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176 ARTIGO A discreta transição da Coreia do Norte: diplomacia de risco e modernização sem reforma The cautious transition of North Korea: venture diplomacy and modernization without reform http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329201400310 PAULO FAGUNDES VIZENTINI* ANALÚCIA DANILEVICZ PEREIRA** Rev. Bras. Polít. Int. 57 (2): 176-195 [2014] A República Popular Democrática da Coreia/RPDC (Coreia do Norte) é um dos Estados menos conhecidos e difíceis de compreender do mundo, e uma das razões disso é a contínua criação política de narrativas ideológicas caricaturais promovidas por atores Ocidentais. Mesmo no meio acadêmico, constitui um tema tabu, o que prejudica a análise de processos em curso, que passam despercebidos. Apesar de considerada um fóssil da Guerra Fria, sempre no limite do colapso, o que se observa é uma população que demonstra vitalidade e um hábil regime que domina a arte da política e da diplomacia. Senão, como explicar sua sobrevivência numa situação permanentemente adversa? Todavia, a questão que será abordada, é a existência de um peculiar processo de transição por parte da nova liderança, que busca uma paradoxal modernização sem reforma. Uma estratégia insensata e suicida, ou sua reelaboração, com base em sólidas tradições políticas? Condicionantes históricos do nacionalismo e da revolução A Coreia constitui uma nação antiga, homogênea e de notável continuidade histórica, que realizou uma das revoluções menos conhecidas no Ocidente, e a divisão da península, por razões diplomáticas, fez com que a revolução ficasse restrita ao Norte, embora fosse um fenômeno nacional. O país constitui a única nação completamente encravada entre grandes potências: China, Rússia, Japão e, * Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil ([email protected]). ** Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil ([email protected]).

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Artigo sobre transição na Coréia do Norte

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    Artigo

    A discreta transio da Coreia do Norte: diplomacia de risco e modernizao sem reforma

    The cautious transition of North Korea: venture diplomacy and modernization without reform

    http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329201400310

    PAULO FAGUNDES VIZENTINI*ANALCIA DANILEVICZ PEREIRA**

    Rev. Bras. Polt. Int. 57 (2): 176-195 [2014]

    A Repblica Popular Democrtica da Coreia/RPDC (Coreia do Norte) um dos Estados menos conhecidos e difceis de compreender do mundo, e uma das razes disso a contnua criao poltica de narrativas ideolgicas caricaturais promovidas por atores Ocidentais. Mesmo no meio acadmico, constitui um tema tabu, o que prejudica a anlise de processos em curso, que passam despercebidos. Apesar de considerada um fssil da Guerra Fria, sempre no limite do colapso, o que se observa uma populao que demonstra vitalidade e um hbil regime que domina a arte da poltica e da diplomacia. Seno, como explicar sua sobrevivncia numa situao permanentemente adversa? Todavia, a questo que ser abordada, a existncia de um peculiar processo de transio por parte da nova liderana, que busca uma paradoxal modernizao sem reforma. Uma estratgia insensata e suicida, ou sua reelaborao, com base em slidas tradies polticas?

    Condicionantes histricos do nacionalismo e da revoluo

    A Coreia constitui uma nao antiga, homognea e de notvel continuidade histrica, que realizou uma das revolues menos conhecidas no Ocidente, e a diviso da pennsula, por razes diplomticas, fez com que a revoluo ficasse restrita ao Norte, embora fosse um fenmeno nacional. O pas constitui a nica nao completamente encravada entre grandes potncias: China, Rssia, Japo e,

    * Departamento de Economia e Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil ([email protected]).

    ** Departamento de Economia e Relaes Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil ([email protected]).

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    pela projeo de poder na regio, Estados Unidos. Esta circunstncia condicionou sua poltica externa, tanto como pas unido e subjugado ao Japo que foi no passado, quanto posteriormente como nao dividida por uma guerra civil e pela rivalidade internacional da Guerra Fria. Ainda que assegurando forte identidade, unidade e continuidade histrica, a Coreia gravitou, ao longo de sua evoluo, entre o sistema tributrio chins, o isolamento e a interao com o Japo. Esta situao, contudo, enfraqueceu-se desde meados do sculo 19, na medida em que a China era progressivamente subjugada pelas potncias ocidentais e pela derrota frente ao Japo em 1894-1895, o qual derrotou a Rssia em 1904-5 e anexou a Coreia em 1910.

    O colonialismo japons na Coreia foi peculiar. Ainda que oprimindo poltica e culturalmente os coreanos e explorando-os como mo de obra barata, os japoneses criaram uma infraestrutura moderna no pas (transporte e administrao), bem como uma base industrial e mineradora considerveis. Isso se devia no apenas a um projeto assimilacionista e proximidade entre o arquiplago e a pennsula, mas tambm prpria estrutura da economia japonesa e s circunstncias regionais. Dessa forma, a Coreia, ainda que permanecesse como um pas de desenvolvimento limitado teve um processo de modernizao repleto de consequncias sociais, polticas e econmicas. A dominao estrangeira estimulou o nacionalismo coreano e a transio para a uma estrutura socioeconmica modernizada.

    Dominada pelo Japo e constituindo sua linha de frente no continente, a Coreia fazia fronteira com a China, mergulhada na guerra civil, e com a Rssia, convertida em Unio Sovitica. Esta, alm da recuperao de sua posio de potncia, passou a constituir uma base de apoio aos movimentos nacionalistas coreanos que emergiam, da mesma forma que os comunistas chineses. Este processo se aprofundou com a invaso japonesa da Manchria e, depois, do resto da China, com uma vaga de refugiados coreanos e o estabelecimento de guerrilhas esquerdistas na fronteira sino-coreana. Enquanto muitos coreanos se uniam s guerrilhas comunistas chinesas, outros seguiam operando na regio fronteiria e, ocasionalmente, se refugiando na URSS, onde recebiam treinamento. Em 1925, havia sido fundado o Partido Comunista Coreano e, em meados dos anos 1930, os japoneses consideravam o jovem Kim Il Sung como um dos mais perigosos lderes guerrilheiros na fronteira da Manchria e da Coreia (Scalapino 1972).

    A Coreia e o nordeste da China, ao longo da Segunda Guerra Mundial, tornaram-se uma praa de armas para os japoneses, zona de posicionamento de reservas militares e de centros industriais, por estar imune aos bombardeios americanos. Dessa maneira, quando o conflito chegava ao seu final, a URSS foi instada a atacar os japoneses nesta regio, o que se deu em agosto de 1945, simultaneamente ao bombardeio nuclear das cidades de Hiroshima e Nagasaki. Mas nada fora acordado sobre a Coreia, dividida de forma ad hoc.

    A diviso da Coreia resultou da confluncia da clivagem sociopoltica interna com a partilha geogrfica da pennsula coreana entre os Estados Unidos e a Unio Sovitica, na altura do paralelo 38. A resistncia antijaponesa havia estabelecido

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    comits populares imediatamente aps a rendio do Japo, porm, ao sul da linha demarcatria, os EUA mantiveram as unidades pr-japonesas em funes de polcia, dissolvendo os comits, que se mantiveram apenas no norte. Uma situao de transitoriedade vigorou at 1948, com uma ocupao militar que desrespeitava o direito autodeterminao dos coreanos, que esperavam sua libertao com a derrota do militarismo japons.

