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    A pica mitolgica de Quinto de Esmirna: continuidade, transformao e reescrita

    Autor(es): Pinheiro, Joaquim

    Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/40829

    DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/2183-1718_68_9

    Accessed : 3-Jan-2017 10:23:12

    digitalis.uc.pt

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    https://doi.org/10.14195/2183-1718_68_9

    A pica mitolgica de Quinto de Esmirna: continuidade, transformao e reescrita1

    The mythological epic of Quintus Smyrnaeus: continuity, transformation and rewriting

    Joaquim Pinheiro Universidade da Madeira

    Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de [email protected]

    Artigo recebido a 08-04-2016 e aprovado a 03-10-2016

    Resumo O modelo homrico est muito presente no poema pico Posthomerica

    de Quinto de Esmirna, e, por isso mesmo, o poeta, durante o Renascimento, foi considerado homerikotatos. No entanto, a par da aemulatio, h vrios elementos que denotam a inteno de transformar e reescrever alguns episdios mitolgicos, numa construo potica que deixa transparecer caractersticas prprias da sua poca. Nesse sentido, propomo-nos identificar e analisar alguns desses traos inventivos, seleccionando episdios suficientemente representativos da pica mitolgica de Quinto de Esmirna.

    Palavraschave: Posthomerica, Quinto de Esmirna, pica, mitologia clssica.

    AbstractThe homeric model is conspicuously evident in the epic Posthomerica by

    Quintus Smyrnaeus. For this reason, Quintus was considered as a homerikotatos in Renaissance. Nevertheless, alongside aemulatio, there are a series of topics that

    1 Com vrias alteraes, este estudo tem por base o texto apresentado no Congresso Internacional Comemorativo dos 25 anos da APLC, em Dezembro de 2012, na Universidade de Aveiro.

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    denote the intention of transforming and rewriting some mythological episodes, in a poetic construction that reveals some characteristics of Quintus times. As such it is the aim of this research to identify and analyse some of those inventive features by selecting some of the most representative episodes of Quintus poem.

    Keywords: Posthomerica, Quintus Smyrnaeus, epic, classical mythology.

    Ao longo de cerca de 8800 versos, divididos por catorze livros (usa o termo logos e no rapsodia), Quinto de Esmirna legou-nos um poema pico, cujo ttulo deixa transparecer, partida, que o tema estar relacionado com os acontecimentos depois de Homero. De facto, Quinto recupera a temtica de alguns poemas perdidos do Ciclo pico e completa a histria entre a Ilada e a Odisseia, ou seja, entre os episdios que preparam a tomada de Tria e o retorno dos Aqueus. O incio in medias res e sem promio permite perceber que a narrao se ocupa do momento post mortem de Heitor.

    A intertextualidade da Posthomerica com os Poemas Homricos, um dos nossos objectivos de anlise, bastante intensa, de tal forma que trs dos manuscritos que sobreviveram do poema de Quinto se encontravam entre a Ilada e a Odisseia, facto que pode ser um sinal de que o poema merecia figurar entre essas picas maiores.

    O prprio poeta, no Livro XIV, resume os principais acontecimentos pr-homricos (a reunio do exrcito aqueu em ulide antes de partir para Tria; as conquistas de Aquiles; a vitria do Pelida sobre Tlefo, Ecion e Cino), os episdios da Ilada (o sofrimento dos Aqueus durante a ausncia de Aquiles; a morte de Heitor e os maus-tratos a que o seu cadver sujeito) e os feitos que se seguiram e que no constam da Ilada (o combate vitorioso de Aquiles contra Pentesileia e Mmnon, a morte de Glauco, os sucessos de Neoptlemo e de Filoctetes, o ardil do cavalo de Tria e a tomada da cidade de Pramo), ou seja, o contedo essencial do poema.

    Para alguns estudiosos, atendendo ao metro (hexmetro dactlico), s frmulas, linguagem ou ao estilo, a Posthomerica no passa de uma mera aemulatio de Homero. O estudo de Appel2 sobre a presena do hapax legomenon homrico no poema de Quinto, argumenta a favor dessa profunda influncia3. No h, provavelmente, nenhum poema pico que reproduza, como o faz a Posthmerica, a linguagem e o estilo dos Poemas Homricos.

