a contrarreforma da política de saúde

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Autores: Joseane Barbosa de Lima A CONTRARREFORMA DA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA NO CONTEXTO DA FINANCEIRIZAÇÃO DO CAPITAL. RESUMO: O presente trabalho tem como objeto de estudo a contrarreforma da política de saúde brasileira no contexto de dominação do capitalismo financeiro mundializado. Destaca-se que a crise do Sistema Único de Saúde reflete a crise do capitalismo contemporâneo. Desse modo, os limites do SUS não são expressões da necessidade de novas formas de gestão, mas configurações das desigualdades de classes postas por essa forma de sociabilidade, em que há a negação e a desqualificação das políticas de assistência, previdência e saúde. Palavras-chave: Capital financeiro. Política de Saúde. Fundo público. ABSTRACT: The present work has as its object of study counter - reformation the Brazilian health policy in the context of the domination of globalized financial capitalism. It is noteworthy that the "crisis" of the Unified Health System reflects the crisis of contemporary capitalism. Thus, the limits of SUS are not expressions of the need for new forms of management, but the settings class inequalities posed by this form of sociability, in which there is denial and disqualification of welfare policies, social security and health. Keywords: financial capital. Fund Public Health Policy.

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Artigo publicado nos anais do XIII ENPESS.

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  • Autores: Joseane Barbosa de Lima

    A CONTRARREFORMA DA POLTICA DE SADE BRASILEIRA NO CONTEXTO DA

    FINANCEIRIZAO DO CAPITAL.

    RESUMO:

    O presente trabalho tem como objeto de estudo a contrarreforma dapoltica de sade brasileira no contexto de dominao do capitalismofinanceiro mundializado. Destaca-se que a crise do Sistema nico deSade reflete a crise do capitalismo contemporneo. Desse modo, oslimites do SUS no so expresses da necessidade de novas formasde gesto, mas configuraes das desigualdades de classes postaspor essa forma de sociabilidade, em que h a negao e adesqualificao das polticas de assistncia, previdncia e sade.

    Palavras-chave: Capital financeiro. Poltica de Sade. Fundo pblico.

    ABSTRACT:

    The present work has as its object of study counter - reformation theBrazilian health policy in the context of the domination of globalizedfinancial capitalism. It is noteworthy that the "crisis" of the UnifiedHealth System reflects the crisis of contemporary capitalism. Thus, thelimits of SUS are not expressions of the need for new forms ofmanagement, but the settings class inequalities posed by this form ofsociability, in which there is denial and disqualification of welfarepolicies, social security and health.

    Keywords: financial capital. Fund Public Health Policy.

  • INTRODUO

    O presente trabalho parte dos resultados da Dissertao de Mestrado intitulada: As

    Orientaes dos Organismos Financeiros Internacionais Poltica de Sade Brasileira no contexto

    da financeirizao do capital defendida em maro de 2011 pelo Programa de Ps-Graduao em

    Servio Social da Universidade Federal de Alagoas. Tem como objetivo analisar a contrarreforma do

    Sistema nico de Sade brasileiro no contexto do capitalismo financeiro mundializado. Para

    alcanar o referido objetivo, utilizou-se a pesquisa bibliogrfica, a partir de um enfoque crtico

    dialtico, procurando analisar o contexto de reproduo e valorizao do capital financeiro e os

    caminhos da poltica de sade brasileira.

    O projeto universalizante do Sistema nico de Sade, apesar das bases legais em que se

    firma, tem encontrado dificuldades na sua concretizao, pois est na contramo dos interesses

    mercadolgicos para a assistncia a sade. Destaca-se que interesses particulares de empresas

    privadas de sade atuam no espao pblico, com estreitas relaes no financiamento da sade. O

    projeto poltico que est posto neste contexto o projeto de dominao do capital, que se instaura

    no Brasil com razes profundas impondo, adaptando e elaborando metas administrativas para a

    reforma do Estado. Nesse processo, assiste-se o desvio do oramento da seguridade social para

    alimentar a financeirizao do capital.

    As ambiguidades das relaes pblico-privadas no setor sade so consequncias das

    relaes elitistas e excludentes de natureza econmica, poltica e cultural que impedem a

    efetivao do direito cidadania e enfatizam a quebra da universalizao do direito a sade, atravs

    de polticas seletivas que visam o custo/benefcio dos servios, defendendo para isso a ampliao

    do setor privado na prestao de servios de sade e o papel do Estado apenas como regulador e

    financiador.