    Contudo, em seguida o equilbrio estratgico asitico estruturado pelos EUA iria desabar. Washington derrotara o Japo e procurava fortalecer a posio da China, governada pelo Kuomintang, concedendo-lhe ajuda econmica e militar, tornando-a um membro permanente do Conselho de Segurana da ONU. Esta frgil e pouco realista arquitetura diplomtica, contudo, desmoronou devido ao triunfo da Revoluo Chinesa e proclamao da Repblica Popular da China em 1 de outubro de 1949. Assim, o estabelecimento de dois Estados coreanos, com regimes polticos opostos e estreitamente ligados s potncias lderes de cada um dos dois blocos, viria a se tornar ainda mais problemtico, com a criao de um regime socialista na China.

    A guerrilha antijaponesa e os movimentos nacionalistas da Coreia criaram Comits Revolucionrios por todo o pas, os quais se reuniram em assembleia em Seul e proclamaram a Repblica Popular em 6 de setembro de 1945. Dois dias depois, os americanos desembarcaram e ocuparam o sul da Coreia, enquanto dissolviam os Comits, efetuavam prises e traziam dos EUA Syngman Rhee para formar um governo apoiado nos notveis pr-japoneses. No norte, manteve-se a Repblica Popular, liderada pelo jovem comunista Kim Il Sung, e foi implementada uma reforma agrria que consolidou o apoio ao regime. Uma comisso da ONU declarou Syngman Rhee governante do sul, apesar da violncia poltica. Em 1948, eclodiram revoltas populares nas provncias sulistas de Yosu e Cheju Do, e lderes moderados pr-unificao foram assassinados, ao passo que os soviticos, se retiravam do norte (Armstrong 2003).

    Ao lado de graves problemas internos, Rhee passou a enfrentar uma ameaa externa ainda maior. Em janeiro de 1950, o Secretrio de Estado Acheson declarou que o permetro defensivo americano se estendia das Aleutas (no Alasca) s Filipinas, passando pelo Japo (o que exclua Formosa e Coreia do Sul). A resposta da direita republicana e democrata foi imediata: MacArthur conseguiu o envio da esquadra para o estreito de Formosa e insuflou um clima de guerra com apoio dos ameaados Chang e Rhee (que acabara de ser derrotado nas eleies legislativas). As provocaes sul-coreanas na fronteira multiplicaram-se (assassinato de emissrios, incurses militares e discursos ameaando invadir o norte), e Kim Il Sung passou a se preparar militarmente, sobre o que Dulles e MacArthur propositadamente silenciaram. Assim como em Pearl Harbor, um ataque traioeiro precipitaria uma guerra legitimada.

    No dia 25 de junho de 1950 as tropas norte-coreanas cruzaram o paralelo 38 e conseguiram avanar rapidamente. O desencadeamento da guerra era resultante

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    de circunstncias internas (a guerra civil iniciada dois anos antes), regionais (a nova geopoltica da sia Oriental) e mundiais (resposta sovitica ao desencadeamento da Guerra Fria na Europa). Em dois meses, o exrcito norte-coreano controlou quase todo o sul, cercando americanos e sul-coreanos no permetro de Pusan. Entretanto, com o desembarque dos marines em Inchon (ao lado de Seul), as foras comunistas recuaram para evitar o cerco. Duas semanas depois (1 de outubro), as foras da ONU, comandadas por MacArthur, cruzaram a fronteira, buscando produzir um fato consumado que extrapolava a deciso da ONU (retorno ao paralelo 38).

    Segundo o General Bradley, o maior perigo que o Ocidente tinha de enfrentar era a possibilidade de que os EUA pudessem baixar a guarda aps haver obtido a vitria na Coreia (apud Horowitz 1973, 82). At a invaso do norte, o nmero de mortos fora insignificante, e s ento teve incio o massacre que custou quatro milhes de vidas. Os chineses advertiram que no tolerariam a destruio da Coreia do Norte, de modo que, quando MacArthur ocupou Pyongyang, a capital, e aproximou-se do rio Yalu, eles iniciaram seus preparativos militares.

    Em novembro, tropas chinesas entravam na luta, derrotando as foras da ONU. A reao americana foi praticar uma poltica de terra arrasada, utilizando o napalm e ameaando lanar bombas atmicas. O pas inteiro foi reduzido a escombros, enquanto os combates continuavam. Certo equilbrio foi atingido no incio de 1951, em torno do paralelo 38, embora os combates prosseguissem at meados de junho, quando se iniciou um cessar-fogo seguido de negociaes. Para que isso pudesse ocorrer, Truman teve de destituir MacArthur.

    A compreenso do ethos norte-coreano depende do conhecimento das origens do regime (guerrilha antijaponesa) e, principalmente, do impacto que a guerra teve sobre o pas. Tratou-se de uma guerra de extermnio, com o uso de napalm e bombardeios massivos para destruir todas as cidades e infraestrutura, com ameaa nuclear explcita, em que chegou a ser defendida a criao de um corredor radioativo de 50-60 km junto fronteira com a China. Como resultado disso, o pas desenvolveu uma mentalidade de bunker e, efetivamente, centenas de km de tneis e 15 mil refgios profundos foram construdos, abrigando depsitos de mantimentos e armamentos, hospitais, fbricas, hangares para avies e refgios para as pessoas. O medo de um ataque nuclear remonta a esta poca, inclusive porque os EUA estacionaram armas atmicas na Coreia do Sul e no Japo.

    Harold Lasswell, em um clssico artigo de 1941, definiu the Garrisson State (Estado militar, caserna ou guarnio) como o que os especialistas em violncia constituem o grupo mais poderoso da sociedade (Lasswell 1941, apud Cumings 2004, 1). Segundo Bruce Cumings, a Constituio da RDPC proclama armar toda a sociedade e transformar todo o pas numa fortaleza (2004, 1). Numa populao de 23 milhes de habitantes, h um exrcito de um milho, alm de seis milhes na reserva e do fato de que esmagadora maioria da populao tem treinamento e experincia militares. Isso tudo devido ao trauma da guerra.

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    Outro ponto importante foi o estabelecimento de um culto personalidade do lder e de uma sociedade corporativa, porm igualitria (apesar dos privilgios dos dirigentes). Ela associou a viso do marxismo europeu clssico a uma tradio asitica de Estado confuciano, com destaque continuidade da liderana. A ideia de unidade em torno do regime e um slido nacionalismo so suas caractersticas marcantes (Cumings 2004). E, finalmente, o papel da ideologia central. Kim Jong Il, a propsito da queda da URSS, argumentou que se tratava de falta de doutrinao da juventude. Segundo ele, a conscincia desempenha um papel decisivo na atividade do ser humano. [] O fator bsico que d mpeto ao desenvolvimento social deve ser sempre adscrito conscincia ideolgica. Pode-se dizer que se trata de uma nao onde a ideologia joga um papel essencial (Kim Jong Il 1995, 7).