    2 Appel 1994.3 Cf. Br 2007: 63.

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    continuidade, transformao e reescrita

    Basta lembrar que 720 adjectivos da Posthomerica se encontram nos Poemas Homricos e apenas 220 que no4. Sobretudo aps os estudos de F. Vian, a abordagem do poema tem vindo a ser alterada. J no se considera Homero o nico modelo, mas constata-se a influncia das picas de Hesodo ou de Apolnio de Rodes e do drama trgico, como o jax e o Filoctetes de Sfocles, e as Troianas e Hcuba de Eurpides. Alm destas obras, Quinto ter sido influenciado por vrias obras do perodo helenstico, como a Alexandra de Lcofron, os Theriaka de Nicandro, os Phaenomena de Arato, ou a Halieutika de Opiano. A estas e outras obras da literatura grega, h a juntar as fontes latinas, muito defendidas por estudos mais recentes, como so o caso da pica vergiliana, as Metamorfoses de Ovdio ou as Troianas de Sneca. Quanto s possveis fontes que Quinto ter usado, preciso ter em conta que desconhecemos, em larga medida, a evoluo do gnero pico entre Apolnio de Rodes e a Posthomerica, facto que nos obriga a vrias cautelas. Bem como o facto de pouco sabermos, por exemplo, sobre a pica, do sculo III, de Pisandro de Laranda (Teogamias hericas, em 60 livros).

    bvio que compor uma pica aps os Poemas Homricos inscrev-la no passado e declarar uma natural dvida a um gnero com um modelo pr-determinado. Por ter plena conscincia dessa ligao ao passado, Goldhill5 considerou o seguinte: To write epic is to write within a genre wich cannot escape the past. De facto, causa alguma estranheza ler um poema, no perodo imperial, com evidentes marcas da composio oral. Durante a Idade Mdia, por exemplo, o poema de Quinto sobreviveu mais como guia para se saber o que aconteceu aps a Ilada, do que pelas suas qualidades literrias. Para Maciver6, a negativa recepo do poema no foi por causa de imitar a poesia homrica, mas por causa da monotonia e de ser um poema de extremos. A monotonia resulta, sobretudo, do uso de tcnicas de composio oral, como o caso do smile, pois, muito embora a diferena do nmero de total de versos entre a Ilada e a Posthomerica, Quinto usa 226 smiles longos, enquanto no poema homrico esto identificados 197. Quanto ao facto de ser um poema de extremos, Maciver7 considera que h uma tendncia em Quinto para o recurso a um vocabulrio hiperbolizante e junta ainda um

    4 Para estes dados, vide Vian 1959: 182-192; Br 2007: 58 lista os vocbulos favoritos (Lieblingswrter) de Quinto. De uma forma geral, os estudos editados por Baumbach e Br 2007 foram muito importantes para a nossa reflexo.

    5 Goldhill 1991: 285-286.6 Maciver 2012: 13-14.7 Maciver 2012: 13-14.

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    outro argumento: na Posthomerica temos duas ekphraseis de escudos, o de Aquiles (Livro V) e o de Eurpilo (Livro VI), enquanto na Ilada s se encontra a do escudo de Aquiles (XVIII). Apesar destas interpretaes, no devemos esquecer que a Posthomerica no um poema clssico, no seu verdadeiro sentido, mas do perodo Imperial. Quinto, como poeta criativo, no estava obrigado a seguir a verso tradicional, como j, alis, Eurpides havia feito, podendo manipular os mitos de acordo com o propsito do seu poema. Veja-se, por exemplo, o protagonismo que Neoptlemo, filho de Aquiles, assume na parte central do poema.

    Alm de ter ocorrido uma alterao na identificao das fontes do poema de Quinto, tem havido, tambm, um cuidado diferente na anlise dos processos poticos, da prpria tcnica retrica e caracterizao das personagens, luz das correntes filosficas que se foram desenvolvendo na cultura antiga, como o Estoicismo. Por conseguinte, o poema em estudo no tem apenas interesse mitogrfico, mas tambm literrio e cultural, muito embora no seja Quinto um poeta erudito do nvel de Calmaco ou Apolnio de Rodes.

    Na poca de Quinto, como refere G. W. Bowersock8, a reviso da temtica homrica (homeric revisionism) uma das bases da produo ficcional. Na verdade, em algumas obras da Segunda Sofstica, como a Verae historiae de Luciano, o Troikos de Don Crisstomo ou o Heroikos de Filstrato, gera-se um confronto com Homero, caracterizando-se este como mentiroso. Apesar disso, esses autores e o prprio Quinto, ao recuperarem os Poemas Homricos, reconhecem o seu valor cultural e identitrio para os Gregos. Ainda assim, o momento histrico em que vivem exige uma reviso, adaptao ou reformulao, de modo a que a leitura suscite o interesse dos Gregos, cidados do Imprio Romano. Alm disso, tornar a Guerra de Tria o tema central de um poema pico do sculo III corresponde, de alguma forma, vontade dos ouvintes ou leitores, na medida em que um sucesso militar deste nvel estimularia o sentido identitrio e reforaria a memria de um passado grandioso. H mesmo quem entenda que a Guerra de Tria, em particular a tomada de Tria, poderia ser entendida como uma aluso mitolgica s Guerras Medo-Persas.