    O projeto do capital defendido pelo setor privado, pelos donos de hospitais, diretores de

    hospitais filantrpicos e beneficentes e grupos privados de sade. Suas razes esto no modelo

    assistencial privatista que visa privatizao, contenes de gastos, atravs de medidas que

    promovam austeridade, e seleo de demanda (racionalizao de oferta e descentralizao com

    iseno do poder central e a focalizao). J o projeto da reforma sanitria tem como uma das

    suas estratgias o SUS e, como premissa, a sade como direito de todos e dever do Estado.

    importante entender os rumos da poltica de sade no capitalismo contemporneo - que

    esto na contramo da consolidao do arcabouo legal do SUS afinal, o SUS um direito da

    classe trabalhadora, atende 147 milhes de pessoas usurias exclusivas do sistema de sade

    pblico e no pode ser desmontado sob os desgnios dos interesses do setor privado e do capital.

    Neste sentido, se faz necessrio desvendar os caminhos da poltica de sade que desmonta o SUS

    por dentro dele mesmo. Essa discusso se torna importante para o debate contemporneo sobre a

    conquista, consolidao e universalizao do direito sade, bem como para que os trabalhadores

    e usurios da sade pblica entendam os caminhos da poltica de sade brasileira, fortalecendo o

    pensar e o agir coletivo na perspectiva da construo da hegemonia das classes subalternas.

    I. ESTADO E FINANCEIRIZAO DO CAPITAL

    O capitalismo monopolista aprofundou todas as contradies do capitalismo. Este

    aprofundamento a fora motriz mais poderosa do perodo histrico da transio que teve incio

    com a vitria definitiva do capitalismo financeiro mundial. Os monoplios, as oligarquias, as

    tendncias para dominao em detrimento da liberdade e a explorao de um nmero cada vez

    maior de naes pequenas por um nmero reduzido de naes ricas e fortes so os traos

    distintivos do imperialismo, qualificando-o como capitalismo parasitrio.

  • Conforme Chesnais (2007), o imperialismo, hoje, est dominado por uma configurao

    muito particular de capital financeiro. As relaes econmicas e polticas que definem o

    imperialismo como totalidade sistmica deve ser decifradas principalmente em dois nveis. O

    primeiro, segundo Chesnais, refere-se ao abismo que separa os pases que pertencem aos plos

    da Trade (Amrica do Norte, Europa e Japo) ou esto associados a eles, daqueles que sofrem a

    dominao do capital financeiro sem estarem associados aos circuitos de valorizao do capital. J

    o segundo nvel o das relaes econmicas e polticas do imperialismo como relaes internas s

    classes dirigentes dos prprios pases capitalistas avanados. Pois, no domnio financeiro, a

    posio hierrquica prevalece muito mais do que qualquer outro.

    A mundializao da economia est apoiada nos grupos industriais transnacionais em

    consequncia dos processos de fuses e aquisies de empresas em um contexto marcado pela

    desregulamentao e liberalizao da economia. Esses grupos se encontram no centro da

    acumulao, assumindo, assim, formas cada vez mais concentradas e centralizadas de capital

    industrial.

    As formas mais concentradas do capital financeiro ou industrial pertencem esfera visvel

    das mercadorias e tm a dominao poltica e social do capitalismo. As instituies que constituem

    o capital financeiro possuem fortes caractersticas rentveis que determinam tanto a repartio da

    receita quanto o ritmo do investimento ou, ainda, o nvel e as formas do emprego assalariado. Estas

    compreendem os bancos e as organizaes designadas com o nome de investidores institucionais:

    as companhias de seguro, os fundos de aposentadoria por capitalizao (os Fundos de Penso) e

    as sociedades financeiras de investimento financeiro coletivo (CHESNAIS, 1996, p.15).

    Em um mundo dominado pelas finanas, a vida social em quase todas as suas

    determinaes tende a sofrer as influncias daquilo que Marx (1984) designa como a forma mais

    impetuosa de fetichismo[1]. Com as finanas, tem-se dinheiro produzindo dinheiro, um valor

    valorizando-se por si mesmo, sem que nenhum processo (de produo) sirva de mediao aos

    dois extremos.