    Aps o conflito, a Coreia do Norte se encontrava completamente destruda: cidades, pontes, represas e sistemas de irrigao, minas, fazendas, estradas e ferrovias. A URSS e a China ajudaram os norte-coreanos em termos tcnicos e financeiros, mas foram eles prprios que arcaram com o esforo humano, exclusivamente. Tal faanha deu populao um grande sentido de autoestima e de proximidade com o regime. Ainda na dcada de 1950 a reconstruo estava concluda e a sociedade industrial, consolidada. Para tanto foi necessrio socializar completa-mente a economia, regida por planos quinquenais, e associ-la s economias dos pases socialistas. Alis, foi a terrvel destruio econmica e social da guerra que permitiu construir uma economia socialista sem as tenses que normalmente acompanham um processo de transio do capitalismo ao socialismo. E como o norte j era uma sociedade relativamente urbanizada antes da guerra, desde aquela poca foi possvel fazer uma reforma agrria e criar uma agricultura estatal ou cooperativa.

    O conflito acarretaria a destruio da pennsula e um empate militar, que consolidava a situao anterior. A China ficava irremediavelmente envolvida com a pennsula, zelando pela manuteno do regime de Pyongyang como um Estado-tampo, que mantinha as foras americanas afastadas de suas fronteiras. O exrcito chins, apesar de suas deficincias, mostrara-se capaz de enfrentar a maior potncia do planeta, mas a possibilidade de incorporar Taiwan ficava afastada por tempo indeterminado. J os EUA revertiam sua perspectiva anterior, apoiando a reconstruo do Japo, sob um regime de soberania limitada.

    Enquanto o regime do norte gozava de legitimidade interna e estabilidade, o do sul era permanentemente contestado por amplos setores da populao, alm de depender economicamente da ajuda externa, fundamentalmente norte-americana. Assim, a propaganda de Pyongyang tinha relativa facilidade em apresentar o regime de Seul como marionete dos EUA. Contudo, ambos os pases eram reconhecidos apenas pelos membros dos blocos em que se inseriam, no sendo admitidos na ONU. Neste sentido, era fundamental para cada um dos regimes polarizar suas polticas internas, como forma de obter legitimidade internacional dos respectivos blocos, bem como ajuda externa.

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    Condicionantes polticos do socialismo Juche

    Com relao economia coreana, Cumings (2004, 477) chama a ateno para sua busca pela autossuficincia e pelo desenvolvimento autnomo:

    A Coreia do Norte oferece o melhor exemplo de retiro consciente do sistema mundial capitalista no mundo ps-colonial em desenvolvimento, bem como uma tentativa sria de construo de uma economia independente, autnoma; como resultado, observamos, hoje, economia industrial mais autrquica do mundo. [Mas] a Coreia do Norte nunca permaneceu ociosa, sempre avanou. Esta foi uma retirada com desenvolvimento e uma retirada para o desenvolvimento. A autossuficincia foi, ademais, autossuficincia em relao ao bloco sovitico, porm com menos perseverana: [ela] recebeu grande quantidade de ajuda econmica e assistncia tcnica da URSS e da China (ainda que longe do que recebeu o Sul dos EUA e do Japo).

    A RDPC contou com uma economia socialista dirigida pelo Estado, com base em planos de longo prazo e com forte nfase no desenvolvimento da indstria pesada. O crescimento industrial durante o Plano Trienal 1953-1956 (reconstruo) foi de 41,7%, e o crescimento foi mantido durante toda a dcada de 1960, com o lanamento do Primeiro Plano de Sete Anos 1961-1967. Neste perodo, o crescimento da Coreia do Norte superava em muito o crescimento do sul. Nos anos de 1970, porm, a RDPC j havia esgotado o potencial de desenvolvimento extensivo de sua indstria, com base em sua prpria tecnologia, na tecnologia sovitica e na tecnologia japonesa da poca colonial. Por isso, a Coreia do Norte voltou-se ao Ocidente a ao Japo para a compra de plantas industriais completas, reduzindo parcialmente seu isolamento. Na mesma poca, a industrializao do Sul comeava a gerar seus primeiros frutos, de forma que a renda per capita do sul e do norte ficaram em nveis bastante prximos.

    A Coreia do Norte tambm logrou importantes xitos nas reas rurais desde a reforma agrria levada a cabo em 1946. A coletivizao da agricultura, todavia, s teve incio aps a Guerra da Coreia, com o surgimento de cooperativas, a partir de 1954. Nestas cooperativas, com configurao territorial igual das antigas aldeias, os camponeses continuavam tendo o direito de transferir as terras que habitavam por herana, ainda que no fossem proprietrios das terras em que trabalhavam, e eram recompensados economicamente de acordo com a produtividade de seu trabalho. Nos anos de 1958-1960, o governo norte-coreano promoveu uma revoluo tcnica no campo, que se deu com (a) irrigao; (b) eletricidade; (c) mecanizao; e (d) quimizao. Estas condies fizeram com que o pas atingisse relativa autossuficincia alimentar.

    Pyongyang foi obrigada a manter relaes de equilbrio com os dois gigantes comunistas que, desde o 20 Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica (1956), divergiam e competiam de forma cada vez mais explcita. Se a ajuda

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    econmica da URSS era mais substancial, a postura diplomtica de Moscou face ao Ocidente, desde a afirmao da Coexistncia Pacfica, era percebida como uma ameaa potencial. Assim, era preciso contar mais com a China no campo estratgico, durante este perodo, e flanquear as divergncias entre os dois aliados. Em parte, isso foi possvel porque para a URSS o cenrio asitico era secundrio nesta fase.

    A rivalidade sino-sovitica contribuiu, em grande medida, para a afirmao do conceito Juche na Coreia do Norte, que enfatizava autoconfiana, a independncia e emprego das prprias foras, o que parecia paradoxal, considerando-se que a tenso existente na pennsula (tropas americanas e armas nucleares no sul) demandava apoio chins e sovitico para a segurana do norte. Assim, Kim Il Sung foi suficientemente hbil para criar um espao de independncia entre Moscou e Pequim, sem tomar partido na disputa, alterando a nfase de sua aliana em cada conjuntura e garantindo a maior autonomia possvel, o que implicava a existncia de um regime bastante fechado ao exterior, inclusive em relao aos aliados.

    No incio da dcada de 1970, a regio da sia Oriental sofreu uma transformao estratgica profunda, pois a China se aproximou dos EUA (Diplomacia do Ping-Pong), voltada contra a URSS. A Coreia do Norte viu sua posio se tornar mais precria nas relaes com os pases socialistas, especialmente a China, quando esta passa a integrar o Conselho de Segurana da ONU. Para Pyongyang e Pequim, a ONU constitua, at ento, uma instituio ameaadora do sistema internacional, considerada instrumento da estratgia norte-americana. Assim, a nova poltica externa chinesa enfraqueceu os laos de solidariedade sino-norte-coreanos, forjados durante a Guerra da Coreia.

    Esta situao se agravaria com a Perestroika, que conduziu normalizao com a China e busca de contatos com a Coreia do Sul, sobretudo no campo econmico. Esta formulou a chamada Nordpolitik, de acercamento com os pases socialistas, tirando proveito da nova conjuntura internacional. Ocorreu o reatamento com a URSS, em 1990, o que Pyongyang considerou como traio. Assim, aumentavam os problemas diplomticos da Coreia do Norte, que aprofundava ento, como estratgia compensatria, sua atuao no Movimento dos Pases No Alinhados e junto ao Terceiro Mundo.

