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A CARÊNCIA AFETIVA E SUA REPERCUSSÃO NA ADAPTAÇÃO ESCOLAR MARIA HELENA NOVAES o PROBLEMA EM GERAL A carência afetiva determina uma série de distúrbios que podem comprometer seriamente a criança, tanto na esfera física, como na psí- quica, perturbando o processo do seu desenvolvimento global. Como hipótese inicial de trabalho, neste estudo de casos que vamos apresentar, partimos do princípio que a maioria das dificuldades de adap- tação da criança, carente do afeto materno, provém de uma alteração da capacidade em estabelecer trocas afetivas normais com outros sêres huma- nos e, por conseguinte, de interrelacionamento, donde a repercussão da carência afetiva no plano da adaptação escolar. É na escola, grupo social estruturado e com dinâmica peculiar, que la'parecem muitas dificuldades de comportamento afetivo, emocional e social, prejudicando a integração da criança no grupo respectivo e o seu rendimento nos estudos. Observamos que os alunos, carentes de afeto materno, apresentam uma grande ambivalência de atitudes em relação às professôras e colegas: de uma parte, têm necessidade de contatos afetivos e de se tornarem dependentes dêles; de outra, revelam mêdo enorme de serem novamente frustrados. Assim sendo, procuram afeto e carinho, mas também agridem e hostilizam os demais, donde a complexidade dêstes casos, quanto à orientação e tratamento. Mas a escola pode beneficiar essas crianças, seja através da obser- vação sistemática da conduta delas com diagnóstico precoce de cada caso,

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  • A CARNCIA AFETIVA E SUA REPERCUSSO NA ADAPTAO ESCOLAR

    MARIA HELENA NOVAES

    o PROBLEMA EM GERAL

    A carncia afetiva determina uma srie de distrbios que podem comprometer seriamente a criana, tanto na esfera fsica, como na ps-quica, perturbando o processo do seu desenvolvimento global.

    Como hiptese inicial de trabalho, neste estudo de casos que vamos apresentar, partimos do princpio que a maioria das dificuldades de adap-tao da criana, carente do afeto materno, provm de uma alterao da capacidade em estabelecer trocas afetivas normais com outros sres huma-nos e, por conseguinte, de interrelacionamento, donde a repercusso da carncia afetiva no plano da adaptao escolar.

    na escola, grupo social estruturado e com dinmica peculiar, que la'parecem muitas dificuldades de comportamento afetivo, emocional e social, prejudicando a integrao da criana no grupo respectivo e o seu rendimento nos estudos.

    Observamos que os alunos, carentes de afeto materno, apresentam uma grande ambivalncia de atitudes em relao s professras e colegas: de uma parte, tm necessidade de contatos afetivos e de se tornarem dependentes dles; de outra, revelam mdo enorme de serem novamente frustrados. Assim sendo, procuram afeto e carinho, mas tambm agridem e hostilizam os demais, donde a complexidade dstes casos, quanto orientao e tratamento.

    Mas a escola pode beneficiar essas crianas, seja atravs da obser-vao sistemtica da conduta delas com diagnstico precoce de cada caso,

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    realizado por profissionais especializados, seja atravs do planejamento de uma ao teraputica, que utilize os recursos cabveis procedendo aos encaminhamentos necessrios.

    Inicialmente, convm destacar dois aspectos fundamentais do proble-ma ligados diferena existente entre a separao da me e a carncia dos cuidados e do amor materno. A separao ou perda da: figura materna um trauma que implica em choque, comparvel ao de uma doena grave aguda; os sintomas podem desaparecer rpidamente, se a criana logo encontra um substituto materno adequado, caso em que no ficar do episdio seno uma sensibilizao a tda separao afetiva.

    Uma criana normal, separada pela primeira vez da figura materna, apresenta sinais de mal-estar e de certa angstia que, naturalmente, variaro em intensidade, dependendo de fatres, tais como: dinamismo pessoal da' criana, idade, grau de dependncia em relao aos pais, dura-o e qualidade dos cuidados maternos antes da separao, natureza dos cuidados maternos de substituio, alm das modificaes vividas pela criana nas diversas situaes ocasionadas pela separao.

