jesus Cristo, em quem se cumprem todas as promessas de Deus, a fé não pode ser separada de Cristo.18 A obra do Espírito não suple-menta nem substitui a re velação das Escrituras, e sim a confirma. “Retire a Palavra, e não permanecerá fé alguma”, disse Calvino.19

A fé une o crente a Cristo por meio da Palavra, capacitando-o a receber Cristo, revelado no evangelho e ofe-recido graciosamente pelo Pai.20 Pela fé, Deus também habita no crente. Consequente mente, Calvino disse:

“Não devemos separar Cristo de nós mesmos ou nós mesmos de Cristo”, e

sim participarmos dEle pela fé, pois isso “nos desperta da morte e nos tor-na uma nova criatura”²¹

Pela fé, o crente possui a Cristo e cresce nEle. Além disso, o grau de sua fé, exercido mediante a Palavra, deter-mina seu grau de co munhão com Cris-to.22 “Tudo o que a fé deve contemplar é-nos reve lado em Cristo”, Calvino es-creveu.23 Embora Cristo permaneça no céu, o crente que se distingue em pie-dade aprende, pela fé, a reter a Cristo tão firmemente, que Ele habita no ínti-mo desse crente.24 Pela fé, os piedosos vivem por aquilo que acham em Cristo, e não pelo que acham em si mesmos.25

Para Calvino, a comunhão com Cris-to flui da união com Cristo.

Olhar para Cristo, a fim de obter segurança, significa ver a nós mes mos em Cristo. Como escreveu David Willis-Watkins: “A segurança de salvação é um conhecimento derivado, cujo foco permanece em Cristo unido ao seu cor-po, a igreja, da qual somos membros”.26

A Dupla Purificação da Piedade: Justificação e Santificação → De acordo com Calvino, os crentes rece-bem de Cristo, pela fé, a “graça dupla” da justificação e da santificação, que juntas proporcionam uma purificação dupla.27 A justificação oferece pureza im putada, e a santificação, pureza atu-al.28

Calvino define a justificação como “a aceitação com a qual Deus nos rece-be ao seu favor como homens justos”.29 Ele prossegue, afir mando: “Visto que Deus nos justifica por meio da interces-são de Cristo, Ele nos absolve pela im-putação da justiça de Cristo, de modo que, não sendo justos em nós mesmos, somos reputados como jus tos em Cris-to”.30 A justificação inclui a remissão dos pecados e o direto à vida eterna.

Calvino considerava a justificação como uma doutrina central da fé cris-

À semelhança de Lutero, Calvino acredi-tava que o conhecimen to é fundamen-tal à fé. Esse conhecimento inclui a Pala-vra de Deus, bem como a proclamação

do evangelho

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COMunhãO COM CRistO

tã. Ele a chamou de “a coluna principal que sustenta o cris tianismo”, o solo do qual se desenvolve a vida cristã e a substância da piedade.31 A justifica-ção não somente honra a Deus, por satisfa zer as condições para a salvação, mas também oferece à consciência do crente “descanso pacífico e tranquili-dade serena”.32 Conforme diz Roma-nos 5.1: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”. Isto é o âmago e a vida da piedade. Visto que os crentes são justificados pela fé, eles não precisam se preocupar com sua posição diante de Deus. Podem renun-ciar voluntariamente a glória pessoal e aceitar, dia a dia, a sua vida como um dom procedente das mãos do Criador e Redentor. Algumas batalhas diárias podem ser perdidas para o inimigo, mas Jesus Cristo venceu a guerra para os crentes.

A santificação se refere ao proces-so pelo qual o crente é confor mado, cada vez mais, a Cristo, em seu cora-ção, comportamento e devoção a Deus. A santificação é um refazer contínuo do crente, por meio do Espírito Santo; é a permanente consagração do corpo e da alma a Deus.33 Na santificação, o crente oferece-se a si mesmo como sacrifício a Deus. Isso não ocorre sem grandes lutas e progresso len to. Exige a limpeza da corrupção da carne e a

renúncia do mundo.34 Exige arrependi-mento, mortificação e conversão diária.

A justificação e a santificação são in-separáveis, disse Calvino. Separar uma da outra é o mesmo que despedaçar a Cristo35 ou ten tar separar a luz solar do calor que ela produz.36 Os crentes são jus tificados para adorar a Deus em santidade de vida.37

Extraído do livro Vencendo o Mundo, Dr. Joel Be-eke, Editora Fiel, pgs 45-52

1. THE UNIO Mystica and the Assurance of Faith. In: SPIJKER, Willem van’t (Ed.) Calvin: erbe und auftrag: festschrift fur Wilhelm HeinrichNeuserzum 65, Ge-burtstag. Kampen: Kok, 1991. p. 78. 2. Ver, por exemplo:

- PARTEE, Charles. Calvin’s Central Dogma Again. Six-teen century journal. 18.2 (1987): 184.

- GRUNDLER, OUo. John Calvin: Ingrafting in Christ. In: ELDER, Rozanne (Ed.). The spirituality of western Christendom. Kalamazoo, Mich.: Cistercian, 1976. p.172-187.

- ARMSTRONG, Brian G. The Nature and Structure of Calvin’s Thought according to the Institutes: Another Look. In: John Calvin’s magnum opus. Po-tchefstroom, South Africa: Institute for Reformation Studies, 1986. p. 55-82.

- HAAS, Guenther. The concept of equity in Calvin’s ethics. Waterloo, Ont.: Wílfrid Laurier University Press, 1997.3. Institutes. 3.11.9. Ver também C0. 15:722. 4. HAGEMAN, Howard G. Reformed Spirituality. In: SENN, Frank C. (Ed.). Protestant spiritual traditions. New York: Paulist Press, 1986. p. 61. 5. Institutes. 3.2.24. 6. Dennis Tamburello ressalta que há “pelo menos sete ocasiões em que, nas Institutas, Calvino usa a palavra arcanus ou incomprehen-sibilis para descrever a união com Cristo” (2.12.7; 3.11.5;4.17.1,9,31,33;4.19.35). Unionwith Christ: John Calvin and the Mysticism of St. Bernard. Lous-ville: Westminsterl John Knox Press, 1984. p. 89, 144. Ver também EVANS, William B. Imputation and impartations: the problem of union with Christ in nineteenth-century american reformed theo-logy.1996. f. 6-68. Dissertação (Ph. D). VanderbUt University, 1996. 7. Commentary, João 6.51. 8. Institutes. 2.16.16. 9. SPIJKER, Willem van’t. “Extra nos” e “in nos” por