    Segundo Chesnais (1996), a esfera financeira o posto mais avanado da mundializao

    do capital. A relao entre as esferas produtiva e financeira se expressa sob novas formas. A

    dominao do capital financeiro impensvel sem a interveno e o apoio dos Estados nacionais,

    pois, o triunfo do mercado inerente ativa interveno dos Estados nacionais no lastro dos

    acordos internacionais como, por exemplo, o Consenso de Washington[2].

    Nesse contexto, o fundo pblico exerce um papel fundamental na articulao das polticas

    sociais e na sua relao com o movimento de reproduo do capital. A presena dos fundos

    pblicos na reproduo da fora de trabalho e nos gastos sociais uma questo estrutural do

    capitalismo. A formao do capitalismo seria impensvel sem a utilizao de recursos pblicos,

    que, muitas vezes, funcionam como uma acumulao primitiva[3].

    Oliveira (1998) explica que aquilo que torna o fundo pblico estrutural e insubstituvel no

    processo de acumulao do capital que a sua mediao se torna necessria, visto que, tendo

    desatado o capital de suas determinaes autovalorizveis, detonou um agigantamento das foras

    produtivas de tal forma que o lucro capitalista absolutamente insuficiente para dar forma e

    concretizar as novas possibilidades de progresso tcnico abertas, que s se tornam possveis

    atravs da apropriao de crescentes parcelas da riqueza pblica em geral e, mais

    especificamente, dos recursos pblicos que tomam a forma estatal nas economias e sociedades

    capitalistas.

    O argumento de Oliveira coloca o fundo pblico como lugar estrutural do capitalismo

    contemporneo, que expressa a sua maturidade e suas enormes contradies. Assim, a produo

    e a realizao do valor passam a requerer que o Estado se aproprie de significativas parcelas da

  • riqueza, socialmente produzida, para assegurar o processo de produo e reproduo do capital.

    Nesse processo, o Estado assume um papel fundamental na garantia de infraestrutura para

    produo em massa e a viabilizao da demanda decorrente do consumo de massa por meio

    do controle dos ciclos econmicos mediante combinao apropriada de polticas fiscais

    monetrias (SALVADOR, 2007, p.80).

    Mandel (1982) destaca que no capitalismo tardio existe uma tendncia inevitvel de que o

    Estado incorpore um nmero crescente de setores produtivos e reprodutivos, visando s condies

    gerais de acumulao por ele financiados. Sem essa socializao dos custos, esses setores no

    seriam nem mesmo remotamente capazes de suprir as necessidades do processo capitalista de

    trabalho. Dessa forma, ocorre o uso crescente do oramento do Estado para o financiamento de

    pesquisas e dos custos do desenvolvimento, e as despesas estatais so destinadas a financiar ou

    subsidiar grandes projetos industriais (MANDEL, 1982, p.339).

    No capitalismo contemporneo, o fundo pblico atua no processo de produo e reproduo

    do capital enquanto:

    1 [...] fonte importante para a realizao do investimento capitalista. No capitalismocontemporneo, o fundo pblico comparece por meio de subsdios, de desoneraotributria, por incentivos fiscais, por reduo da base tributria da renda do capital, comobase de financiamento integral ou parcial dos meios de produo que viabilizam [...] areproduo do capital; 2. Como fonte que viabiliza a reproduo da fora de trabalho, por

    meio dos salrios indiretos, reduzindo o custo do capitalista na sua aquisio. Almdisso, a fora de trabalho responsvel diretamente, no capitalismo, pela criao do valor;3. Por meio das funes diretas do Estado, que no capitalismo atual garante vultososrecursos do oramento para investimentos em meios de transporte e infraestrutura, nosgastos com investigao e pesquisa, alm dos subsdios e renncias fiscais paraempresas; 4. No capitalismo contemporneo, o fundo pblico responsvel por umatransferncia de recursos sob a forma de juros e amortizao da dvida pblica para o

    capital financeiro, em especial para as classes dos rentistas (SALVADOR, 2007, p.91).

