a angústia e o desespero humano

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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CÂMPUS MARINGÁ CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA MARILZA BARRIOS DOS SANTOS A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD MARINGÁ 2010

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Page 1: A angústia e o desespero humano

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

CÂMPUS MARINGÁ

CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA

MARILZA BARRIOS DOS SANTOS

A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA

EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD

MARINGÁ

2010

Page 2: A angústia e o desespero humano

2

MARILZA BARRIOS DOS SANTOS

A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA

EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao

Curso de Licenciatura em Filosofia, da

Pontifícia Universidade Católica do Paraná,

como requisito parcial à obtenção do título de

Licenciatura.

Orientador: Prof. Dr. José Aparecido Pereira.

MARINGÁ

2010

Page 3: A angústia e o desespero humano

3

MARILZA BARRIOS DOS SANTOS

A ANGÚSTIA E O DESESPERO COMO FUNDAMENTO ONTOLÓGICO DA

EXISTÊNCIA HUMANA NO PENSAMENTO DE SÖREN KIERKEGAARD

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Curso de Licenciatura em Filosofia, da

Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de

Licenciatura.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________

Prof. Dr. José Aparecido Pereira

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________________

Prof. Ms. Leomar Antonio Montagna

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

_____________________________________________

Pe. José Moreira Silveira

Pós-Graduação em História - UEM

Maringá, ______de ________________de 2010.

Page 4: A angústia e o desespero humano

4

A todos os que buscam, através de suas vidas,

uma existência autêntica, mesmo àquelas que

se encontram no abismo da angústia e do

desespero. A estes, desejo o brilho da

existência guiados pela fé, pela esperança e

pela liberdade.

Page 5: A angústia e o desespero humano

5

AGRADECIMENTOS

À Deus, sentido único da minha existência, pela sua presença e pelo seu amor e sabedoria

infinita.

À minha família religiosa das Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus, nas pessoas dos meus

Superiores; de modo especial a cada co-irmã que estiveram sempre ao meu lado

proporcionando estímulo e apoio necessário nesta caminhada.

Ao professor José Aparecido Pereira, que com paciência, dedicação, e atenção me ajudou com

sua orientação a chegar até aqui.

À todos os professores do curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade

Católica do Paraná, em especial ao professor e diretor do curso Leomar Antonio Montagna,

que através de seus ensinamentos e dedicação em sala de aula me ajudaram a crescer no

conhecimento.

Aos meus caríssimos colegas e amigos de sala, que por três anos percorremos juntos o árduo

caminho do saber filosófico.

Por fim, a todos que de algum modo, contribuíram para a construção e conclusão deste

trabalho e do curso de filosofia.

Page 6: A angústia e o desespero humano

6

"Algum dia até, não somente os meus escritos,

mas a minha vida e todo o complicado segredo

do seu mecanismo serão minuciosamente

estudados."

Kierkegaard

Page 7: A angústia e o desespero humano

7

RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do existencialismo de Kierkegaard, por meio

de pesquisa bibliográfica, sobre os conceitos de angústia e desespero humano como

fundamento ontológico da existência no pensamento do filósofo. Com o intuito de

compreender como a angústia e o desespero constituem elementos para a existência autentica

realizamos esta pesquisa que está estruturada em três capítulos: no primeiro capítulo

delinearemos brevemente o contexto histórico e filosófico; no segundo capítulo elucidaremos

a sua crítica a teoria absoluta na linha filosófica hegeliana, prosseguindo daremos enfoque ao

conceito de indivíduo e existência como possibilidade. Dada esta compreensão, refletiremos o

conceito de angústia e sua pedagogia, e o desespero humano como doença para morte; no

terceiro capítulo daremos ênfase à fé como salto e a existência humana na relação com o

Absoluto. Tanto a angústia quanto o desespero são problemas existenciais muito reais, e são,

portanto, aspectos inerentes à condição humana, que através das possibilidades de escolha se

dá o salto pela fé marcada pela relação com o Absoluto.

Palavras-chave: Indivíduo. Angústia. Desespero. Fé. Absoluto.

Page 8: A angústia e o desespero humano

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RESUMEN

El presente trabajo propone una reflexión acerca del existencialismo de Kierkegaard por

médio de investigación bibliográfica, sobre los conceptos de angustia y desesperación humana

como fundamento ontológico de la existencia en el pensamiento del filósofo. Con el objetivo

de compreender como la angustia y la desesperación constituyen elementos para la existencia

autentica realizamos esta investigación que está estructurada en tres capítulos: en el primer

capítulo delinearemos brevemente el contexto histórico y filosófico; en el segundo capítulo

dilucidaremos su crítica la teoría absoluta de la línea filosófica hegeliana, prosiguiendo

daremos enfoque al concepto de individuo y existencia como posibilidad. Dada esta

comprensión, reflectaremos el concepto de angustia y su pedagogía, y la desesperación

humana como enfermedad para muerte; en el tercer capítulo daremos énfasis a la fe como

salto y la existencia humana en la relación con El Absoluto. Tanto la angustia cuanto la

desesperación son problemas existenciales muy reales, y son, por lo tanto, aspectos inerentes

a la condición humana, que a través de las posibilidades de elección se da el salto por la fe

marcada por la relación con El Absoluto.

Palabras clave: Individuo. Angustia. Desesperación. Fe. Absoluto.

Page 9: A angústia e o desespero humano

9

SUMÁRIO

1INTRODUÇÃO................................................................................................................ 9

2 KIERKEGAARD: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO................ 13

2.1 VIDA E OBRAS............................................................................................................ 13

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO........................................................................................... 18

2.3 CONTEXTO FILOSÓFICO.......................................................................................... 20

3 ANGÚSTIA E DESESPERO COMO ELEMENTO ONTOLÓGICO DA

EXISTÊNCIA HUMANA.................................................................................................

24

3.1 PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD: CRÍTICA AO

PENSAMENTO DE HEGEL..............................................................................................

24

3.2 O INDIVÍDUO E A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE.................................. 27

3.3 O CONCEITO DE ANGÚSTIA................................................................................... 31

3.3.1 A pedagogia da angústia............................................................................................. 31

3.4 O DESESPERO HUMANO.......................................................................................... 34

3.4.1 Doença para a morte................................................................................................... 36

4 A FÉ E A LIBERDADE................................................................................................. 39

4.1 A FÉ COMO REMÉDIO – O SALTO PARA LIBERDADE.......................................... 40

4.2 A EXISTÊNCIA HUMANA NA RELAÇÃO COM O ABSOLUTO............................. 42

5 CONCLUSÃO................................................................................................................. 46

REFERÊNCIAS................................................................................................................. 48

BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS............................................................................... 49

Page 10: A angústia e o desespero humano

10

1 INTRODUÇÃO

A busca pelo sentido da vida sempre foi como também continua sendo um dos maiores

anseios da humanidade pelo fato de que o existir é algo grandioso demais para não dar valor.

Existir é um fator importantíssimo para o conhecimento de nós mesmos e de tudo que nos

cerca, pois nos impulsiona para uma maior compreensão da realidade em que vivemos. É,

sobretudo, a partir dessas afirmações que nos propusemos a discutir o existencialismo de

Kierkegaard.

O século XIX foi um dos momentos mais importante na história da filosofia. Neste

período vemos despontar vários filósofos, como Fichte, Schelling, Nietzsche, Karl Marx,

Hegel, os quais estes são alguns dos mais representativos desta época. E é neste contexto de

grandes pensadores que nasce Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo,

crítico e poeta dinamarquês, considerado o pai do existencialismo. Suas inúmeras produções

contribuíram definitivamente para que ocupasse um lugar de destaque na história do

pensamento ocidental. Pelas suas obras podemos confrontar temas que contribuíram para a

constituição da filosofia da existência voltada para a realidade vivida buscando resgatar o

valor do indivíduo enquanto subjetividade.

O presente trabalho propõe uma reflexão acerca do existencialismo de Sören

Kierkegaard com base a pesquisa bibliográfica, sobre os conceitos de angústia e desespero

humano como fundamento ontológico da existência no pensamento do filósofo. Com o

objetivo de compreender como a angústia e o desespero constituem elementos para a

existência humana que realizamos esta pesquisa. A nossa reflexão acerca do tema proposto

buscaremos apresentar sucintamente o conteúdo, os objetivos, a importância e o método de

nossa pesquisa a fim de fornecer elementos para uma boa leitura e uma melhor compreensão

na abordagem significante da existência humana marcada intrinsecamente pela angústia e pelo

desespero, traçada pelo nosso filósofo existencialista.

O nosso trabalho está estruturado em três capítulos: no primeiro capítulo delinearemos

brevemente o contexto histórico e filosófico do nosso autor. No segundo capítulo

elucidaremos a sua crítica a teoria absoluta hegeliana. E prosseguindo daremos enfoque ao

conceito de indivíduo e existência como possibilidade. Dada esta compreensão, refletiremos o

conceito de angústia e sua pedagogia, e o desespero humano como doença para morte. No

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terceiro capítulo daremos ênfase à fé como salto e a existência humana na relação com o

Absoluto. Veremos, portanto, que tanto a angústia quanto o desespero são problemas

existenciais muito reais, e são aspectos inerentes à condição humana, que através das

possibilidades de escolha se dá o salto pela fé marcada pela relação com o Absoluto.

No primeiro capítulo aprofundaremos pontos da vida, do contexto histórico e

filosófico de Kierkegaard. Sua filosofia tem como fonte de inspiração ele mesmo em sua

existência singular e concreta. Sua vida repleta de inquietações e angústias, que são expressas

em seus textos, exerceu profunda influencia no desenvolvimento de seu pensamento. Convêm

recordar sinteticamente os decisivos na formação da personalidade de pensador dinamarquês.

Sob as aparências de uma vida sem acontecimentos singulares, ocultou as inquietações e

angústia de uma das épocas mais perturbadas do mundo moderno nascente. Duas figuras

dominaram sua vida curta e agitada: a do pai Mikael Pederson Kierkegaard e a da jovem

Regina Olsen, a noiva a quem amava não conseguindo tomar por esposa em conseqüência do

sentimento de culpa e de melancolia de que se tornou vítima devido à educação que recebera

do pai. Além de herdar um temperamento tristonho recebeu uma formação cristã com

exageros escrúpulos quanto ao pecado. Desde a infância foi transmitida como herança a

religiosidade sombria, envolta a uma atmosfera de maldição que pesava sobre o pai. Mikael,

homem que quando jovem, era pastor de ovelhas nas planícies da Jutlandia, interior da

Dinamarca, sofrendo fome e frio amaldiçoou Deus no alto de uma colina, o qual com oitenta e

dois anos não foi capaz de esquecer este episódio. Kierkegaard sempre percebeu algo estranho

no ambiente familiar, o qual teve a surpresa da revelação do segredo de seu pai: o fato de ter

seduzido a mulher que ia ser sua mãe antes de casados. Foi um verdadeiro e terrível trauma.

De seu pai, portanto, ele recebeu as armas da melancolia, da dialética e da inquietação.

Kierkegaard foi educado dentro das concepções do cristianismo luterano onde se acentuava a

condição pecaminosa da natureza humana intrinsecamente corrompida. Sören Kierkegaard

sentiu todo o peso desses ensinamentos e refletiu-os em sua maneira de viver, pensar e

escrever.

Outro fato que deixou marcas inesquecíveis na vida e no pensamento de Kierkegaard

foi seu amor por Regina Olsen. Ele amou-a apaixonadamente, e apenas comprometido com

ela em noivado, arrependeu-se e procurou por todos os meios romper o compromisso.

Devolvendo-lhe a aliança com uma nota fria e obscura, não hesitou e rompeu definitivamente

com Regina. Pode-se dizer que as razões do rompimento seria uma timidez de sua formação

física defeituosa aliada a um complexo de culpabilidade herdada do pai que o impedia, no seu

Page 12: A angústia e o desespero humano

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modo de pensar, de ser feliz no matrimônio. Este fato de amor fracassado teve profundas

conseqüências em sua vida cultural e espiritual, onde Kierkegaard buscou vincular-se cada

vez mais com o Deus transcendente.

A polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca foi outro fato marcante da vida e do

pensamente de Sören, pois lutou contra o mero formalismo de cristãos e a aparência

institucional na qual esta se encontrava dedicando-se somente aos interesses do estado. A

verdade em questão, para o nosso pensador, era a do cristianismo, do tornar-se cristão. Vale

salientar também como fato de importante relevância no contexto de seu pensamento a sua

oposição a Hegel. Kierkegaard se opôs a sua filosofia questionando seu universalismo e o seu

caráter abstrato, tentando valorizar o indivíduo numa época em que a filosofia e a teologia

estavam impregnadas do pensamento do filósofo alemão. Para Hegel, o indivíduo se explica

pelo sistema, ou seja, o indivíduo é um momento da totalidade sistemática que o ultrapassa e

na qual ele se realiza. Ele postulava que a história obedece a uma lógica absoluta, nesse

aspecto o homem perde a liberdade na medida em que se encontra preso nesse desfecho

lógico da história. Para Kierkegaard, o sistema esgota a existência do seu caráter concreto,

pois a existência é o devir concreto do homem enquanto singularidade. Opõe-se, portanto,

Kierkegaard, ao idealismo em seu caráter abstrato e especulativo. Esta aversão contra os

sistemas teóricos e abstratos o conduziu a enfatizar a existência individual.

Passando por este breve contexto marcante no pensamento do nosso autor, buscaremos

refletir no segundo capítulo sobre a angústia e o desespero como constitutivo ontológico da

existência humana, tendo em vista a fé e a liberdade como possibilidade para uma existência

autêntica. O caminho, portanto, que pretendemos trilhar neste trabalho é basicamente uma

reflexão e maior compreensão, como já apontamos, no que se refere ao conceito de angústia e

desespero inerente a existência humana na visão de Sören Kierkegaard. Ressaltamos ainda

neste capítulo a crítica ao pensamento de Hegel como ponto de partida da sua filosofia e a

valorização do indivíduo e a existência como possibilidade. Deteremos-nos em compreender

o sentido e a prioridade do indivíduo e a sua existência caracterizada pelas possibilidades,

possibilidades de escolher, pois existir é escolher.

