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A Antropologia de Emil Brunner ISSN 2316-1639 (online) Teologia e Espiritualidade vol. 4 • n o 08 • Curitiba • Dez/2017 • p. 17-38 17 A ANTROPOLOGIA DE EMIL BRUNNER The Anthropology of Emil Brunner Albert Friesen 1 RESUMO O artigo apresenta a antropologia teológica de Emil Brunner (1889-1966) a partir de suas deduções e induções fundamentados na imago Dei. Para iluminar e integralizar as suas considerações, apresenta-se algumas outras perspectivas antropológico-teológicas, desde abordagens primevas (pais da igreja) até contemporâneas (ecológicas). O objetivo é compreender o ser humano segundo as novas diretrizes da Reforma, fonte primeira da antropologia brunneriana. Além disso, expandir os conceitos de modo neo-ortodoxo, quer dizer, afirmando a Palavra de Deus sem negar o conhecimento científico moderno. Palavras-chave: imago Dei; Antropologia; Teologia; Abordagens Antropológicas. ABSTRACT The article portrays the theological anthropology of Emil Brunner (1889-1966) based on his deductions and inferences from the imago Dei. To clarify and understand his considerations more fully, some other anthropological- theological perspectives are presented, beginning with the Church Fathers and going up to contemporary (ecological) approaches. The goal is to understand the human being according to the new guidelines of the Reformation, the prime source of Brunner’s anthropology, and to expand these concepts in a neo-orthodox manner, that is, affirming the Word without denying modern scientific knowledge. Keywords: Imago Dei; Anthropology; Theology; Anthropological approaches. 1 Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Mestre em em Ciências da Religião pela UMESP. Professor na Faculdade Cristã de Curitiba.

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A ANTROPOLOGIA DE EMIL BRUNNER

The Anthropology of Emil Brunner

Albert Friesen1

RESUMO

O artigo apresenta a antropologia teológica de Emil Brunner (1889-1966) a partir de suas deduções e induções fundamentados na imago Dei. Para iluminar e integralizar as suas considerações, apresenta-se algumas outras perspectivas antropológico-teológicas, desde abordagens primevas (pais da igreja) até contemporâneas (ecológicas). O objetivo é compreender o ser humano segundo as novas diretrizes da Reforma, fonte primeira da antropologia brunneriana. Além disso, expandir os conceitos de modo neo-ortodoxo, quer dizer, afirmando a Palavra de Deus sem negar o conhecimento científico moderno. Palavras-chave: imago Dei; Antropologia; Teologia; Abordagens Antropológicas.

ABSTRACT The article portrays the theological anthropology of Emil Brunner (1889-1966) based on his deductions and inferences from the imago Dei. To clarify and understand his considerations more fully, some other anthropological-theological perspectives are presented, beginning with the Church Fathers and going up to contemporary (ecological) approaches. The goal is to understand the human being according to the new guidelines of the Reformation, the prime source of Brunner’s anthropology, and to expand these concepts in a neo-orthodox manner, that is, affirming the Word without denying modern scientific knowledge.

Keywords: Imago Dei; Anthropology; Theology; Anthropological approaches.

1 Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Mestre em em Ciências da Religião pela UMESP. Professor na Faculdade Cristã de Curitiba.

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INTRODUÇÃO

A imago Dei tem servido como inspiração para algumas das reflexões antropológicas na Bíblia e do cristianismo durante séculos.

A busca do ser humano por uma definição de si mesmo é um fenômeno histórico e existencial. A pergunta a respeito da origem do ser humano talvez seja a pergunta mais primitiva da humanidade. As capacidades racionais de projetar-se cognitivamente lhe permite transcender-se para pensar em si mesmo. O sujeito pode fazer de si o seu próprio objeto de reflexão. O questionamento a respeito da origem é também uma questão precoce mesmo entre crianças tão logo lhes seja facultada a capacidade mental de conceber espaço e tempo. É como se a compreensão da origem pudesse explicar a natureza do ser humano. Igualmente, a origem também define a substância e a relacionalidade, define o por que (a razão) e o para quê (seu sentido). Mesmo a pertença é definida psicologicamente pela origem. Para seres sociais, a pertença está relacionada ao suprimento de necessidades básicas. A pertença pode resolver também a solidão existencial, do vazio diante do único fim certo da vida, a morte.

Provavelmente todos os povos e todas as religiões produziram seus mitos a respeito da origem do ser humano pelas razões acima mencionadas. As explicações a respeito da origem se desenvolveram em várias formas: mitologia, filosofia e teologia. A mitologia é o recurso pré-metafísico da tradição oral, que por maneiras simbólicas expressa a formação do ser humano e de sua origem.2 A filosofia é o recurso racional que aprofunda a questão da origem através da ontologia, o estudo da natureza humana. A 2 Segundo Ernst Cassirer, o mito tem “um significado crucial para o entendimento da gênese das formas básicas da vida cultural, partindo da consciência mítica, e dificilmente se encontra qualquer domínio do espírito objetivo que não tenha entrado, num momento ou noutro, em fusão com essa unidade concreta, com o mito. As produções da arte e do conhecimento – do conteúdo da ética, lei, linguagem e tecnologia – apontam sempre para a mesma relação...” Cf. “Die Philosophie der symbolischen Formen”, 1925, 2o volume, Das mytische Denken; in: CABRAL, 1979, p.196.