    Songun, estratgia militar de sobrevivncia

    Quando o governo chins reprimiu a manifestao de Tiananmen, a Coreia do Norte, em nome da conservao do sistema socialista, apoiou Pequim, e a Coreia do Sul evitou tomar posio ao lado do Ocidente, mantendo a cooperao econmica com a China. Com Pyongyang, Pequim estreitava os laos poltico-militares, pois o socialismo no poderia sofrer outra derrota, que afetaria o equilbrio interno da China, privando-a, simultaneamente, de um importante ponto de apoio para sua defesa. Pyongyang adotou, ento, o que ficou conhecido, posteriormente como poltica do Songun, a prioridade militar como estratgia de

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    sobrevivncia. As foras armadas passaram a ocupar o centro do cenrio poltico, especialmente com Kim Jong Il (Choi 1999; Ri 2014; Park 2010).

    Contudo, ainda que o apoio poltico-militar chins tenha sido garantido, a cooperao econmica agora se daria no mbito das reformas, que a vulnervel Coreia do Norte no desejava implementar. Enquanto isso, a URSS entrava em agonia, e a cooperao econmica se deteriorava, agravando ainda mais a situao do pas. Como a China se reaproximou e reatou com a Coreia do Sul (formalizado em 1992), a Coreia do Norte foi estimulada por Pequim a buscar alguma forma de concertao com os EUA, Japo e Coreia do Sul, para evitar o isolamento e o colapso do regime. Dessa forma, iniciaram-se conversaes de alto nvel entre as duas Coreias, que ingressaram conjuntamente na ONU em 1991.

    J Washington necessitava manter sua presena militar no Japo e na Coreia do Sul, bem como articular com esses pases um sistema de defesa antimsseis voltado contra a China e a Rssia (TMD Theater Missile Defense). O elemento legitimador de tal poltica ser a virtual e sempre exagerada ameaa militar da Coreia do Norte, mostrada como um pas governado por fanticos e desesperados, capazes de uma atitude de consequncias imprevisveis no plano internacional (Haggard 2007). No entanto, no apenas o regime norte-coreano controlava solidamente o pas, mas tambm agia de forma calculada nas diversas conjunturas diplomticas. Da o estabelecimento de um dilogo permanente e, at mesmo, cordial, entre Washington e Pyongyang, durante a administrao Clinton (Harrison 2002).

    Este quadro se somava ao difcil desenvolvimento das negociaes intercoreanas, iniciadas no princpio da dcada. Mas, em 1994, o lder comunista faleceu, interrompendo-se temporariamente os contatos (luto de trs anos). Num quadro de indefinio e de sucesso, ocorreu um conjunto de crises. Por um lado, foram anos de provao (a Marcha Penosa). Duas enchentes gigantescas e uma seca provocaram uma crise alimentar no norte, sendo necessria a ajuda internacional. Com o colapso da URSS a Coreia do Norte perdera o fornecimento de petrleo subsidiado, de insumos para suas fbricas de fertilizantes e cimento e peas de reposio para os maquinrios. Assim, a agricultura e a indstria sofreram drstica reduo. E a China agora s vendia a preo de mercado e em moeda conversvel. O pas sobrevivia vendendo armamentos, minrios e pescados, alm de depender cada vez mais da remessa financeira da Associao dos coreanos residentes no Japo (dois milhes), que pr-Pyongyang, oriunda de uma loteria instituda para este fim.

    Face aos problemas econmicos, a Coreia do Norte tentou fazer uma reforma monetria, que causou forte reao de amplos setores, inclusive com inditos protestos. O governo acabou recuando e adotando medidas mais graduais. O reforo das zonas econmicas especiais apenas atenuou a situao de penria. Nesse contexto, Kim Jong Il foi China em 2011 para, finalmente, estudar as reformas chinesas e buscar aplic-las na Coreia do Norte.

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    No plano da segurana, com o endurecimento da administrao Bush, Pyongyang buscou explorar ainda mais a cartada nuclear como ltimo trunfo, desenvolvendo uma estratgia calculada de tenses. O que o regime deseja um acordo com os EUA, que garanta de forma multilateral sua segurana, e a obteno de ajuda econmica para renovar sua estrutura produtiva. Todavia, nada indica que o Norte possa simplesmente entrar em colapso, contrariando os prognsticos mais pessimistas. E mais ainda, impressiona a capacidade de autonomia que o regime demonstra ao tratar com adversrios, como os EUA, e amigos, como a China. Decididamente, no deseja ser uma moeda de troca entre os grandes poderes.

    Apesar de tudo, nos anos 2000, a Coreia do Norte conseguiu amenizar a crise econmica e garantir a continuidade do regime. J no plano externo, a recuperao se deveu, especialmente, aos investimentos chineses, aproximao econmica com a Coreia do Sul com o estabelecimento da Zona Industrial de Kaesong (ZIK), em 2002, e com a criao de Zonas Econmicas Especiais (ZEE) ao longo da fronteira , e barganha poltica com os EUA acerca de seu programa nuclear sobretudo aps o Acordo Quadro de 1994 e a criao das Six Party Talks, em 2003.

    As primeiras reformas econmicas foram anunciadas em meados de 2002, em um contexto de grave crise econmica marcada pela estagnao industrial, pela grande escassez alimentcia, e, sobretudo, pela necessidade de obter ajuda externa. A Perestroika la Pyongyang visava, primordialmente, a aumentar o nvel de monetarizao da economia, o que foi feito, inicialmente, atravs de mudanas nos preos, acabando com parte dos subsdios governamentais aos bens alimentcios bsicos. Logo em seguida, foi encorajado certo empreendedorismo e foram oficializados os pequenos mercados onde os agricultores vendiam sua produo excedente, ainda que o governo procurasse manter certo controle sobre os bens vendidos e fixando limites para as variaes de preos. Essa medida foi complementada com a reviso da Lei Comercial, em 2004, favorecendo o aumento da autonomia das transaes de mercado internas e o crescimento do comrcio exterior norte-coreano (Eberstadt 2007).

    No obstante, tais reformas se mostraram insuficientes para reativar a economia do pas, sendo o sistema de distribuio estatal de bens alimentcios reimplantado em 2005, seguido pelo fechamento dos mercados privados (Lister 2010). A economia norte-coreana decaiu ainda mais com as sanes econmicas internacionais decorrentes de seu primeiro teste de um mssil de longo alcance (Taepodong-I), em julho, e de seu primeiro teste nuclear, em outubro de 2006. Novas sanes foram ainda mais duras, em 2009, em resposta ao segundo teste nuclear, e que contriburam para a forte crise econmica que se seguiu tentativa de reforma monetria e de retorno economia planificada.

    Todavia, o governo logo descobriu que no era mais possvel retornar s condies anteriores a 2002, uma vez que no tinha mais condies de garantir a quantidade necessria de suprimentos para restaurar a economia planificada, devido s sanes internacionais e suspenso do auxlio da Coreia do Sul. Com o fracasso

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    da reforma monetria, portanto, todas as demais medidas foram abandonadas j em fevereiro de 2010. Ademais, a China abandonou a posio ambgua em que esteve nos ltimos anos ora fornecendo subsdios, ora pressionando pela a desnuclearizao do pas , e passou a estreitar laos com a Coreia do Norte, envolvendo em grandes projetos de cooperao bilateral.