    J a carncia prolongada dos cuidados e do amor materno, bem como a ausncia de uma figura materna permanente, provoca distrbios mais graves, que podem chegar a transformar-se em neuroses obsessivas, de angstia, que reduzem a capacidade de adaptao da criana ao meio ambiente. As conseqncias dessa carncia sero tanto mais graves, quanto mais nova fr a criana, uma vez que, no processo evolutivo, quanto mais cedo se d um traumatismo afetivo, maior ser a repercusso ulterior, devido ao sentido de globalidade das reaes emocionais. A noo de imbricao ntima dos fenmenos somticos e psquicos deve estar sempre presente no estudo da carncia afetiva.

    Tomemos, por exemplo, o perodo evolutivo que vai do 4. ao 15. ms de vida da criana, perodo sse muito importante para a formao bsica do Ego, da conscincia do seu esquema corporal, de sua identidade como ser humano, da sua expresso e comunicao com o meio. Tda carncia afetiva nessa fase perturba tanto o desenvolvimento afetivo, emocional, como intelectual, psicomotor e tambm fsico. Tanto assim que so muito comuns os casos de anorexia, de insnia, de enurese per-manente e ulterior, de atrofias musculares, de atrasos motores, advindos dessa situao carencial. Quanto ao comportamento, essas crianas apre-sentam reaes de vrios tipos, ora tornam-se hiperativas, agressivas; ora,

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    inertes, apticas, indiferentes; ora, demonstram desejo de posse excessiva, com exigncias contnuas; ora, enfim, aparecem desligadas e desinteres-sadas da realidade.

    Da advm a necessidade de se assegurar o mais rpidamente, possvel os cuidados maternos de substituio ocasional ou permanente nas crianas menores, o que vlido, tambm, para as crianas de mais idade, que merecem, igualmente, cuidados e amparo.

    Muitas pesquisas tm sido feitas sbre os efeitos da carncia afetiva na criana, dentre as quais as de LEVY e BAKWIM, nos EE.UU., que obser-varam, isoladamente, crianas hospitalizadas e separadas das mes (1937). No perodo de 1943 a 1949, destacaram-se as pesquisas de MENUT sbre as conseqncias da dissociao familiar e as de REN SPITZ que descreve o sndrome da depresso anacZtica, apresentado pela criana de meses, privada subitamente da figura materna. Temos ainda a experincia de W. GOLFARB, que salienta as conseqncias ulteriores da carncia de afeto materno durante os trs primeiros anos da criana, e os trabalhos de J. BOWLBY que demonstram a freqncia da indiferena afetiva e da de-linqncia grave, nos casos em que se tenham verificado carncias afetivas na primeira infncia. Convm ainda citar o famoso livro de BURLINGHAM e ANNA FREUD, Crianas sem Famlia, que descreve o drama da separa-o da figura materna em crianas de 1 a 4 anos, atravs do estudo e observao diria de crianas que freqentavam uma ((nursery", nos arredores de Londres.

    Destacaremos o clssico trabalho de JENNY AUBRY "La carence des soins maternels", no qual relata a sua experincia na Fundao Parent de Rosan, em 1946, com crianas de 1 a 3 anos, entregues a Instituio de Assistncia Pblica, trabalho realizado por uma equipe de dez colabo-radores, entre tcnicos e mais especialistas (mdicos-pediatras, psiquiatras, psiclogos, professras, assistentes sociais). Essa autora salienta a impor-tncia da investigao prvia da estrutura familiar de tais crianas e do motivo do ingresso na instituio, observando tambm que a maioria das crianas chorava, ficava deprimida, triste, algumas chupavam conti-nuamente os dedos, as bordas das camas, outras eram agressivas, destrui-doras e hostis a qualquer contato.

    As primeiras tentativas realizadas para melhorar tal estado de coisas, no sentido de propiciar cuidados afetuosos individualizados, ateno, des-vlo, ambiente alegre e divertido, brinquedos, cuidados mdicos especiais, alimentao cuidada, no melhoraram em muito a situao, sendo as

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    reaes dessas crianas, diante de tais medidas, completamente diferentes das reaes de um grupo normal de outras, sem o mesmo problema. Veri-ficou-se ento que, incapazes de estabelecer uma ligao afetiva impor-tante, como a materna, na idade em que eram inteiramente dependentes dos adultos para sua subsistncia e desenvolvimento, no conseguiam

    agor~ ligar-se a ningum e nem mesmo suportar o fato de serem amadas, no aproveitando nenhuma das possibilidades oferecidas pelo meio am-biente.