    Desta forma, o fundo pblico est inserido indiretamente no processo de reproduo geral

    do capital, seja atravs de subsdios, negociaes de ttulos e garantias de condies de

    financiamento dos investimentos capitalistas, seja como elemento presente e importante na

    reproduo da fora de trabalho, nica fonte de criao de valor na sociedade capitalista.

    O processo da contrarreforma da poltica de sade brasileira s pode ser compreendido

    remetido ao contexto das transformaes do mundo do capital. So essas transformaes que

    caracterizam as razes socioeconmicas e polticas que ditam a contrarreforma do Estado e para

    quem elas devem estar voltadas.

    II. O Banco Mundial e a contrarreforma da poltica de sade brasileira

    Entende-se por contrarreforma do Estado as iniciativas tomadas por governos neoliberais

    que, ao propor a reforma do Estado, vem reduzindo gastos sociais historicamente conquistados

    pelos trabalhadores (BEHRING, 2008). Nesse sentido, procurar-se- discutir algumas questes

    sobre a contrarreforma da poltica de sade brasileira enquanto recomendaes do Banco Mundial,

    cujas orientaes para o setor sade apontam para o fortalecimento do setor privado e o desmonte

    da universalidade.

    A temtica da sade passou a ser abordada pelo Banco Mundial articulada aos problemas

    decorrentes do crescimento demogrfico que tinha como consequncia o crescimento da pobreza

    empecilho ao desenvolvimento. O Banco, desde 1975, apresenta diretrizes para a contrarreforma

  • nas polticas de sade dos pases por ele subsidiado, tais como: a quebra da universalidade do

    atendimento sade; a priorizao ateno bsica; a utilizao da mo de obra desqualificada

    para os procedimentos de ateno a sade e simplificao das mesmas; a seletividade e

    focalizao da ateno aos mais pobres. O eixo que norteia a proposta de contrarreforma de

    carter econmico, no sentido de cortar os gastos com os servios de sade, utilizando como

    critrio de avaliao a relao custo/benefcio e transferindo para o mercado a responsabilidade de

    financiar e oferecer cuidados sade (BANCO MUNDIAL, 1975, p.126).

    O primeiro documento que o Banco Mundial produziu sobre a sade foi publicado em

    1975, intitulado Health: Sector Policy Paper[4] e prev a participao das instituies no-

    governamentais: as instituies polticas, sociais ou religiosas locais que podero criar

    oportunidades para exercer este tipo de vigilncia, de identificao, de enfermidades e das

    condies de sade da comunidade. Este documento esboa as primeiras diretrizes para as

    contrarreformas nos pases subdesenvolvidos: o sistema pblico deve concentrar as suas aes

    na assistncia coletiva, que deve ser simplificada e descentralizada na comunidade, visto que a

    assistncia individual realizada em mbito hospitalar de alto custo para o sistema.

    O sistema de sade idealizado pelo Banco Mundial para os pases de capitalismo perifrico

    no tem a perspectiva de universalizar o atendimento de tratamento clnico e dos avanos

    tecnolgicos alcanados pela medicina, mas, visa um atendimento limitado ateno primria a

    sade, com a utilizao de procedimento simples e de baixo custo, realizado por profissionais com

    pouca qualificao capazes de resolver os problemas de sade mais gerais, de carter familiar e

    comunitrio.

    De acordo com os estudos de Rizzoto (2000), os motivos que levaram o Banco Mundial a

    ter interesse no setor da sade, se relacionam principalmente com revigoramento do liberalismo,

    pois ao fazer a crtica contundente ao papel do Estado na interveno nas polticas pblicas,

    inclusive na sade, poderia contribuir para o seu avano. Outro motivo, a ser destacado, foi a

    necessidade de o Banco Mundial difundir uma face humanitarista diante do agravamento das

    condies de vida da maioria da populao, do aumento da pobreza e da desigualdade social como

    resultado da implantao do ajuste estrutural nos pases perifricos por ele condicionado. A sade

    comearia, ento, a ganhar espao nos discursos do Banco, passando a se constituir em

    importante instrumento para o alvio da pobreza (RIZZOTO, 2000, p.119 -122).