    A segunda sucesso e o retorno do Partido

    Embora alguns analistas apresentem o processo sucessrio que conduziu Kim Jong Un presidncia como apressado devido aos problemas de sade de Kim Jong Il, as mudanas em curso na RPDC tiveram incio nos ltimos anos de seu governo. Aps o derrame ocorrido em 2008, o lder norte-coreano adotou uma dupla estratgia para garantir estabilidade poltica interna. Em primeiro lugar, foram tomadas importantes medidas para revigorar o Partido do Trabalho da Coreia e seu aparato, com vistas a criar um novo ambiente interno para seu sucessor. Depois, na Terceira Conferncia do Partido, em 2010, foram anunciados novos nomes para o Bureau Poltico, Secretariado, Comisso Militar Central e Comit Central. Com as novas indicaes, Kim Jong Il tentou assegurar a assistncia e a instruo do futuro presidente na conduo poltica do pas (Yang 2010).

    A recuperao da antiga e desgastada estrutura do Partido, colocado em segundo plano com a poltica Songun (de fortalecimento militar), foi uma medida crucial para garantir a sucesso. Todavia, importante lembrar que, ainda em 2009, houve uma reviso da Constituio de 1998, que fortaleceu a organizao da Comisso de Defesa Nacional, principal rgo decisrio do pas, e que promoveu o General Jang Song Thaek (marido da tia de Kim Jong Un) a vice-presidente. Jang Song Thaek praticamente controlou a administrao norte-coreana at que Kim Jong Il se recuperasse. Desde 2010, com o fortalecimento da Comisso de Defesa Nacional e com a morte de seus dois principais rivais, Ri Je Gang e Ri Yong Chol, Jang Song Thaek foi o segundo homem mais poderoso do pas, liderando tanto o Partido como as Foras Armadas, alm da incumbncia de zelar pela transio de poder. Ao considerarmos a peculiar estrutura institucional da RPDC, h razes para acreditar que o indito julgamento pblico e a execuo de Jang Song Thaek representou o desfecho de uma disputa pelo poder que comeou a ser travada a partir dos problemas de sade de Kim Jong Il.

    Por outro lado, a reforma monetria de novembro de 2009, ainda que de resultados limitados, acabou por enfraquecer a influncia dos militares. No ano seguinte, Kim Jong Un j controlava o aparato de inteligncia norte-coreano, permitindo-lhe examinar cuidadosamente as caractersticas e projetos da elite governante do pas. Mas era necessrio recuperar a economia, de forma a evitar crises de maior profundidade no momento da transio. Da o esforo feito por Kim Jong Il para restabelecer a base industrial do pas e buscar aumentar a cooperao com parceiros, como a China.

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    Desde que assumiu o poder, em dezembro de 2011, Kim Jong Un colocou em prtica suas polticas, utilizando os centros de deciso coletiva do Partido, como o Bureau Poltico do Comit Central, bem como suas reunies plenrias, e a Comisso Militar Central (Kim 2014). Alm disso, Kim Jong Un tem contato frequente com o pblico e demonstra grande interesse pelo desenvolvimento econmico do pas e pela melhoria da qualidade de vida da populao, o que revela um estilo de liderana onipresente semelhante ao do seu av, Kim Il Sung (sem falar na semelhana fsica) e distinto de seu pai, o reservado Kim Jong Il.

    No final de 2008 e incio de 2009 j era possvel observar a convergncia poltica, o que conduziu a um novo equilbrio entre civis (Partido) e militares. Logo aps a morte de seu pai, Kim Jong Un demonstrou uma liderana consistente, revelando que sua preparao para a sucesso iniciou muito antes de sua designao oficial. O novo presidente logrou, sem dvida, exercer sua influncia sobre o Partido, as Foras Armadas e demais rgos de segurana. Duas semanas aps a morte de Kim Jong Il, em 17 de dezembro de 2011, Kim Jong Un foi designado Comandante Supremo do Exrcito Popular da Coreia, ocasio em que lanou as bases de sua liderana ao promover mudanas na cpula do estamento militar.

    Em seguida vieram as alteraes na estrutura do Partido e a promulgao de emendas constitucionais, quando, ento, Kim Jong Un foi designado s mais altas posies no Partido Primeiro-Secretrio e Primeiro Presidente da Comisso de Defesa Nacional finalizando, quatro meses aps a morte de seu pai, a transmisso oficial de poder (sucesso que seu pai levou quatro anos para concluir). Em julho de 2012, o novo lder foi investido de um ttulo adicional, o de Marechal da Repblica. Embora muitos analistas tentem reacender o conceito de poder absoluto do lder, a rapidez que marcou a consolidao do poder de Kim Jong Un revela a sua habilidade em estabelecer uma liderana coletiva e renovada, com uma composio que garantiu ampla base de apoio nas instituies, alm de recuperar o estilo popular e carismtico de seu av, que se traduz no apresso da sociedade coreana. Esse aspecto visvel nas aparies pblicas do presidente, bem como seu envolvimento direto (quase cotidiano) nas mais variadas pautas sociais.

    importante lembrar que o risco de uma interveno militar na RPDC percebido como real no apenas nas instncias de poder, mas, fundamentalmente, pela sociedade coreana, que tem viva na memria a violncia da guerra. Assim sendo, o desenvolvimento do programa nuclear como recurso de dissuaso foi apoiado amplamente, mesmo nos perodos de penria. Hoje, ocorre o desenvolvimento paralelo do programa nuclear e da economia, baseado na lgica da Linha Byungjin. Ela estabelece que o escudo nuclear e missilstico permite liberar recursos para outros setores da economia, ao mesmo tempo em que garante a segurana e a soberania do pas. Aos poucos, essa lgica vem assumindo o papel de principal eixo para definir as polticas norte-coreanas. Kim Jong Un, ao lanar a Linha Byungjin, define os limites de atuao do Partido e das Foras Armadas, corrigindo as (necessrias e conjunturais) distores anteriores.

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    A atual orientao estipula que os militares se dediquem s atividades militares e os civis s atividades civis, em uma clara reviso poltica Songun, que priorizou o Exrcito Popular da Coreia como instituio e fortaleceu os funcionrios militares em relao aos funcionrios civis em geral e os do Partido em particular. Apesar de o setor militar ser fundamental para o regime norte-coreano, tudo indica que ele est sob o controle do presidente. O exrcito convencional, cuja modernizao seria carssima, cede espao fora de dissuaso tecnologicamente avanada, operada por outra gerao de militares.

    possvel uma modernizao sem reformas?

    As rpidas mudanas promovidas por Kim Jong Un reacenderam as expectativas de reforma econmica. Entretanto, o regime norte-coreano observa a questo com muita cautela. Ao pensar em reformas, seria improvvel que a RPDC seguisse o caminho chins, por exemplo. Em primeiro lugar, as reformas chinesas dos anos 1970 ocorreram em condies mais favorveis diante da conjuntura poltica interna e externa. A aproximao com os Estados Unidos e com o Japo (e a sua consequente projeo estratgica), certamente facilitaram a implementao dessas reformas pela ausncia de relaes conflitivas. As relaes da RPDC com esses pases e com a Coreia do Sul permanecem tensas, apesar da recente reaproximao com os sul-coreanos. A constante ameaa externa, as recorrentes crises militares, as condies especficas produzidas pela diviso do pas (potencialmente desestabilizadoras) no constituem um cenrio favorvel para reformas mais rpidas. Entretanto, visvel o impulso de modernizao do Estado e da economia.