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teologia é o recurso metafísico que se expressa através do mítico tanto quanto do filosófico para posicionar-se diante da questão da gênese e da teleologia.

Segundo a teologia, enquanto a origem do ser humano está na criação de Deus, este mesmo Deus continua tendo e/ou buscando uma relação com a sua criatura. Nesse sentido, o mito da gênese não tem um fim em si mesmo, mas sim, demanda uma resposta do ser humano diante de sua própria origem. O termo sintetizador na teologia cristã que trata da origem do ser humano, a sua ontologia e a sua antropologia é imago Dei (ALTHAUS, 1959, p. 336). Aliás, esta palavra é utilizada para tratar da antropologia cristã em grande parte das escolas teológicas de todos os tempos desde a Patrística. Portanto, foi tema de muitos debates, de muitas interpretações. Quem sabe, deu-se excessiva importância à tentativa de interpretar e definir esse termo e suas implicações (ERICKSON, 1985, p. 496), uma vez que o documento que o lançou – a Bíblia – não tem a preocupação de descrever e analisar o termo.

Este artigo pontua alguns aspectos da antropologia teológica de Brunner a partir do termo imago Dei. Convém enfatizar que a própria Bíblia não apresenta uma antropologia propriamente dita. Tudo que se chama antropologia teológica são construções teóricas que estão associadas a determinadas hermenêuticas, exegeses e filosofias, pois a Bíblia não apresenta senão alguns poucos textos em forma de versículos (frases curtas) a respeito do ser humano, sua constituição e sua natureza.

1. OS PRINCIPAIS TEXTOS BÍBLICOS SOBRE A ORIGEM

Os primeiros debates em torno da imago Dei foram

desenvolvidos a partir dos Pais da Igreja, portanto, se constituem em discussões de duração milenar. O texto bíblico principal a partir do qual a teologia cristã desenvolve o seu debate antropológico é de Gênesis 1.26: “Então disse Deus: ‘Façamos o

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homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão’” (BÍBLIA SAGRADA, 2001, p. 2). Os esforços exegéticos e hermenêuticos nas primeiras concepções teológicas giram em torno das palavras imagem e semelhança, no original hebraico respectivamente tselem e demuth. Os intérpretes dos primeiros séculos depois de Cristo diferenciavam o sentido dessas palavras até que o exegeta Martin Luther (SMITH, 2001, p. 236) indicasse o paralelismo hebraico, isto é, um estilo literário que repete um mesmo significado através de duas palavras sinônimas pela ênfase e sonoridade. (FERREIRA, 2003, p. 291; ERICOSN, 1985, p. 501) Assim, a sinonímia entre os termos estava estabelecida e as conjecturas a respeito dos significados diversos de cada termo puderam encerrar-se. A antropologia cristã precisava buscar novos recursos para se fundamentar e o fez através da reflexão dialética construídas por Barth e Brunner enquanto estes ainda andavam em caminhos conjuntos. Depois de entrar em jornada solo, Brunner trabalhou a sua antropologia teológica na obra editada em 1937. A dialética, como “o processo pelo qual um pensamento leva necessariamente a seu oposto (ou à sua contradição) e, portanto, a uma nova síntese (unidade)” (GILES, 1993, p. 35), tornou-se o instrumento lógico a partir do qual tanto a teologia brunneriana quanto a sua antropologia cristã receberam conteúdo e forma.

A palavra tselem pode ser traduzida como “estátua” ou “forma” (SMITH apud ERICKSON, 1985, p. 498). Esta tradução leva a compreender “imagem” como semelhança física e material, que Deus tem corpo (quem sabe, antropomórfico), reportando-se por fim ao andar ereto do ser humano (GREGÓRIO DE NISSA apud MONDIN, 1979, p. 106-107). As concepções substantivas (ERICSON, 1985, p. 498) da imago Dei decorrem principalmente dessa tradução e da diferenciação com o termo paralelo demuth. Esta palavra também significa “estátua”. Sua ocorrência mais antiga e mais clara “aparece em uma estátua

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de basalto do tell Fekkeriyeh na Síria em fevereiro de 1979” (MILLARD & BORDREVIL in: SMITH, 2001, p. 230). De fato, ambos os termos dizem a mesma coisa: “Tanto a palavra hebraica para ‘imagem’ (tselem) como a palavra hebraica para ‘semelhança’ (demût) se referem a algo que é similar, mas não idêntico à coisa que elas representam ou àquilo de que são a ‘imagem’. A palavra imagem pode também ser usada para algo que representa outra coisa”, diz Grudem (2001, p. 203). Também Berkhof afirma claramente que “as palavras ‘imagem’ e ‘semelhança’ são empregadas como sinônimos, uma pela outra e, portanto, não se referem a duas coisas diferentes”. (BERKHOF, 1990, p. 203)

A sinonímia quase absoluta também se dá nos termos gregos do Novo Testamento. Eikõn significa “imagem”, “semelhança”, “forma” ou “aparência”. Homoiõsis significa “semelhança”, “correspondência”, “aparência semelhante”. (HORTON, 1996, p. 258)

Essa ênfase reiterada quanto à sinonímia dos termos se torna necessária, uma vez que Brunner constrói a sua antropologia cristã sobre essa premissa, isto é, de que as duas palavras da origem não têm significados diferentes, e sim, similares. Conclui o teólogo que, sendo a imago Dei uma só, o ser humano não poderia ter perdido alguns atributos e/ou algumas características de Deus e mantido outras.