No terceiro capítulo pretendemos identificar a fé e a liberdade como salto para a

verdadeira existência caracterizando a sua relação com o Absoluto. Experiência vivida no

sentido verdadeiro de cristãos, um cristianismo autêntico.

O nosso referencial de pesquisa fundamenta-se no Conceito de angústia (1844) e o

Desespero Humano (1849) como doença para a morte. Kierkegaard sentiu necessidade de

ampliar suas idéias, evidenciadas pelas suas próprias experiências de vida, a respeito da fé e

Page 13: A angústia e o desespero humano

13

da liberdade. Em o Conceito de angústia, ele fala do pecado enquanto supõe o livre-arbítrio,

ou seja, uma angústia diante da livre escolha entre as possibilidades em constante relação com

o mundo. Para ele a liberdade gera no homem profunda insegurança, medo e angústia.

Kierkegaard apresenta a angústia como “vertigem da liberdade, que nasce quando, ao querer o

espírito institui a síntese, a liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se

agarra à finitude para não cair”. No que diz respeito ao Desespero Humano, buscaremos,

fundamentalmente, descrevê-lo como questão essencial quanto à angústia. Essencial pelo fato

de o indivíduo, no decorrer de sua existência, não poder desfazer-se destes sentimentos.

Nortearemos o desespero com a seguinte questão: em que sentido o desespero é uma doença

mortal? E como ela se caracteriza na existência humana? Esse desespero é, para Kierkegaard,

um fenômeno universal. Segundo o autor, “assim como o médico poderia dizer que

provavelmente não há uma única pessoa em vida que seja completamente sadia, assim

também aquele que conhece o ser humano pode dizer que não vive uma única pessoa na qual

não haja um pouco de desespero”. Todo ser humano vive de alguma forma, em maior ou

menor grau, em desespero. Embora esteja presente em todas as pessoas cada indivíduo

desespera por si mesmo.

A importância e a mensagem filosófica existencial kierkegaardiana nos traz a

identificação do indivíduo que se coloca em um contínuo devir diante das possibilidades da

existência, onde a angústia, a liberdade, o desespero e a fé encontram-se em primeiro plano.

Kierkegaard prioriza o caráter existencial da vida humana, rejeita as pretensões da razão

absoluta e lança bases para a filosofia existencial contemporânea. Ele aborda questões

ontológicas profundas da existência humana, como veremos na angústia e no desespero,

refletidas no homem enquanto singular, indivíduo e existente. Vemos, assim, que a luta e a

busca da interioridade existencial de Kierkegaard é presente e atual em nosso existir. Pois

vivemos em uma época de angustiante desespero pela falta de sentido de viver. Uma angústia

e desespero em conseqüência das escolhas somente materialistas em meio a uma cultura

exageradamente consumista. Pois, para estes, o que importa é aquilo que traz a felicidade

momentânea, prazerosa e individualista. E ai o homem se encontra em meio a uma liberdade

que não traz a verdadeira felicidade, a uma descrença de valores religiosos, onde tudo parece

não haver sentido, descartando até a própria vida. Portanto falar do pensamento de

Kierkegaard é falar dele mesmo, como também falar da existência do homem atual.

Page 14: A angústia e o desespero humano

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2 SÖREN KIERKEGAARD: VIDA, CONTEXTO HISTÓRICO E FILOSÓFICO

No presente capítulo faremos uma abordagem geral da trajetória que envolveu o

pensamento de Sören Kierkegaard; tal abordagem elucidará seu perfil bibliográfico, seu

contexto histórico e filosófico. Teremos uma visão de como este filósofo dinamarquês e

precursor do existencialismo colocou a existência no centro de sua reflexão e por assim dizer,

foi um dos pensadores mais influentes do século XIX. Neste cenário, perceberemos que, a

biografia de Kierkegaard é parte integrante de sua filosofia. Veremos um pensador

apaixonado marcado pelo seu relacionamento com Regina Olsen, e ao mesmo tempo um

revoltado que se opõe claramente ao sistema de totalidade de Hegel, filosofia marcante de sua

época, como também aos rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião do

Estado.

2.1 VIDA E OBRAS

O pensador Sören Aabye Kierkegaard nasceu em Copenhague, capital da Dinamarca,

a 5 de maio de 1813. Filósofo, teólogo, poeta e crítico impiedoso da religiosidade

institucional, além do mais, considerado o pensador de maior destaque da corrente

existencialista contemporânea pela sua opção radical e pela defesa do valor da existência

humana enquanto indivíduo. As suas idéias são expressões de sua existência. Foi o último dos

sete filhos do segundo casamento de Mikael Pederson Kierkegaard com a sua própria

doméstica Anne Srensdatter, uma vez que já era viúvo sem filhos. Sören nasceu quando o pai

já tinha cinqüenta e seis anos e a mãe quarenta e quatro, pelo qual ele se considerou o “filho

da velhice”. Cinco irmãos de Kierkegaard morreram antes dele. Sobreviveu somente Pedro,

que depois se tornou bispo luterano.

Kierkegaard passou toda sua primeira infância na companhia do pai, que insistiu muito

num aprendizado rigoroso seja do latim como do grego, inculcou no filho uma devoção

pietista1 fortemente vivenciada pela família. A profundidade do sentimento religioso sempre o

1 Pietismo – corrente religiosa proveniente do luteranismo na Alemanha no século XVII – tal corrente

reivindicava um cristianismo mais fervoroso, fundamentado em uma prática religiosa e em uma moral pessoal

mais austera.

Page 15: A angústia e o desespero humano

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acompanhou desde a infância. Ele mesmo descreve o cristianismo que lhe fora transmitido;

um cristianismo na qual a imagem central era do Cristo ensangüentado morrendo na cruz e

não a do Cristo Redentor e Ressuscitado. Tal prática consentia a visão de uma humanidade

que só poderia ser pecadora, sabendo apenas repetir pelos seus atos o escândalo da

condenação de Cristo à morte. Este era o cristianismo do pai de Kierkegaard e que recebera de

educação:

Criança, recebi uma educação cristã rigorosa e austera que foi, para

perspectivas humanas uma loucura. [...] a minha confiança na vida quebrou-

se pelas impressões a que sucumbira o próprio velho melancólico que me

tinha imposto [...] Que há de espantoso se [...] o cristianismo me tenha

parecido a mais inumana crueldade, se bem que nunca, mesmo quando dele

mais afastado estive, o tenha deixado de respeitar [...].2

A juventude do filósofo também foi profundamente marcada pela influência do pai

Mikael Pederson, de personalidade depressiva, melancólica e inquieta. Ele que era um

pequeno pastor de ovelhas nas planícies de Jutlândia, interior da Dinamarca, revoltou-se

contra natureza da sua condição, e assim teria blasfemado contra o Deus insensível que

permitia a miséria. E depois de tê-lo amaldiçoado, cumulava então, vantagens e fortuna como

fanqueiro na capital. Mikael, tendo engravidado a mãe de seus filhos ainda durante o período

do luto de um ano da morte da primeira esposa, vivia atormentado pelos remorsos da cena da

maldição e buscava a verdade religiosa pelas mais diversas vias. Desenvolveu uma fé

dominada pelo medo de ser punido por Deus através dos filhos, o que de fato, perdeu quase

todos. Kierkegaard carregava as conseqüências de ser o filho de um pai velho, que transmitia

a sua melancolia para o menino. Ele mesmo afirmava de nunca ter vivido a felicidade de ser

criança.

Em 1830, seguindo o desejo do pai, estuda teologia na Universidade de Copenhague,

mas não se interessa tanto pela teologia clássica quanto pelos assuntos filosóficos e literários.

Todavia, o talento desenvolveu em Sören a imaginação e o senso de discussão. Neste

ambiente universitário, lê e conhece de Schleiermacher e Hegel, descobre o romantismo

alemão, apaixona-se pelo teatro e pela música, escreve peças e participa do circulo literário e

político. Rompe com o estilo de vida de seu pai e leva uma vida de boêmio. Vivencia uma

fase onde nada é levado a sério, e tudo é apenas uma brincadeira. Kierkegaard descreve esta

2 KIERKEGAARD, Sören. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano. Tradução de Carlos

Grifo, Maria J. Marinho, Adolfo Casais Monteiro São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores) p. 72/3.

Page 16: A angústia e o desespero humano

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forma de atitude como o estádio estético, uma existência que afasta a vida, e na qual tudo é

brincadeira sem compromisso nem responsabilidade.

Em 1835, Sören torna-se melancólico e temendo a loucura, foge do pai e faz uma

viagem mais longa, para o norte de Selândia, para afastar-se um pouco da vida que estava

levando em Copenhague. Durante este tempo sofre uma espécie de despertar espiritual.

Kierkegaard indica este acontecimento como o “grande terremoto”, e que foi talvez a

revelação de uma culpa paterna de ter violentado a criada – a mãe de Kierkegaard - quando

sua primeira esposa ainda estava viva. Surpreendido pela revelação do segredo de seu pai, na

angústia sem recurso, Kierkegaard chegou à maturidade. Tal experiência, podendo dizer

também “crise”, o levou a uma reaproximação ao cristianismo e uma reconciliação com o pai.

Ainda muito envolvido por esta fase de sua existência, em 1838, o pai veio a falecer. Afetado

pela perda, porém foi o momento que Kierkegaard despertou realmente e superou a crise. E

prosseguindo sua formação acadêmica, em 1840, prestou os exames de teologia para tornar-se

pastor. Já em 1841, terminando a tese Sobre o Conceito de Ironia pregou seu primeiro

sermão. Por fim, percebe-se incapaz, e compreende que sua timidez e sua fraca voz o

impedem de ser um pregador.

Outra grande crise que marcou a vida de Kierkegaard e revelada em sua obra Diário

do Sedutor (1843) foi a paixão e o noivado rompido com Regina Olsen. Em 1837,

Kierkegaard conheceu Regina, uma moça de 16 anos e de uma família burguesa de

Copenhague. Os dois viveram uma forte paixão que os levaram ao noivado em 1840. No

entanto, ele não conseguiu concluir o noivado e meses depois rompeu com Regina. As

páginas do Diário atestam que ele se sentiu inseguro, lutou consigo mesmo, depois julgou

impossível casar; e ao que parece, o obstáculo foi a melancolia. Mais tarde, Regina casou-se

com Johan Frederik Schlegel (1817-1896), seu professor. Kierkegaard certamente amava

Regina, pois toda sua obra respira a sua presença. A lembrança e a imagem de Regina o

acompanharam na provação do luto da morte de seu pai e durante seus estudos. Os motivos do

rompimento não são muito claros, supõe-se que tenha sido o seu desejo de não revelar a

Regina os delitos do pai, a preocupação de não expô-la, juntamente com os eventuais filhos à

ira de Deus que pesava sobre a família dos Kierkegaards.

De certa forma, a relação com Regina constituiu a chave para toda a obra de

Kierkegaard, tanto para a obra literária, onde em romances filosóficos ele elabora a sua

história, como para a obra filosófica, que trata da relação entre existência e realidade, e como

também para a obra religiosa. Catorze dias depois do rompimento com Regina, Kierkegaard

viaja para Berlim, que naquela época era o centro cultural da Europa. Ele buscava escapar do

Page 17: A angústia e o desespero humano

17

escândalo provocado pelo rompimento do seu noivado. Em Berlim, freqüentou as aulas do

alemão Schelling, o filósofo de maior renome nesse período pós-hegeliano. Todavia,

Kierkegaard, decepcionado com o contato com Schelling, volta a Copenhague aos 6 de março

de 1842. Antes de partir, Kierkegaard escreveu uma tese de doutorado sobre a ironia

socrática.

A polêmica com a Igreja oficial da Dinamarca é outro episódio marcante na vida de

Sören. Foi um ataque que atravessou todas as barreiras e não poupou nem os ministros e nem

seus famíliares. Kierkegaard acusou os luteranos de haverem subordinado as coisas sagradas

aos interesses seculares, colocando a vida religiosa dentro da ordem burguesa. Acusou o

cristianismo oficial de eximir os homens da necessidade de uma vida ascética e das boas

obras. A intensidade desses debates de caráter religioso perturbou a saúde de Kierkegaard que

veio a falecer aos quarenta e dois anos de idade no dia 11 de novembro de 1855, em

Copenhague.

Suas obras. Como primeira obra é uma tese de doutorado em Teologia defendida em

setembro de 1841, onde escreve o Conceito de ironia profundamente relacionada a Sócrates.

Para o autor, o conceito de ironia é como um negativo, o caminho. Não a verdade, mas o

caminho. Assim, podemos pensar que a ironia não passa de uma interpretação da realidade e,

como tal, necessita do movimento, da ação para ter validade. Em Sócrates a realidade já tinha

perdido sua validade, mas ele deixava a ordem existente subsistir quando dizia não saber e

pedia esclarecimento ao outro. Com esse esclarecimento acabava por desconstruir tal ordem.

Sócrates se alimenta do negativo, uma negatividade infinita que destrói tudo o que é poder

objetivo, tudo perde seu valor absoluto, tanto a vida como a morte. Ele se move no negativo e

o que observamos nele é a liberdade, infinitamente transbordante, da subjetividade, mas isso é

justamente a ironia. Segundo Kierkegaard, o ponto de partida de Sócrates é a ocasião: nela o

mestre nem ensina, nem recebe, apenas ajuda no nascimento (maiêutica), pois o ser humano já

está de posse da verdade. Em Sócrates, o instante não possui importância fundamental, perde-

se no tempo, é um nada, pois a verdade está lá, só precisa ser lembrada. Para Kierkegaard, sob

o ponto de vista cristão, o instante é plenitude dos tempos; decisivo e composto pela

eternidade plena. Nesse sentido o instante implica uma escolha, já que o ser humano vê o

temporal sob o aspecto do eterno.