    Por outro lado, J. AUBRY d tambm muito realce ao estudo dos ante-cedentes hereditrios dessas crianas, bem como recomenda exame mdico pormenorizado e completo, sobretudo, da parte neurolgica, sensorial e de psicomotricidade. E isso porque distrbios motores acompanham geral-mente o atraso e a falta de harmonia no desenvolvimento global da criana, levando a crer, muitas vzes, pela intensidade com que aparecem, na existncia de leses neurolgicas permanentes. Cita, por exemplo, o caso de um menino de um ano e 6 meses que, durante muito tempo, foi considerado como surdo-mudo, recusando sistemticamente a qualquer contato humano, recusa essa que no se acompanhava de angstia, nem de hostilidade aparentes, sendo mais uma recusa passiva, forma de nega-o das percepes e sensaes. Acusava tambm dissociao das percep-es sensoriais, no podendo, ao mesmo tempo, escutar, olhar, chamar, tocar e falar, acentuando-se a inibio auditiva que, conforme ia desapa-recendo, facilitava os outros modos de integrao sensorial. No caso, interessante registrar o fato de ter tido, antes, e durante o seu interna-mento, vrias crises de otite.

    Assim, chega-se concluso de que a carncia afetiva materna no s produz choque imediato, mas deteriorao progressiva, tanto mais grave, quanto mais longa e precoce fr a carncia. Essa deteriorao um processo evolutivo que pode culminar numa desintegrao da perso-nalidade, como tambm provocar distrbios srios na rea somtica. Enfim, a angstia provocada, em crianas pequenas, pela perda e separao da figura materna determina mecanismos de defesa que podem compro-meter e modificar a sua personalidade.

    Em 1951, o Centro Internacional da Infncia, de Paris, publicou traba-lhos que ressaltaram a importncia do estudo dste problema, estabele-cendo mtodos de investigao cientfica sistemtica de tais casos, reco-mendando uma poltica de preveno, alm da cura e tratamento, pro-priamente ditos. Chamava-se a a ateno para a tendncia, que tm

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    muitos adultos, de colocarem crianas provenientes de lares pobres, sem condies de estabilidade emocional satisfatrias, em instituies que no atendem a suas exigncias afetivas, s o fazendo quanto assistncia material.

    A fim de compreendermos melhor a repercusso da carncia afetiva materna, nas diversas etapas do desenvolvimento da criana e suas conse-qncias ulteriores, poderemos separ-la em trs grupos:

    1) ausncia total dos cuidados e afeto maternos, durante o primeiro ano de vida da criana;

    2) efeitos da insuficincia do amor materno, entre os 2 e 3 anos de vida da criana;

    3) insuficiente ligao afetiva com a figura materna, depois dos 3 anos de vida da criana.

    Na primeira situao, deve-se ter presente o seguinte: os contatos da crian com o mundo se processam atravs da relao com a me que, atravs da ateno e carinho dados ao filho, desperta nle o intersse pela realidade externa. O homem, ao nascer, o mais desvalido dos sres vivos e, assim sendo, afirma SARKISSOFF, muitos agentes nocivos podem causar danos sua formao e desenvolvimento, do ponto de vista fsico e psquico. Por outro lado, o recm-nascido no pode amar a vrias pessoas-ao mesmo tempo, precisa fixar-se a uma pessoa que seja estvel e que le sinta que lhe pertence.

    Experincias de R. SPITZ demonstraram que crianas abandonadas pela me antes de completarem um ano de idade, apesar de cuidados higinicos extremados, boas instalaes materiais, alimentao muito cui-dada, no se desenvolviam normalmente: eram crianas tristes, inexpres-sivas, apticas, sofrendo quedas de psoe perturbaes psicossomticas. Essas crianas tendem a aceitar bem a substituio da figura materna, mas se no houver uma substituio vlida e imediata, reagiro ao aban-dono por depresso, proporcional, em sua gravidade, ao grau de ligao afetiva que hajam anteriormente estabelecido com a figura materna. De modo geral, essas crianas ficam prejudicadas na sua comunicao e relao com o mundo, sobretudo, na sua capacidade de relacionamento afetivo com os demais indivduos, apresentando varIOS distrbios de personalidade e, na rea somtica sintomas como asma, colites, hiperto-nias, perturbaes digestivas etc. Tal afirmao vlida tambm para

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    as crianas que, embora no separadas da me, no tenham dela carinho ou afeio.