2. ALGUMAS DAS PRINCIPAIS HERMENÊUTICAS DA IMAGO DEI NA HISTÓRIA DA IGREJA

Os critérios para a escolha das hermenêuticas a serem

apresentadas a seguir são: A imago Dei como ponto de partida da hermenêutica; a hermenêutica apresentada (por exemplo: a de Irineu) é representativa em uma postura específica (interpretação dualista de imago Dei), assim as hermenêuticas e posturas similares não carecem ser mencionadas, pois, o que importa é o conteúdo específico de cada postura teológica.

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2.1. Irineu (103 – 230 d.C.)

Smith afirma que na história da teologia cristã a antropologia teológica tem em Irineu (150 d.C.) o primeiro pensador que diferencia as várias partes da natureza humana a partir do conceito de imago Dei. Baseado nos termos tselem (“imagem”) e demut (“semelhança”), Irineu relaciona “imagem” à liberdade e racionalidade da natureza humana, inalienáveis e universais. Ele afirma que essa “nunca foi nem pode ser perdida”. (SMITH, 2001, p. 236) Desde então, a reflexão a respeito da antropologia na perspectiva da imago Dei se tornou num dos temas preferidos dos teólogos da Antiguidade e da Idade Média, até Tomás de Aquino. Mondin diz que o aquinense encerra a “hermenêutica antropológica fundada sobre a imago Dei e começa uma nova hermenêutica baseada no homem considerado em si mesmo, em sua autonomia substancial”. (SMITH, 2001, p. 236) Mesmo assim, ainda em tempos modernos o Concílio Vaticano II na Gaudium et spes (nn. 12-18) concede esforço e espaço ao mesmo tema (SMITH, 2001, p. 236) e alguns teólogos recentes, de modo mais profundo e sistemático, tratam da antropologia cristã sob e a partir da ideia da imago Dei. (BERKOUWER, 1962; VERDUIN, 1970; MCDONALD, 1981)

Brunner considera o patrício Irineu um grande teólogo e o mais biblicista da igreja primitiva. Mesmo assim, Irineu não consegue afastar-se do racionalismo grego, o que se reflete na sua doutrina dualista, a imago-similitudo (natureza-espelho da natureza; racionalidade-relacionalidade com Deus). A sua antropologia é “gnosticismo purificado com características filosóficas e gregas de modo geral”. (BRUNNER, 1937, p. 523) Este patrício interpreta a imago como a estruturação racional da natureza humana e a similitudo como a relacionalidade com Deus. A primeira é permanente, a segunda, perecível. Brakemeier define esses dois conceitos de maneira feliz, simples e útil, dizendo que a estruturação que advém da imago Dei é “atributo” do ser humano, e a relacionalidade é “atribuição” (BRAKEMEIER, 2002, p. 20-

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21), demandando a resposta do ser humano, de semelhante a Brunner.

Emil Brunner critica Irineu quando afirma que este deixa de ser claro ao considerar o ser humano como uma criança em desenvolvimento, e não como um ser com natureza quase perfeita, como o fizeram Agostinho e os Reformadores. Pois, se o ser humano não pode perder a imago, e se a similitudo consiste ainda e apenas num estado germinal e desenvolvimental, então, o que de fato o ser humano perde com a queda? (BRUNNER, 1937, p. 523) Ainda assim, com a dualização imago-similitudo abre-se o espaço para as definições de natureza e sobre-natureza na escolástica, que mais tarde serão desenvolvidas na teologia católica. Na teologia católica se preserva a completa liberdade de escolha e vontade mesmo ao ser humano pecador, pois, a livre escolha pertence à imago. Esse pressuposto é de importância essencial no desenvolvimento da práxis do aconselhamento pastoral.

2.2. São Tomás de Aquino – (1.225 – 1.308 d.C.)

Mondin diz que

os historiadores veem em São Tomás um iniciador de uma nova antropologia teológica, a qual, mais que as categorias da metafísica exemplarista de Platão e dos neoplatônicos, recorre às categorias da metafísica hilemorfista e substancialista de Aristóteles, para interpretar os dados da revelação cristã. (MONDIN, 1979, p. 129)

Estas mudanças facilitam a construção de uma antropologia

com maior ênfase no ser humano, considerando-o em si mesmo, na sua autonomia, mais do que em suas relações com Deus.

Para o aquinense, imago implica em semelhança, imitação e subordinação. (MONDIN, 1979, p. 130) A semelhança se verifica mais na ordem da qualidade do que da quantidade; ela também

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tem mais significância como substância, e não tanto de espécie. A semelhança é fato estabelecida, não demanda volição e resposta do ser humano. Porém, a imitação já inclui a demanda de resposta do ser humano. Ele precisa relacionar-se com Deus e respondê-lo, confrontando-se através do espelhamento. Esse movimento, por sua vez, demanda subordinação até que o ser humano seja perfeito – porém, sem igualar-se – como Deus.