    Entretanto, o motivo de maior relevncia para o interesse do Banco Mundial na rea da

    sade est relacionado ao fato de esta rea ter passado a se constituir em um importante mercado

    a ser explorado pelo capital. No obstante, o financiamento de projetos na rea da sade dava-se

    mediante a aceitao dos pases devedores da condicionalidade de seguir as polticas definidas

    pelo Banco Mundial nesta rea, o que proporcionaria a sua legitimao em nvel internacional, como

    protagonista no campo da sade, ao mesmo tempo em que os pases devedores ficavam refns do

    Banco Mundial e da agenda de contrarreformas por ele recomendada (RIZZOTO, 2000).

    O processo de mercantilizao da sade se insere na agenda de contrarreforma da

    sade do Banco Mundial. Nesta lgica mercantil, a rede privada se ocupa das reas mais rentveis,

    ou seja, os servios de mdia e alta complexidade, enquanto as instituies pblicas cumprem o

    papel de atender a populao mais pobre. So essas transformaes que caracterizam as razes

    socioeconmicas e polticas que ditam a contrarreforma do Estado e para quem elas devem estar

    voltadas.

    Correia (2005) destaca que nas ltimas dcadas houve um crescimento substancial dos

    planos e dos seguros de sade privados, chegando quase ao triplo entre 1987 e 1998 e

    aumentando em, aproximadamente, 70% o nmero de clientes. O aumento aconteceu tambm em

    clnicas e laboratrios populares, evidenciando que o desembolso direto das populaes mais

  • pobres est crescendo.

    O crescimento dos planos privados de sade contou com incentivos governamentais no

    contexto do desfinanciamento do SUS, da crise fiscal do Estado e da ofensiva neoliberal. Nessa

    perspectiva:

    A alegao de que o mercado desafogou financeiramente o SUS serve de apoio

    ideolgico aos interesses liberais e capitalistas, mas, na verdade, esconde ahistria e as razes que permitiram o patrocnio do mercado de planos de sade

    pelo Estado capitalista, contribuindo para estruturar um modelo de proteo socialde matriz liberal em contrapartida priorizao do modelo de ateno sade

    pblica consentida pela Constituio de 1988 (REIS & SOPHIA, 2009, p.74)

    A consolidao do mercado de planos de sade resultado, dentre outros fatores, da

    fragilizao crescente do setor pblico de sade, pelo carter privatista das polticas de sade das

    ltimas dcadas e das estratgias de competio do mercado. O problema em questo assume,

    conforme Santos (2007), uma dupla dimenso. De um lado, faz-se necessrio superar o impasse

    do financiamento evidenciado pelo desmonte do Oramento da Seguridade Social (OSS), cujos

    30% indicados para serem gastos com a sade nas disposies transitrias da Constituio

    dariam, hoje, mais do que o dobro do oramento do Ministrio da Sade. Por outro lado, tem-se a

    concepo de que o SUS nunca foi preparado e, portanto, no tem condies de oferecer

    alternativa natureza privada da cobertura aos trabalhadores do ncleo dinmico da economia e do

    Estado, os quais representam setores da sociedade, em maior ou menor grau, com voz, voto,

    mdia e dinheiro (REIS & SOPHIA, 2009, p.75).

    Esse ltimo ponto de vista configura a chamada universalizao excludente[5], expresso

    criada para qualificar a associao entre uma expanso por baixo, pela incluso de milhes de po-

    bres e indigentes, e uma excluso por cima, na qual segmentos de trabalhadores mais qualificados

    e a classe mdia em geral renunciam, aparentemente, assistncia mdica do SUS e, em busca

    de atendimento diferenciado os dos planos de sade , no percebe que houve um processo de

    esvaziamento do seguro social brasileiro, o que reforou o mercado dos planos privados (REIS &

    SOPHIA, 2009).

    Dessa forma, assiste-se uma privatizao do seguro social no Brasil, que ajuda a

    incrementar o nmero de consumidores do mercado, dando incio configurao de um sistema de

    sade paralelo, reproduzindo desigualdades sociais e aprofundando iniquidades de acesso dentro

    do sistema de sade. O Estado capitalista, historicamente, agiu e continua atuando para favorecer

    as condies de rentabilidade das operadoras privadas de planos de sade por meio do fundo

    pblico, o que revela uma relao estrutural entre o Estado e o mercado.