    Se uma criana abandonada pela me durante o segundo ano de vida, suas reaes sero diferentes das mais novas .. para ela mais difcil aceitar a substituio, uma vez que aprendeu a reconhecer a figura ma-terna, como indivduo nico. Assim, reage sua substituta, advindo desta situao sentimentos de angstia, de depresso aguda, adotando atitude de contnuo protesto contra a ausncia da me. Alis, esta atitude de recusa inicial me-substituta um sinal de sade mental, e prova de que a criana estava vivendo uma situao de ligao afetiva positiva com sua me. J a criana que no recebeu anteriormente, carinho e amor materno, suportar melhor, aparentemente, a situao de abandono. Essa resignao e adaptao superficial ser, porm, sintoma negativo, no que diga respeito a seu desenvolvimento afetivo.

    Durante o perodo de dois a trs anos, poderemos destacar, como caractersticas principais da repercusso da carncia afetiva, as perturba-es que aparecem ligadas incorporao de atitudes bsicas emocionais, pois nessa fase a me elemento essencial para formao da conscincia individual e moral; realmente, ela o elemento bsico para que se d bom relacionamento com o meio ambiente, condicionando hbitos sociais vlidos e estruturando um sistema de reciprocidade.

    Nos casos da carncia afetiva entre os 3 e 4 anos,'a criana, tendo j adquirido uma certa maturidade afetivo-emocional, poder reagir melhor situao. Contudo, se a separao da figura materna fr brusca e defi-nitiva, reagir como se tivesse sido abandonada, com atitudes de agressi-vidade e hostilidade, podendo tambm cair em estados depressivos. Precrias relaes afetivas com a figura materna produziro modificaes graves no comportamento da criana, que reagir de forma agressiva, sentindo-se insatisfeita, reivindicadora e perseguida. Nos casos em que a criana sinta carncia de afeto materno, embora a me continue ao seu lado, o comprometimento ser relativo. De fato, presente no lar, a figura materna ter atuado como elemento positivo de adaptao.

    Muitas vzes, a ansiedade materna, que tanto prejudica o desenvolvi-mento emocional da criana, provm do fato de saber-se incapaz de dar ao filho o amor de que le necessitaria, sentindo-se, ento, impulsionada a compensar externamente, atravs de um aparente e artificial excesso de desvlo e ternura.

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    Na sua primeira infncia, a criana precisa de viver em clima de segurana emocional, junto a uma imagem de segurana, que se repre-senta pela me. Estar, assim, em condies de enfrentar as frustraes normais de vida e as de conflito, inevitveis. Ser por isso prefervel, em alguns casos, optar por uma adoo precoce, ao invs de tentar contem-porizar com certas mes, totalmente incapazes, de oferecer aos filhos ambiente emocional favorvel a seu ajustamento e desenvolvimento global. Da advm a complexidade do problema da adoo e transferncia das crianas pequenas para lares substitutos, ou instituies especializadas.

    Estudos realizados em vrias instituies tm demonstrado que as crianas carentes do afeto materno, abandonadas ou separadas das mes, apresentam distrbios graves, inclusive nas reas da psicomotricidade, linguagem, percepo e da inteligncia, em geral, e que isso pode agravar deficincias congnitas ou adquiridas.

    ESTUDO DE CASOS

    Passaremos agora a apresentar cinco casos ilustrativos de vrias situa-es carenciais, estudados pela equipe do Servio de Psicologia, da Escola Guatemala, no Rio de Janeiro. Dar-se-, dsse modo, uma idia concreta da repercusso da carncia afetiva no ajustamento da criana escola, bem como das dificuldades surgidas por ocasio da orientao dsses casos,

    . dadas as complexas situaes familiares existentes e os limites do prprio Servio e da atuao da escola.