A personalidade de Sören revela-se no uso freqüente de pseudônimos, tais como

Victor Eremita em A alternativa, Ou... ou..., em 1843; Iohannes de Silentio em Temor e

Tremor, A repetição, em 1843; Iohannes Climacus em Migalhas filosóficas, O conceito de

angústia, em 1844. Foram vários os motivos que levaram Kierkegaard a usar de pseudônimos,

Page 18: A angústia e o desespero humano

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pelo simples prazer de parecer enigmático e às vezes para enviar mensagem à sua ex-noiva,

ou também, para expor diversas idéias e concepções dando aos leitores a possibilidade de que

por si mesmos encontrassem sua própria solução. Como os personagens pseudônimos podem

discutir seus problemas de um modo dramático e interessante, impelem o leitor a seguir

adiante, ou ir além das possibilidades que eles representam. Enumerando algumas das

principais obras de Sören Kierkegaard, trazemos em primeiro lugar seus Diários que nos

introduzem ao clima intelectual daquele momento, uma combinação da filosofia hegeliana,

das idéias estéticas românticas e da igreja luterana dinamarquesa.“Ou um ou outro”, Temor e

tremor”, “A repetição”, Migalhas filosóficas e “Etapas no caminho da vida” (1845) obras

que foram meios que Kierkegaard usou para transmitir de modo romântico mensagens a

Regina. Seu tema é o enriquecimento da personalidade humana em seus três níveis, o estético,

o ético e o da consciência religiosa. “O conceito da angústia”, Kierkegaard aprofundou o

estado da angústia, a qual teremos a oportunidade de nos determos mais neste trabalho. Já a

obra “Último pós-escrito não cientifico” (1846), ele assinala a passagem da produção estética

para as obras religiosas, considerada a mais filosóficas de suas obras. Na obra “O ponto de

vista sobre minha obra como autor” (1848), Kierkegaard faz um ensaio autobiográfico e

chama a atenção sobre três acontecimentos culminantes de sua vida.

Em 1846, Kierkegaard travou uma intensa polêmica com um jornal humorístico de

Copenhague, “O Corsário”, que foi motivo de grande sofrimento para ele:

Um jornal satírico chamado O Corsário, que encontrava um terreno fértil na

efervescência das idéias liberais de 1848, [...] ridicularizando [...] homens

respeitáveis e pacíficos que servem o Estado [...]. Como esse jornal elogiou

Kierkegaard, ele temeu parecer cúmplice desse empreendimento [...] Nele se

elogiavam os dons extraordinários do autor de Ou... ou... e da parte estética

dos Estádios no caminho da vida. Todavia deploravam-se as digressões éticas

e religiosas que, para Kierkegaard, representavam o essencial. Exigiu [...],

como homem de bem, ser ridicularizado por O Corsário. 3

E assim foi feito, o jornal atacou Kierkegaard com aspereza, zombou de sua aparência.

Em uma sociedade que estava nascendo a idéia de que a imprensa era a garantia da liberdade

de expressão, pode-se imaginar a repercussão e a reprovação que caiu sobre ele. Com este

episódio, Kierkegaard colocou-se como defensor da moral cristã em seus próprios ataques

contra o jornal. A Igreja ficou no silêncio e Sören sentiu-se abandonado. “Daí convencer-se

de que o luteranismo oficial tal qual existia na Dinamarca não era aquela religião da exigência

que seu pai lhe pregara, mas um vasto compromisso com o mundo em detrimento da verdade

3 BLANC, Charles Le. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p.40/1.

Page 19: A angústia e o desespero humano

19

do cristianismo” (BLANC, 2003; p. 42). Seu próprio papel foi de um reformador, não o que

transformou e renovou as instituições, mas sim foi aquele que despertou a consciência,

ensinou o trágico da existência, restaura a honra do ideal e de todas as exigências morais ou

religiosas. Kierkegaard não se oferecia como modelo, mas agia pela certeza de que seu

combate e seu sacrifício eram indispensáveis à reforma do cristianismo, tal como o

compreendia.

Outra obra que teremos a oportunidade de aprofundar neste trabalho é “Doença até a

morte” 4 (1849), onde Kierkegaard faz um tratado sobre o desespero humano. Enfim, durante

a vida Kierkegaard não foi muito conhecido e também depois da morte permaneceu ignorado

por muito tempo. Somente depois da primeira Guerra Mundial é que ele foi descoberto, suas

obras lidas avidamente e traduzidas em várias línguas. O seu pensamento, prematuro para

seus contemporâneos, tornou-se da máxima atualidade em nosso século.

2.2 CONTEXTO HISTÓRICO

A época em que viveu o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard foi, inicialmente, um

período de grande crise política e militar em seu país devido a conseqüentes guerras

napoleônicas. Somente na idade madura do filósofo, a Dinamarca veio a sair do atraso

econômico causado pelos conflitos. Graças a uma política liberal que aboliu o trabalho

obrigatório do camponês para os nobres “seus senhores”, regime medieval de servidão, e

aboliu a monarquia absolutista, o país aos poucos, foi se transformando em um país

industrializado e não apenas agrícola. Em um contexto mais amplo, foi um momento de

grandes transformações, rompimento e revoluções. Marx foi um dos contemporâneos de

Kierkegaard, e no ano seguinte da publicação do Manifesto comunista em 1848, Kierkegaard

assistiu a transição do absolutismo para a democracia na Dinamarca.

Kierkegaard viveu a maior parte de sua vida no reinado de Frederico VI (foi rei da

Dinamarca a partir de 1808 até sua morte em 1839 e da Noruega de 1808 a 1814), porém o

período mais produtivo de sua maturidade transcorreu sob os reinados sucessivos de Christian

VIII (foi rei da Dinamarca de 1839 a 1848, e da Noruega em 1814, como Cristiano Frederico)

4 “A dialética do desespero – doença que marcaria o fundo da consciência do cristão até à morte – é analisado

por Kierkegaard, em suas múltiplas facetas: o desespero inconsciente de ter um eu; o desespero que não quer, e o

desespero que quer ser ele próprio; a relação entre desespero e pecado” (KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p.

Introdução).

Page 20: A angústia e o desespero humano

20

e Frederico VII (rei da Dinamarca de 1848 a 1863). Política e economicamente, foi uma época

pobre e de recessão para Dinamarca. Porém foi uma época da culminação da vida cultural e

espiritual do país conhecida como época de ouro. A filosofia relaciona a Idade de Ouro5

dinamarquesa com o pensamento alemão a partir de um panorama da introdução dos grandes

alemães na Dinamarca: Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Kierkegaard é devedor, em muitos

aspectos do pensamento kantiano, embora mantenha sua independência em relação ao

filósofo. A influência de Fichte na Dinamarca pode ser notada a partir de 1807, ano em que o

filósofo esteve no país dinamarquês ministrando cursos. Fichte influenciou também Frederik

Christian Sibbern (1785-1872) e o norueguês-dinamarquês Henrich Steffens (1773-1845),

além do próprio Kierkegaard.

Schelling foi importante em dois períodos da vida intelectual dinamarquesa. A partir

de 1830, o hegelianismo começou a se destacar na vida cultural dinamarquesa (arte, literatura,

religião, filosofia, história). O pensamento de Hegel surgiu em solo dinamarquês nos anos 20,

mas ficou mais influente a partir das aulas de Hans L. Martensen (1808-1884), ocorridas em

1837-1838, na Universidade de Copenhague. Sibbern era o mais conhecido dos filósofos

dinamarqueses e teve contato pessoal com Fichte, Schleiermacher, Goethe e Schelling.

Mestre e amigo de Kierkegaard, merecendo a dedicatória do Conceito de Angústia, Moller

tornou-se professor da Universidade de Copenhague em 1830. Em 1837, escreveu o artigo

Pensamentos sobre a possibilidade da prova da imortalidade humana. Apesar da influência

hegeliana, Moller foi um crítico do pensador alemão. Confrontou a posição cristã ao

pensamento de Hegel. Moller ministrou cursos em 1834-1835 sobre filosofia antiga,

enfatizando a filosofia de Sócrates, e Kierkegaard foi levado a aprofundar seus estudos sobre

o ateniense. Daí nasceu seu interesse em estudar o conceito de ironia em Sócrates, tema de

sua dissertação. O conceito dos pensamentos de Moller é muito caro ao pensamento

kierkegaardiano. Sua concepção acerca de aforismos e seu niilismo influenciaram a psicologia

de Kierkegaard. A ironia em Kierkegaard é vista através de sua leitura sobre Sócrates e acerca

da mesma temática no romantismo.

A seção dedicada à teologia mostra que a primeira metade do século XIX foi um

período de ouro também para a teologia dinamarquesa. A Faculdade de Teologia da

Universidade de Copenhague possuía grande influência na vida intelectual dinamarquesa.

5 A idade de Ouro dinamarquesa foi marcada pelos debates políticos, intelectuais e literários. A cultura parece

receber a maior atenção de todos os interessados. E é nesse clima que podemos situar a obra kierkegaardiana.

Page 21: A angústia e o desespero humano

21

Ocorreram mudanças no pensamento eclesiástico e na instituição religiosa. “Movimentos de

caráter pietista”6 foram intensificados. A Igreja foi presença marcante na Dinamarca do século

XIX. A Igreja era como uma instituição estatal e a religião luterana a religião oficial do

Estado. Bastava nascer no país para ser automaticamente cristão. Kierkegaard alegava que

isto reduzia a nada a possibilidade de uma verdadeira conversão radical a Cristo. Assim o

autor Charles Le Blanc comenta:

Quando Kierkegaard fala de cristianismo [...] se refere: um cristianismo sem

mediações, sem figuras femininas, quase sem Igreja. É também deste

cristianismo que procedem vários de seus temas, é dele que herda o

radicalismo da fé, é por ele que luta e é em seu nome que quis empreender

uma reforma religiosa.7

O pastor local era um verdadeiro funcionário público, representava a Coroa e por isso,

além da prática de suas funções especificamente religiosas também era quem coletava

impostos, realizava os recenseamentos, fazia o recrutamento militar, mantinha os registros

civis nos livros da Igreja, supervisionava as escolas, cuidava da assistência aos pobres e era o

presidente do Conselho Municipal, além de cuidar de seus próprios interesses, muitas vezes a

maior fazenda das vizinhanças. As questões políticas e os rancores misturavam-se facilmente

com os assuntos religiosos. Mesmo com influência indireta dos acontecimentos sociais no seu

pensamento, Kierkegaard foi o filósofo que abandonou o mundo grande com seus problemas

para se dedicar ao mundo pessoal com suas inquietações e questões existenciais.

2.3 CONTEXTO FILOSÓFICO

Sören Kierkegaard foi certamente um dos pensadores mais importantes e fecundos do

cristianismo contemporâneo. O pensamento do nosso autor nasce em meio a um contexto

marcado pelo confronto e pelo diálogo do racionalismo das luzes com o idealismo da cultura

romântica:

6 “No século XVIII, a reconstrução de um país destruído e profundamente ferido pelas guerras contra a Suécia, a

rejeição da antiga ordem social, como comprova a supressão parcial da servidão por Frederico IV (1699-1730),

favoreceram a difusão do pietismo na Dinamarca” (BLANC, op, cit., 2003, p. 20) 7 Ibid., 2003, p. 21.

Page 22: A angústia e o desespero humano

22

As luzes haviam constituído o principal movimento filosófico do século

XVIII, tomando formas especificas segundo os países. A principal

característica comum: uma confiança quase ilimitada na razão, que é exercida

de um ponto de vista crítico contra o obscurantismo das concepções antigas, e

de um ponto de vista positivo, pois cabe à razão, pelo exercício do

pensamento autônomo, prescrever leis e normas nos assuntos científicos,

políticos, morais e religiosos.8

Foi uma época onde tinha a razão como uma força finita capaz de afrontar o mundo e

transformá-lo. No final do século XVIII, surgem movimentos propondo outros caminhos além

da razão como os do sentimento e da fé. E quem avançou nesta direção contribuindo para

passagem da razão como uma força infinita e não mais a razão como força finita foi o

pensador Fichte (1762-1814); este fez do eu uma autoconsciência absoluta cujo produto é o

mundo, caracterizado de idealismo romântico. Fichte, Schelling (1775-1854) e Hegel (1770-

1831) são os principais representantes desse sistema de idealismo:

[...] a apologia intransigente da consciência e da interioridade no confronto

com a Igreja reformada estatal e institucional da Dinamarca, com o

convencionalismo burguês artificioso e estéril da sociedade e da cultura

européia de seu tempo, assim como contra toda coletivização que se faça em

detrimento da autentica singularidade de toda vida individua, corresponde a

uma das fontes de hostilidade mais implacáveis contra Kierkegaard

provenientes dos mais bens defendidos bastiões da hipocrisia cultural de sua

época.9

Uma outra forma de compreensão do infinito é dado como sentimento expressada

pelas atividades humanas: a arte e a religião. Este infinito romântico do sentimento religioso

foi muito defendido por Novalis (1772-1801), Friedrich Schlegel (1772-1829) e

Schleiermacher (1768-1834). E Kierkegaard é herdeiro desse romantismo religioso: “O eu é a

síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria, o que não se pode fazer

senão contando com Deus.” (KIERKEGAARD, 1979, p. 208).

Outra característica do romantismo é a ironia que tem um papel importante na obra de

Kierkegaard:

[...] A ironia é negatividade e como tal ela destaca o homem do mundo, no

qual o esteta está imerso. Não é possível por isso existir „existir‟ sem sentir

ironia, que é uma dimensão fundamental da pessoa humana. A ironia, assim,

liberta o homem do ponto de vista estético e o leva à exigência ética. Ela não

é a verdade, mas a pólvora que faz saltar as pontes, dispersar as coisas e cava

8 BLANC, op., cit.,2003, p. 23-24.

9PAULA, Marcio Gimenes de. Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard. São Paulo: Paulus, 2009.

p.15.

Page 23: A angústia e o desespero humano

23

o abismo entre o viver no mundo, „na periferia‟, „na superfície‟, e o viver

acima do mundo, no recôndito. A ironia não constitui uma passagem, mas

alimenta a coragem de „escolher‟ desesperando.10

O romantismo não foi apenas uma questão de literatura e filosofia. Exerceu sua

principal influência tornando-se uma espécie de atmosfera cultural, exprimindo-se

concretamente por meio da pintura, da arquitetura, da moda, das expressões da linguagem

corrente, vinculando a vários locais. Vemos, portanto, que com o tempo, o romantismo, como

a filosofia e a tendência cultural avançou e influenciou na Dinamarca. Kierkegaard era um

profundo conhecedor de obras clássicas. Entre as fontes que o influenciava estava: as belas

artes, a filosofia clássica e moderna, a teologia, etc. Percebe-se em sua obra um pensamento

reflexivo bastante abrangente, fruto desta sua diversidade de fontes. Toda esta abrangência

tem o objetivo de confrontar as idéias, os fatos, as experiências à luz do cristianismo que, para

ele, é uma consciência moderna.