A segunda palavra de Gênesis 1.26 (demuth), São Tomás traduz como exemplar (modelo). As propriedades fundamentais do modelo são: imitação, prioridade e originalidade. (MONDIN, 1979, p. 131) Um modelo tem como propriedade o servir para a imitação. A imitação é uma ação proativa; portanto, o ser humano é desafiado a imitar o modelo. Por fim, o modelo é original, não cópia. O ser humano é cópia, e não modelo.

O ser humano é, portanto, intrinsecamente imago Dei. Assim ele espelha no seu ser o ser divino, especialmente quanto às propriedades da alma. Dentre as faculdades espirituais da alma, Tomás de Aquino salienta o conhecer e o querer e secundariamente a faculdade afetiva. Ele também identifica as funções de governar o mundo como características inerentes à imago Dei. (MONDIN, 1979, p. 133-135)

Contrário a vários teólogos e filósofos até então, São Tomás considera que o pecado não pôde destruir a imago Dei, uma vez que as faculdades espirituais do conhecer e do querer estão evidentemente presentes na conduta humana do dia a dia.

No escolasticismo medieval o conceito da imago Dei fortalece a ideia do ser humano semelhante a Deus através da razão e da vontade. E essas faculdades, que são consideradas atributos de Deus, qualificam a essência da natureza humana. Sendo livre, o ser humano é capaz de fazer coisas boas sem a graça divina, ele é ente moral sendo crente ou não. (ERICKSON, 1985, p. 500-501)

Nessas poucas considerações de Tomás de Aquino fica saliente que o ser humano recebe um destaque desconhecido até então. Esse destaque provém justamente da reflexão a respeito da imago Dei e seus significados a partir da revelação. Pode-se dizer

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que em Tomás de Aquino se formulam alguns relampejos e prenúncios de humanismo, que eclodem na Renascença.

Brunner sintetiza as contribuições e concepções do escolasticismo a partir da teologia da imago Dei como sendo:

a) a possibilidade da teologia racional-natural; b) a possibilidade de uma moral racional-natural; c) que a livre vontade do ser humano permanece; d) que independentemente da graça, as boas obras

são possíveis. (BRUNNER, 1937, p. 525) 2.3. Martinho Lutero – (1.483 – 1.546 d.C.)

A teologia como um todo e da mesma maneira em suas concepções antropológicas sofreram profundas transformações a partir de Lutero. Compreendendo os termos tselem e demuth como um paralelismo da língua hebraica, ele não diferencia “imagem” de “semelhança”, nem antes, nem depois da queda. Um outro argumento que desacredita a diferenciação desses termos emerge da dedução de que, se a imago for constituída pelas estruturas e capacidades racionais (a anima rationalis), então satanás também teria de ter sido constituído à imagem de Deus. (BRUNNER, 1937, p. 526) Portanto, a teologia luterana propõe uma antropologia unitária da imago Dei. Considera-se que com a queda todos os seus aspectos foram corrompidos. (ERICKSON, 1985, p. 501) Ainda que totalmente corrompida, a imago Dei persiste como intenção de Deus para o ser humano através da redenção em Jesus Cristo, o que poderá acontecer somente mediante a fé. Não é possível o resgate pelas obras, nem mesmo através da conjugação de fé e obras, isso é possível tão somente pela fé.

Um ponto crítico da teologia de Lutero consiste na explicação das consequências da queda. Se o ser humano foi completamente corrompido pelo pecado, o que dizer da sua humanitas (a capacidade racional, a linguagem, sua relacionalidade, criatividade, etc.)? Lutero apela para o que ele chama de “resto da imago”. Embora o termo “resto” possa denotar uma porção

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diminuída, constrói-se sobre ele concepções de grande importância. Lutero inclui na preservação desse resto a justitia civilis e a naturalis cognitio Dei. Essas concepções também fundamentam na antropologia brunneriana o termo Anknüpfungspunkt, isto é, ponto de contato do ser humano (possibilidade de conexão) que possibilita a interação responsiva com Deus. (BRUNNER, 1937, p. 525) Este ponto de contato que o ser humano apresenta não deve ser considerado de natureza material, mas sim, de natureza formal. Enquanto toda a atividade cultural e filosófica da época de Lutero abria alas para a cosmovisão humanista, este pensador propunha a volta à metafísica revelacional. Porém, concomitantemente concede em sua antropologia teológica um espaço novo ao ser humano, um espaço que valoriza o ser humano. Lutero reenfatiza alguns aspectos bíblicos: o sacerdócio universal, isto é, cada cristão um sacerdote com acesso direto a Deus, a não necessidade da mediação do papa nem da Igreja. O ser humano também é valorizado pela doutrina do livre arbítrio, contra o “servo arbítrio” (REALE, & ANTISERI, 1990, p. 107-112), referindo-se às prescrições papais. Instituindo a livre leitura e interpretação da Bíblia, Lutero abre o caminho para todo ser humano que queira buscar independentemente a compreensão da vontade de Deus. Embora de certa ortodoxia, Lutero liberta o ser humano religioso de suas cristalizações medievais.