    Caso n.o 1 - Aluno de 6 anos de idade, freqentando o 1.0 ano pri-mrio. Muito bem dotado intelectualmente, com bom rendimento escolar, apresentava problemas na esfera afetivoemocional e dificuldade de adap-tao espontnea ao meio ambiente. Era tensa, angustiada, muito emotiva e prsa a forte superego.

    Atravs do estudo do caso, constatou-se que se tratava de criana que, desde pequena, sofrera de rejeio e carncia de afeto materno, apesar de ter sempre permanecido junto da me. o mais velho de 2 irmos.

    Verificou-se que a me era personalidade ansiosa, emotiva, devido a vrias circunstncias: separao temporria do marido durante o perodo de gravidez; viagem do estrangeiro para o Brasil, sozinha, com o primeiro filho; dificuldades de vida; responsabilidades excessivas que a levaram mesmo a pensar em suicdio, por sentir-se responsvel pelas dificuldades

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    de sade apresentadas pelo filho. Nessas condies rejeitara inconscien-temente a criana, adotando atitude de superproteo compensatria, contrle excessivo e rigidez nos seus contatos com ela.

    Quando pequeno, o menino apresentava sintomas de somatizao dessa carncia afetiva, atravs de crises convulsivas freqentes. Uma delas, foi to violenta, quando da viagem para o Brasil, que a me teve que desembarcar no primeiro prto para dar-lhe tratamento. Na ocasio, os mdicos nada de anormal, no plano orgnico, constataram, diagnosti-cando apenas "crise nervosa". At os 3 anos, continuou com as crises que "s cessaram quando o pai o apanhou pelos ps e o enfiou embaixo de um chuveiro frio, e depois quente" (informaes da me). At hoje con-tinua, porm, a ter sono agitado; franzino e apresenta enurese ocasional. No exame mdico, realizado na escola, foi registrado "desenvolvimento pouco satisfatrio para a idade, clinicamente normal". J foi operado da garganta e de fimose.

    Uma vez localizado o problema e levantadas as principais coordenadas da problemtica, foi a me orientada no sentido de procurar modificar sua atitude junto ao filho: que lhe desse maiores oportunidades de recrea-o e divertimento, no devendo continuar a exteriorizar sua ansiedade e temor constantes.

    A orientao do Servio de Psicologia foi bem aceita, tendo compa-recido a vrias entrevistas nas quais mencionou as melhoras do seu com-portamento em relao ao filho, e do filho em relao sua adaptao ao meio ambiente.

    A professra da classe foi tambm orientada sbre o problema do aluno, no sentido de contornar suas dificuldades de adaptao, acompa-nhando-o com maior assistncia. O aluno registrou melhoria do compor-tamento em classe, depois da orientao dada me, no ficando to preocupada e tensa em relao aos seus deveres e obrigaes. O rendi-mento escolar subseqente foi bom, e sua adaptao situao de classe, muito satisfatria.

    Caso n.o 2 - Aluno de 7 anos de idade, incrito no 1.0 ano primrio. Nvel intelectual normal, tendo, porm, atitude agressiva e sintomas regressivos, dificuldades de contato com os colegas, preocupao sexual, precrio desenvolvimento fsico. O exame mdico indicou que ~ra muito pouco desenvolvido para a idade, quase distrfico; pele plida, amgdalas hipertrofiadas.

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    Mais velho entre os irmos, um de 5 anos e uma menina de 3. :Mora com os pais, num quarto de habitao coletiva. O pai, de 32 anos, comerciante; a me cuida da casa. Nvel scio-econmico da famlia muito baixo.

    Os dados fornecidos pela me, em entrevistas, foram dos mais eluci-dativos. O menino sentia-se totalmente rejeitado pela figura materna que, por sua vez, tambm estava envolvida por um problema de carncia e rejeio afetiva materna. Verificava-se, no caso, o que se poderia denomi-nar de "carncia afetiva de reao em cadeia".

    Relata a me do aluno que sua me tinha tal preferncia por uma das filhas que chegou a retir-la da escola porque a filha preferida no conseguia estudar, no dando ateno a nenhum dos outros filhos. Ficou to revoltada, e sofreu tanto com o desprzo da me e a falta de carinho que saiu de casa o mais cedo possvel, e, tanto se desligou do ambiente de casa que tem um irmo caula que nem conhece. Sente profundamente o que houve consigo e acha que ficou "traumatizada" para sempre, porque no consegue dar carinho aos filhos, apesar de achar "que so les o que de mais importante existe na sua vida". Procura cuidar dles bem, mas sente que no transmite nem calor humano, nem afeto. Fica com muito mdo de repetir a situao que viveu em relao aos seus pais e reconhece que, sobretudo, o filha mais velho ressente-se muito dessa falta de carinho.