Calvino em A Pneumatological Light. In: DEKLERK, Peter (Ed.). Calvin and the Holy Spirit. Grand Rapids: Calvin Studies Society, 1989. p. 39-62. - JOHNSON, Merwyn S. Calvin’s Ethical Legacy. In: FOXGROVER, David (Ed.). The legacy of John Calvin. Grand Rapi-ds: Calvin Studies Society, 2000. p. 63-83 10. OS. 1:435-436; SPIJKER, Willem van’t. Extra nos and in nos by Calvin in a Pneumatological Li-ght. p.44. 11. Institutes. 3.1.4.12. Institutes. 4.17.6. Commentary, Atos 15.9. 13. Commentary, Efésios 5.32. 14. Institutes. 3.1.1; 4.17.12. 15. Calvinus Vermilio (# 2266, 8 agosto 1555). CO. 15:723-724.16. CO. 50:199. Ver também PITKIN, Barbara. What pure eyes could not see: Calvin’s doctrine of faith in its exegetical contexto New York: Oxford University Press, 1999. 17. Institutes. 2.9.2. Commentary, 1 Pedro 1.25. Ver também FOXGROVER, David. John Calvin’s Unders-tanding of Conscience. 1978.407 f. Dissertação (Ph. D). Claremont, 1978. 18. THE COMMENTARIES of John Calvin on lhe Old Testament. 30 v. Edinburgh: Calvin Translation So-ciety, 1843-1848. Comentário sobe Gênesis 15.6. Daqui para frente, a nota dirá apenas Commentary e citará o texto bíblico. Ver também Commentary, Lucas 2.21. 19. Institutes. 3.2.6. 20. Institutes. 3.2.30-32. 21. Institutes. 3.2.24. Commentary, 1 João 2.12. 22. Sermons on the Epistle to the Ephesians. Arthur Golding (Trad). Reimpressão. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1973. 1.17¬18. Daqui para frente, a nota dirá ape-nas Sermon e citará o texto de Efésios. 23. Commentary, Efésios 3.12. 24. Sermon, Efésios 3.14-19. 25. Commentary, Habacuque 2.4. 26. The Third Part of Christian Freedom Misplaced. In: GRAHAM, W. Fred (Ed.). Later calvinism: interna-tional perspectives. Kirksville, Mo.: Sixteen Century Journal, 1994. p. 484-485. 27. Institutes. 3.11.1. 28. Sermons on Galatians. Kathy Childress (Trad.). Edimburg: Banner ofTruth Trust, 1997.2.17-18. Daqui para fren-te, a nota dirá Sermon e citará o texto de Gálatas. 29. Institutes. 3.11.2. 30. Ibid.31. Institutes. 3.11.1; 3.15.7. 32. Institutes. 3.13.1. 33. Institutes. 1.7.5. 34. Commentary, João 17.17-19. 35. Institutes. 3.11.6. 36. Sermon, Gálatas 2.17-18. 37. Commentary, Romanos 6.2.

Os Cânones de DortArtigo 2 → A Propagação da Corrupção Depois da queda o homem se tornou corrompido e como pai corrompido gerou filhos corrompidos. Assim a corrupção, de acordo com o justo juízo de Deus, propagou-se de Adão a todos os seus descendentes — à exceção de Cristo somente — não por imitação, como afirmavam os antigos pelagianos, mas pela propa-gação de uma natureza pervertida

Jó 14.4; Sl 51.7; Rm 5.12; Hb 4.15.

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Misericórdia e FéPois misericórdia quero, e não sacrifício, eo conhecimento de Deus, mais do queholocaustos.Os 6.6

Esta é uma passagem extraordinária. O Filho de Deus citou-a duas vezes. Os fariseus repreen-deram-no por se relacionar com pessoas de vida má e dissoluta, ao que ele lhes replicou, no capítulo nove de Mateus: “Misericórdia quero e não holocaustos”. Com essa defesa, Jesus mostra que Deus não é adorado mediante cerimônias exteriores, e sim quando os homens se perdoam e se toleram e não são exageradamente rígidos. E quando os fariseus acusaram os discípulos por colherem espigas de milho, Cristo citou-a novamente para mostra-lhes que, quem faz a santidade consistir de cerimônias, adora a Deus tolamente; e mostrou tam-bém que acusaram os irmãos deles sem motivo, além de converterem em crime o que in-trinsecamente não era pecado e poderia ser facilmente defendido por qualquer expositor sábio e sereno. As duas orações seguintes devem ser lidas em conjunto: a misericórdia apraz a Deus; e a fé apraz a Deus. Não é possível à fé sozinha agradar a Deus, já que nem mesmo pode existir sem o amor ao nosso próximo; e, depois, a misericórdia humana não basta, pois se alguém jamais prejudicasse ou ferisse seus irmãos, ainda assim continuaria a ser profano e desprezador de Deus e a sua misericórdia certamente não lhe valeria de nada. Vale notar também que Jesus chama a fé de conhecimento de Deus.

OraçãoConcede, ó Deus onipotente, já que somos inclinados a todo tipo de perversidade e facil-mente levados a imitá-la e a nos desviarmos sempre que há desculpa e se ofereça oportuni-dade. — Ó concede que, fortalecidos pelo socorro do teu Espírito, conservemos a pureza da nossa fé e nos seja proveitoso o que aprendemos a teu respeito, que tu és Espírito, para te adorarmos em espírito, com coração sincero, sem jamais nos desviarmos indo atrás das corrupções do mundo, nem imaginar que somos capazes de te enganar; antes consagremos a ti nossa alma e corpo de tal maneira que a nossa vida, em todas as suas particularidades, testifique que somos um sacrifício puro e santo dedicado a ti em Cristo Jesus, nosso Senhor. Amém.

João Calvino. Devotions and prayers of John Calvin, 52 one-page devotions with selected payers on facing pages. Org. Charles E. Edwards. Old Paths Gospel Press. S/d. Pags. 18 e 19. Tradução: Marcos Vasconcelos, junho/2009. E-mail: [email protected]

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Revista Os PuRitanOs 3•2009 31

Dr. Joel Beeke

A pietas de Calvino não subsistia à parte das Es-crituras ou da igreja. Pelo contrário, era funda-mentada na Palavra e nutri da na igreja. Embora

tenha rompido com o absolutismo da Igreja de Roma, Calvino tinha um elevado ponto de vista sobre a igreja.