    Conforme Bahia e Scheffer (2010), as ambiguidades das relaes pblico-privadas no setor

    sade so consequncias das relaes elitistas e excludentes de natureza econmica, poltica e

    cultural que impedem a efetivao do direito cidadania. Os recursos, regras e convenes

    relacionadas ao funcionamento dos planos de sade tem segmentado o SUS, devido ao apoio ativo

    do setor pblico ao privado, estabelecendo acessos diferenciados s aes e servios de sade. A

    estratificao do servio pblico de sade constantemente prolongada e renovada pela

    insuficincia estrutural desse sistema e pelos inmeros arranjos institucionais privados.

    A hegemonia neoliberal no Brasil tem sido responsvel pela reduo de direitos sociais e

    trabalhistas, desemprego estrutural[6], precarizao do trabalho, desmonte da previdncia pblica,

    sucateamento da sade e da educao. Diante disso, a Sade fica vinculada ao mercado,

    responsabilizando a sociedade civil para assumir os custos da crise.

  • A Constituio Federal de 1988 e as Leis orgnicas da Sade/1990 criaram um impasse

    para com os interesses do setor privado da sade. As desigualdades sociais expressas na

    sociedade exigem que o Estado na forma da lei deva atender s demandas da sade de forma

    universal, a partir dos determinantes socioeconmicos dos perfis epidemiolgicos, com definies

    de polticas sociais e econmicas que visem reduo dos riscos de doenas. Tais necessidades

    exigem a adoo de uma direo social contrria s polticas econmicas adotadas pelos governos

    neoliberais.

    Tal impasse uma consequncia contempornea das crises do capital financeiro mundial,

    bem como da expanso das ideologias neoliberais e de seus projetos de ajustes fiscais e

    contrarreforma do Estado sob imposies de instituies financeiras mundiais lideradas pelo

    comando norte-americano (MASSON, 2007).

    Neste sentido, o Estado tende a criar mecanismos para o enfrentamento das crises de

    acumulao do capital, via transferncia de suas responsabilidades para as reas diretamente

    ligadas reproduo da vida, para parcerias com a iniciativa privada. O cuidado com a reproduo

    da populao passa a ser condicionado s novas necessidades de acumulao capitalista. Esta

    fragmenta, despolitiza e neutraliza a anlise dos problemas de sade e intervm atravs de

    programas focalizadores (MASSON, 2007, p.41). Nesta lgica, a sade pelas necessidades de

    ajustes econmicos se submete lgica do mercado, que se pe materialmente e

    ideologicamente na vida social.

    A crise do Sistema nico de Sade reflete a crise do capitalismo contemporneo. Todas as

    crises so, na sua totalidade, determinadas pelas contradies do capital, expressas atravs de

    ondas cclicas (MANDEL, 1982). Desse modo, os limites do SUS no so expresses da

    necessidade de novas formas de gesto, mas configuraes das desigualdades de classes postas

    por essa forma de sociabilidade, em que h a negao e a desqualificao das polticas de

    assistncia, previdncia e sade.

    Para foras que defendem um novo modelo de gesto no SUS a noo de igualdade e de

    universalidade est condicionada ao limites estruturais vigentes. Consideram que se no h,

    definitivamente, recursos para todos, ento preciso adequar seus princpios s condies do

    Estado (diga-se Estado dominado pelos interesses da burguesia). Nesta viso um novo modelo de

    gesto para o SUS mais moderno e flexvel a sada para a crise (MASSON, 2007, p.47).

    Tal proposta configura o segundo momento da Reforma Bresser[7]. A primeira etapa

    implementou a ideia da gerncia atravs das Organizaes Sociais -OSs, agora est em pauta

    uma contrarreforma ampla atingindo o SUS integralmente. Trata-se de uma contrarreforma da

    Reforma Sanitria, j sinalizada pelo governo FHC, em 1998 (MASSON, 2007).