    No exame psicolgico, o aluno revelou muita ansiedade, sentimento de culpa, fixao afetiva figura materna, tendo atitudes muito ambi-valentes no plano afetivo, ora compreensivo e afetuoso, ora hostil, agres-sivo, desejando fugir do ambiente familiar, ainda que, apresentasse neces-sidade de dependncia materna e familiar. Quanto sua preocupao sexual, parece estar ligada ao fato de viverem todos juntos num quarto de habitao coletiva, tendo oportunidades de presenciar situaes de natureza sexual.

    1:ste caso pareceu-nos interessante por se tratar de uma carncia afetiva "em cadeia" radicada em conflitos profundos da me, igualmente envolvida por situao de rejeio afetiva no superada, nem resolvida.

    A orientao da famlia foi planejada, mas a me no compareceu s entrevistas marcadas. Providenciou-se tratamento mdico para a criana.

    A professra e a diretora da escola tambm foram esclarecidas a respeito da problemtica do aluno, a fim de contornarem com mais segu-

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    rana suas dificuldades em classe. Sugeriu-se o encaminhamento do aluno para clnica psicolgica especializada, onde pudesse ter assistncia psico-terpica.

    Caso n,l' 3 - Aluno de 6 anos, no 1.0 ano primrio, que apresentava dificuldades de aprendizagem. Baixo rendimento escolar, dificuldades de relacionamento com os colegas e de adaptao situao da classe. Atitu-des muito inibidas, tmidas, chorava muito.

    Ficou constatado, atravs do estudo do caso, que sofria contrle ma-terno excessivo. A me muito exigente, vive sob a alternncia contnua dos estados de nimo da me, apanha muito em casa, brigando muito com uma irm menor, que tem.

    Na entrevista com a me, esta declara que extremamente nervosa, tendo o marido declarado que "nunca deveria ter tido filhos, porque no sabe de forma alguma educ-los". A criana teve desenvolvimento nor-mal, porm a me registra atraso de linguagem e dificuldades de arti-culao. Quando pequeno queixava-se muito de dor nas pernas. Declarou a me que era, por isso, obrigada a passar noites em claro e ficar junto do filho; pensavam que fsse apendicite, hiptese esta, eliminada porque a dor passava logo, apenas com frico de lcool e enrolamento da perna num cobertor.

    Poucos meses antes, foi aperado de fimose, tendo a operao sido feita "a frio", porque a me no permitiu que o filho ficasse internado no hospital, pois ela no poderia acompanh-lo, por ordem da instituio. Alis, ste episdio da operao da criana foi to confusamente relatado pela me, que o fato concreto que ter que voltar para fazer nova inter-veno cirrgica.

    O pai no se d bem com a espsa, achando que esta controla demais o filho, no deixando que le brinque com outras crianas, com mdo que aprenda coisas que no deve. A fim de no complicar mais a situao, respeita e no interfere nas ordens que ela d ao filho.

    A me mostra-se muito ambivalente, em relao ao filho. Ora, adota atitude de superproteo e contrle excessivo; ora, declara que quando le tiver de fazer nova operao, ir deix-lo szinho com a empregada; estar nessa ocasio em frias, no seu trabalho.

    Nos testes realizados, o aluno revelou ambivalncia de sentimentos em relao figura materna, vista como altamente punitiva, no dando

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    a le direito de brincar ou de divertir-se, procurando evadir-se ou escon-der-se ante situaes de conflito com ela. Apresentou ainda precarIa capacidade de relacionamento e de contato social, inibio, afetividade bloqueada, sensibilidade ferida. Denota traos obsessivos, muita preocupa-o com detalhes e esprito de oposio ao meio. Quanto ao seu nvel mental, classificou-se em zona fronteiria normal (Q. L, 80) .

    o caso do aluno foi discutido com a diretora da escola, e a me chamada para receber orientao. Explicou-se-Ihe que estava prejudicando o rendimento escolar e ajustamento social do filho. To absorvida estava, porm, pelos seus problemas, que no aceitou a orientao, dada no sen-tido de oferecer maiores oportunidades de recreao e contato social ao filho, e, sobretudo, carinho e afeto, dos quais estava le em estado de carncia.