Estamos perto dos anos 1830. A questão das relações entre a teologia e a

filosofia é ainda mais bem sentida porque o romantismo se baseara [...], no

sentimento religioso. Novalis e Friedrich Schlegel, por exemplo, queriam

fundar uma nova religião e escrever sua Bíblia. A fortuna da filosofia de

Hegel marcara, ademais, a vitória do idealismo e o desenvolvimento da

especulação teológica.11

Sob influência de seu mestre e amigo Poul Moller (1794-1838), Kierkegaard protestou

muito cedo contra a redução do cristianismo a um sistema dominado pela necessidade lógica.

Ele se opõe à especulação dialética da mediação a separação absoluta entre Deus e a natureza,

entre o eterno e o temporal, entre o finito e o infinito, oposições absolutas a não ser no

momento íntimo da fé, que é revelação de Deus no tempo: “[...] o mistério e a revelação, a

verdade e o absurdo, a certeza e a incerteza, a beatitude e o sofrimento estão

inextricavelmente ligados [...], essas realidade se reconhecem uma na outra” (GILES, 1989;

p.8). Ele ainda recusa admitir que o mistério da Trindade perca sua opacidade e que encontre

uma explicação objetiva no desenvolvimento dialético hegeliano. Seu questionamento é se tal

sistema não acaba fazendo desaparecer a própria realidade, pois a dialética não pode ser real a

não ser que encontre o real de novo sob os aspectos finitos e o tempo constituído pela

plenitude da história onde a existência se desenrola. Para Kierkegaard, a revelação de Deus no

10

SCIACCA, Michele Federico. História da Filosofia. Tradução de Luis Washington Vita. São Paulo: Mestre

Jou, 1968, p.87. 11

BLANC,op. cit., 2003, p. 27.

Page 24: A angústia e o desespero humano

24

tempo é um paradoxo que a razão não consegue penetrar, e na sua linguagem, o paradoxo

exprime a relação entre um espírito finito e uma verdade infinita:

O eu é a síntese consciente de infinito e de finito em relação com ela própria,

o que não se pode fazer senão contatando com Deus. Mas tornar-se si

próprio, é tornar-se concreto, coisa irrealizável no finito ou no infinito, visto

o concreto em questão ser uma síntese. A evolução consiste pois em afastar-

se indefinidamente de si próprio, numa „infinitização‟. Pelo contrário, o eu

que não se torna ele próprio permanece, saiba-o ou não, desesperado.

Contudo, o eu está em evolução a cada instante da sua existência (visto que o

eu Katà dýnamin – em potência – não tem existência real), e não é senão o

que será. Enquanto não consegue tornar-se ele próprio, o eu não é ele próprio;

mas não ser ele é o desespero.12

Seu pensamento baseia-se em sua cultura romântica, religiosa e influenciada pela

filosofia alemã e nos complexos sentimentais profundos. Vemos a filosofia alemã como fonte

importante de seu pensamento. Portanto, a partir de 1837, Kierkegaard aprofundou no estudo

dos filósofos alemães, tomando assim em particular, conhecimento de tudo o que se escrevera

pró e contra Hegel, o qual teremos, no próximo capítulo, a oportunidade de refletir e detalhar

melhor. Outra influência que atuou profundamente sobre o pensamento de Kierkegaard foi o

cristianismo impregnado de luteranismo, o qual tinha se reduzido a pura exterioridade e mero

formalismo. Além de Hegel, ele criticou severamente também esse mundo religioso de seu

tempo, de um cristianismo vazio do mundo, inumano, negador da singularidade que

Kierkegaard defendeu a todo custo. Através de si e de seus problemas, o nosso autor, buscou

encontrar uma explicação para a sua existência. Varias vezes Kierkegaard declarou que toda

sua obra nada mais era que a expressão de sua própria vida. A influência do pensamento

kierkegaardiano imersa no contexto contemporâneo alcançou sucesso na Alemanha logo

depois do fim da Primeira Guerra Mundial e estendeu-se a toda Europa Ocidental,

considerado precursor do pensamento existencialista. Ressaltamos, portanto, a inspiração

kierkegaardiana nas obras de Heidegger, Jaspers, Sartre e Gabriel Marcel, sendo o

representante do existencialismo que mais se aproxima de Kierkegaard.

12

KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 208.

Page 25: A angústia e o desespero humano

25

3 ANGÚSTIA E DESESPERO NO PENSAMENTO DE KIERKEGAARD

Como o objetivo do nosso trabalho é a reflexão acerca da angústia e o desespero como

elementos constitutivos da existência humana no pensamento de Kierkegaard, portanto,

trataremos neste capítulo sobre esses elementos que caracterizam o pensamento do nosso

autor. Porém antes, refletiremos a crítica que Kierkegaard dirige ao sistema hegeliano por

partir do conceito da existência do indivíduo como idéia universal. Com esta reflexão,

veremos que o que interessa a Kierkegaard é o sujeito concreto em sua singularidade.

Trataremos ainda neste capítulo, o homem enquanto indivíduo, e que o modo de ser desse

indivíduo é existência; uma existência que não é a realidade e nem a necessidade, e sim a

possibilidade; “a possibilidade como a mais importante das categorias” como define

Kierkegaard em O conceito de angústia. Para ele, a existência é possibilidade como ameaça

do nada, portanto, possibilidade como angústia. Finalmente, faremos a reflexão sobre O

conceito de angústia caracterizada como condição humana: puro sentimento do possível, e O

desespero humano como a doença mortal.

3.1 PONTO DE PARTIDA DA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD: CRÍTICA AO

PENSAMENTO DE HEGEL

Para uma melhor compreensão do pensamento filosófico de Sören Kierkegaard acerca da

existência e sua ferrenha crítica a dialética hegeliana, delinearemos brevemente, o idealismo

lógico do alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel 13

, o grande sistematizador do idealismo

pós-kantiano e uma das mentes filosóficas mais vastas e profundas.

Na Alemanha, Friedrich Hegel acompanhou apaixonadamente os acontecimentos que

marcaram um ponto de ruptura da história: a derrocada do mundo feudal e o nascimento da

ordem burguesa. É esta a contradição dialética cuja resolução Hegel aponta como sendo a

13

Friedrich Hegel, nasceu em Stutgart, na Alemanha, em 1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos

problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou ao

historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling, afastando-se deles em seguida até

combatê-los quando professor nas Universidades de Iena, Heidelberg e Berlim. Nessa última universidade

lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo vasta influência. Faleceu em 1831, em Berlim,

vítima de cólera. Renunciara aos ideais revolucionários e críticos, para favorecer as tendências absolutistas e

intransigentes do estado prussiano.

Page 26: A angústia e o desespero humano

26

tarefa da Razão. Daí, portanto, o seu idealismo. Sendo alemão, Hegel continuará essa

contradição, na medida em que a Alemanha se ainda achava mergulhada numa ordem feudal,

estando politicamente dividida em diversos Estados não unificados.

Hegel é filósofo da razão absoluta que concretamente se identifica com a história. Para

ele, somente o Infinito é e torna-se a substância de toda coisa: nele, o único afirmativo, o

finito é anulado, superado. Essa unidade se realiza na filosofia, que não é sentimento ou

intuição mística, mas pensamento lógico, ciência do Absoluto. O seu pensamento se apresenta

como um grande sistema que permite pensar tanto a natureza, a realidade física, quanto ao

Espírito. O fio condutor dessa reflexão totalizante é a relação entre finito e infinito. Para

Hegel, o trabalho da filosofia é da superação do entendimento finito e limitado das coisas

finitas e limitadas para alcançar o saber absoluto. Portanto, nesse caminhar da consciência

rumo ao saber absoluto, temos a busca da infinitude a partir da consciência finita.

Sua filosofia é uma filosofia do devir, do movimento, do vir-a-ser. Para explicar a

realidade em constante processo, Hegel não se utiliza da lógica tradicional, ele estabelece os

princípios de uma nova lógica: a dialética14

. A dialética ensina que todas as coisas e idéias

morrem; e essa força destruidora é também a força motriz do processo histórico. A idéia

central é de que a morte é criadora, é geradora. Todo o ser contém em si mesmo o germe da

sua ruína, portanto, sua superação. Assim, o velho princípio de identidade da lógica clássica é

substituído pelo da contradição criadora. O movimento da dialética se faz em três etapas: tese,

antítese e síntese, ou seja, afirmação, negação e negação da negação.15

O sistema hegeliano é

a apresentação de todo o real e de todo o cognoscível como expressão da automanifestação do

absoluto através das fases triádicas da dialética:

O absoluto se desenvolve antes de tudo numa tríade dialética fundamental: a

idéia em si, isto é, a estrutura ideal do absoluto considerada em seu pôr-se na

existência efetiva; a idéia fora de si, o absoluto pondo-se na natureza como

fato, como idéia que se alheia e se esquece; e a idéia em si e para si, isto é, o

absoluto que retorna a se depois de ter reconhecido a natureza como o seu

momento próprio.16

14

Hegel aceita de Fichte, a noção de dialética como processo de afirmação, negação e negação da negação, na

síntese; e de Schelling, a noção do idealismo objetivo e da identidade do sujeito e do objeto, na consciência do

absoluto. 15

O método dialético: a tese é o momento do ser em si; ela põe, afirma uma parte da realidade, negando

implicitamente uma outra parte da realidade, porque toda afirmação inclui uma negação. A antítese é o momento

do ser extra se, fora de si; ela contrapõe, afirmando-a, a parte da realidade implicitamente negada pela tese.

Pertence, de fato, à negação manifestar o que foi obscurecido pela tese, libertar a realidade dos limites da

estaticidade e mostrar a sua riqueza interior. A síntese é o momento da união das partes postas pela tese e pela

antítese num todo único, o qual anula as imperfeições dos momentos anteriores, mas conserva a positividade

deles, ser em si e para si. (Cf. MONDIN, 1985, p. 41) 16

MONDIN, op. cit., 1985, p. 41.

Page 27: A angústia e o desespero humano

27

Da teoria dialética resulta um novo conceito de história. O presente é retomado como

resultado de um longo e dramático processo. A história não é uma simples acumulação de

fatos acontecidos no tempo, mas é um verdadeiro gerador, um processo onde o motor interno

é a contradição. Hegel chama de conhecimento abstrato o conhecimento determinado a partir

de uma realidade dada, imediata, de simples aparência. Este conhecimento abstrato opõe ao

conhecimento do ser real, concreto que consiste em descrever como uma realidade é

produzida. Portanto, concebe-se assim que, conhecer o processo de constituição pelas

mediações contraditórias, é conhecer o real.17

O sistema hegeliano é o último dos grandes

sistemas filosóficos do Ocidente. Ele exerceu decisiva influência na formação da teoria da

práxis e do existencialismo. Vários filósofos contestaram a filosofia de Hegel, de uma forma

parcial ou em seu conjunto. E para o nosso pensador, a filosofia hegeliana não consegue

compreender a existência do ser humano, a sua angústia e o seu desespero. Portanto,

tentaremos agora delinear a crítica kierkegaardiana à supremacia da razão como único

instrumento capaz de estabelecer a verdade como Hegel propunha.

Como pensador cristão, Kiekegaard defendeu o conhecimento da fé contra a

supremacia da razão. Para ele a existência humana possui três dimensões: a dimensão estética,

na qual se procura o prazer; a dimensão ética, na qual se vivencia o problema da liberdade e

da contradição entre o prazer e o dever; e a dimensão religiosa, marcada pela fé18

. O homem

não pode formular um sistema completo da realidade porque ele tem como seu modo de ser a

existência e a existência significa o processo do devir, a contingência. Sendo assim, a

existência, contingente e mutável não pode ser incluída no sistema no qual tudo é regulado

porque está sujeito a leis universais e necessárias. A existência, para Kierkegaard, é

17

Compreender a dialética da realidade, no pensamento de Hegel, exige um trabalho árduo da razão, que deve se

afastar do entendimento comum e se colocar do ponto de vista do absoluto. Esse caminho da consciência que se

afasta do conhecimento comum e se leva ao saber absoluto é o objeto de reflexão do autor em sua obra

Fenomenologia do Espírito (1806). Nela, Hegel, afirma que a consciência que alcança o saber absoluto atinge a

Razão, supera o entendimento finito e adquire a certeza de ser toda a realidade. Assim, a Razão alcançaria a

consciência da unidade entre ser e pensar, harmonizando a subjetividade e a objetividade. 18

“Para Kierkegaard, o homem tem como seu modo de ser a existência, [...] em contínuo devir [...] No devir do

homem distinguem-se três estádios: estético, ético e religioso. Estádio estético [...] o indivíduo não tem

compromissos nem finalidades: é artista despreocupado no qual a fantasia predomina sobre a razão e a vontade.

Guiado pela fantasia ele abraça a realidade exterior [...] riquezas, honras e prazeres; esquiva-se da consciência,

não se encontra em si mesmo [...] é incapaz, por isso, de dominar-se [...]. Exemplo típico deste estádio é Dom

Juan. Estádio ético o indivíduo é o que vive com compromissos, com seriedade e honestidade [...] A forma

característica do estádio ético, segundo Kiekegaard, é o matrimônio com sua seriedade e estabilidade, com seus

deveres e esperanças. Típico representante deste estádio é o assessor Guilherme, do qual fala a segunda parte de

Aut-aut, empregado fiel e todo dedicado à esposa e aos filhos. Estádio religioso é o momento no qual a

honestidade natural não é mais suficiente, porque a fé impõe obrigações que podem entrar em conflito com a lei;

por exemplo, o sacrifício de Isaac, ordenado por Deus, entra em conflito com a lei de não matar (obra Tremor e

Temor). Quando o indivíduo percebe a insuficiência da moralidade, perde o sentido da segurança, da estabilidade

e da suficiência que advinham da observância da lei. O estádio religioso é o da fé como risco e incerteza.