    Para se ter uma ideia, entre fevereiro e abril de 2014 houve um aumento dos exerccios militares conjuntos dos Estados Unidos e da Coreia do Sul e h previso de novas manobras um porta-avies est estacionado na costa sul-coreana para a realizao de tais manobras. Evidentemente, no h interesse em desencadear uma guerra contra a RPDC devido sua capacidade de defesa, mas, hoje, 28 mil militares norte-americanos esto na Coreia do Sul. Assim, seja atravs da tentativa de constrangimento militar ou pela via oportunizada pelas Naes Unidas, Estados Unidos e Coreia do Sul tentam aumentar as sanes contra a RPDC. Nesse quadro, os norte-coreanos optaram por um caminho seguro e que evite o suicdio poltico e fsico. Dificilmente o que aconteceu na Rssia e na Europa Oriental aconteceria na RPDC, ou seja, poucas chances a elite poltica norte-coreana teria de se integrar a um sistema capitalista se o regime for derrubado. Se isso acontecesse, os sul-coreanos ocupariam os postos mais relevantes da economia (Lankov 2013; Lee 2011). Assim, improvvel que, em um cenrio de reunificao, os norte-coreanos pudessem renascer no capitalismo, tendo em mente a experincia da unificao alem em 1990.

    H, no entanto, fatores que podem se tornar indutores de mudanas econmicas. Na Zona Especial de Kaesong voltam a operar joint ventures entre

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    empresas estatais do Norte e privadas do Sul (Thompson 2011). No extremo norte foi criada a Zona de Ranjin, com um moderno porto conectado ao nordeste da China e Rssia, que abriga empresas de vrios pases. E cada pedao de terra disponvel cultivado no rochoso e montanhoso pas, num esforo para manter a segurana alimentar. Busca-se uma modernizao prpria, que deve ser acompanhada da aceitao internacional e, especialmente, do estabelecimento de relaes diplomticas e econmicas com os Estados Unidos (com um acordo de paz) e a garantia de respeito ao regime. Objetivos que no seriam alcanados com a desnuclearizao unilateral.

    Ao lado das imagens onipresentes dos cultuados lderes, proliferam celulares e computadores (com intranet nacional), sinalizando modernizao. Pessoas bem vestidas, saudveis, disciplinadas e cordiais levam uma vida aparentemente normal (muito mais relaxada e segura que a nossa), apesar das tenses militares, e desfrutam dos modernos parques de diverso e centros culturais e esportivos. H muita esperana no atual processo de renovao e uma vontade de superar o isolamento, que mais imposto de fora para dentro, obrigando-os a uma resposta equivalente por razes de segurana.

    Independente da discusso proposta por alguns analistas sobre o tempo de vida do regime norte-coreano diante do poder do mercado, a RPDC seguiu uma caminho prprio, fortemente baseado na Ideia Juche que postula, mais que autossuficincia, autonomia. Assim, como outros Estados construdos pela via da revoluo social e da opo socialista, os norte-coreanos construram o Estado e a Nao considerando a necessidade de se proteger de um mundo exterior hostil. Nesse sentido, o isolamento do pas resulta de uma combinao de fatores, que tm razes profundas na histria coreana, especialmente, no ps-Guerra de 1950-1953. Mas, principalmente, esse isolamento resultante da presso externa, intensificada com o fim de um dos principais parceiros do pas, a URSS. Todavia, isso no significa que a RPDC deseje manter essa situao. Ao contrrio, se intensificam os mecanismos de interlocuo e de cooperao com um nmero cada vez maior de novos Estados. O irnico que, apesar do isolamento autoimposto ou forado, os norte-coreanos observam com muita perspiccia as transformaes na correlao de foras em nvel internacional com o final da Guerra Fria. A percepo da potencialidade das relaes com as potncias emergentes, ou mesmo os demais pases em desenvolvimento, tem se ampliado e tomado forma com iniciativas que venham ao encontro do projeto de mudanas no pas.

    Um dos pontos muito discutidos o papel dos mercados privados, que hoje permanece mais numa semilegalidade indefinida, mas cujo padro no est claro. H uma oscilao em relao a eles (como em Cuba), onde um certo grau de tolerncia est sempre sujeito a um retrocesso para no permitir a institucionalizao da prtica como ocorreu durante a crise econmica. Alguns acreditam que esse pode ser um caminho para uma futura transio interna e abertura externa. Para outros, trata-se apenas de uma vlvula de escape a qual recorre o regime.

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    Kim Jong Un comeou a transformar a fisionomia da RPDC. Nos ltimos anos, grandes projetos pblicos nos setores de educao, sade e lazer, por exemplo, transformam-se em realidade em questo de meses. O governo definiu a agricultura, a construo pblica e o campo de cincia e tecnologia como prioridades. Tais definies refletem, em parte, o regime de sanes, que no atingiram nenhum de seus objetivos at o momento, pois o regime norte-coreano no d sinais de esgotamento, tampouco impediram o desenvolvimento dos programas nuclear e misslstico.

    A busca da segurana num mundo em crise

    Embora o governo norte-americano identifique o programa nuclear da RPDC como tema de segurana nacional de alta prioridade, a ateno dispensada pela administrao do presidente Barack Obama questo, em contraste ao que afirmou como candidato (de que fortaleceria o engajamento com Pyongyang), diminuiu consideravelmente. O Secretrio de Estado John Kerry parecia tambm ter aderido postura de esperar para ver. Entretanto, em maro de 2011, o ento presidente da Comisso de Relaes Exteriores do Senado norte-americano, em um painel sobre a RPDC, advertiu sobre a manuteno do status quo na pennsula coreana. Na ocasio, Kerry afirmou: [] temos que ir alm do ponto da conversa poltica, pois o nosso silncio propicia que uma situao perigosa se torne pior.

    Ao analisar a mudana de postura da administrao Obama, pode-se afirmar que dentre as razes que podem explicar tal inflexo, est a crena de que Pyongyang jamais abandonar o seu programa nuclear, o que tornaria intil qualquer esforo de negociao. Os parcos resultados alcanados por administraes anteriores e o consequente desinteresse em investir capital poltico em uma questo que produz resultados limitados (e muitas crticas), fez com que a poltica norte-americana para a RPDC fosse redefinida (Cha 2009). Importante ressaltar que a viso norte-americana tambm est relacionada reverso, por parte do ex-presidente sul-coreano Lee Myung Bak, do processo de aproximao iniciado durante a Sunshine Policy. Outro aspecto a considerar a frustrao em relao cooperao com a China, que faz com que Washington redimensione as ameaas norte-coreanas como pretexto para conter Pequim. Dessa forma, os norte-americanos legitimam sua presena na regio. Em setembro de 2013, ao discursar por quarenta minutos diante da Assembleia Geral das Naes Unidas, Obama sequer mencionou a questo nuclear norte-coreana.