    Quando se aborda a relao de Quinto com a sua poca, surge, inevitavelmente a problemtica do enquadramento de um poema com as caractersticas da Posthomerica na Segunda Sofstica, perodo entendido como um fenmeno cultural e poltico, marcado pela revitalizao de normas

    8 Bowersock 1994: 21.

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    195A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:

    continuidade, transformao e reescrita

    e valores do perodo clssico, num contexto em que os Gregos vivem sob o domnio Romano. Nesse sentido, ganha especial dimenso o binmio erudio e poder, enfatizando-se o valor da paideia, em particular da paideia retrica, e do pepaideumenos9. Para Whitmarsh10, h pelo menos quatro elementos fundamentais na Segunda Sofstica: linguagem, retrica, recepo de temas clssicos e ligao ao poder poltico. Note-se, ainda, que para este estudioso a Segunda Sofistica um fenmeno literrio marcado pela escrita em prosa, predominantemente em dialecto tico. Ora, Quinto no escreve em prosa, mas em poesia, e em dialecto homrico e no em tico. Talvez por isso, o poema de Quinto seja muitas vezes ignorado quando se discutem as caractersticas da Segunda Sofstica. Ainda assim, estudos mais recentes tendem a redefinir a relao da Posthomerica com a sua poca e com os poemas picos que a precedem.

    O processo de reformulao ou transformao bem notrio a partir de uma anlise estrutura sumria da Posthomerica. Seno vejamos11:

    Livro I Pentesileia: chegada, aco e morte Livros I a IV: chegadas e mortes.

    Livro II Mmnon: chegada, aco e morteMorte de Antloco

    Livro III Morte de AquilesLivro IV Jogos fnebres em honra de AquilesLivro V Julgamento das armas

    Ekphrasis do escudo de AquilesLivros V a VI: os escudos; jax

    Telamnio que tinha tido sucesso nos Jogos (IV), perde na luta pelas armas de Aquiles e suicida-se (V)Livro VI

    Chegada e aco de Eurpilo Ekphrasis do escudo de Eurpilo

    Livro VII Chegada e aco de Neoptlemo Livros VII a X (estrutura ABAB): o maior combate do poema Neoptlemo-Eurpilo (Aquiles-Heitor), antecede a tomada de Tria; o resultado da embaixada a morte de Eurpilo e de Pris.

    Livro VIII Combate entre Neoptlemo e Eurpilo

    Morte de Eurpilo

    Livro IXFiloctetes volta a aco junto dos

    Aqueus

    Livro XMorte de PrisMorte de Enone12

    9 Cf. Withmarsh 2001: 17-20.10 Whitmarsh 2005.11 Para uma estrutura temtica mais pormenorizada de cada livro, vide James 2004:

    239-265. Na Brills New Pauly, s.u. Quintus, apresenta-se uma estrutura tripartida: 5 (Livros I, II, III, IV, V) +4 (VI, VII, VIII, IX) +5 (X, XI, XII, XIII, XIV).

    12 Ninfa que se recusa a curar Pris, apesar de ter o dom de conhecer plantas medicinais, mas como foi trocada por Helena, resolve vingar-se.

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    Livro XI Combate em redor de Tria Livros XI a XIV: volta-se ao tema central, a tomada de Tria, que se concretiza por meio de dois estra-tagemas: o cavalo e o sacrifcio a Polxena, essencial para o nostos. Os sucessivos relatos de nostoi no final do poema estabelecem um contraponto com a descrio da chegada de aliados dos Troianos no incio do poema.