Exemplo típico dele é Abraão, pai da fé.” (MONDIN, op. cit., 1985, p. 70)

Page 28: A angústia e o desespero humano

28

irredutível à lógica, pois as leis da existência são totalmente diversas das leis do pensamento.

Contra todo esforço em colocar a realidade num sistema, Kierkegaard aponta oposições no

que se refere ao princípio de que a existência é uma tensão em direção não a uma totalidade

pensada, que para ele, seria em direção ao indivíduo, cuja é a categoria essencial da

existência: “Contra as teorias objetivas de Hegel, Kierkegaard insiste na necessidade da

apropriação subjetiva da verdade, pois se trata de fundamentar o desenrolar do pensar em algo

que seja ligado à raiz mais profunda da existência, que é o Indivíduo”19

. Hegel procurou

resolver no Espírito Absoluto todas as diferenças entre indivíduos, já Kierkegaard tentou

elevar o indivíduo concreto ao nível de elemento central do pensamento filosófico,

ressaltando as diferenças que são características da subjetividade. Eis o ponto da contestação à

filosofia hegeliana, a qual não leva em consideração a subjetividade humana.

É neste sentido que Kierkegaard influenciou as chamadas correntes irracionalistas e

existencialistas, que colocaram a questão da verdade a partir do processo da existência.

Opondo-se a idéia sistemática de Hegel e a seu caráter abstrato, Kierkegaard procurou

destacar as condições específicas da existência humana e incorporá-las às reflexões

filosóficas. Por ser defensor desta idéia, é considerado o “pai do existencialismo”. Em suas

obras, Kierkegaard procurou analisar os problemas da relação existencial do homem com o

mundo, consigo mesmo e com Deus.

3.2 O INDIVÍDUO E A EXISTÊNCIA COMO POSSIBILIDADE

Seguindo o itinerário filosófico de Kierkegaard, queremos agora enfatizar os traços

característicos de seu pensamento ressaltando o indivíduo e sua existência como uma

existência de possibilidade. A pessoa é o problema central para Kierkegaard. Para ele a

filosofia não pode resolver esta problemática, e sim a religião, e esta enquanto fé. Sendo

assim, o duelo filosofia e religião, ou razão e fé, em nome do indivíduo é o traço do seu

pensamento. Somente a religião pode justificar e garantir a sua existencialidade, pois o

indivíduo e o cristão se identificam. Portanto, defender o indivíduo é também defender o

Cristianismo. Percebemos assim, que seu pensamento é essencialmente religioso: é a defesa

da existência do indivíduo, existência que só se torna autêntica diante da transcendência de

19

GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia. V. I e II. São Paulo: Editora

Pedagógica e Universitária, 1975, p. 9.

Page 29: A angústia e o desespero humano

29

Deus. Chegar a ser um indivíduo, para Kierkegaard, é o mesmo que chegar a ser cristão em

espírito e em verdade. Ser cristão é defrontar-se sozinho com Deus e realizar, assim, a

plenitude individual.

Os grandes conceitos kierkegaardianos ligados à existência são dialéticos

porque determinam, cada qual à sua maneira, situações, um movimento em

direção a outra coisa: a dúvida, a angústia, a morte, o instante, o desespero, a

incerteza, a ironia, o humor, o ambíguo, o único, o salto, etc. Todos esses

movimentos todavia parecem encontrar seu objetivo no cristianismo que

assinala o fim das oposições dialéticas. Nele, ser e devir estão unidos: não

basta ser cristão, mas também é preciso tornar-se cristão.20

A defesa da categoria do indivíduo é motivo de ataque à filosofia especulativa do

sistema hegeliano, pois para Kierkegaard o homem singular não tem existência conceitual; é,

portanto, uma existência que corresponde à realidade singular, corresponde ao indivíduo,

podemos assim dizer: uma filosofia existencial do indivíduo21

. O que importa, para

Kierkegaard, não é encontrar a verdade objetiva, mas a verdade subjetiva, exclusivamente do

indivíduo. “Para Kierkegaard todo o conhecimento autêntico deveria referir-se

necessariamente à existência e, portanto, ser subjetivo. O conhecimento racional, abstrato,

geral é incapaz de descobrir o sentido profundo da verdade. Esta é subjetiva”.22

Assim afirma

o nosso pensador dinamarquês, “a subjetividade é a verdade”; e podemos ir mais além ao seu

pensamento: aprender a verdade é como apropriar-se dela, é ter um interesse infinito por ela.

A verdade deve tornar-se existencial no ato de o indivíduo viver aquilo em que acredita, na

realização dos seus objetivos mais profundos. Qualitativamente23

, a dialética existencial de

20

BLANC, op. cit., 2003, p. 100. 21

“Mediante a categoria do indivíduo, Kierkegaard ataca o sistema hegeliano; descartando o hegelianismo e o

panteísmo, ele consegue pôr a salvo a causa do cristianismo; e dentro do cristianismo o filósofo readquire um

valor absoluto. „O indivíduo é a categoria pela qual devem passar – do ponto de vista religioso – o tempo, a

história, a humanidade [...]. Com esta categoria o „indivíduo‟ quando aqui tudo era sistema sobre sistema. E

agora não se fala mais de sistema [...]. O indivíduo: com esta categoria subsiste ou cai a causa do cristianismo.‟

A existência [...] corresponde à realidade singular, ao indivíduo: „um homem singular não tem certamente uma

existência conceitual‟. A filosofia se interessa pelos conceitos, ela não se preocupa com o existente concreto que

somos eu, ele, tu, em nossa irrepetível singularidade; a filosofia ocupa-se do conceito de homem, do homem em

geral, mas a minha ou a tua existência não é um conceito. E se no mundo animal a espécie é superior ao

indivíduo, no mundo humano – justamente pó causa do cristianismo – o indivíduo é superior à espécie. „A lei da

existência (que por sua vez é graça) que Cristo instituiu para ser homem é: relaciona-te como indivíduo com

Deus‟. A esta categoria Kierkegaard ligava sua importância de pensamento: „o indivíduo é e permanece a âncora

que deve frear a confusão panteísta; é e permanece o peso com o qual podemos reprimi-la‟.” REALE, Giovanni;

Antiseri, Dario. História da filosofia: do romantismo ao empiriocritismo, vol. 5. Tradução de Ivo Storniolo. São

Paulo: Paulus, 2005. p. 229. 22

GIORDANI, Mário Curtis. Iniciação ao existencialismo. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 39. 23

“A dialética em direção ao existencial exige que o indivíduo se aprofunde no autoconhecimento da existência;

é cheia de decisões, de disjuntivos qualitativos. É feita de momentos heterogêneos e de saltos qualitativos, de

conversões. Não há mais mediações e, sim, instantes de ruptura. O existente vai de instante em instante”

(GILES, op. cit., 1989, p.8).

Page 30: A angústia e o desespero humano

30

Kierkegaard não visa qualquer resultado objetivo, ela só pode ser subjetiva e se referir ao

Indivíduo concreto lançado na existência.

Desde que se encontre realizada a perfeita coincidência do pensamento com a

vida, já não há motivo para falar, escrever ou raciocinar. [...] Não há mais

nada senão existir: a verdade é a própria existência, na sua realidade singular

e incomunicável [...] Ou, mais exactamente, é a consciência da existência

coincidindo com essa mesma existência.24

No pensamento de Kierkegaard, o indivíduo é energia viva, ativa, autodeterminante,

que surge a partir de situações concretas de opção, situações enraizadas nos momentos em que

o homem focaliza todas as suas potencialidades numa opção que ressoará por toda sua vida.

Essa opção que torna o simples indivíduo em um indivíduo existencial constitui a tarefa

suprema do ser humano, pois trata de uma missão dirigida a cada homem e é a possibilidade

de todos.

Outra categoria de grande relevância para Kierkegaard é a existência em termo de

possibilidade25

. O existir do homem é possibilidade, ou seja, o que o homem pode fazer e

realizar na experiência concreta e vivida. O possível de Kierkegaard caracteriza o existir do

homem. Assim sendo, a vida do homem é existência, é relação com o mundo e com os outros.

O existir como contingência absoluta, pois o existir não conhece outra necessidade a não ser a

das escolhas exigidas por um existir livre sem determinação. Entendemos, portanto que, para

o homem, existir é encontrar-se sempre confrontando com as possibilidades, como é para

Kierkegaard: “[...] O eu katà dýnamin contém tanto de possível como de necessidade, porque

é ele próprio, mas deve realizá-lo. O eu é necessidade, porque é ele próprio, e possível,

porque deve realizar-se”.26

O indivíduo, para Kierkegaard, não está somente dentro e diante

24

JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Livraria Tavares Martins,

1961. p. 36. v.8. 25

“Com o conceito de indivíduo, o de possibilidade é fundamental no pensamento de Kierkegaard. [...] O

homem é aquilo que escolhe ser, a existência é possibilidade, obriga a escolher, implica risco, gera angústia. „A

possibilidade – lemos no Diário – é a mais importante de todas as categorias. Freqüentemente se ouve dizer na

verdade o contrário, que a possibilidade é tão leve e a realidade, ao contrário, tão pesada. Mas de quem

ouvimos tais discursos? De alguns homens miseráveis, que jamais souberam o que seja a possibilidade. Em

geral a possibilidade da qual se diz que é tão leve compreende-se como possibilidade de felicidade, de fortuna

etc. Mas não é, de fato, a possibilidade; esta é uma invenção falaz que os homens, em sua corrupção,

embelezam, para ter ao menos um pretexto para se lamentar da vida e da Providência, e para ter uma ocasião

de se tornarem importantes aos próprios olhos. Não, na possibilidade tudo é igualmente possível, e quem

realmente foi educado mediante a possibilidade, compreendeu tanto o lado terrível quanto o agradável.‟ Para

Kierkegaard, se alguém sai da escola da possibilidade „não pode pretender absolutamente nada‟ e sabe que o

lado terrível, a perdição, a aniquilação, habita com todo homem de porta em porta; e se tirou proveito da angústia

que daí segue, „dará à realidade outra explicação; exaltará a realidade e também quando esta pesa gravemente

sobre ele, se recordará que ela é muito mais leve do que a possibilidade poderia ser‟.” (REALE, op. cit., 2005,

p. 233) 26

KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 212.

Page 31: A angústia e o desespero humano

31

da existência, está em relação consigo mesmo, como possibilidade de se realizar enquanto tal

na existência. E nessa relação consigo mesmo, ele sente o peso das possibilidades da

existência, percebendo-se assim, diante da infinitude das possibilidades e dos seus próprios

limites.

É peculiar do indivíduo a existência cujo modo de ser é a possibilidade. E na

possibilidade tudo é possível, ela é ameaça do nada, e disso brota a condição fundamental da

existência humana: a angústia, como puro sentimento do possível, isto é, do futuro, daquilo

que pode acontecer e que pode ser muito mais terrível do que a realidade. Pela angústia, o

homem pode chegar ao desespero: a doença mortal – um eterno morrer sem porém morrer, ou

seja, não querer aceitar-se das mãos de Deus. “O desespero e a angústia caracterizam [...] a

existência, pois existir significa sofrer necessariamente desespero e angústia. Aquele resulta

no fracasso, esta vem ligada à possibilidade e à liberdade”.27

Nos temas a seguir, o ápice do nosso trabalho, constataremos que o desespero e a angústia

são questões relevantes que Kierkegaard trata em sua filosofia, justamente por serem

problemas reais do ser humano. Fazem parte da condição do indivíduo e da sua relação com a

própria existência. A analise kierkegaardiana do desespero e da angústia, por meio dos

pseudônimos: Anti-Climaus e Vigilius Haufniensis, talvez possa representar o momento de

maior maturidade filosófica do autor, voltada a categoria do indivíduo. E é a partir deste

direcionamento existencial maduro de Kierkegaard que podemos dizer que a angústia e o

desespero, na qualidade de problemas existenciais, guardam entre si uma relação muito

estreita, em virtude de o desespero ter o espírito como instância única assim como a angústia.

Os dois estão intimamente ligados, na medida em que ambos estão embasados na própria

complexidade da trama da existência pessoal de cada indivíduo.

Analisemos, portanto, no pensamento kierkegaardiano, como o desespero e a angústia

caracterizam finalmente o existente.

27

GIORDANI, op. cit., 1997, p. 39.

Page 32: A angústia e o desespero humano

32

3.3 O CONCEITO DE ANGÚSTIA28

Kierkegaard, no seu conceito de angústia, descreve, em sentido amplo, a atitude do

homem que compreende a sua situação no mundo. “Eis o mistério profundo da inocência: ao

mesmo tempo é angústia. Sonhador, o espírito projeta a sua própria realidade que é um nada,

e a inocência vê continuamente diante de si este nada”. O autor do Conceito de angústia,

publicado pela primeira vez em 1844 e dedicada ao professor Paul Martin Moller,29

sob o

pseudônimo de Vigilius Haufniensis30

(O vigilante de Copenhague), apresentou sua obra

como um “simples esclarecimento psicológico preliminar ao problema dogmático do pecado

original”.31

Esclarecimento psicológico e não filosófico; esclarecimento este que

aprofundaremos, buscando uma maior compreensão deste estado na existência humana.

3.3.1 A pedagogia da angústia

Para Kierkegaard, a angústia é um estado que manifesta a relação do indivíduo com o

mundo, uma relação determinada pela liberdade. E sendo uma obra com o simples

esclarecimento psicológico, se tratará quase que brevemente do pecado, pois a angústia está

no fundamento do pecado original como a queda do homem em Genesis dá um exemplo dela.