Depois da Reforma não houve desenvolvimentos importantes da antropologia teológica a partir da imago Dei. Aliás, com a renascença e o iluminismo o ser humano passou a ser descrito em dimensões completamente novas, essencialmente em oposição a toda a metafísica.

Segundo a compreensão de Brunner, os dogmáticos da pós-reforma apenas construíram sobre os fundamentos de Lutero, Calvino e Agostinho. Os teólogos dos séculos XVII a XIX não compreenderam a respeito do que a imago Dei trata. (BRUNNER, 1937, p. 528) Diante dos avanços da ciência, que entre outros desafia a compreensão mítica das origens, os teólogos produziram

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apologias com a intenção de salvar o relato primitivo ou se rendiam às evidências de natureza científica apresentadas. O racionalismo-naturalismo imobilizou a teologia diante da metáfora da imago Dei.

O iluminismo se opôs à metafísica, portanto, à filosofia metafísica e à teologia. A metafísica não se utiliza dos mesmos métodos epistemológicos do empirismo de Locke. Seguindo a metodologia empírica, a razão dos iluministas analisa as ideias e as reduz todas à experiência. O que limita esse método racional é o fato de que ele é construído a partir da experiência e concomitantemente fiscalizado pela experiência. (REALE, & ANTISERI, 1990, p. 672) Torna-se simples perceber que a partir desses pressupostos (especialmente os kantianos) Schleiermacher construiu a teologia do sentimento, que “transfere a religião da esfera da razão para a do sentimento e reduz os dogmas a simples expressões dos sentimentos comuns de um povo em relação à Divindade” (MONDIN, 1979, p. 9), dando com isso o início ao protestantismo liberal.

Kant diz: “Tem a coragem de servir-te de tua própria inteligência! Esse é o lema do iluminismo”. (REALE, & ANTISERI, 1990, p. 667) Esta é a máxima que produziu algumas das características fundamentais da razão do iluminismo: o uso crítico da razão sem preconceitos; a busca de libertação dos dogmas metafísicos; o posicionamento diante de preceitos morais, de superstições (também das religiosas); a confiança decidida, mas não ingênua na razão humana; o enfrentamento das tiranias políticas; o esforço para libertar o mundo da magia, especialmente aquela magia que aparece sob manto religioso; etc. A fonte máxima e única é a razão. Não há espaço para a fé. Sob esta bandeira o iluminismo tornou-se a filosofia hegemônica na Europa do século XVIII. Torna-se fácil perceber que os sistemas teórico-metafísicos não subsistiram a este confronto.

Reale e Antiseri descrevem em “História da Filosofia” a razão dos iluministas assim:

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É uma razão independente das verdades da revelação religiosa e que não reconhece as verdades inatas das filosofias racionalistas. Trata-se, portanto, como já dissemos, de uma razão limitada à experiência e controlada pela experiência [...] A razão dos iluministas não considera excluído nenhum campo de investigação: é uma razão que diz respeito à natureza e, ao mesmo tempo, também ao homem. (REALE, & ANTISERI, 1990, p. 673)

De modo geral, o iluminismo reage às superstições e à

intolerância dos dogmas permeados pelas religiões. Mas, se afirma deísta3 e concebe a viabilidade de uma religião natural. Voltaire compreende por religião natural “os princípios morais comuns a todo o gênero humano”. (VOLTAIRE apud REALE, & ANTISERI, 1990, p. 676) E o deísmo se expressa pela religião racional e natural que admite a existência de Deus (a partir da razão, não da fé); admite a criação e o governo do mundo por Deus (há divergências entre os iluministas); e, admite a vida futura, em que recebe a paga pelo bem e pelo mal. (REALE, & ANTISERI, 1990, p. 675)

As consequências de quase dois séculos de iluminismo são as escolas histórico-críticas e demitologizadoras do final do século XIX, as filosofias materialistas e as filosofias com tendências ao ateísmo cristão e a teologia liberal. Na teologia protestante esse período frequentemente é chamado de liberalismo. Alguns de seus protagonistas são Schleiermacher (1768-1834), considerado o pai do protestantismo liberal; Hegel (1770-1831); Feuerbach (1804-1872); Ritschl (1822-1899); von Harnack (1851-1930) e outros.

A primeira reação eficaz contra o liberalismo teológico foi efetuada por Karl Barth. Retomando os princípios fundamentais dos fundadores do Protestantismo, Lutero e Calvino, iniciou-se um movimento que é chamado de “Teologia da crise”, “Neo-3 Sistema filosófico que, rejeitando toda espécie de revelação divina e, pois, a autoridade de qualquer Igreja, aceita contudo, a existência dum Deus, destituído de atributos morais e intelectuais, e que poderá ou não haver influído na criação do Universo (Médio Dicionário Aurélio, p. 534).

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ortodoxia” ou ainda “Teologia dialética”. (MONDIN, 1979, p. 9-14)

Diante desse cenário desenvolvem-se duas antropologias teológicas de destaque: a de Karl Barth e a de Emil Brunner. Além do confronto com as consequências do liberalismo, ambos os teólogos se viram emaranhados nos acontecimentos históricos de duas guerras mundiais o que influencia profundamente as suas convicções e posturas diante da evolução da história.