    De fato, a administrao Obama parece acreditar na eficcia da pacincia estratgica, ainda que muitos analistas considerem que tal estratgia no produza resultado algum. O curioso que os norte-americanos tambm parecem despreocupados com os progressos que os norte-coreanos tm realizado nos seus programas nuclear e misslstico. Todavia, no h dvida de que Washington usa a possibilidade de uma ameaa nuclear norte-coreana como justificativa para

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    aumentar sua presena na regio, de um lado com o claro propsito de conter a China, e de outro, para reforar o pacto de segurana tripartite com o Japo e a Coreia do Sul. Nesse sentido, a RPDC extremamente til para as pretenses norte-americanas de se fazer presente na regio.

    Evidentemente, uma tentativa sria para reverter o impasse teria que partir de Seul, ao convencer Washington e Tquio de que todos poderiam ganhar se as duas Coreias encontrassem um modus vivendi prefervel a um status quo que, no futuro, pudesse escapar ao controle. Entretanto, a administrao de Park Geun Hye parece compartilhar a viso norte-americana de que a RPDC deve dar o primeiro passo. Isso significa que Pyongyang deveria tomar a dianteira no processo de desnuclearizao. Por outro lado, no h dvida que Pyongyang percebe que qualquer ao unilateral nesse sentido poderia representar um suicdio poltico.

    A poltica de pacincia estratgica da administrao Obama decorrente da percepo de que a RPDC no mudou com o processo de transio de liderana, ocorrido em 2011. Apesar das dificuldades econmicas no incio do governo de Kim Jong Un, parece ter ficado claro a Washington que engajamento ou sanes no podem alterar o comportamento da RPDC. Nos Estados Unidos, praticamente todos os representantes polticos tm um nico objetivo em relao ao pas que a RPDC se desnuclearize, que se abra ao mundo, que promova reformas econmicas e sociais, que respeite os direitos humanos. Os debates sobre a estratgia a ser utilizada permanecem os mesmos h dcadas; concentram-se na ideia de estabelecer nveis de cooperao para convencer a RPDC a mudar sua perspectiva e suas relaes com o resto do mundo ou coagi-la a mudar seu mau comportamento.

    Nesse sentido, cabe a pergunta: os Estados Unidos estariam dispostos a tolerar a RPDC se esta estivesse disposta a mudar o suficiente para no ameaar seus interesses, mantendo seu carter? Como observou Robert Litwak (2008), historicamente, os Estados Unidos tm se preocupado com o comportamento de outros pases, porm, mais recentemente, tambm com o seu carter. Assim, a relutncia dos Estados Unidos em conceder RPDC status de igualdade a outros pases atravessa vrias administraes. Hillary Clinton, Donald Rumsfeld e George W. Bush no pouparam palavras pouco diplomticas RPDC e a seus lderes, o que realmente coloca em questo o desejo dos Estados Unidos em conviver de alguma forma com este pas. A ttica da demonizao da RPDC, definindo-a como outpost of tiranny, axis of evil e rogue state, torna o dilogo impossvel. Haver, de fato, a inteno de estabelecer uma agenda poltica especfica? Mas, preciso reconhecer a avaliao de Victor Cha, ex-assessor e frequente conselheiro da Casa Branca para as questes norte-coreanas (apesar do seu prognstico de que Kim Jong Un cairia em seu primeiro ano de gesto), de que a Coreia do Norte no quer apenas a bomba, mas tambm o status e o prestgio de uma potncia nuclear.

    Embora os testes missilsticos e nucleares realizados em Pyongyang sejam entendidos como provocaes, so parte de um programa militar sistemtico no

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    qual a RPDC tem trabalhado a mais de quarenta anos como recurso de dissuaso. Ao inscrever seu autoproclamado status de potncia nuclear na Constituio, em 2012, e ao dar moldura legal ao programa nuclear em 1 de abril de 2013, a RPDC demonstrou que pretende continuar a desenvolver sua capacidade de dissuaso. A deciso pode ter tido como objetivo criar um fato consumado, para obter uma posio mais favorvel no caso de uma negociao com os Estados Unidos. O uso frequente de uma retrica belicosa indica o desejo do pas de fortalecer seu status internacional, tornando-o uma prioridade da poltica externa das grandes potncias, alm de um interlocutor indispensvel. Para a audincia domstica, o regime ganha crdito como um pas poderoso e independente, fiel ao legado revolucionrio de Kim Il Sung.

    A ofensiva de charme da RPDC, que teve incio com o discurso de Ano Novo de Kim Jong Un, busca um avano na alterao do status quo na pennsula coreana. Pyongyang entende que, para assegurar a sobrevivncia do regime, dever ir alm da hostilidade militar com os Estados Unidos, a mais viva relquia da Guerra Fria e uma das mais antigas relaes de hostilidade da Histria recente. Assim, a RPDC busca, nas parcerias com o Japo e com a Rssia, por exemplo, e nos esforos de reconciliao com a Coreia do Sul, uma oportunidade para obter investimentos externos e diminuir o isolamento poltico e econmico.

    Entre muitos analistas h a percepo de que as mudanas na RPDC podem ser determinadas pela China. Essa viso, alis, fortemente compartilhada pela administrao norte-americana. Todavia, trata-se de uma percepo inconsistente por dois motivos. Em primeiro lugar, desde o incio da controvrsia nuclear, nos anos 1990, o principal foco da poltica externa norte-coreana so as relaes com os Estados Unidos, e no com a China. A RPDC busca garantias de segurana, reconhecimento diplomtico e normalizao das relaes econmico-comerciais. Para tanto, a concluso de um tratado de paz que estabelea condies para relaes diplomticas, bem como a suspenso das sanes econmicas e financeiras somente podem ser negociado com os Estados Unidos.

    Em segundo lugar, embora Pyongyang tenha nveis de dependncia econmica em relao a Pequim, a ascendncia chinesa sobre o regime norte-coreano tem sido superestimada, em especial no que diz respeito s decises militares. Por outro lado, como trao forte da poltica externa chinesa, Pequim apenas utilizar sua influncia para alcanar objetivos polticos consistentes e quando houver interesses estratgicos. No se trata, entretanto, de simplesmente exercer influncia sobre a RPDC, mas de manter relaes pacficas que garantam o status quo na pennsula. O apoio chins RPDC assegura um vizinho amigvel em sua fronteira nordeste e uma zona tampo com a Coreia do Sul, onde h foras norte-americanas.

    Ainda que, as relaes entre Pequim e Seul tenham conhecido seu ponto alto e os dois lderes tenham se encontrado em diversas ocasies recentemente, a Presidente Park Geun Hye visitou Pequim (junho de 2013) e o presidente Xi Jinping visitou Seul (julho de 2014) , este fato no representa a alterao das

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    relaes entre Pequim e Pyongyang. Poder sim, em certa medida, contribuir para a sensao de isolamento de Pyongyang se combinado recente reaproximao entre o Japo e a Rssia. Entretanto, seria prematuro e superficial afirmar que esses eventos levaro o regime norte-coreano a um desgaste e consequente colapso. improvvel que os chineses (e mesmos os russos) desejem uma Coreia unificada sob a gide de Seul. Os objetivos polticos e estratgicos de Pequim esto relacionados reduo da influncia norte-americana no pas (e na regio) ao apresentar a Seul as vantagens no aprofundamento das relaes econmico-comerciais entre os dois pases. Embora, tanto na RPDC quanto na Coreia do Sul, seja reafirmado constantemente o objetivo nacional da reunificao, sua consecuo no parece prxima. A diviso de 1945 foi aprofundada pela guerra fratricida de 1950-1953 e os ressentimentos, nos dois lados, ainda no foram superados.