Com o primeiro pecado, o pecado entrou no mundo. O mesmo é dizer que,

com o primeiro pecado de qualquer homem posterior a Adão, o pecado entra

no mundo. Porém, dizer que não havia pecado antes da queda de Adão, é uma

afirmação não só completamente fortuita e irrelevante no que toca ao pecado

em si, como desprovida de sentido e de direito de tornar maior o pecado de

Adão e menor o primeiro pecado de qualquer outro homem. 32

A angústia em Kierkegaard precede o pecado e está ligada à possibilidade e à

liberdade. Ela caracteriza a existência e serve para revelar ao existente o seu ser. Desde que o

que é dado não é o eu, mas somente a possibilidade do eu, colocando-se diante do nada e

28

A angústia – do latim angere, apertar, estrangular – é um sentimento que ao contrário do medo não tem objeto

preciso. 29

Poeta, teólogo e filósofo diamarques (1794-1838), considerado como precursor de Kierkegaard. 30

Um dos habituais pseudônimos latinos de Kierkegaard. 31

KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Tradução de João Lopes Alves. 2. ed. Editorial Presença,

[s.d.]. p. 7. 32

Ibid, [s.d.], p. 47

Page 33: A angústia e o desespero humano

33

como que debruçado sobre o vácuo. É vertigem diante do que não é, mas poderá ser pelo uso

de uma liberdade que não se experimentou e que não se conhece. Como uma espécie de

antipatia simpática ou de simpatia antipática33

, a angústia é desejo do que se teme, temor do

que se deseja. E é nesta mistura de coisas opostas, podendo dizer também uma fascinação que

tem lugar o primeiro pecado – conforme o relato do encantamento da serpente do livro do

Genesis. A angústia foi responsável pela queda do primeiro homem, Adão. No Éden ele vivia

num estado de inocência mesclado com ignorância. Essa ignorância determinou sua queda. A

angústia, portanto foi responsável por sua queda por estabelecer uma relação entre a inocência

de Adão, a coisa proibida e o castigo. Para Kierkegaard, a queda é um ato de liberdade.

Comer o fruto, a escolha provocada pela própria angústia. O ato de pecar é, então, visto como

natural por ser conseqüência da própria angústia, que representa o mais alto grau de egoísmo,

pois nesse estado o indivíduo não desvia o olhar dele próprio e, assim, perde de vista Deus. O

pecado, aqui, é considerado como estar apartado de Deus. O pecado é uma decisão que,

mesmo tomada em liberdade, acabou por amarrá-la e, para ele, é nesse local da liberdade que

o indivíduo pode reencontrar a si mesmo. O ser humano transformou sua liberdade em

escravidão.

A angústia é a vertigem da liberdade e dessa vertigem vem a queda; ela é definida a

partir de então como a experiência vivida da possibilidade. A angústia não faz sinal a uma

liberdade abstrata que se identifica ao livre-arbítrio, e sim a uma liberdade concreta e finita:

Pode comparar-se a angústia à vertigem. Quando o olhar mergulha num

abismo, há uma vertigem, que tanto nos vem do olhar como do abismo, pois

que nos seria impossível deixar de o encarar. Tal é a angústia, vertigem da

liberdade, que nasce quando, ao querer o espírito instituir a síntese, a

liberdade mergulha o olhar no abismo das suas possibilidades e se agarra à

finitude para não cair. Nesta vertigem a liberdade soçobra. Eis até onde chega

a Psicologia, recusando-se a ir mais além. No mesmo instante, porém tudo

mudou, e quando a liberdade se soergue, descobre-se culpada. É entre estes

dois instantes que dá o salto, inexplicado e inexplicável por qualquer das

ciências. Para o homem que devém culpado na angústia, a culpabilidade é o

mais ambígua possível. A angústia corresponde a um delíquio feminil em que

a liberdade desmaia e, psicologicamente, não houve queda senão em estado

de inconsciência; mas, ao mesmo tempo, a angústia é a coisa mais

crispadamente pessoal e nenhuma manifestação concreta da liberdade se

revela tão ciumenta do Eu como é possibilidade de qualquer concreção.

Reencontramos ainda aqui aquele acabrunhamento que determina a

ambigüidade do indivíduo, o seu estado se simpatia e antipatia. Não que, na

angústia, a infinitude egoísta do possível nos tente como quando somos

postos perante uma escolha; no entanto, enfeitiça-nos, inquieta-nos com a sua

doce ansiedade.34

33

Cf. KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d], p. 64. 34

KIERKEGAARD, op. cit., [s.d.], p. 93/4.

Page 34: A angústia e o desespero humano

34

Para Kierkegaard, a liberdade vertiginosa não pode ser estabelecida como especulativa

porque o discurso filosófico produz conceitos; portanto, para falar de liberdade devemos

abandonar o terreno da lógica e partir para a psicologia, pois a esta não cabe dar definições e

sim descrever estados. É por isso que Kierkegaard escreveu no início de seu tratado que era

simples esclarecimento psicológico e não filosófico; a angústia como um estado que pode

explicar a liberdade como vertigem. A angústia tem por origem a liberdade, entrave pela

própria liberdade, a liberdade cativa de si própria. Segue então que angústia é essencialmente

dialética, pois é possibilidade de algo que é e não é, que atrai e que repugna. Analisando a

forma dialética da angústia em Kierkegaard, perceberemos a ambigüidade psicológica como

elemento predominente.

Em sua obra, Kierkegaard também identifica dois tipos de angústia: a angústia

objetiva e a angústia subjetiva. Por angústia objetiva ele compreende o reflexo da

pecabilidade da geração no mundo inteiro, ou seja, é a angústia pela qual o pecado entrou no

mundo; é a angústia onde o homem, pelo fato da própria existência, é colocado diante de sua

liberdade, da possibilidade de poder. Neste sentido, para o nosso filósofo, Adão estabeleceu o

pecado não apenas em si mesmo, mas como para toda a humanidade. Portanto, a entrada do

pecado no mundo teve importância para toda a criação: “Temos todo o direito de chamar a

esta angústia da criação, angústia objectiva. É um produto, não das criaturas, mas daquela

mudança de iluminação que estas sofreram quando o pecado de Adão degradou a

sensualidade em pecabilidade [...]”35

. E a angústia subjetiva, é para Kierkegaard, a do homem

que experimenta pessoalmente a vertigem da liberdade por meio de seus atos e de seus

pecados; seria no indivíduo como conseqüência de seu pecado.

O emprego da expressão angústia objectiva induzirá [...] a pensar nessa

angústia da inocência que é mero reflexo interior da liberdade como possível.

[...] Mais pertinente seria lembrar que, ao falar de angústia objectiva para

distinguir da angústia subjectiva, se pratica uma diferenciação inadmissível

no que concerne ao estado de inocência de Adão. [...] A angústia subjectiva

[...] seria a que instaura no indivíduo em conseqüência do pecado. [...]

equivale aqui à angústia que existe na inocência do indivíduo, correspondente

à de Adão, mas que devido à determinação quantitativa de cada geração,

difere dessa em quantidade; por angústia objectiva, entendemos, pelo

contrário, o reflexo da pecabilidade da geração no mundo inteiro.36

E nesta experiência da angústia subjetiva, o indivíduo pode superá-la quando a

Salvação é tida como uma realidade, e isto será possível pela fé no Deus que tudo é possível:

35

Cf. KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 89. 36

KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 86/7.

Page 35: A angústia e o desespero humano

35

“A angústia é o possível da liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem, no sentido

absoluto da palavra, devorando todas as finitudes, pondo a descoberto todas as ilusões”37

. O

homem vê entre ele e o mundo um vácuo que o faz perder todo sentimento de segurança. Só

na mediada em que for capaz de sofrer a prova desse abandono e dar o salto pela fé será

existencialmente livre. A angústia é o lugar onde o si mesmo começa a advir, experiência cuja

tonalidade afetiva é absolutamente única, pois ela não tem objeto e não é de forma alguma

intencional. Nela o espírito sempre é tentado, o pecado o fascina.

Podemos entender que, a angústia kierkegaardiana, é a expressão de uma perfeição da

natureza humana, pois é só através dela que o homem poderá elevar-se à existência autêntica.

Ela aniquila no homem todas as seguranças habituais para o entregar ao abandono de onde

unicamente pode surgir a autêntica existência. Assim, percebemos mais claramente que, a

angústia é a vertigem da própria liberdade. “O homem formado pela angústia é formado pela

possibilidade e só aquele que a possibilidade forma está formado na sua infinitude. Por isso, a

possibilidade é a mais árdua das categorias”38

. Com a originalidade do pensamento de

Kierkegaard sobre o Conceito de angústia podemos dizer que a angústia é a condição

fundamental do homem diante do mundo, do possível que é fruto de sua liberdade.

O homem experimenta angústia diante da liberdade carregada com o peso esmagador

que é sua tarefa autêntica, a de ser humano, a saber, sintetizar as diferentes formas do seu ser

próprio. Ela é a possibilidade da liberdade, e é preciso ser educado por ela para ser livre

mediante a infinitude que lhe é própria. A angústia se vence somente com a fé. Ela é uma

aventura que todo homem deve correr se não quer perder-se. Somente em virtude da fé ela

possui um valor educativo. A angústia vem do fato de que Deus deixa o homem livre, à sua

imagem, para operar, por seus atos concretos, as escolhas em que se projeta a fim de

construir-se, de edificar-se.

3.4 O DESESPERO HUMANO39

Como vimos, anteriormente, que a angústia é a condição na qual o homem é colocado

pelo possível no que se refere de sua relação com o mundo, agora veremos, portanto, que o

37

KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 232. 38

Id. 39

O Desespero Humano é uma das obras de Soren Kierkegaard considerada mais importante. Ela foi escrita pelo

filósofo em 1849 sob o pseudônimo Anti-Climacus.

Page 36: A angústia e o desespero humano

36

desespero é inerente à relação do eu40

consigo mesmo e à possibilidade dessa relação.

“Doença do espírito, do eu, o desespero pode como tal tomar três figuras: o desespero

inconsciente de ter um eu (o que é verdadeiro desespero); o desespero que não quer, e o

desespero que quer ser ele próprio”.41

O eu é formado da síntese do finito e do infinito, mas

essa síntese é uma relação que, apesar de derivada, se relaciona consigo própria, o que

fundamenta a liberdade.

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O

eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si,

mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele

consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é

a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que

ela tem de si própria depois de estabelecida. O homem é uma síntese de

infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é,

em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos.42

O desespero pertence ao eu, consiste no viver da morte pelo eu. É inerente à

personalidade do homem, à relação consigo próprio e à possibilidade desta relação. O

indivíduo pode saber que está no desespero sem saber a causa de tal situação. Mas se houver

uma clareza completa, isto é, se o indivíduo tiver plena consciência da motivação total, então

o desespero desaparecerá na medida em que se torna consciente de tal realidade. Eis a questão

que iremos refletir acerca do desespero humano, a doença mortal.

40

Para compreendermos melhor a idéia do desespero devemos levar em consideração a teoria kierkegaardiana do

eu; “O conceito do „eu‟ é o conceito fundamental do romantismo. Tem um papel de primeiro plano nas filosofias

de Fichte e de Schelling, e ocupa, ao mesmo tempo, um lugar especial dentro do pensamento hegeliano. [...] Em

Kant o eu não é apenas objeto de percepção, mas também sujeito do pensamento. [...] o eu ou o „Eu penso‟ é o

que confere a unidade à diversidade do pensamento, o que acompanha todas as representações (Crítica da razão

pura). O eu é [...] consciência de si, ou seja, consciência de seu papel de acompanhante de todas as suas

representações. [...] Fichte desenvolveu uma teoria do eu absoluto, isto é, de uma eu que utiliza tanto seu poder

de união [...] que se torna o criador de toda a realidade (Doutrina da ciência, 1794). O eu torna-se entre os

românticos uma consciência de si infinita e absoluta, um „algo‟ que encontra em si mesmo, uma subjetividade

desenfreada – em Kierkegaard também a subjetividade ocupa o primeiro lugar, mas possui um limite: Deus [...]

Hegel, ao contrário, em seu sistema minimiza o eu e dele faz a simples certeza de si (Ciência da lógica). O que

procura é um saber para o qual a distinção entre o eu e o não-eu, entre a subjetividade e a objetividade,

desapareça sob a união, um saber absoluto. [...] é precisamente a essa unidade da consciência que Kierkegaard se

opõe. Ao eu como unidade, opõe o eu como relação. O que é unido é estável, o que está em relação, ao

contrário, é estável, variável, frágil. Assim, o eu como relação reconhece que é, antes de mais nada, uma

formação instável, sujeita à angústia, à indecisão, à doença, à morte [...] A volta sobre essa relação, a ligação da

relação consigo mesmo, constitui o eu” (BLANC, op. cit.,2003, p. 84/5). 41

KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 195. 42

Ibid., p. 195.

Page 37: A angústia e o desespero humano

37

3.4.1 Doença para a morte

Kierkegaard diz que o desespero é a “doença até a morte”; no entanto, podemos

perguntar: mas qual o sentido desta expressão doença para a morte? Assim ele define:

Esta idéia de „doença mortal‟ deve ser tomada num sentido particular. A letra

significa um mal cujo termo é a morte, e serve então de sinônimo duma

doença da qual se morre. Mas não é nesse sentido que se pode designar assim

o desespero; porque, para o cristão, a própria morte é uma passagem para a

vida. Desse modo, a nenhum mal físico ele considera „doença mortal‟. A

morte põe termo às doenças, mas só por si não constitui um termo. Mas uma

„doença mortal‟ no sentido estrito que dizer uma mal que termina pela morte,

sem que após subsista qualquer coisa. E é isso o desespero.43

Ele não entende como um mal cuja saída é a morte. Para ele, portanto, o desesperado é

um enfermo que sofre de uma doença até a morte, mas de uma doença da qual não pode

morrer, o mal não morre. O desespero é uma doença até a morte porque o desesperado deseja

a morte do eu, uma modificação, transformação da relação do eu com ele mesmo; é o viver a

morte do eu. Do ponto de vista cristão, a vida não é fim, mas passagem à vida eterna, e assim

sendo não pode haver doença mortal para o cristão. Para Kierkegaard, o desespero é a culpa

do homem que não sabe aceitar a si mesmo em sua profundidade: é um eterno morrer sem, no

entanto morrer, uma autodestruição impotente. Essa destruição de si próprio, o desespero, é

impotente e não consegue os seus fins. A sua vontade é destruir-se, porém é exatamente isso

que ela não consegue fazer. A própria impotência é uma segunda forma de destruição, na qual

o desespero erra o seu alvo, que seria a destruição do eu. É a tentativa impossível para negar a

possibilidade do eu ou de tornar o eu auto-suficiente. Essa doença manifesta dois sintomas

particulares: o desespero em si, querer ser o eu que não se é na verdade ou desfazer de si; e o

querer ser si mesmo a qualquer preço, o que significa ainda querer ser o que não se é

verdadeiramente.