    Livro XII O ardil do cavalo Snon, Laocoonte e Cassandra;

    invocao Musa e catlogo dos heris

    Livro XIII Tomada de TriaMorte de Pramo; captura de Helena

    Livro XIV O nostos dos Aqueus Helena e os Aqueus; jax e a sua

    hybris

    De acordo com esta estrutura, verifica-se que os temas surgem por ordem cronolgica, sem que isso signifique que Quinto no recorra a tcnicas como a analepse e a prolepse, to prprias do estilo pico, desde os Poemas Homricos. O nico episdio que foge ordem seguida pela tradio o da chegada de Neoptlemo anteceder a de Filoctetes e a morte de Pris. Embora no seja tema do nosso trabalho, gostaramos de registar que, neste caso, as diferenas em relao tragdia Filoctetes de Sfocles so vrias. Alm disso, cada livro do poema tem um tema central, com o qual se enlaam outros temas menores. Ainda sobre a alterao cronolgica associada a Neoptlemo, verifica-se que os Livros VI a VIII so dominados pela rivalidade entre o filho de Aquiles e Eurpilo, sucessor, entre os Troianos, de Heitor. Quanto a Neoptlemo, assume maior relevo aps a morte do seu pai (Livro III) e o suicdio de jax (Livro V), o que faz dele o maior heri13 da pica de Quinto.

    De facto, ao longo dos catorze livros, Quinto recupera grande parte das cenas tpicas da poesia pica: a viagem; o momento da chegada e da partida; os heris reunidos em Assembleia; a embaixada; o combate; a disputa das armas ou luta em redor do cadver; a tempestade; a morte e a reaco de dor que ela inspira aos companheiros enlutados; os jogos fnebres, entre outros. No se trata sempre de uma simples aemulatio, mas denota o texto de Quinto o entrecruzar de vrias tradies e concepes filosficas, o que obriga o leitor a empreender um viagem intertextual na busca de uma fonte ou de uma verso mitolgica mais rebuscada.

    Quinto no se esquece de abordar no seu poema os motivos da Guerra de Tria, um topos de longa tradio. Para Menelau, Helena e ele prprio so os maiores culpados de tamanho sofrimento entre os Aqueus14.

    13 Sobre o conceito de heri em Quinto de Esmirna, vide Pinheiro 2012: 191-8.14 cf. 6. 22-6:

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    197A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:

    continuidade, transformao e reescrita

    Ainda assim, acaba por desculpar Helena, por ter sido vtima da aco do Destino15. A prpria Helena, alega em sua defesa, que, na ausncia de Menelau, Pris e os seus companheiros troianos a raptaram16. Note-se que no momento do reencontro de Menelau e Helena, no Livro XIII, apesar da vontade de se vingar e de matar Helena, o irmo de Agammnon, v o seu nimo apaziguar-se, por aco de Afrodite, aps contemplar a radiante beleza ( 17) de Helena. Nesse episdio, Agammnon acalma a clera de Menelau, lembrando-lhe que, aps tantos sofrimentos que os Aqueus padeceram, no pode eliminar a sua legtima esposa ( 18), at porque ela no culpada, mas sim Pris19.

    Um episdio paradigmtico do trabalho de transformao e de reescrita de Quinto o da justificao da presena de Pentesileia em Tria, no incio do Livro I. Segundo Helnico (FGrHist Ia,4, fr. 149), Pentesileia vai guerra em busca de glria (). Para Diodoro Sculo20, porm, a rainha das Amazonas vai a Tria purificar-se da morte involuntria da sua irm Hiplita. Justifica-se, assim, a presena de Pentesileia como aliada dos Troianos, j que em princpio as Amazonas seriam suas inimigas, pois, na Ilada21, Pramo recorda ter combatido contra elas na juventude. Quinto, conhecedor da tradio, no exclui nenhuma das razes e apresenta-as, num processo de contaminatio, para justificar a presena de Pentesileia e das suas doze companheiras. Por vezes, o poeta usa diferentes episdios dos Poemas Homricos que adapta ao seu texto. Isso sucede na narrao

    , , , . ()Tendo aqueles sucumbido [jax e Aquiles], no acredito que ns escapemos runa, mas seremos vencidos pelos terrveis troianospor causa de mim e de Helena, olhos de cadela, que agora no me preocupa tanto como vs, quando vos vejo a sucumbirno combate. ()15 cf. 10. 396.16 cf. 14.155 ss.; ver o discurso de defesa de Helena nas Troianas 919-965, de Eurpides.17 13. 394.18 13. 410.19 Na Ilada 3. 173-5 e na Odisseia 23. 218-221, Helena deu o consentimento e fugiu

    como amante de Pris.20 Cf. 2. 45. 5.21 Cf. 3. 188 ss.