“Se não preferimos a igreja a todos os outros objetos de nosso in teresse, somos indignos de ser contados como membros da igreja”, ele escreveu.

Agostinho dissera: “Aquele que se recusa a ter a igreja como sua mãe não pode ter a Deus como seu Pai”. Calvino acrescentou: “Não há outra maneira de entrarmos na vida, se esta mãe não nos conce ber em seu ventre, der-nos à luz, alimentar-nos em seu seio e, por último, não nos manter sob os seus cuidados e orientação, até que, despidos desta carne mortal, nos tornemos como os anjos”. À parte da igreja, há pouca esperança de perdão dos pecados ou salvação, Calvino escreveu. Sempre é desastroso deixar a igreja.1

Calvino ensinava que os crentes estão enxertados em Cristo e sua igreja, pois o crescimento espiritual ocorre na igreja. A igreja é a mãe, educadora e nutri-dora de todo crente, visto que o Espírito Santo age na igreja. Os crentes cultivam a piedade por meio do Espí-rito Santo mediante o ministério de ensino da igreja, progredindo da infância espiritual à adolescência e à maturidade em Cristo. Eles não se graduam na igre-ja enquanto não morrem.2 Essa educação vitalícia é oferecida numa atmosfera de piedade genuína, uma at mosfera na qual os crentes cuidam uns dos outros em submissão à liderança de Cristo.3 Essa educação en-coraja o desenvolvimento dos dons e do amor uns dos outros, uma vez que somos “constrangidos a receber dos outros”.4

O crescimento na piedade é impossível sem a igre-ja, porque a piedade é fomentada pela comunhão dos santos. Na igreja, os cren tes “se unem uns aos outros

na distribuição mútua dos dons”. 5 Cada membro tem o seu próprio lugar e dons para serem usados no corpo.6 Idealmente, todo o corpo usa esses dons em simetria e propor ção, sempre reformando e desenvolvendo em direção à perfeição.7

A Piedade da Palavra → A Palavra de Deus é central ao desenvolvimento da piedade no crente. A piedade genuína é uma “piedade da Palavra”. O modelo relacio-nal de Calvino explica como.

A verdadeira religião é um diálogo entre Deus e o homem. A parte do diálogo que Deus inicia é a revela-ção. Nisso, Deus vem ao nosso encontro, fala conosco e se nos torna conhecido na pre gação da Palavra. A outra parte do diálogo é a resposta do homem à re-velação de Deus. Essa resposta, que inclui confiança, adoração e temor reverente, é o que Calvino chama de pietas. A pregação da Palavra nos salva e nos preserva, enquanto o Espírito nos capaci ta a apropriar-nos do sangue de Cristo e responder-Lhe com amor reveren-te. Por meio da pregação de homens dotados de poder pelo Espírito Santo, “a renovação dos santos se realiza, e o corpo de Cris to é edificado”, disse Calvino.8

A pregação da Palavra é o nosso alimento espiritual e o remédio para nossa saúde espiritual. Com a bênção do Espírito, os pastores são médicos espirituais que aplicam a Palavra à nossa alma, assim como os médi-cos terrenos aplicam remédio ao nosso corpo. Com a Palavra, esses médicos espirituais diagnosticam, pres-crevem re médios e curam doenças espirituais naqueles que estão contami nados pelo pecado e pela morte. A Palavra pregada é um instru mento para curar, limpar e tornar frutífera nossa alma propensa a enfermidades.9 O Espírito, ou “o ministro interior”, desenvolve a pieda-de usando o “ministro exterior” na pregação da Palavra. Con forme disse Calvino, o ministro exterior “proclama a palavra falada, e esta é recebida pelos ouvidos”, mas o ministro interior “comunica verdadeiramente a coisa

A Piedade e a IgrejaA verdadeira religião é um diálogo entre Deus e o homem. A parte do diálogo que Deus inicia é a revelação

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JOel beeke

proclamada... que é Cristo”.10 Para desenvolver a piedade, o Espí-

rito usa não somente o evan gelho para produzir fé no profundo da alma dos seus eleitos, como já vimos, mas tam-bém a lei. A lei promove a piedade de três maneiras:

(1) A lei restringe o pecado e pro-move a justiça na igreja e na socie dade, impedindo que ambas cheguem ao caos.

(2) A lei disciplina, educa, convence e nos move de nós mesmos para Jesus Cristo, o fim e o cumpridor da lei. A lei não pode nos levar a um conhecimento salvifico de Deus em Cristo. Pelo con-trário, o Espírito Santo usa a lei como um espelho para nos mostrar nossa culpa, nos privar da esperança e trazer-nos ao arrependimento. Ela nos con-duz à necessidade espiritual que gera a fé em Cristo. Esse uso convencedor da lei é essencial à pie dade do crente, pois impede a manifestação da justiça própria, que é inclinada a se reafirmar até no mais piedoso dos santos.

(3) A lei se torna a norma de vida para o crente. “Qual é a norma de vida que Deus nos outorgou?” Calvino pergunta no catecismo de Genebra. E responde: “A sua lei”. Posteriormente, Calvino disse que a lei “mostra o alvo que devemos ter em vista, o objetivo que devemos perseguir; e que cada um de nós, de acordo com a medida de graça recebida, pode se esforçar para estruturar sua vida em harmonia com a mais elevada retidão e, por meio de es tudo constante, avançar cada vez mais, ininterruptamente.11

Calvino escreveu a respeito do ter-ceiro uso da lei na primeira edição de suas Institutas: “Os crentes... se benefi-ciam da lei porque dela aprendem mais completamente, cada dia, qual é a von-tade do Senhor... Isto é como se um ser-

vo, já preparado com total disposi ção de coração para se recomendar ao seu senhor, tivesse de des cobrir e conside-rar os caminhos de seu senhor, para se conformar e se acomodar a estes. Além disso, embora sejam impulsionados pelo Espírito e mostrem-se dispostos a obedecer a Deus, os crentes ainda são fracos na carne e prefeririam servir ao pecado e não a Deus. Para a nossa carne, a lei é como uma chicotada em uma mula ociosa e obstinada, uma chi-cotada que a faz animar-se, levantar-se e dispor-se ao trabalho”.12