Daí provém que haja duas formas do verdadeiro desespero. Se o nosso eu

tivesse sido estabelecido por ele próprio, uma só existiria: não querermos ser

nós próprios, querermo-nos desembaraçar do nosso eu, e não poderia existir

outra: a vontade desesperada de sermos nós próprios.44

43

KIERKEGAARD, op, cit., 1979, p. 199. 44

Ibid., p. 195.

Page 38: A angústia e o desespero humano

38

Em Kierkegaard “o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de

eterno, de liberdade e de necessidade, uma síntese, relação de dois termos”. A partir desta

relação temos, então, dois tipos de desespero: um é a recusa de reconhecer o infinito em si,

recusa de assumir a responsabilidade pela sua vida interior por causa das exigências que ela

coloca; o outro advém da síntese de necessidade e de liberdade, pois esta provém de uma

carência de liberdade ou de necessidade, e a falta de uma destas é a fuga do eu para uma

infinidade de possibilidades que jamais esgotam. Uma vez que o indivíduo é a síntese entre a

finitude e a infinitude, o desespero surge quando um desses fatores assume o predomínio

sobre o outro.

O homem em desespero tem o costume de se considerar vítima de circunstâncias

externas, mas quando reconhece que o problema é interior a reação é de curar-se de si mesmo.

Eis o ponto de sua grandeza e de sua miséria, pois o desespero tem como raiz, no homem, o

eterno. Bem longe de não serem desesperados todos aqueles que não sentem o desespero, ou

que supõem só o serem aqueles que o confessam, muito ao contrário, o homem que afirma

com coragem o seu desespero não está tão longe da cura, está mais próximo do que todos

aqueles que não são considerados ou não se julgam desesperados. Desesperar de uma coisa

não é ainda o verdadeiro desespero, é apenas o início dele. Declara-se o desespero real quando

o indivíduo desespera de si próprio. Desesperar de si próprio, ou querer desesperadamente

libertar-se de si próprio é a fórmula de todo o desespero. Para Kierkegaard, quem desespera

quer no seu desespero ser ele próprio45

. Entretanto, o homem deseja sempre libertar-se do seu

eu, do eu que é para se tornar um eu da sua própria invenção. O eu é formado da síntese do

infinito e do finito, mas essa síntese é uma relação que se relaciona consigo próprio, o que

fundamenta a liberdade. Nesse sentido o eu é liberdade, porém a liberdade que é a dialética

das duas categorias do possível e do necessário. É neste sentido que Kierkegaard fala da

doença personificada do desespero.

[...] Quem desespera quer, no seu desespero, ser ele próprio. Mas então, é

porque não pretende desembaraçar-se do seu eu? Aparentemente, não; mas se

virmos as coisas mais de perto, encontramos sempre a mesma contradição.

Este eu, que o desesperado quer ver, é um eu que ele não é (pois querer ser o

eu que se é verdadeiramente é o contrario do desesperado), o que ele quer,

com efeito, é separar o seu eu do seu Autor. [...] Entretanto o homem deseja

sempre libertar-se do seu eu, do eu que é, para se tornar um eu da sua própria

invenção. Ser este „eu‟ que ele quer faria a sua delícia [...] mas o

constrangimento de ser este eu que não quer ser, é o seu suplício: não pode

libertar-se de si próprio.46

45

Cf. KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 200. 46

Ibid., p. 201.

Page 39: A angústia e o desespero humano

39

O eu que não se torna ele próprio permanece desesperado; enquanto não consegue

tornar-se ele próprio, o eu não é ele próprio, portanto não ser ele próprio é o próprio

desespero. Podemos nos perguntar, diante destas considerações de desespero: o que o

desespero nos ensina? Podemos, então, chegar a conclusão que, o eu que quer se tornar ele

mesmo não consegue – por causa de sua natureza finita – e que aquele que não quer ser ele

mesmo sofre um fracasso. O desespero ensina que é impossível vencer o desespero, que ele é

de fato a doença até a morte do eu. Mas a impossibilidade de vencer o desespero só é uma

impossibilidade para aquele que não acredita em Deus, para aquele que não tem fé – se a

Salvação é impossível para o homem, a Deus tudo continua sendo possível. Assim o único

remédio para o desespero é a fé, porque ter fé é acreditar que para Deus tudo é possível.

Porém, antes de Kierkegaard falar da fé, a qual aprofundaremos mais adiante, como

antídoto da doença até a morte, ele fala do pecado. A essência do pecado para o nosso autor é

o desespero, ou seja, o pecado consiste no desespero pelo fato de se desesperar por não se ter

fé. O pecado é a fraqueza elevada à suprema potência. O indivíduo peca quando perante Deus,

desesperado não quer ou quer ser si próprio.

Pecamos quando, perante Deus ou com a idéia de Deus, desesperados, não

queremos, ou queremos ser nós próprios. O pecado é deste modo fraqueza ou

desafio elevados à suprema potência; é portanto, condensação do desespero.

O acento recai aqui sobre estar perante Deus ou ter a idéia de Deus; o que faz

do pecado aquilo que os juristas chamam „desespero qualificado‟; a sua

natureza dialética, ética, religiosa, é a idéia de Deus.47

O pecado é ignorância no sentido da própria natureza, portanto, o pecado consiste

perante Deus, no desespero por não querermos ser nós mesmos ou no desespero por o

querermos. Ora, tendo em vista a dependência ontológica que caracteriza o eu humano, o eu

não pode por si mesmo alcançar o equilíbrio e o repouso e ai permanecer, mas pode

unicamente relacionando-se consigo mesmo, relacionar-se com o que aquele que estabeleceu

toda relação, que é Deus. Acrescenta-se ainda que, seja qual for a escolha feita, o homem não

escapa a uma fase de desespero. Kierkegaard qualifica como desespero até as vidas mais

tranqüilas, inconscientes de suas próprias misérias, o que ele chama de “não-vida”. A solução

acessível a este ser, que por essência o homem, é a fé paradoxal. É o relacionamento de toda a

relação com a força que a formou: Deus, pois é nesta relação que se faz a junção do

incondicional e da condição.

47

KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p. 239.

Page 40: A angústia e o desespero humano

40

4 A FÉ E A LIBERDADE

Como já observamos, a existência é o modo de ser do indivíduo, como é também o

reino da liberdade: o homem é o que escolhe ser, é aquilo que se torna. Segundo Kierkegaard,

é exatamente a vida de fé que constitui a forma verdadeiramente autêntica da existência finita,

vista como o encontro do indivíduo com a singularidade de Deus. “A angústia é o possível da

liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o homem, no sentido absoluto da palavra”. O

coração do drama humano está na relação da existência com uma transcendência que constitui

sua abertura a um além de si mesmo; a existência, portanto, significa poder de decisão,

possibilidade de ser e de nada, como dúvida e como fé, uma ação interior da liberdade que

leva a fazer opções decisivas. A fé é um dos temas preferidos de Kierkegaard. Contra o

pensamento e a praxe da Igreja oficial pela sua conveniência e dependência em relação ao

Estado dinamarquês sem implicações pessoais, ele sustenta com extraordinário vigor e

convicção a tese da subjetividade da fé.

Com estes meus olhos vi coisas terríveis e nunca recuei apavorado, mas sei

muito bem que, embora as afrontasse sem medo, não se segue daí que a

minha coragem me não venha da fé, nem com ela se pareça em nada. Não

posso realizar o movimento da fé, não posso cerrar os olhos e lançar-me de

cabeça, pleno de confiança, no absurdo [...] Não importuno Deus com

mesquinhas inquietações; não me preocupa o detalhe, fixo os olhos

unicamente no meu amor, cuja chama, clara e virginal, guardo dentro de

mim; confia a fé em que Deus cuida das mínimas coisas. Sinto-me contente

de estar casado nesta vida pela mão esquerda; a fé é demasiado humilde para

solicitar a direita; que o faça em plena humildade, não o nego, jamais o

negarei.48

A experiência religiosa não pode ser autêntica e verdadeira se for objetiva e desligada.

Para ser verdadeira, ela deve empenhar o sujeito, isto é, tornar-se subjetiva. A subjetividade

não significa somente adesão pessoal a uma verdade, mas também ausência de elementos

objetivos de controle para estabelecer a verdade. E por causa destas duas características o

conhecimento subjetivo é um risco. O risco é um elemento inseparável da verdadeira

experiência religiosa, da fé. A fé é um risco porque requer a adesão pessoal a afirmações que

não apresentam nenhuma garantia. A fé é um risco porque o seu objeto é o paradoxo, uma

verdade que ultrapassa os esquemas da razão humana. “Verdade, compromisso e risco estão,

48

KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 127/8.

Page 41: A angústia e o desespero humano

41

de fato, necessariamente ligados. Não pode haver verdade para mim desde que eu não me

disponha a tomar um compromisso e a arriscar tudo. Recusar o risco é recusar a verdade”.49

4.1 A FÉ COMO REMÉDIO – O SALTO PARA LIBERDADE

O salto opõe-se ao conceito hegeliano de passagem A passagem de uma esfera da

existência à outra não se faz por evolução, mas por salto. No salto para a fé, a angústia

desempenha papel importante. Esta não possui somente o aspecto negativo de colocar a

totalidade do ser, a própria existência diante do nada, mas injeta positivamente levando o

homem ao salto desesperado para a fé.

[...] A dialética da fé é a mais sutil e notável de todas; tem uma sublimidade

de que posso ter uma idéia, mas não mais que isso. Posso muito bem executar

o salto de trampolim no infinito; tal como o dançarino de corda, a espinha

torceu-se-me na infância; também saltar me é fácil: um, dois e três! Lanço-

me de cabeça na vida, mas já para o salto seguinte estou incapacitado;

permaneço interdito em face do prodígio, não o consigo realizar [...]50

Para Kierkegaard, o caminho que leva o cristão defrontar-se sozinho com Deus e

realizar, assim a plenitude individual está nas etapas da existência. Por estas etapas ele

entende: os estádios51

estético, ético e religioso. No estádio estético, o homem vive fora de si;

no estádio ético começa a entrar em si; e no estádio religioso, volta-se completamente para si

encontrando-se nas mãos de Deus. E é neste estádio, ao aprofundar em si mesmo que o

homem faz experiência com o Absoluto. A categoria central da esfera religiosa é estar diante

de Deus. Ele domina a existência humana. Surge assim, um diálogo misterioso entre Deus e o

homem. A chamada de Deus se realiza em cada instante e é uma expressão fundamental pela

qual Ele chama continuamente o homem à existência na criação. O homem deve corresponder

continuamente a essa chamada, pois só assim existe autenticamente vivendo com sua

individualidade sozinho com Deus. Pela fé o homem se abre totalmente a Deus e se coloca

integralmente em suas mãos. A angústia de fundir-se no nada sucede a segurança de estar

49

JOLIVET, op. cit.,1961, p. 47. 50

KIERKEGAARD, op. cit.,1979, p. 129. 51

As palavras estádio ou etapas da existência não devem sugerir uma sucessão cronológica no sentido em que

cada indivíduo deva passar sucessivamente pelas etapas abandonando um, após a outra, como se abandonam os

degraus de uma escada. Esses três estádios coexistem e podemos refletir ao mesmo tempo sobre os mesmos,

porém não podemos é vive-los simultaneamente, pois que esses diferentes modos de existir se excluem entre si.

(Cf. GIORDANI, op. cit.,1997, p. 41)

Page 42: A angústia e o desespero humano

42

sustentado pelo próprio Deus; e ao peso opressivo do pecado a confiança certa do perdão.

Deste modo o homem que, para Kierkegaard aparentemente havia perdido tudo pela angústia,

ganhou tudo pela fé; havia perdido o finito e ganhou o Infinito.

Uma das grandes certezas kierkegaardiana é que a fé é remédio para o desespero, o

que leva o indivíduo além da razão e de toda possibilidade de compreensão, porque a fé é

absurdo, paradoxo, escândalo. O indivíduo tem o dever de assumir uma posição na existência,

uma posição diante de Deus, tem o dever de perder sua razão para conquistar Deus que é o ato

de crer. Para Kierkegaard a fé é ao mesmo tempo reviravolta da existência; e como a

existência se caracteriza pela precariedade absoluta ligada à possibilidade, a fé instaura entre

o eu e o mundo, entre o eu e ele mesmo, uma relação de estabilidade que apaga a angústia e

desespero apenas pelo princípio de que para Deus tudo é possível

Através do salto qualitativo, o pecado entrou no mundo e é por esta via que

não cessa de continuar a entrar. A partir do salto, a angústia deveria, parece

ser abolida, uma vez que a definimos como a aparição da liberdade a si

própria na esfera do possível. Posto que o salto qualitativo é bem real, o

possível e a angústia deveriam portanto desaparecer. Mas não é assim. Com

efeito, por outro lado, a realidade não se reduz a um momento único e, por

outro, a realidade que foi instituída é uma realidade abusiva. Logo, a angústia

reaparece em relação ao real já instituído a ao porvir. [...] A liberdade é

infinita e nasce do nada. Pretender que o homem peca necessariamente, é

transformar o círculo do salto em linha recta.52

É de suma importância o desespero em Kierkegaard. Ele mostra que o desespero torna

possível a fundação da verdade existencial que está no princípio da busca de uma verdade que

é verdade para mim que conduz a fé. Assim, sob seu ponto de vista, a angústia se move no

sentido da perfeição, o desespero no sentido da libertação. A angústia instala o homem diante

de si mesmo. “Não ser, eis a desespero! O homem experimenta angústia diante da liberdade

carregada com o peso esmagador que é sua tarefa autêntica, a de ser humano [...] porque, se a

angústia é angústia diante do salto da liberdade para a liberdade, a liberdade é essência do

espírito.”53

A fé, complemento da finitude humana, é que pode restabelecer o equilíbrio entre

a infinitude do possível e a finitude humana amenizando de imediato a angústia, o desespero,

os temores e os tremores da existência. No fundo da solidão, onde não se ouve qualquer voz

humana, só a angústia é uma certeza. A angústia da incerteza torna-se a única certeza

possível, a fé está nessa certeza angustiada, a angústia certa dela mesma e da relação com

Deus. 52

KIERKEGAARD, op. cit.,[s.d.], p. 167. 53

FARANGO, France. Compreender Kierkegaard. Tradução de Ephraim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 2006.

p.95.