Por se tratar apenas de uma síntese histórica da imago Dei, neste texto será apresentado apenas o teólogo Emil Brunner.

2.4. Emil Brunner – (1889-1966 d.C.)

Como a antropologia cristã de Brunner é o objeto dessa pesquisa, nas considerações a seguir são apresentados os aspectos principais e básicos da sua antropologia desenvolvida a partir da imago Dei. Brunner parte do princípio de que a imago Dei faz parte do plano original de Deus na Criação. Essa imago implica no propósito do relacionamento entre Deus e o ser humano, do ser humano e Deus. A imago define a alteridade de Deus e a alteridade do ser humano. Essa alteridade é formal e possível mediante o ponto de conexão (Anknüpfungspunkt) e a capacidade do ser humano de ser interpelado (Ansprechbarkeit) por Deus. (BRUNNER, 1937, p. 549)

O ser humano “imagem de Deus” tem liberdade para responder à interpelação ou não. (BRUNNER, 1937, p. 265-271) Da mesma forma ele pode escolher e formular a qualidade de sua resposta. A queda é compreendida por Brunner como a contradição diante do propósito original, isto é, o ser humano se opõe a responder à interpelação e interagir com seu Criador da maneira como a imago Dei foi propositada. O ser humano responde de sua própria maneira, não segundo a Palavra de Deus. Portanto, ele procura usar a sua razão para entender e responder à revelação (racionalismo). Brunner entende que o ser humano

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precisa primeiro ouvir a Palavra,4 entender a revelação para depois responder apropriadamente, porque a Palavra e a revelação são interpelações às quais o ser humano responderá, ele é “verbicompetente”.5 Mesmo o não crente responde, embora não conheça a Palavra, pois a imago Dei faz parte de sua estrutura ontológica, a imago Dei está formalmente presente desde a origem do ser humano.

Ao opor-se ao plano original de Deus mediante o pecado, o ser humano entra em contradição (Widerspruch). Isto é, o ser humano, livre para escolher e responder, decide responder contrário aos propósitos divinos. Assim, o ser humano vive o conflito entre o ser que ele deveria ser segundo a Palavra de Deus e o ser que ele de fato é. Ele vive a oposição do ser humano verdadeiro e o ser humano real. (BRUNNER, 1937, p. 164ss)

Segundo Brunner, a imago Dei não foi alterada pelo pecado. Deus ainda quer a interação, o relacionamento; e o ser humano no fundo também a quer e a necessita. Este retorno à responsabilidade, ao ser-responsável é possível por intermédio de Jesus Cristo, a nova interpelação de Deus. Ele, o Verbo de Deus, a Palavra de Deus demanda a resposta do ser humano. E em Cristo ele deve revestir-se da imago, segundo Colossens 3.10.6

Em escritos anteriores a 1937 Brunner desenvolveu as definições de uma imago formal e outra material. (BRUNNER, 1937, p. 530) A imago formal é definida como “a estruturação e capacitação especial da natureza do ser humano, tal qual ela pode

4 Em teologia utiliza-se letra maiúscula quando se quer referir à Palavra de Deus, à Bíblia e/ou às Sagradas Escrituras. A letra maiúscula diferencia a palavra revelada de quaisquer outras palavras da comunicação humana. Para fazer jus à área teórica e acadêmica que Brunner representa, mantém-se a prática nesta dissertação. 5 O neologismo criado por Mondin (1979, p. 59) e adaptado pelo tradutor quer enfatizar a capacidade única do ser humano de se expressar verbalmente, com a utilização da comunicação. Referindo-se à teologia brunneriana, ela quer enfatizar a idéia de que o ser humano é constituído, demandado e capaz de responder a Deus quando este se manifesta através da revelação, através da Bíblia. “Verbicompetência” pressupõe que o ser humano ouve a Deus e se sabe respondendo a Deus quando reage à interpelação da revelação que o ser humano “ouve” ao ler, estudar e pensar nos conceitos da Bíblia. 6 BÍBLIA SAGRADA, Nova versão internacional, op. cit.: “[Vocês já] se revestiram do novo [homem], o qual está sendo renovado em conhecimento, à imagem do seu Criador”.

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ser percebida também no ser humano pecador (ser pessoa, domínio sobre toda a criatura, razão, linguagem, liberdade de escolha no sentido moral)”. (BRUNNER, 1937, p. 521) Na sua obra antropológica principal Brunner apresenta algumas alterações conceituais, definindo a imago Dei formal como sendo a essência da natureza humana e a sua personalidade. (BRUNNER, 1937, p. 529) A imago material “é a determinação da vida a partir da Palavra de Deus segundo a justitia originalis, para a qual o ser humano é renovado através de Jesus Cristo e que é concluída através da salvação”. (BRUNNER, 1937, p. 52) Sua manifestação se apresenta através do propósito original, da finalidade da vida, enfim, de suas tarefas nessa existência. (BRUNNER, 1937, p. 529) Dessa maneira Brunner evitou definir “imagem” como diferente de “semelhança”.