Na última edição das Institutas (1559), Calvino é mais enfático a res-peito de como os crentes se beneficiam da lei. Primeiramente, ele diz: “Este é o melhor instrumento para os cren-tes aprenderem mais completamente, a cada dia, a natureza da vontade do Senhor, a qual eles aspiram, e para confirmá-Los no entendimento dessa vontade”. Em segundo, a lei faz o servo de Deus, “por meio de me ditação fre-quente, ser despertado à obediência, ser fortalecido na lei e restaurado de um caminho de transgressão”. Calvino conclui que os santos devem prosse-guir desta maneira, “pois o que seria menos amável do que a lei, com impor-tunações e ameaças, atribular as almas com temor e as afligir com pavor?”13

O ponto de vista que considera a lei primariamente como um guia que estimula o crente a apegar-se a Deus e a obedecer-Lhe ilustra outra instância em que Calvino difere de Lutero. Para Lute ro, a lei é primariamente negativa. Está ligada ao pecado, à morte e ao dia-bo. O interesse predominante de Lutero é o segundo uso da lei, o uso convence-dor ― mesmo quando ele considerava o pa pel da lei na santificação. Por con-traste, Calvino entendia a lei como uma expressão positiva da vontade de Deus. Como disse John Hesselink: “O ponto de vista de Calvino podia ser chamado de deuteronômico, porque ele enten-

dia que o amor e a lei não são contrá-rios, e sim correlatos”.14 Para Calvino, o crente segue a von tade de Deus, não motivado por obediência obrigatória, e sim por obediência agradecida. Sob a tutela do Espírito, a lei produz grati dão no crente; e esta conduz à obediência amorosa e à aversão ao pecado. Em ou-tras palavras, para Lutero o propósito primordial da lei era ajudar o crente a reconhecer e confrontar o pecado. Para Calvino, o propósito primário da lei era levar o crente a servir a Deus motivado por amor.15

Extraído do livro Vencendo o Mundo, Joel Beeke, Editora FIEL, pgs. 53-57Notas:1. Institutes. 4.1.1, 3-4. Ver também BEEKE, JoelR. Gloriouslhings of Thee Are Spoken: The Doctrine of the Church. In: KISTLER, Don (Ed.). Onward, chris-tian soldiers: protestants affirm the church. Morgan, Pa.: Soli Deo Glory, 1999. p. 23-25. 2. Institutes.4.1.4-5. 3. Commentary, Salmos 20.10. 4. Commentary, Romanos 12.6. 5. Commentary, 1 Coríntios 12.12. 6. Commentary, 1 Coríntios 4.7. 7. Commentary, Efésios 4.12. 8. Commentary, Salmos 18.31; 1 Coríntios 13.12. Institutes, 4.1.5, 4.3.2. 9. Sermons ofM. John Calvin, on the Epistles ofS. Paule to Timothie and Titus (1579). L. T. (Trad.). Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1983. Comentá-rio em 1 Timóteo 1.8-11. Daqui para frente a nota dirá Sermon e citará o texto bíblico. Reimpressão fac-símilar. 10. REID, J. K. S. (Ed.). Calvin: theological treatises. Philadelphia: Westminster Press, 1954. p. 173. Ver também ARMSTRONG, Brian. lhe Role of the Holy Spirit in Calvin’s Teaching on the Ministry. In: DEKLERK, P. (Ed.). Calvin and the Holy Spirit. Grand Rapids: Cal-vin Studies Society, 1989. p. 99-111. 11. BEVERIDGE, Henry; BONET, Jules (Eds.). Selected works of John Calvin: tracts and letters. Grand Rapi-ds: Baker, 1983. 2:56,69. Reimpressão. 12. Institutes of the Christian religion: 1536 edition, p. 36. 13. Institutes. 2.7.12. Calvino extrai dos salmos de Davi grande apoio para esse terceiro uso da lei. Ver também Institutes 2.7.12 e Comentário no livro dos Salmos, Valter Martins (Trad.), Vol. 4. (São José dos Campos: Editora Fiel, prelo 2009). 14. HESSELINK, I. John. Law - lhird Use of the Law. In: McKIM, Donald K. (Ed.). Encyclopeadia of the refor-med faith. Louisville: Westminster/ John Knox, 1992. p. 215-216. Ver tam-bém:

- DoWEY JR., Edward A. Law in Luther and Calvin. Theology Today, 41.2 (1984).

- HESSELINK, I. John. Calvin’s concept of the law. Alli-son Park, Pa.: Pickwick, 1992. p. 251-262. 15. BEEKE, Joel; LANNING, Jay. Glad Obedience: The Third Use of the Law. In: KISTLER, Don. Trust and obey: obedience and the Christian. Morgan, Pa.: Soli Deo Gloria, 1996. p. 154-200.

- GODFREY, W. Robert. Law and Gospel. In: FERGU-SON, Sinclair B.; WRIGHT, David F.; PACKER, J. I. (Eds.). New dictionary of theology. Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 1988. p. 379.

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“Buscai no livro do SENHOR e lede” (Is. 34:16)

A Suficiência da Escritura e a Reforma Religiosa em Israel

Tiago Baía e Daniel Souza

As reformas religiosas, que culminaram em avi-vamento espiritual em Israel, ocorreram quan-do o povo voltou-se, exclusivamente, para a Pa-

lavra escrita do Senhor, que é a sua lei santa e perfeita.“O rei subiu à casa do Senhor, e com ele todos os homens

de Judá, todos os moradores de Jerusalém, os sacerdotes,

os profetas e todo o povo, desde o menor até o maior; e leu

diante deles todas as palavras do livro da aliança que fora

encontrada na Casa do Senhor. O rei se pôs em pé junto à

coluna e fez aliança ante o Senhor, para o seguirem, guar-

darem os seus mandamentos, os seus estatutos, de todo

coração e de toda a alma, cumprindo as palavras desta

aliança, que estavam escritas naquele livro; e todo o povo

anuiu a esta aliança” (2Rs. 23:2-3).

Esse foi um momento na história de Israel em que o sumo sacerdote Hilquias, ao encontrar os pergami-nhos da lei do Senhor desaparecidos, os entrega ao rei Josias, que, profundamente quebrantado realiza uma grande reforma em Israel, principalmente na área cúl-tica e convida o povo a se santificar por meio da obe-diência à lei escrita do Senhor. Essa mesma reforma ocorreu em Israel, anos depois, quando o povo retor-nou para sua terra no final do cativeiro babilônico com Neemias e Esdras:

“Naquele dia, se leu para o povo no livro de Moisés; achou-

se escrito que os amonitas e os moabitas não entrassem

jamais na congregação de Deus, porquanto não tinham sa-

ído ao encontro dos filhos de Israel com pão e água; antes,

assalariaram contra eles Balaão para os amaldiçoar; mas

o nosso Deus converteu a maldição em benção. Ouvindo

eles, os povos, esta lei, apartaram de Israel todo o elemen-

to misto” (Ne.13:1-3).