  • 198 Joaquim Pinheiro

    das honras fnebres de Aquiles, em que o poeta se inspira no ltimo canto da Odisseia22, mas tambm recorre a elementos dos jogos em honra de Ptroclo23. Algo semelhante sucede quando Briseida chora junto ao corpo de Aquiles24, episdio que nos remete para a despedida de Heitor e Andrmaca25 e para o pranto da prpria Briseida junto ao corpo de Ptroclo26. Ou quando descreve o combate em volta do cadver de Aquiles27, num exerccio de reescrita, apoiado nas descries deste gnero da Ilada, de combates volta do corpo, por exemplo, de Sarpdon28 e de Ptroclo29. Da mesma forma, Quinto aproveita o conhecido episdio dos cavalos que choram a morte de Ptroclo, na Ilada30, mas agora coloca-os a chorar a morte de Aquiles31 e junta a essa tradio o facto de esses animais passarem a ser pertena de Neoptlemo. Em outros casos, Quinto sintetiza o essencial do episdio, como ocorre na morte de Sarpdon32, da qual resulta a lio de que o prprio Zeus, pai dos deuses, ao ver o seu filho beira da morte, nada pode contra o desgnio superior do destino.

    No livro III, para a descrio da morte do Pelida, Quinto tem uma longa tradio. Como entende que s um deus poderia pr termo vida do maior heri aqueu33, segue a verso que apresenta Apolo como o nico responsvel, tal como surge na Ilada34, no Filoctetes35, de Sfocles, ou na Andrmaca36, de Eurpides. Afasta-se, desta forma, da tradio que atribui

    22 Cf. 24. 43-92.23 Cf. Il. 23.24 Cf. 3. 560.25 Cf. Il. 392-496.26 Cf. Il. 19. 282-300.27 3. 213 ss.28 Il. 16. 532-683.29 Il. 17. 120-425.30 17. 426-455.31 Cf. 3. 742 ss.32 Cf. Il. 16. 419-683 e Posth. 1. 711.33 3. 429-30:(). , . No possvel que o tivesse ferido algum dos mortaisque habita sobre a terra de amplas plancies.34 Cf. 21. 227 s.35 Cf. 334.36 Cf. 1108.

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    199A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:

    continuidade, transformao e reescrita

    a Pris um papel relevante, como sucede na pica vergiliana37 ou mesmo da verso em que s Pris d a morte a Aquiles (Eurpides, Hcuba38 ou Plutarco, No Banquete39 e Comparao Lisandro-Sula40).

    Na Posthomerica, possvel encontrar um tom moralizador, uma marca distintiva em relao aos Poemas Homricos, que atinge a prpria caracterizao dos heris. Ao passo que na Ilada se apresenta Pris como um mulherengo, sem especiais dotes guerreiros, nem uma valentia que o distinga enquanto filho de Pramo, na Posthomerica o irmo de Heitor retratado como um heri combativo e que se esfora para poder suceder ao irmo. Ao contrrio do que sucede no poema homrico, Quinto descreve um clima de maior concrdia entre os Aqueus41, embora isso no se fique a dever ao papel de Agammnon, pois este perde um pouco da sua individualidade enquanto lder.

    De uma forma geral, Quinto apresenta uma concepo da condio humana muito prxima da que exposta nos Poemas Homricos, embora se note uma maior correlao entre crime e castigo. H a noo de que, por um lado, a existncia humana efmera (to depressa floresceu, como murchou42) e, por outro, resta aos mortais aceitar aquilo que os deuses lhes reservam, seja bom ou mau43. Afirma mesmo que sem se ver que se conduz a vida dos homens44. O homem, segundo Quinto, deve viver conforme a natureza, pois acredita na necessidade de uma ordem csmica, que se manifesta na Posthomerica pelo poder do Destino (Aisa, Ker ou

    37 Cf. 6. 56-8.38 Cf. 387.39 Cf. 742B.40 Cf. 4.3.41 Cf. 1.767-781: querela entre Diomedes e Aquiles rapidamente resolvida.42 7. 44; cf. Il. 6. 146-9.43 7. 52-5: , .Sei bem que como todos os homens percorremos o mesmocaminho do Hades, e para todos chega o funestotermo da morte gemedora. Convm que quem mortalaceite tudo quanto um deus d, alegrias ou penas.44 cf. 7. 80.

  • 200 Joaquim Pinheiro

    Keres, Moira ou Moirai, moros, daimon e ananke)45, facto que poder significar a adeso de Quinto s ideias esticas.