    A evoluo do comportamento dessa criana foi interessante, pois o seu modo de reagir, tmido e passivo, a princpio, passou a ser agressivo. Agrupou-se aos alunos mais agitados da turma. A me compareceu escola para reclamar que havia perdido o contrle da criana e atribua ste fato ao contto que tinha com outros alunos, insubordinados.

    A professra foi orientada no sentido de compreender que dentro da problemtica da criana essa sua atitude era uma evoluo e representava uma tentativa de libertao da figura materna, por demais dominadora e repressora.

    A me foi novamente chamada pelo Gabinete de Psicologia, porm esquivou-se, no comparecendo para receber orientao.

    Caso n.o 4 - Aluno de 8 anos do 1.0 ano primrio. Apresentava dificuldades de aprendizagem, sobretudo na leitura, tinha fraca capaci-dade de ateno: dispersivo, ansioso, sensvel. Franzino, pouco desenvol-vido para a idade. Seu nvel intelectual foi classificado como normal.

    Mora com uma tia materna, h dois anos, ocasio em que o seu pai suicidou-se, ingerindo corrosivo, diante da mulher, de uma filha, alm do prprio filho. A me estava grvida, na ocasio, fato ste que ocultava famlia. A criana nasceu meses depois. A me do aluno, tida como doente mental, estve tuberculosa, internada num hospital. Seus filhos foram distribudos pelas tias e a av. O aluno continua tendo contato com os irmos; o mais velho, com 15 anos, j trabalha, e ~ menor tem 1 ano e 7 meses. V a me qu~ndo ela melh

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    A me com as limitaes de sua doena mental no estava em condi-es de dar aos filhos nem carinho, nem afeto. Quando ficou turberculosa. os filhos ficaram sob observao mdica, tendo sido levados para um preventrio, menos o aluno, porque, alm de anemia tinha "corao vo-lumoso". Houve contra-indicao, no seu caso, quanto mudana para lugar de altitude elevada. Presenciou sempre muitas brigas entre os pais que viviam em clima de tenso. O pai, muito agressivo, batia em todos, surrava os filhos, dando a impresso de tratar-se de personalidade psicopata.

    O aluno d-se bem com os primos, uma menina de 13 anos que j foi aluna da mesma escola, e um menino de 10 anos. Mantm boas rela-es com o tio, que gosta dle e tem com le muita pacincia.

    Alm das dificuldades de concentrao nos estudos, esclarece a tia, instvel nas brincadeiras, sensvel, mas tem melhorado com a assistncia que tem dado, procurando compreender o problema da criana da melhor forma possvel. Alis, essa atitude muito positiva da tia, parece ter neu-tralizado a situao de conflito que o menino anteriormente apresentava.

    Os testes do aluno confirmam a sua insegurana, instabilidade emo-cional, ansiedade, dificuldade de concentrao e dificuldades de identifi-cao com a figura humana e de relacionamento afetivo.

    Foi dada a orientao tia, ressaltando-se a importncia que tinha junto ao sobrinho, uma vez que as dificuldades de aprendizagem estavam ligadas ao sentimento de insegurana do menino, sua instabilidade emo-cional e forte emotividade, ligadas situao carencial e rejeio afetiva que sofrera.

    A professra foi informada da situao, a fim de compreender melhor as dificuldades do aluno e poder ajud-lo de modo concreto e positivo.

    Caso n.o 5 - Menino de 7 anos, freqentando o 1. ano primrio. Apresentava tiques nervosos e dificuldades de linguagem; ficava gago, chupava o dedo, tinha ale~gias, mdo do escuro, onicofagia. Rendimento escolar muito instvel, no tendo conseguido aprender nada, por dificul-dade de concentrao, de ateno, vivendo "no mundo da lua"; muito dispersivo, gostava de perturbar a classe, ficando junto dos colegas, mas no participando do trabalho de classe.

    tste caso foi acompanhado durante os 5 anos que a criana perma-neceu na eS.Cola, tendo sido registradas poucas melhoras no seu compor-

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    tamento. Fisicamente, seu desenvolvimento foi prejudicado por vrias doenas, falta de ar, sinusite, falta de apetite e problemas neurovegeta-tivos. Tais distrbios somticos, em parte, estavam ligados constituio nervosa do aluno e, tambm, ausncia de afeio materna na primeira infncia. H crca de um ms atrs teve hepatite infecciosa; com 1 ano e 6 meses foi operado da garganta e do nariz.