As reformas com Josias, Neemias e Esdras não fo-ram um retorno ou obediência a uma tradição oral nem

foram uma volta obediente à autoridade eclesiástica da época. Mais que isso, as reformas não dependeram da tradição oral e da interpretação infalível das auto-ridades eclesiásticas para entender a Palavra escrita e promoverem as mudanças. Os textos repudiam todas as concepções e ensinamentos do Catolicismo Romano sobre a tradição oral e Magistério infalível. A autori-dade e a revelação divina na concepção de Neemias, Esdras e Josias estavam na Escritura somente. De acor-do com as passagens, o padrão da verdade para refor-mar Israel não era uma tradição oral, mas a Lei escrita do Senhor. O apelo por mudança não era direcionado às autoridades de Israel, pelo contrário, elas próprias necessitavam de mudança e reforma. Nem a lideran-ça nem o povo precisaram de auxílio fora da Lei para entender o que estava escrito. A reforma aconteceu por causa da dependência e obediência exclusiva à lei preservada na Escritura, como está escrito sobre o rei Josias: “Antes dele, não houve rei que lhe fosse seme-lhante, que se convertesse ao SENHOR de todo o seu coração, e de toda a sua alma, e de todas as suas forças, segundo toda a Lei de Moisés (ênfase nossa); e depois dele, nunca se levantou outro igual” (2Rs. 23:25).

Contrariando essa verdade sobre as reformas em Is-rael, o apologeta católico romano Patrick Madrid ainda tenta argumentar contra os protestantes com respeito à suficiência das Escrituras do Antigo Testamento, da seguinte maneira:

“No Antigo Testamento, Deus deu autoridade aos sacerdo-

tes para interpretar sua lei e emitir doutrina obrigatória

baseada nessas interpretações, mesmo com respeito a

questões civis e criminais — ambos por revelação divina

(cf. Lv. 20:1-27; 25:1-55). [Há] referências claras a um

corpo autoritativo de professores constituídos por Deus e

pelos seus profetas e reis designados”.

É ilógico e anti-bíblico concluir que existe um Ma-gistério infalível hoje só porque havia sacerdotes, in-

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tiaGO baía

térpretes da lei em Israel. A forma como Madrid raciocina é errônea. Di-zer que Deus estabeleceu líderes para auxiliar o povo em compreender a sua Lei é ponto pacífico. “A perfeição da Escritura [...] não exclui o ministério eclesiástico [...]. Apenas exclui a ne-cessidade de outra regra para direção externa adicionada às Escrituras a fim de torná-las perfeitas. Uma régua não é, portanto, imperfeita porque necessi-ta do arquiteto para sua aplicação”. O problema na lógica de Madrid é o fato de sua conclusão não ser um resulta-do necessário de suas premissas. Deus estabelecer sacerdotes e intérpretes da lei não significa necessariamente que eles eram infalíveis e muito menos que o povo era incapaz de interpretar a lei por si mesmo (cf. Sl. 1:2, Dt. 6:6-9).

As duas únicas relações do povo de Israel com a Palavra divina eram com a interpretação correta, privada ou não, do que já estava escrito ou com o exercício do dom profético revelando a Palavra de Deus e jamais com uma tra-dição oral ou uma Igreja infalível. Na interpretação, a autoridade estava nas Escrituras e não no sacerdote. Muitos

sacerdotes, no decorrer da história de Israel, prevaricaram e ensinaram a lei de forma incorreta, como é o caso de Israel antes da reforma do Rei Josias e também na época dos profetas Ma-laquias e Miquéias: “Mas vós [os sacer-dotes] vos tendes desviado do caminho e, por vossa instrução (ênfase nossa), tendes feito tropeçar a muitos; violas-tes a aliança de Levi, diz o SENHOR dos Exércitos” (Ml. 2:8). “Os seus cabeças dão as sentenças por suborno, os seus sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se encostam ao SENHOR, di-zendo: Não está o SENHOR no meio de nós? Nenhum mal nos sobrevirá” (Mq. 3:11; cf. Jr. 5:30-31; Ez. 22:26; Os. 5:1; Zc. 3:4).

Ademais, ordenava-se ao povo que lesse, entendesse, meditasse na lei do Senhor e ensinasse os filhos por eles mesmos, porque a Escritura era clara o suficiente para ser entendida e ter autoridade divina inerente: “Estas pala-vras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te” (Dt. 6:6-7). “Quanto amo

a tua lei! É a minha meditação, todo o dia! Compreendo mais do que todos os meus mestres, porque medito nos teus testemunhos” (Sl. 119: 97, 99). “Buscai no livro do SENHOR e lede” (Is. 34:16).

A autoridade sacerdotal defendida por Patrick Madrid é pura suposição. Há falta de prova textual afirmando que Deus deu autoridade infalível aos líderes sacerdotais de Israel. A autori-dade não era inerente, mas declarativa, ou seja, a autoridade eclesiástica isra-elita era subordinada às Escrituras so-mente, de maneira que só podiam de-clarar aquilo que estivesse em confor-midade com a Palavra escrita. “No caso de Israel, Deus trabalhava por meio de suas autoridades religiosas institu-ídas apenas quando essas autoridades buscavam alinhar-se com a palavra es-crita”. Em Israel, as Escrituras tinham autoridade absoluta e eram claras o bastante para guiar, serem entendidas e tornarem sábias as pessoa simples da nação de Israel (cf. Dt. 27:2-8, Hc. 2:2; Sl. 19: 7-8; 119: 105, 130; Pv. 6:23).

Extraído da monografia apresentada por Tiago Baía e Daniel Souza ao Seminário Presbiteriano Teológi-co do Nordeste, Teresina-PI, para obtenção do grau de Bacharel em Teologia/2007.

Breve Catecismo de WestminsterPergunta 12 → Que ato especial de providência Deus exerceu para com o homem, no estado em que ele foi criado?

Quando Deus criou o homem, fez com ele um pacto de vida, com a condição de perfeita obediência, proibindo-lhe comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, sob pena de morte.

Pergunta 16 → Todo o gênero humano caiu na primeira transgressão de Adão?.Visto que o pacto foi feito com Adão, não só para ele, mas também para a sua posteridade, todo o gênero humano, que dele procede por geração ordinária, pecou nele e caiu com ele na sua primeira transgressão.