    Os hospitais estatais devero ser em princpio transformados em organizaessociais, ou seja, em entidades pblicas no-estatais de direito privado comautorizao legislativa para celebrarem contratos de gesto, com poder executivo eassim participarem do oramento federal, estadual ou municipal. Estaplubicizao dos hospitais estatais, entretanto, no integra a reformaadministrativa ora proposta [...] A nova idia a de concentrar os esforos dogoverno no financiamento e no controle dos servios prestados por essesservios, ao invs do oferecimento direto pelo Estado [...]. Os hospitais eambulatrios devero em princpio, ser rgos pblicos no-estatais, competindoentre si no fornecimento de seus servios ao SUS (MARE, 1998, p.17).

    importante destacar que as parcerias entre o pblico e o privado acontecem no mbito do

    livre jogo do mercado, no qual predomina uma dinmica perversa que reduz o direito, o acesso

    universal, visto que os contratos de gesto ora propostos constituem modalidades de privatizao

    que visa a transformao do direito em mercadoria, pois seu objetivo impulsionar a

  • mercantilizao dos setores rentveis do servio pblico.

    Neste sentido, a avaliao de ineficincia do SUS pe em pauta tendncias de privatizao

    da poltica pblica de sade ao propor o repasse da gesto do SUS para modalidades de gesto

    no-estatais, atravs dos contratos de gesto e por meio de transferncias de recursos pblicos.

    CONSIDERAES FINAIS

    na segunda metade da dcada de 90, especificamente no governo de FHC, que o Brasil

    vivencia diversas mudanas sociais e econmicas. Essas mudanas levaram as polticas pblicas,

    em especial as sociais, a assumirem um carter focalista e meritocrtico, ferindo a Constituio

    Federal de 1988 e descaracterizando a universalizao dos direitos sociais, que foram

    conquistados com lutas histricas pela classe trabalhadora.

    O esfalecimento da funo do Estado provocado pela tentativa de sobrevivncia do

    capitalismo contemporneo, em particular pelas transformaes econmicas que colocam novas

    conquistas para as aes do Estado intensificando a apropriao do fundo pblico pelo privado. O

    Estado vem cumprindo a funo de complementar os mercados naqueles servios que no so de

    interesse da iniciativa privada, na produo de bens pblicos e na oferta de servios sociais para

    aqueles que no podem pagar por estes.

    A relao entre o ajuste macroeconmico e a poltica social congruente com a matriz

    terica da economia poltica que enfatiza a subordinao das polticas nacionais aos processos de

    globalizao dos mercados financeiros e dos fluxos comerciais. O Estado capitalista no Brasil tem

    se caracterizado por uma mistura de interesse entre o pblico e o privado, dominado pelo

    patrimonialismo, com o fundo pblico canalizando recursos, no passado, para acumulao do

    capital industrial e, atualmente, com o predomnio dos interesses do capital financeiro. Assim, as

    polticas sociais vm percorrendo um longo caminho entre as conquistas inscritas na Constituio

    de 1988 e sua real efetivao. Os princpios norteadores do paradigma neoliberal para o

    enfrentamento da questo social so antagnicos aos da Carta de 1988. Neste, o Estado de Bem-

    Estar Social substitudo pelo Estado mnimo; a seguridade social pelo seguro social; a

    universalizao pela focalizao; a prestao estatal direta dos servios sociais pelo Estado

    Regulador e pela privatizao e os direitos trabalhistas pela desregulamentao e flexibilizao

    (COSTA, 2009). Assim, fica claro que existe uma incompatibilidade essencial que impossibilita a

    harmonizao entre o direito a sade e o direito a livre a atuao privada em torno do lucro. As

    desigualdades do acesso permitidas pelo sistema de sade brasileiro evidenciam essa

    incompatibilidade.

    A canalizao do fundo pblico para o setor privado de sade em detrimento do SUS, vai

    alm da retirada de direitos, est incluso no movimento crescente do capital financeiro, que atinge a

    todos os recursos de natureza pblica, promovendo o deslocamento dos investimentos em

    infraestrutura bsica e na ampliao do setor pblico, para alimentar o crculo do capital financeiro.

    importante destacar - apesar dos impasses existentes para a concretizao efetiva dos

    servios ofertados pelo SUS e dos parcos recursos repassados - que esse sistema de sade

    consegue ter abrangncia e qualidade em algumas reas. Sem dvida, o SUS um dos maiores

    sistemas pblicos de sade do mundo industrializado.