    Apesar de o heri surgir, em geral, mais humanizado, continua a ser um mortal com capacidades especiais, salvo algumas excepes, como a de Tersites. Tm, por exemplo, ossos ()46 diferentes, de tamanho superior, semelhantes aos de um Gigante. Este trao distintivo dos heris mticos aparece muito na poca imperial, havendo, por exemplo, em Pausnias47, a descrio da descoberta de enormes ossos humanos. Em Proprcio48, por sua vez, Briseida aparece com os enormes restos mortais de Aquiles nas suas pequenas mos. Ainda em relao s caractersticas fsicas dos heris, um dos passos que melhor descreve o paradigma herico encontra-se numa das provas dos jogos fnebres em honra de Aquiles: o lanamento do disco, j presente na Ilada49. Conta o poeta que, por ser o disco muito pesado, os Argivos, com excepo de jax, no conseguiam lan-lo. De tal forma que foram precisos dois homens para trazer o disco para os jogos. Estabelece, assim, o contraste entre um poderoso e gil heri do passado e os dbeis homens do presente. No se trata de um topos pico novo, atendendo ao facto de tal distino j se encontrar nos Poemas Homricos50 ou na Argonutica de Apolnio de Rodes51.

    Da sua relao desconcertante com os deuses, com o destino e a incerteza, emerge a imagem de um heri bastante conotado com o ideal homrico. Tambm por isso alguns fillogos ainda olham para a Posthomerica como um mero exerccio de erudio mitolgica, onde, de forma pontual, se podem encontrar sinais de uma poca marcada pelo compromisso entre a cultura grega e o imprio romano52. Dificilmente se encontrar uma relao inequvoca entre o pepaideumenos, homem culto que optou pela paideia acessvel ao cidado imperial, e os heris de Quinto de Esmirna. Nem o episdio da clera de jax e toda a aco que da decorre nos permite defender que os heris de Quinto exibem uma mais apurada complexidade

    45 Recorde-se as palavras de Pndaro: O destino inato decide sobre todos/os trabalhos (Nemeia 5, 40-41).

    46 cf. 3. 723 (ossos de Aquiles).47 cf. 8. 29.3 e 32. 5.48 cf. 2. 9. 13 s.49 cf. 23. 826-849.50 cf. Il. 5. 303 s., 12. 447-449.51 cf. 3. 1365-1368.52 S. Sad et al. 2004: 453.

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    201A pica mitolgica de Quinto de Esmirna:

    continuidade, transformao e reescrita

    psicolgica, pois isso seria esquecer heris homricos como Aquiles, Heitor, Telmaco ou Ulisses. O que Quinto consegue, parece-nos, conciliar, com algum engenho, aquilo que a tradio da tcnica pica, incluindo as marcas da transmisso oral, com uma estrutura pontuada por algumas etiquetas retricas, como a ekphrasis, por vezes longas, mas capazes de se tornarem uma sntese de vrias verses mticas. Por isso, torna-se em relao a algumas narrativas mitolgicas uma fonte imprescindvel, como a do combate de Aquiles com a amazona Pentesileia.

    Guarda-se, nesse sentido, do retrato do heri a sua excelncia, audcia, determinao ou entrega constante e esforada a um objectivo que lhe poder trazer a glria e a fama duradouras. Para atingir esse fim, o heri na Posthomerica no consegue, em muitas das suas aces, controlar o impulso () que o faz agir de forma irracional, com excesso, exibindo o seu carcter indmito. Ao contrrio de outros autores da poca imperial, Quinto de Esmirna no analisa em profundidade a physis, nem como ela pode ser moldada. Tudo parece, assim, estar subordinado vontade do Destino e interveno dos deuses.

    Em concluso, podemos afirmar que Quinto prova com a Posthomerica ter sido um leitor e profundo conhecedor dos Poemas Homricos, mas tambm de outros textos clssicos que convocou para o seu exerccio potico, resultando um poema de vocao intertextual e estruturalmente exigente, em que a sequncia da narrativa mitolgica selecciona, combina, sintetiza ou transforma verses anteriores, indagando, por isso, o leitor, que se v obrigado a uma viso prismtica ou a uma viagem intertextual. Mesmo ao nvel das personagens, a pica de Quinto consegue enquadr-las e dar-lhe uma nova dimenso no conjunto da histria, como sucede com Neoptlemo, Eurpilo, Enone, Snon ou Laocoonte. A Posthomerica conjuga, assim, tradio e inovao, num estilo diversificado e que, tambm por isso, foge a qualquer tentativa de definio mais rgida.

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