    Em relao Rssia, uma das formas de marcar presena na pennsula coreana a promoo de grandes projetos trilaterais de infraestrutura envolvendo as duas Coreias a ligao das ferrovias norte e sul-coreanas Transiberiana, e a construo de gasoduto e linhas de transmisso da provncia de Primorye Coreia do Sul, passando por territrio norte-coreano, nos quais a Rssia j investiu significativamente. Parece no haver dvida que a Rssia tem interesse na diminuio das tenses na pennsula coreana, mas h claros interesses geopolticos e geoeconmicos em jogo. Moscou sabe que o desenvolvimento do extremo oriente do seu territrio depende grandemente de sua integrao ao Nordeste da sia.

    O interesse russo em promover o dilogo entre as duas Coreias ficou demonstrado na visita que o presidente Vladimir Putin realizou a Seul em novembro de 2013, ocasio em que foi assinado um memorandum de intenes com as empresas Hyundai, a siderrgica Posco e a empresa ferroviria Korail, entre outras, que expressaram o desejo de participar das atividades da joint venture russo/norte-coreana RasonKonTrans, em Rajin. O objetivo transformar o porto daquela cidade prxima s fronteiras com a Rssia e com a China em um importante hub de transbordo de cargas, principalmente de containers. Seria uma avaliao precoce indicar que a crise na Ucrnia resultar em alguma mudana na poltica de Moscou em relao RPDC, em particular com relao questo nuclear. No entanto, os acontecimentos naquele pas podem ter acelerado os planos para a cooperao econmica e o intercmbio de visitas de alto nvel. Alm disso, a Duma de Estado ratificou acordo que prev o perdo de 10 dos 11 bilhes da dvida norte-coreana com a Rssia.

    Por outro lado, tendo em vista a disposio de Moscou de implementar seus projetos de desenvolvimento econmico com o objetivo de interligar o extremo oriente da Rssia com as duas Coreias, o governo de Seul ter que pesar seus prprios interesses de longo e mdio prazo. Para a RPDC, a reaproximao com a Rssia representa uma janela de oportunidade para contrabalanar a dependncia em relao China e a possibilidade de uma segunda opo estratgica.

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    Quanto s relaes com o Japo, a recente aproximao revela, provavelmente, uma tentativa de Kim Jong Un de minar a ao coletiva dos Estados Unidos, Japo e Coreia do Sul em relao RPDC. Essa reaproximao vista de maneira positiva por Pequim e, tambm o Japo, tem interesse em reduzir o seu isolamento diplomtico regional, em particular em relao China e Coreia do Sul. Alm disso, Tquio pretende demonstrar que pode influir nos clculos estratgicos de Pequim de alguma forma, sendo a aproximao com Pyongyang uma delas. Para o governo japons, a reaproximao com Pyongyang pode representar um maior poder de barganha em suas relaes com a Coreia do Sul, que se encontra em um dos seus piores momentos, como tambm com Washington e com Pequim.

    Dessa forma, tanto a RPDC como o Japo tm interesses estratgicos nessa reaproximao. Tquio, ao romper laos econmicos com Pyongyang, perdeu completamente sua influncia sobre a RPDC. Os pequenos passos em resposta s aberturas do norte podem, no entanto, ajudar a criar um canal de contato e oferecer a Tquio um conhecimento mais prximo dos desgnios norte-coreanos. Para Pyongyang, a normalizao das relaes com Tquio, alm de aumentar seu poder de barganha frente a Seul e a Pequim, pode abrir uma janela de oportunidade para o desenvolvimento da economia, que se ressente fortemente do isolamento internacional.

    Por fim, cabe mencionar os esforos diplomticos que o Brasil tem feito para aproximar a RPDC da comunidade internacional. A abertura da embaixada residente em 2009, o curso de capacitao da ABC/EMBRAPA a tcnicos agrcolas norte-coreanos em 2011 e as doaes de alimentos por intermdio do PMA em 2010, 2011 e 2012 representam substancial capital poltico que deve ser preservado e ampliado. Esse capital acumulado constitui a base da relao de confiana que se estabeleceu entre o Brasil e a RPDC. Segundo o Ministro dos Negcios Estrangeiros da RDPC, Ri Sol Yong, o governo da RPDC muito apreciou a iniciativa brasileira de abrir uma embaixada em Pyongyang, um canal direto de contato que permite ao Brasil ter suas prprias percepes sobre a RPDC. Ao mesmo tempo, os esforos brasileiros progridem no sentido de abrir oportunidades de atuao poltica, econmica e comercial na regio.

    Perspectivas

    Os Estados coreanos, ao longo da histria, desenvolveram notvel habilidade diplomtica para sobreviver entre grandes potncias, e as elites dirigentes lograram manter unidade e estabilidade internas. Tais caractersticas foram aprofundadas pela RPDC e, em parte, perdidas pelo Sul. O culto aos lderes tem razes na cultura poltica coreana e na situao interna (diversas faces no movimento comunista coreano e diviso do pas) e externa (o contnuo jogo com potncias amigas e inimigas). Aps um perodo em que foi previsto o seu fim, a Coreia do Norte logrou certa estabilidade poltica e retomada do desenvolvimento, especialmente

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    com a ascenso de Kim Jong Un ao poder. H indcios da implementao de um projeto de modernizao, mas, provavelmente, sem as reformas de tipo chins. Mais uma vez, a RPDC busca uma via original, contra ventos e mars. Velhos e conhecidos problemas persistem e a RPDC segue sendo uma sociedade tipicamente asitica e socialista, complicada de compreender (Kang 2011). Um verdadeiro planeta Marte: vermelho, Deus da guerra e difcil de acessar.

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    Recebido em 17 de setembro de 2014Aprovado em 25 de setembro de 2014

    Resumo

    A Coreia do Norte acaba de passar por nova sucesso, com um lder jovem, o que para analistas representa ausncia de mudanas e esgotamento do regime. Enquanto as disputas de poder interno e as crises militares externas parecem sinalizar continuidade, e que foram iniciadas algumas transformaes importantes. O regime impulsiona a modernizao da defesa, enquanto recoloca o Partido como ator relevante, definindo o desenvolvimento econmico como vetor. Mas a modernizao em curso prossegue com a tradicional diplomacia de risco que parece descartar a ideia de reforma, conservando a essncia do regime.

    Palavras-chave: Coreia do Norte; diplomacia; modernizao sem reformas.

    Abstract

    North Korea has recently undergone a succession, with a young leader, a fact that represents a lack of change and the depletion of the regime, according to analysts. While the struggles for domestic power and the international military crises seem to signal a continuity, important transformations have been launched. The establishment boosts the refurbishment of the defense, whilst relocates the Party as a relevant actor, defining economic development as a vector. However, the modernization in course follows the same venture diplomacy and suggests the discard of the idea of reform, maintaining the essence of the regime.

    Keywords: North Korea; diplomacy; modernization without reforms.