Page 43: A angústia e o desespero humano

43

Vale, portanto, frisar que o salto que leva ao estádio religioso leva o indivíduo a

reconhecer que só poderá conseguir auto-realizar-se relacionando com o Absoluto. É o fato da

fé ser conseguida após o salto no escuro. Portanto, Kierkegaard nos assegura que a fé nunca

será uma posição conquistada de uma vez para sempre. Aquele que faz o salto para alcançar o

estádio religioso enfrentará um combate constante, pois a fé representa uma conquista

constante sobre a dúvida. A fé salva o homem do possível como também o salva da

necessidade à qual os sistemas de todos os gêneros querem fixá-lo. Ela tem por

particularidade dispensar todas as formas de mediação universal, pois é o próprio indivíduo

que deve sustentar um relacionamento absoluto com o Absoluto.

Passar pela porta que se abre para a transcendência do Absoluto faz-nos penetrar no

eterno. Provoca o desprendimento e o salto, graças aos quais o homem ultrapassa os seus

limites, enche-se da sua verdade e existe verdadeiramente e plenamente.

[...] o contrário de pecado é a fé; como o diz a Epístola aos romanos 14,23:

tudo o que não provém da fé é pecado. E uma das definições capitais do

cristianismo é que o contrário de pecado não é a virtude, mas sim a fé.54

4.2 A EXISTÊNCIA HUMANA E A SUA RELAÇÃO COM O ABSOLUTO

As obras de Kierkegaard não escondem seu pensamento que é essencialmente

religioso. Embasa na defesa da existência do indivíduo; existência que só se torna autêntica

diante da transcendência de Deus. Ele delineia o indivíduo e Deus, e a relação do indivíduo

com Deus, algo como o caminho cristão para o Absoluto. Trata-se aqui do Absoluto e do

eterno no temporal.

Para Kierkegaard a verdadeira religião constitui um escândalo para a razão, pois na fé

reina a subjetividade pura e tudo é paradoxal. Na fé o instante decide sobre a eternidade; o

Eterno encarna no tempo. Deus salva o homem, encarnando-se. A existência cristã é ao

mesmo tempo eleição e expectativa, risco e ganho, vida e morte, dissipação e recolhimento. O

homem que opta pela fé, pela relação absoluta com o absoluto, responde à ordem divina

correndo risco de entrar em ruptura com os outros homens e com a moral. A relação da

subjetividade com o Absoluto, estimulada primeiramente pelo arrependimento e alimentada

pela fé, é, portanto uma relação individual, privada, que não permite agrupar-se mesmo com

54

KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 243.

Page 44: A angústia e o desespero humano

44

aqueles que a estabeleceram por sua própria conta, uma ruptura com o mundo que impede

qualquer síntese. A condição do crente não é uma condição de bem-estar e felicidade e sim

uma condição de incerteza, de temor e de tremor, condição terrível incrementada ainda mais

pelo isolamento e pela contradição que existe doravante entre ele e o mundo.

O paradoxo da condição humana, caracterizada pela sede absoluta de verdade e pelo

pecado, inerente a nossa natureza, é um escândalo em si, escândalo do qual o cristianismo

pretende ser a expressão: Cristo sofre e morre como homem, mas fala como Deus. O

escândalo realiza-se igualmente na situação do homem que pede a Deus para enviar-lhe a fé,

enquanto esta prece é ela própria um dom de Deus. O cristianismo é este escândalo e sem ele

o cristianismo não poderia ser objeto de fé. Segundo Kierkegaard para o cristianismo

institucionalizado a fé já não tem importância, só conta a moral.

E então o cristianismo! A lição que ele dá é que esse indivíduo, como

qualquer indivíduo, seja ele flor, marido, mulher, criada, ministro,

negociante, barbeiro, etc..., é que esse indivíduo existe o perante Deus – esse

indivíduo que porventura se orgulharia de ter uma vez em toda a sua vida

falado ao rei, esse mesmo homem, que seria alguém pelo seu comércio

amistoso com este ou aquele, esse homem está perante Deus, pode falar com

deus quando quiser, com a certeza de ser escutado, e é ele que propõem viver

na intimidade de Deus! Mais ainda: foi por esse homem, por ele também que

deus veio ao mundo, se deixou encarnar, sofreu e morreu; e é esse Deus de

sofrimento que lhe roga e quase suplica que aceite o socorro, que um

oferecimento [...]55

O indivíduo é consciente de sua finitude, ele sabe que vive na não verdade e que Deus,

o Absoluto, é absolutamente transcendente. Aqui vemos a diferença entre a dialética de Hegel

e a dialética existencial de Kierkegaard. Hegel não concebia o Absoluto completamente

separado do indivíduo, mas como o que coincide com ele no final do processo dialético. Para

ele, o Absoluto é o que une. Em Kierkegaard o Absoluto é o que separa. O indivíduo sempre

nasce em um estado de precariedade, fruto da consciência de sua finitude e de sua fraqueza. A

dialética existencial coloca os opostos em relação e a partir desta exprime a situação de

„tensão‟, pela relação do indivíduo com o mundo e com Deus. Vemos, portanto o sentido do

salto sob a luz de uma existência que é toda tensão em direção ao Absoluto.

Ao abandonar a subjetividade, desaprendemos como relacionar-nos com o mistério

que nos funda, perdemos o sentido da existência e acreditamos que somos livres. Na tensão

entre finitude e infinitude, a existência para Kierkegaard é uma ação interior de nossa

liberdade: agonia de saber-nos livres e independentes em nossa criação de nós mesmos, ao

55

KIERKEGAARD, op. cit., 1979, p. 245.

Page 45: A angústia e o desespero humano

45

mesmo tempo que reconhecemos a dependência ontológica de um Criador. Tememos a nossa

liberdade e trememos diante da possibilidade cuja expressão é angústia. É uma liberdade que

não é um conceito abstrato, é uma categoria existencial dinâmica. Não há algo que determina

o eu, pois ele se determina, ele se escolhe e o faz livremente. Ou, pelo menos, deveria ser

assim, pois, para Kierkegaard, existir é agir no instante, com a liberdade que é guiada pela fé,

uma liberdade comprometida com a presença de Deus. No oposto, teremos a realidade que se

torna uma escravidão.

Assim sendo, se o instante for privado da significação do eterno, a vida perde o

sentido. Em Kierkegaard o ser humano se relaciona com um Deus que o transcende. Sem

Deus, a vida perde toda a sua significação, toda a busca é desprovida de sentido. Tal

percepção revela o paradoxo existencial em que trabalha o autor: a existência é e será sempre

falta, desejamos sempre uma plenitude, ao mesmo tempo que estamos imersos em uma

incerteza infinita. Só a experiência angustiante do infinito pode apontar para o

reconhecimento da falta. A presença da angústia, mesmo no mundo separado de Deus, torna-

se um sinal de que o humano é mais do que aquilo que ele se propõe a ser e desejar na não-

verdade. É esta inquietude que nos lembra de nossa origem divina, é ela que revela a nostalgia

de algo. “A angústia é o possível da liberdade e só essa angústia forma, pela fé, o ser humano,

no sentido absoluto da palavra, devorando todas as finitudes, pondo a descoberto todas as

ilusões.” Quando o ser humano é formado pela angústia, ele é formado pela possibilidade e só

assim é formado na infinitude.

A categoria do indivíduo, fundamental no pensamento de Kierkegaard, é uma

categoria cristã, na qual o indivíduo se relaciona com Deus, defrontando-se sozinho com ele.

No seu pensamento religioso, há uma inversão em como se apresenta o cristianismo. Aparece

em primeiro plano Deus, mas o homem necessita encontrar a salvação pela fé em Cristo, que

é paradoxo e escândalo. Pela fé o homem se mortifica e faz triunfar em si o cristão, sendo essa

a única possibilidade de salvação. Para Kierkeaard a fé se constitui como um escândalo para a

razão. Para ele, crer é como amar. Quando o homem crê em Deus e nota a infinita diferença

que separa a natureza divina da sua, prostra-se diante dele. Quem crê e se abandona a Deus

deve renunciar a tudo, e esta completa renúncia implica sofrimento, sofrimento não só pelo

fato da renúncia, mas também porque quem crê sabe que sozinho não pode fazer nada. O

sofrimento é inseparável da fé, ele é a característica da fé.

É na incerteza e no pecado que o homem pode entrar como indivíduo em relação

absoluta com o Absoluto; é pelo pecado de fato que cada homem estabelece uma relação

única e pessoal com Deus. Para Kierkegaard, o cristianismo, que insiste na condição pecadora

Page 46: A angústia e o desespero humano

46

do homem e ao mesmo tempo insiste no privilegio da pessoa na relação com o Absoluto está

inteiro no paradoxo. Escândalo, paradoxo, necessidade, alternativas, dúvidas, angústia,

solidão são própria do cristianismo e da existência. Na medida em que a fé implica uma

relação pessoal absoluta com o Absoluto, na medida igualmente em que a verdade da fé não é

uma verdade conceitual, mas verdade para mim, o cristão não deve ser aquele que vive

abstratamente a verdade do cristianismo, mas antes aquele que se torna sua testemunha a cada

dia. O devir cristão, ou seja, ter de ser cristão é o impulso e o ponto de chegada na reflexão de

Kierkegaard.

Para ele, não existimos para filosofar, mas filosofamos para existir, pois a certeza só

pode derivar da prova da vida e da ação, porque não é a razão pura, mas o próprio existente, e

justamente enquanto existente, que crê e assume a verdade. Enfim, Kierkegaard afirma só será

existência autentica a que se identificar com um estar diante de Deus, isto é, a que estiver

ligada ao transcendente, ao Absoluto. A autentica existência é aquela que está disponível para

o amor de Deus, a existência daquele que não crê mais em si mesmo, mas somente em Deus.

Page 47: A angústia e o desespero humano

47

5 CONCLUSÃO

Não ser, eis o desespero! Ser diante da escolha, das possibilidades, eis a angústia!

Nesta perspectiva existencial que situamos o indivíduo de Kierkegaard como também a esfera

existencial do homem de hoje. Falar da existência humana é falar de seu relacionamento

consigo mesmo, com o mundo e com Deus. Partindo, portanto, do pensamento cristão de

Sören Kierkegaard, e do seu contexto de relações que compreendemos sua profunda reflexão

sobre o conceito de angústia e desespero humano como modo próprio de ser do homem.

Considerado como precursor do existencialismo é o pensador que delineia uma

filosofia voltada à realidade, ele luta em defesa do indivíduo concreto e único como

fundamento do existir. Existir com o significado de compreender-se a si mesmo na existência.

Mesmo que a existência seja comum a todos, a construção de existir depende da

ousadia e da coragem de cada um que se traduzem em risco, salto, fé, desespero, angústia no

concretizar ou não na tarefa que lhe foi confiada. Nos servimos, portanto, da idéia de que,

mais importante do que a busca por uma verdade única que explique o universo, é a busca de

verdades que sirvam para cada um individualmente, que nos adaptemos às escolhas que

fazemos para nossa vida e a forma como cada um constrói o seu eu. Somente quando

realizamos uma escolha estamos realizando a nossa existência.

Certificamos que a liberdade humana a partir da angústia e de desespero faz parte da

vida do homem cristão. É a partir daí que podemos realizar nossas escolhas. O desespero e a

angústia têm uma estrutura complexa, porém vemos estes dois constitutivos estreitamente

ligados entre si. Tanto a angústia quanto o desespero são uma síntese entre o finito e o

infinito, entre o temporal e o eterno. Foi possível adentrar ao conceito kierkegaardiano da

angústia adentrando também no conceito de desespero, pois ambos estão intrinsecamente

relacionados. E é a partir desta compreensão que podemos afirmar que estes dois sentimentos

são dois estados de humores que se baseiam na estrutura ontológica do ser humano que são

inerentes a nossa existência.

Para se chegar a esta convicção, de acordo com o pensamento de Kierkegaard,

decorremos em torno dos conceitos de angústia e desespero a partir da existência do homem e

de suas relações. A existência é o reino da liberdade: o homem é aquilo que escolhe ser e a

existência é a possibilidade. Aqui, portanto a angústia é esse puro sentimento do possível, é o

sentido daquilo que pode acontecer e que pode ser muito mais terrível do que a realidade.

Assim, a angústia caracteriza a existência humana.

Page 48: A angústia e o desespero humano

48

A partir das nossas relações com o mundo, dada pela nossa relação com outros seres

humanos e com a natureza, fazemos a experiência da angústia. E esta angústia entendemos

como sentimento profundo que temos ao perceber a instabilidade de viver num mundo de

acontecimentos possíveis, sem garantia de que as nossas expectativas sejam realizadas, pois

no possível tudo é possível. Vivemos, portanto, num mundo onde tanto é possível a dor como

o prazer, o bem como o mal, o amor como o ódio, o favorável como o desfavorável.

Como a angústia é típica do nosso relacionamento com o mundo, o desespero é

próprio da nossa relação conosco mesmos. Esta relação do homem consigo mesmo é marcada

pela inquietação e pelo desespero. Isso ocorre por duas razões fundamentais: ou porque o

homem nunca está plenamente satisfeito com as possibilidades que realizou, ou porque não

conseguiu realizar o que pretendia, esgotando os limites do possível e fracassando diante de

suas expectativas. O desespero é a doença mortal, pois vivemos a morte do nosso eu, ou seja,

de nós mesmos. Não querendo aceitar-se das mãos de Deus e negando esta relação é o mesmo

que aniquilar a nós mesmos. A existência autentica é daquele que está disponível ao amor de

Deus, daquele que não crê mais em si mesmo, mas apenas em Deus. A relação do homem

com Deus seria, portanto, a única via para a superação da angústia e do desespero. Contudo é

marcada pelo paradoxo de ter de compreender pela fé o que é impossível pela razão.

Concluímos que, seja qual for a escolha efetuada pelo homem, ele não escapa do

estado de desespero e de angústia. A solução acessível a este ser, que é por essência homem, é

a fé paradoxal, que é o relacionamento de toda relação. A fé marcada pela relação com o

Absoluto, uma relação vivificante com a eternidade que nos situa no nosso ser temporal.

Page 49: A angústia e o desespero humano

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