Ref. da P.12: Compare Gn. 2.16.17 com Rm 5.12-14; Rm10.5; Lc 10.25-28, e com os pactos feitos com Noé e Abraão. Gn. 2.16.17; Rm 5.12-14; Rm. 10.5; Lc. 10.25-28; Gn 2.17Ref. da P.16: At. 17.26 - veja também a questão 12; Gn 2.17; Rm. 5.12-20; I Co 15.21,22

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“O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado”(Mc.2.27)

O Dia do Senhor e oCulto Reformado

Ian Hamilton

Até algum tempo atrás, uma das marcas distinti-vas do culto reformado era o seu compromisso com a santificação do Dia do Senhor como o

tempo divinamente prescrito para que o povo da alian-ça de Deus adorasse esse Deus da aliança.

Esta perspectiva puritana possivelmente está me-lhor demonstrada na Confissão de Fé de Westminster:

“Como é lei da natureza que, em geral, uma devida pro-

porção de tempo seja destinada ao culto de Deus, assim

também, em sua Palavra, por um preceito positivo, moral

e perpétuo, preceito que obriga a todos os homens, em to-

das as épocas, Deus designou particularmente um dia em

sete para ser um sábado (= descanso) santificado por ele;

desde o princípio do mundo, até a ressurreição de Cristo,

esse dia foi o último da semana; e desde a ressurreição

de Cristo, foi mudada para o primeiro dia da semana, dia

que na Escritura é chamado dia do Senhor (= domingo), e

que há de continuar até ao fim do mundo como o sábado

cristão”.

Dizendo isso, os puritanos estavam em consonância

com os reformadores ao dizer que o shabbat (sábado) não era o único dia em que o povo de Deus se reunia para o culto e também não estavam dizendo que a ado-ração é um tipo de atividade exclusivamente corporati-va e que apenas acontece quando a igreja se une para adorar.

Foram os reformadores e puritanos que resgata-ram para nós a idéia de que adoração é a resposta do crente momento após momento à Palavra de Deus. Ao mesmo tempo eles tinham uma convicção apaixonada quanto a este ponto. Diziam que o culto cristão tem que ser ancorado e baseado no Dia do Senhor. Existe um debate que sempre está presente entre os próprios reformados com relação ao Dia do Senhor e o shabbat (sábado). Devemos considerar o Dia do Senhor como o

shabbat? Isso ficará claro à medida que formos expon-do o assunto.

Os que crêem na perpetuidade do sábado cristão como sendo uma ordenança da graça que é obrigató-ria para todo povo de Deus, precisam lembrar que não estamos simplesmente engajados num conflito para persuadir nossos irmãos em Cristo e que passagens como Colossenses 2:16-17 não estão abolindo o sába-do cristão que foi instituído na criação. Nossa batalha é muito mais séria que isto, pois estamos batalhando para resgatar os irmão cristãos dos efeitos corrosivos da cultura contemporânea. O que estamos dizendo é, que o assunto tratado aqui, dentro da tradição refor-mada, não é somente de persuadir nossos irmãos em Cristo do caráter divino, mandatório do sábado cristão (shabbat) como sendo uma ordenança vinda da cria-ção e do Evangelho, mas na verdade estamos diante de um trabalho ainda mais exigente. Ou seja, de persuadir nossos irmãos em Cristo da sabedoria daquele que nos deu o shabbat, do regozijo que é o sábado cristão e dos efeitos corrosivos e fatais de permitirmos que nossa cultura contemporânea venha formatar nossa vida es-piritual e dos nossos filhos.

Fiquei extremamente espantado quando, há alguns anos, passei um período nos Estados Unidos e vi que o dia da final do campeonato de futebol, o evento es-portivo mais enfatizado do ano, era praticado no Dia do Senhor e que muitas igrejas evangélicas, cristãs, naquele dia, até mesmo que professavam a fé refor-mada, cancelavam até os seus cultos dominicais para permitir que as pessoas fossem assistir este jogo. Qua-se não acreditei que isso estivesse acontecendo. Porém, disseram-me que mais igrejas mudariam até o horário de culto para permitir aos crentes irem a esta final de campeonato.

Eu tenho um filho que gosta muito de futebol e gos-ta muito de jogar. Outro dia ele me perguntou por que se marcavam tantos jogos exatamente no Dia do Se-

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ian haMiltOn

nhor. Meu filho gosta muito de futebol e por isso fica frustrado quando não pode jogar e sente falta do jogo, mas mesmo assim não deixa de ir à igreja para participar dos jogos de futebol e nem ao menos pensa nisso. Mas per-cebo que esta situação vem continua-mente se projetando para tomar con-trole sobre a igreja.

Levanto esta questão porque o pro-blema não é realmente a guarda do sá-bado cristão, mas é algo mais profundo que isso. O assunto com o qual nos de-paramos é o caráter de Deus, a Sua au-toridade, a verdade de Sua Palavra e a sua suficiência. Se estamos convencidos que Deus é bom, somente bom, e que todos Seus caminhos para Seus filhos são sábios e agradáveis, isso nos de-veria persuadir a abraçar com alegria a santificação do Dia do Senhor. Não deveríamos ser levados a pensar que as leis do Dia do Senhor não são mais para nós hoje e que por isso têm sido abandonadas por muitos cristãos que professam a fé reformada e que têm se esquecido de santificar este dia. A razão para isso é que eles não têm compreen-dido o sentido do Dia do Senhor.

O problema é mais profundo. A verdade é que as pessoas perderam

o contato de quem Deus é. Creio que dificilmente poderíamos duvidar que, quando o Dia do Senhor não é uma ordenança graciosa, o culto na igreja deteriora e em seguida a sociedade deteriora. O Dia do Senhor é um teste-munho da grande benignidade de Deus para com Seu povo e nos dá um tempo divinamente apontado por Deus para que nós O adoremos e Deus mesmo nos dá o foco apropriado em relação à Sua adoração.

Quero apresentar dois aspectos com respeito à guarda do Dia do Se-nhor.

1) Explicar o caráter obrigatório do Dia do Senhor para o cristão; essa era a convicção dos reformados e puritanos e que surgiu de uma compreensão cor-reta das Escrituras.

2) Destacar o significado e os bene-fícios de se observar o Dia do Senhor reservando-o para um culto que honra a Deus.