Porém, mesmo assim foi compreendido erroneamente por Barth e outros, motivo porque faz novas formulações a respeito de sua compreensão antropológica em Der Mensch im Widerspruch. Buscando apresentar o ser humano como unidade, fiel aos princípios da Reforma, Brunner diz que:

Não existem duas formas de natureza humana, a imago permanente representando as características naturais do ser humano, e a similitudo perecível que representa a relacionalidade com Deus. A natureza humana precisa ser compreendida como unidade a partir do relacionamento com Deus, sem diferenciações entre natureza e sobre-natureza. Essa natureza unitária e ‘teológica’ é invertida pelo pecado, porém, apresenta, ainda assim, na estrutura humana os rastros da imagem de Deus, tanto que são justamente os aspectos formais que indicam para a sua origem perdida. (BRUNNER, 1937, p. 530-531)

Portanto, o ser humano deve ser compreendido como um

todo a partir de Deus, que embora de natureza corrompida, traz em si a imagem de Deus original. Ele deve ser compreendido como teológico-cristológico. (BRUNNER, 1937, p. 531) Brunner defende o “resto da imago” dos Reformadores não

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quantitativamente, mas dialeticamente. Esse resto se apresenta no ser humano,

primeiro, naquilo que em certo sentido dá ordem e dinâmica à vida; segundo, que mantém o ser humano em relação com Deus, embora a relação tenha sido invertida pelo pecado; terceiro, que estabelece o ponto de conexão para o Evangelho; e quarto, que é o ápice do conflito e da repulsa. (BRUNNER, 1937, p. 531)

Propõe-se neste artigo que as antropologias destes pensadores neo-ortodoxos são as mais consistentes e elaboradas para a cristandade no final do século XX. Embora Brunner e Barth tenham debatido entre si com impetuosidade em torno de algumas divergências teológicas e metodológicas,7 no final das contas convergem em uma série de concepções. Segue uma síntese de Millard Erickson de pontos convergentes na concepção relacional da imago Dei definidos por Brunner e por Barth:

1. A imagem de Deus e a natureza humana são mais bem compreendidas por meio do estudo da pessoa de Jesus, não da natureza humana em si. 2. Nosso entendimento da imagem é obtido da revelação divina. 3. A imagem de Deus não deve ser compreendida sob o aspecto de algumas qualidades estruturais dentro da humanidade; não se trata de algo que os homens são ou possuem. Antes, a imagem diz respeito ao relacionamento que a pessoa tem com Deus; é algo que a pessoa experimenta. Portanto, ela é dinâmica e não estática. 4. O relacionamento dos homens com Deus, que constitui a imagem de Deus, é refletido no relacionamento dos homens entre si. Barth dá importância muito maior à relação homem-mulher; Brunner está mais propenso a

7 Barth, através da dialética dos opostos que se repulsam, conclui que “não há nada no homem que possa torná-lo apto a receber a Palavra de Deus; ele encontra-se totalmente alienado de Deus”. Brunner, através da dialética dos opostos que se atraem, conclui que há uma correspondência pessoal entre Deus e o ser humano, onde este responde e a revelação é concebida como a fala de Deus. (MONDIN, 1979, p. 52 – 53)

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salientar o círculo maior de relacionamentos humanos, ou seja, a sociedade. 5. A imagem de Deus é universal; é encontrada em todos os seres humanos em todos os tempos e lugares. Portanto, está presente na humanidade pecadora. Sempre há um relacionamento, seja positivo, seja negativo. 6. Não se pode nem é necessário chegar a alguma conclusão quanto ao que há nos homens que os faça capazes de manter tal relacionamento. Brunner e Barth nunca perguntam, qual é, se existe, o requisito estrutural para que a imagem de Deus esteja presente na humanidade. Para Brunner e Barth, a imagem de Deus não é uma entidade que possuímos, mas uma experiência que está presente quando um relacionamento está em atividade. (ERICKSON, 1985, p. 219)

Uma obra recente com nova hermenêutica a respeito da

imago Dei, de repercussão notável foi produzida por Leonard Verduin. Com características, perspectivas e valores do pós-modernismo, este autor enfatiza o ser humano ecologicamente correto.

2.5. Leonard Verduin (1897-1999)

Uma das concepções de longa data é a concepção funcional da imago Dei. Os socianos já a defendiam no “Catequismo Racoviano”. (BERKOUWER, 1969, p. 70) Baseado ainda no texto de Gênesis 1.26: “Domine ele sobre [a criação] ...” alguns pensadores cristãos defendem que a imago é algo que o ser humano faz, não algo que ele é, tenha ou se relacione. A ordem de exercer o domínio sobre a criação é dada também ao homem e à mulher nos versículos 27 e 28. Essa perspectiva também poderia ser chamada de ecocêntrica. Nessa concepção, sob o slogan de “mandado cultural”, a imago Dei consiste em cuidar, desenvolver, analisar, entender, expandir e manter os recursos globais e sociais. E isso não é opcional, isso é uma responsabilidade, é imperativo.

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A concepção funcional é característica do pós-modernismo e tem obtido alguns defensores recentes que se valem de alguns de seus princípios.