    Filho ilegtimo. Seu pai abandonara a companheira oito meses depois do nascimento, tendo gestao em clima de grande ansiedade. Pouco tempo depois do abandono pelo pai, a me tambm abandonou o menino. Ficou le com a av materna, que o criou em clima de temor e crticas cons-tantes. Quando sua me veio a casar-se, levou o filho para morar consigo, passando a dar-lhe mais carinho, o que foi benfico para a criana, passan-do a alimentar-se melhor e a reagir de maneira positiva. Contudo, tem dificuldades de relacionamento com o padrasto e com a irm. Aos 9 anos, perde a av mas no consegue chorar, embora tivesse sentido bastante essa perda afetiva.

    de constituio frgil, sujeito a infeces e a distrbios psicosso-mticos e motores. Deficincia visual, alm de precria coordenao visomotora.

    Nos testes de nvel mental situou-se abaixo da zona normal, com dificuldades de ateno e concentrao.

    As professras opinam que uma criana difcil de entender, inaces-svel e, por vzes, "exasperante".

    Embora a famlia e as professras fssem esclarecidas e orientadas, no se conseguiu progresso no comportamento e na adaptao na escola, a qual vinha bastante comprometida pela problemtica de rejeio e carncia afetiva nos primeiros anos de vida, o que parece ter prejudicado tambm o desenvolvimento fsico, j por si comprometido pela constitui-o fraca da criana. Por outro lado o encaminhamento a uma clnica psicolgica, onde pudesse fazer tratamento psicoterpico, no foi con-cretizado.

    CONCLUSAO

    Pelo exame dstes casos, verifica-se a complexidade de orientao e tratamento, pois todos envolviam problemticas familiares complexas. A dificuldade de adaptao escolar no era seno uma das conseqncias do comprometimento mais profundo da person~Ucjae dessas crianas.

  • 56 ARQUIVOS BRASILEIROS DE PSICO~CNICA

    Os elementos da escola (professres, colegas) em face da desadaptao em cada caso observado, ficam comprometidos. Ademais, sua atuao tem limites, pois a escola tem outros objetivos que no os de teraputica.

    Os casos apresentados foram todos diagnosticados precocemente, isto , por ocasio da entrada do aluno na escola, o que permitia atuao eficaz e o acompanhamento do aluno atravs dos vrios anos escolares.

    t interessante observar que, aparentemente, tdas essas crianas apre-sentavam dificuldades consideradas como comuns, ou eram classificadas como "normais" adaptao escolar. Entretanto, a freqncia e a inten-sidade de certas reaes peculiares, obrigaram a uma sondagem de maior profundidade em cada caso.

    Note-se, tambm, que as reaes destas crianas em face dos testes eram peculiares situao em que viviam: atitudes de indiferena, ansiedade, insegurana, inibies, oposio, hostilidade, agressividade, necessidade de apoio constante do adulto, lentido, passividade, resistncia e passividade. Assim sendo, os resultados dos testes dependeriam muito do contto e do relacionamento que o psiclogo estabelece com a criana. Igualmente, o rendimento e adaptao na classe estaria na dependncia da relao que as professras e colegas puderem proporcionar.

    A anlise do problema de carncia afetiva com os pais dos alunos muito delicada, porque mobiliza situaes conflitivas, podendo traumatizar pais que no estejam preparados para admitir semelhante situao.

    De qualquer forma, a escola dever procurar neutralizar, tanto quanto possvel, as condies negativas oferecendo, ao contrrio, as de estabilidade emocional criana, de livre expresso ao desenvolvimento global. Nem sempre, porm, poder assegurar recursos para uma soluo definitiva, a qual exigir conveniente tratamento psicoterpico da criana e de ele-mentos de seu ambiente familiar.