Caráter Obrigatório → Inicialmente gostaria de dizer que o Dia do Senhor foi instituído por Deus na criação. Le-mos em Gênesis 2 que Deus terminou sua obra no sexto dia e no sétimo des-cansou do que havia feito. Deus aben-

çoou o sétimo dia e o santificou porque nele descansara de todas as obras que havia feito. Antes que o pecado entras-se no mundo Deus já havia providencia-do um sábado (descanso) para Adão e Eva e seus filhos. Nas palavras do gran-de presbiteriano John Murray, o sába-do é uma ordenança da criação dada por Deus para o benefício de todas as Suas criaturas. Geralmente se diz que Calvino ensinava que o sábado, como dia de descanso, havia sido ab-rogado na dispensação do Novo Testamento. Para apoiar isso, são citados seus co-mentários sobre o quarto mandamento e sua exposição em Colossenses 2:16-17. Sem dúvida existe alguma diferen-ça entre a perspectiva de Calvino e os puritanos, mas na minha opinião são circunstanciais e pequenas. Quando lemos o que Calvino escreveu no seu comentário de Gênesis 2:3, escrito em 1561, dois anos depois da edição final das Institutas, o que é bastante signi-ficativo, encontramos uma exposição que o reformador faz de forma sucinta, da sua perspectiva do sábado cristão. Calvino disse:

“Quando ouvimos que o sábado foi ab-

rogado pela vinda de Cristo, devemos

distinguir o que pertence ao governo

perpétuo da vida humana e o que per-

tence propriamente às figuras antigas. O

uso destas foi abolida quando a verdade

foi cumprida. Descanso espiritual é a

mortificação da carne ao ponto de que

os filhos de Deus não devem viver para

si mesmos ou permitir livremente as

ações de suas inclinações. Assim, na me-

dida que o sábado era uma figura desse

descanso espiritual, eu digo que isso foi

somente por um tempo (obs: com isso

os puritanos concordariam). Mas, na me-

dida em que foi ordenado aos homens,

desde o início, de que eles deveriam se

engajar no culto a Deus, é legítimo que o

sábado cristão deva continuar até o fim

do mundo. O sábado é uma ordenação

da criação que é perpétua”.

Foram os reformadores e puritanos que resgataram para nós a idéia de que ado-ração é a resposta do crente momento

após momento à Palavra de Deus

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O Dia DO senhOR e O CultO RefORMaDO

A segunda coisa que tenho para afir-mar é que o sábado cristão está base-ado no exemplo divino. Esse é o ponto de Moisés em Êxodo 20:11. O ritmo do homem alternado entre trabalho e des-canso é o sério padrão do ritmo criador. John Murray faz a seguinte afirmativa: “Podemos pensar no exemplo que Deus nos deu de trabalho e descanso como sendo um padrão de conduta eterno para a raça humana nas ordenanças de trabalho e descanso”.

A ordem de Deus para que guardemos o Dia do Senhor está embutida nos dez mandamentos. O quarto mandamen-to garante e valida a permanência do mandamento para guardarmos o Dia do Senhor e estabelece a guarda do sábado cristão no coração da vida de adoração do povo de Deus. Acho absur-do quando ouço irmãos que, dizendo-se reformados, tentam me convencer que o “shabbat”, o sábado, foi abolido, deixando um dos dez mandamentos fora de validade para a vida do povo de Deus. Na verdade, Deus deu validade à guarda do sábado por colocá-lo dentro do decálogo.

IV) Nosso Senhor Jesus Cristo des-tacou a importância da permanência do shabbat. Jesus nos diz em Marcos 2.27: “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o Filho do Homem é senhor também do sába-do”. O que mais poderíamos dizer com relação a isso? A minha preocupação é simplesmente mostrar a importância do fundamento da guarda permanen-te do shabbat. Deus tem gravado esta verdade em Sua Palavra e nós nos des-viamos dessa ordenança apenas para sermos prejudicados espiritualmente. Pertence nossa obediência à verdade revelada de Deus e nossa submissão ao nosso Pai amorável. Tendo estabe-lecido o fundamento bíblico para o dia

do Senhor e considerando a transição do sábado para o domingo, quero con-siderar quais os benefícios e o signifi-cado de guardar o dia do Senhor.

Significado e Benefícios → O shabbat nos dá uma oportunidade de buscar o Senhor e adorá-lo sem distração. No ano passado passei um tempo no Mar-rocos visitando famílias cristãs. Viver num país muçulmano como aquele significa não ter liberdade para guar-dar o Dia do Senhor como os cristãos gostariam. Mas em países como Bra-sil e Escócia ainda temos o privilégio precioso dado por Deus de preservar e guardar o Dia do Senhor como um dia santo. Irmãos, valorizem o Dia do Senhor; lutem por ele; os assuntos relacionados com a guarda do dia de descanso são profundos. Essa provisão que Deus nos faz que o adoremos sem distração alguma é uma visão que vem do próprio Deus.

O shabbat nos dá oportunidade de adorar coletivamente a Deus e buscá-lO juntos → O shabbat enfatiza o cará-ter bíblico e corporativo do culto que se deve prestar a Deus. O nosso Deus fez uma provisão graciosa por seu povo. Ou seja, que O adoremos juntos.

Esta verdade perece dia após dia em nossa época. Desde o iluminismo, na cultura ocidental e particular, o indi-víduo tornou-se o centro de todas as coisas e essa preocupação absorvente com o indivíduo desfechou um golpe mortal no pensamento bíblico com respeito à aliança. Os cristãos não têm mais qualquer doutrina, não têm mais esta compreensão do caráter coletivo da Igreja, e mesmo cristãos que se pro-fessam reformados não têm mais qual-quer sentido do caráter corporativo do culto da aliança. Estou cada vez mais convencido que o sábado cristão é tal-vez o meio principal usado por Deus de educar o seu povo na vida e no culto do pacto. Guardar o Dia do Senhor, o sába-do cristão, é o antídoto poderoso para aquele individualismo absorvente que marca tanto o mundo que nós vivemos como a igreja de Cristo.

O shabbat coloca diante de nós os grandes feitos de Deus na criação e na redenção → No sábado cristão somos graciosamente capacitados por Deus em nos centralizarmos na criação e na redenção e despertar nossos corações e mentes ao seu louvor. Calvino coloca o seu dedo exatamente nesse ponto. No livro II das Institutas, capítulo 8, ele diz:

Fiquei extremamente espantado quan-do vi que o dia da final do campeonato de futebol era praticado no Dia do Se-nhor e que muitas igrejas cancelavam os seus cultos dominicais para permitir que as pessoas fossem assistir este jogo

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“Durante o repouso do sétimo dia, na ver-

dade, quando Deus determinou que se

descansasse no sétimo dia, o legislador

divino queria falar ao povo de Israel do

descanso espiritual quando os cristãos

devem deixar de lado o seu trabalho

para permitir que Deus trabalhe neles”.