Verduin considera que, quando o salmista escreve o oitavo capítulo, este tinha em mente a ordenança de Deus ao homem para que dominasse sobre toda a criatura. “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste. Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste” (Salmos 8.5-6). Dominar, nominar e subordinar são os verbos que definem o propósito e o objetivo para o ser humano na história bíblica das origens. Verduin afirma que Gênesis não é uma cosmogonia (narração a respeito do vir-a-ser do cosmos), mas antes, uma antropogenia (o vir-a-ser do ser humano).

O argumento com que Verduin defende a concepção funcional da imago Dei é fundamentado na comparação das duas narrativas de Gênesis a respeito das origens. Ele conclui que o segundo relato quer clarificar alguns detalhes. Verduin afirma que no capítulo 2 de Gênesis o “dominador é apresentado antes que o domínio sobre o qual ele seria colocado”. Ele conjectura que o autor de Gênesis partiu no segundo relato da sequência histórica real porque ele queria lançar todo o foco sobre o autor central no mundo das coisas criadas, o ser humano, o dominion-haver 8 (VERDUIN, 1970, p. 29)

Um segundo argumento que sustenta a concepção funcionalista de Verduin, que afirma que a segunda narrativa quer esclarecer o primeiro relato, concerne a respeito da criação do homem (gênero masculino). Enquanto no primeiro relato a criação do homem e da mulher é mencionada como concomitante, no segundo relato o homem é criado, permanece só, o que não era bom (Gn 2.18). Portanto, posteriormente a toda criação, a mulher é criada da costela do homem. Há uma continuidade funcional da criação, ela não encerra com os atos do

8 Inglês: controlador; aquele detém o domínio; o que domina.

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sexto dia. Assim, domínio e a subordinação da criação devem ser considerados continuidade da mesma. Provavelmente para diminuir o impacto e as implicações de gênero, Verduin afirma que a mulher foi tomada da costela, não da cabeça (indicando domínio de um sobre o outro) e não dos pés (indicando a possibilidade de subjugação e escravidão). (VERDUIN, 1970, p. 30)

Muitas das teologias judaico-cristãs têm visto na queda/no pecado a raiz da corrupção da natureza humana. Verduin enfatiza: A queda foi posterior à ordenança do domínio. Portanto, o domínio, o trabalho, o esforço não podem ser considerados consequência nefasta a partir da queda, mas sim, propósito para o ser humano a partir da origem.

Assim, Verduin afirma:

A ideia de ter domínio destaca-se como o aspecto central. Que o homem é uma criatura designada para ter domínio e que desse modo ele é segundo a imagem de seu Artífice – essa é a ideia principal do relato da criação dada no livro de Gênesis, o Livro das Origens. É o ponto central que o autor desse relato queria destacar. (VERDUIN, 1970, p. 27)

Hodiernamente, a concepção funcionalista da imago Dei recebe, provavelmente, uma importância significativa a partir da crise ecológica global. Os recursos naturais se esgotam (a madeira, os minérios e as fontes de petróleo), outros são meramente destruídos (o ar e a água). Se a imagem e semelhança de Deus no ser humano tiverem algum significado para o início do terceiro milênio, estas se manifestarão no domínio científico de todas as coisas que permitem o básico: a sobrevivência de toda a criatura. Verduin escreve: In the Christian vision man is a creature intended for mastery-achieved-with-much-toil. (VERDUIN, 1970, p. 41)9

9 Traduzido livremente: Na visão cristã o ser humano é uma criatura destinada a dominar, a realizar, a alcançar com muito esforço e labuta as coisas.

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As pressuposições antropológicas deste autor são de vital importância na práxis do aconselhamento pastoral. O ser humano como continuador da criação (quem sabe, até como co-criador), como responsável pelo o que Deus criou, desafiado a se relacionar, a ordenar, a subordinar e a administrar a vida em todos os sentidos. O ser humano não é criação a-volitiva, mas dotada de razão, liberdade e responsabilidade para desenvolver o que foi criado por Deus. As consequências no aconselhamento são de desafio, impulso, confrontação, apoio e autonomia do indivíduo como tal.

FINALIZANDO

Toda práxis pastoral requer de uma fundamentação

antropológica teologicamente defensável, pois, as premissas antropológicas servirão como fonte de abordagem ao ser humano. Essa noção funcional e pragmática é recente. Em seus primórdios, a antropologia teológica era mais especulativa, hermenêutica e epistemológica. Um termo produzido pela teologia guiou as reflexões da antropologia teológica durante os séculos, especificamente imago Dei. Diante dos desafios da modernidade, especificamente oriundos do iluminismo e consequente teologia liberal, Emil Brunner teceu suas premissas antropológico-teológicas a partir do referido termo e conceituou o que é o ser humano segundo a Bíblia. Embora contemporaneamente haja outras variadas antropologias teológicas, a premissa neo-ortodoxa aparentemente permanece sendo de fundamental importância para a teologia por equacionar a perspectiva integrada da Palavra de Deus com a aproximação às descobertas e fundamentações científicas. Dessa maneira, o ser humano contemporâneo é visto e tratado como um ser integral. Tal é o mérito da antropologia teológica de Emil Brunner.

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