    O sistema responsvel pelo fato de o Brasil ser o segundo pas no mundo, atrs apenas

    dos Estados Unidos, em nmeros, de transplantes de rgo realizados. Presta-se assistncia

    sade de milhes de pessoas, desde a assistncia bsica at tratamentos que envolvem mdia e

    alta complexidade tecnolgica e servios de emergncia. Alm disso, o SUS conta com um

    excelente programa de vacinao e um programa de HIV (Vrus da Imunodeficincia Humana)

  • reconhecido internacionalmente. Realizam-se pesquisas em diversas reas da cincia, inclusive

    com clulas-tronco. Por fim, a despeito dos problemas relativos ao acesso, o alto custo fica por

    conta do sistema pblico que oferece transplantes, tratamentos de cncer, cirurgia cardaca e

    hemodilise, fato que explica a ampla prestao de servios caros e sofisticados feita pelo sistema

    pblico para usurios do sistema privado.

    Para se ter uma ideia, em 2005, o SUS atendeu um volume de 1,3 bilhes de atendimento

    bsicos em 64 mil unidades ambulatoriais; 1,1 bilhes de procedimentos especializados; 600

    milhes de consultas; 11,6 bilhes de internaes (Carvalho, 2007). Os gastos pblicos em sade,

    no ano de 2006, totalizaram R$78,91 bilhes, os gastos privados 44,7milhes, sendo que dos 186

    milhes de brasileiros, 44,7 milhes estavam cobertos por planos privados de sade (MASSON,

    2007, p.45 apud CARVALHO, 2007). Assim, faz-se necessrio revigorar o movimento de Reforma

    Sanitria, travando uma luta ideolgica em prol da universalizao e da democratizao da sade e

    da negao da sua mercantilizao.

    REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS

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    RIZZOTO, Maria Lcia F. O BANCO MUNDIAL E AS POLTICAS DE SADE NO BRASIL NOSANOS 90: um projeto de desmonte do SUS. Tese de doutorado. Universidade Estadual deCampinas, 2000.

    SALVADOR, Evilsio. Fundo Pblico e Seguridade Social no Brasil. 1 Ed. So Paulo. Cortez,2010.

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    [1] Segundo Marx(1984), o fetichismo uma relao social entre pessoas mediatizada por coisas. O resultado a

    http://www.abresbrasil.org.br/material/Doc%20ABRES%202009%20-%20Painel%2002%20-%20OckeReis.pdf

  • aparncia de uma relao direta entre as coisas e no entre as pessoas.

    [2]

    Consenso de Washington um conjunto de medidas - que se compe de dez regras bsicas - formulado emnovembro de 1989 por economistas de instituies financeiras baseadas em Washington D.C., como: o FMI, o Banco

    Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamentados num texto do economista John Williamson, do

    International Institute for Economy, e que se tornou a poltica oficial do Fundo Monetrio Internacional em 1990, quando

    passou a ser "receitado" para promover o "ajustamento macroeconmico" dos pases em desenvolvimento que

    passavam por dificuldades.

    [3] A assim chamada acumulao primitiva o processo histrico de separao entre produtor e meio de produo.Ele aparece como primitivo porque constitui a pr-histria do capital e do modo de produo que lhe corresponde(MARX, 1984, p. 26).

    [4] Sade: documento de poltica setorial.[5] Para aprofundar o assunto ver: Faveret, Filho; Oliveira, 1990. [6]O desemprego estrutural verifica-se quando o nmero de trabalhadores superior ao que o mercado quer contratar

    e esse excesso de oferta de trabalhadores no temporrio.[7] Reforma do Estado brasileiro apresentado pelo Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado MARE,

    de autoria do ex- Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, a partir da indicao de quatro componentes bsicos: a) a

    delimitao do tamanho do Estado, reduzindo suas funes atravs da privatizao, terceirizao e publicizao, queenvolve a criao das organizaes sociais; b) a redefinio do papel regulador do Estado atravs da

    desregulamentao; c) o aumento da governana, ou seja, a recuperao da capacidade financeira e administrativade implementar decises polticas tomadas pelo governo atravs do ajuste fiscal; d) o aumento da governabilidade

    ou capacidade poltica do governo de intermediar interesses, garantir legitimidade e governar.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/1989http://pt.wikipedia.org/wiki/Washington_D.C.http://pt.wikipedia.org/wiki/FMIhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_Mundialhttp://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Departamento_do_Tesouro_dos_Estados_Unidos&action=edit&redlink=1http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Williamsonhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Fundo_Monet%C3%A1rio_Internacional