Em outras palavras, o shabbat nos dá oportunidade de repousar de nos-sas próprias obras e nos concentrar nas obras de Deus. Nesse sentido, o shabbat é um símbolo evangélico, um glorioso símbolo semanal da justifica-ção gratuita. Nós vivemos em uma épo-ca em que os cristãos andam em busca de sinais e símbolos. Demos a eles o grande símbolo do Evangelho: um dos grandes símbolos e sinais do Evange-lho é o shabbat que nos foi dado por Deus.

O shabbat destaca a importância dos cultos matinais e vespertinos. Parece muito simplório → Mas mesmo assim é importante falar deles. Honrem o sá-bado cristão, não somente uma parte dele, mas como um todo. Se havia uma coisa que caracterizava a religião puri-tana, a prática puritana, era a maneira cuidadosa que brotava de seus cora-ções e pela qual eles se entregavam

alegremente, de forma não legalista, à guarda do Dia do Senhor.

O Dia do Senhor é uma preparação para o céu → Ouçamos as palavras de Richard Baxter: “Qual o dia mais apropriado para subir ao céu do que aquele em que Ele ressurgiu da terra e triunfou completamente sobre a morte e o inferno? Use o seu shabbat como passos para a glorificação até que te-nha passado por todos eles e chegue à glória”. A religião puritana floresceu no solo regozijante da guarda do sábado cristão. É por causa destas coisas que somos chamados em Isaías 58, pelo próprio Senhor, para considerarmos o sábado como um deleite e a isso ele adiciona uma promessa. Se guardar-mos seus sábados como sendo um de-leite, encontraremos nossa alegria no Senhor.

Esse capítulo 58 de Isaías é mais uma confirmação de que a guarda do sábado cristão deveria ser considerada como parte da Lei Moral e não simples-mente mais uma observância pertinen-tes às leis cerimoniais. Esta passagem de Isaías onde o mero cerimonialismo é denunciado pelo profeta, há um ape-lo para a guarda do sábado como sen-do importante para o culto espiritual.

Sei que existe o perigo de dar ao sábado cristão um lugar central no culto, fazendo com que ele torne-se um exercício de justiça própria. Sabemos da condenação tremenda feita pelo Se-nhor em Isaías 1. Mas os crentes refor-mados deveriam guardar o Dia do Se-nhor de forma santa. Devemos chamá-lo de um deleitoso. Por quê? Por causa de nossa obediência ao nosso Deus e amor ao nosso Salvador. Jesus disse:

“Se vocês me amam, guardem meus mandamentos”.

Neste sentido a guarda do Dia do Senhor, o sábado cristão, ou é o resul-tado da obediência legalista, ou da obe-diência evangélica. Se for o produto de uma obediência legalista, a guarda do dia do Senhor será sem alegria, monó-tona, formal e alguma coisa que sim-plesmente traz auto-justiça e vaidade pessoal. Mas se a guarda do Dia do Se-nhor é o resultado de uma obediência evangélica, será profundamente rego-zijante. Diremos como o salmista: “Ale-grei-me quando me disseram, vamos à casa do Senhor”. Se for uma guarda por causa de uma obediência evangélica, será algo refrescante que nos revigora e nos humilha.

John Murray, cujos escritos trou-xeram uma impressão inapagável na minha vida quando moço (Por exem-plo: Redenção, Conquistada e Aplicada (Cultura Cristã ― Obra que considerei como a melhor peça sobre justificação jamais escrita por alguém), disse: “O shabbat semanal é uma promessa, um sinal, e um antegozo daquele descanso consumado. A filosofia bíblica do sha-bbat é de tal maneira, que negar sua perpetuidade é privar o movimento da redenção de uma das suas mais precio-sas características”.

Vivemos numa época em que mais do que nunca precisamos resgatar o shabbat para o povo de Deus, porque amamos o povo de Deus e desejamos seu bem diante de Deus. Sabemos que

ian haMiltOn

“Qual o dia mais apropriado para subir ao céu do que aquele em que Ele ressur-giu da terra e triunfou completamente

sobre a morte e o inferno?

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Deus quer abençoar Seu povo com isso. Mas sabemos também que a bênção que Ele deseja dar nunca virá sem a honra que o povo deve ao Dia do Se-nhor. Pelo bem espiritual dos nossos filhos devemos educá-los ensinando a honrar o Dia do Senhor, mas não como uma coisa rotineira e sem ale-gria. Como poderia o cultuar a Deus e esperar nEle ser algo monótono ou cansativo? Na verdade, o Dia do Se-nhor foi algo criado por Deus para o bem de Seus filhos. Estou quase con-vencido que o sucesso dos puritanos pode ser traçado por seu compromisso de guardar o Dia do Senhor para honra de Deus. Deus abençoou grandemente seus labores, seus escritos, porque fo-ram homens e mulheres que honraram o dia do Senhor.

Finalmente cito Baxter porque creio que suas palavras expressam o coração da compreensão puritana com respeito ao shabbat: “Que dia é mais apropria-do para subir ao céu do que aquele em que ele ressurgiu da terra e triunfou plenamente sobre a morte e o inferno? Use seus shabbats como passos para a

glória até que tenha passado por todos eles e lá tenha chegado”.

O Dia do Senhor é para o povo do Senhor como um antegozo ou penhor do céu que nós tanto almejamos. Nós desejamos e sonhamos com aquele dia em que estaremos com o Senhor para sempre. Até que aquele dia venha, faça-mos do Dia do Senhor tudo aquilo que Deus gostaria que fizéssemos. Que seja o pulso palpitante da vida espiritual da

Igreja e que partindo de nossa obedi-ência evangélica nos reunamos para o encontro com nosso Deus e para rece-ber as promessas que Ele decidiu nos dar, para aqueles que honram o Seu dia, porque assim honram aquEle que instituiu esse dia.

Amém!

Pr. Ian Hamilton é ministro da Cambridge Presbyte-rian Church, Inglaterra

O Dia DO senhOR e O CultO RefORMaDO

A guarda do Dia do Senhor ou é o resultado da obediência legalista, ou da obediência evangélica. Se for legalista será sem alegria. Se evangélica, será

profundamente regozijante.

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