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O TRABALHO DE ENFERMAGEM E O CUIDADO EM SAÚDE MENTAL : NOVOS RUMOS ? Débora Isane Ratner Kirschbaum * INTRODUÇAO Atualmente, o trabalho de enfermagem nos serviços de saúde mental apresenta características tão diversificadas e heterogêneas, dependendo do modelo de intervenção ao qual ele está articulado, que dificilmente poderíamos nos referir a ele no singular. Por certo, um dos principais motivos desta diversificação foi o aparecimento dos chamados novos equipamentos em saúde mental, que surgiram juntamente com a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica no Brasil, que promoveu a substituição gradativa dos hospitais como única forma de tratamento e uma reorganização do processo de trabalho. Em consequência, o trabalho de enfermagem também transformou-se. De uma prática tipicamente custodial desenvolvida em algumas instituições, em outras convive-se com um cuidado de enfermagem voltado para a Reabilitação Psicossocial de pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. As atividades historicamente atribuídas à enfermagem nas instituições psiquiátricas, tais como o estímulo à realização das atividades de vida diária deixam de ser vistas como práticas banais e ocupam o centro do palco, pois tornam-se extremamente relevantes no tratamento de sujeitos psicóticos. A participação nestes projetos implica uma mudança de posição para os profissionais de enfermagem, que, na maioria dos serviços-dia passam a responsabilizar-se pela implementação de projetos terapêuticos, de modalidades de atendimento grupais e individuais, como também pode produzir uma transformação no modo de apreender e de intervir junto aos sujeitos, levando o enfermeiro a buscar na clínica os fundamentos para a realização do cuidado em saúde mental . Baseado na experiência clínica e docente da autora e em pesquisas realizadas recentemente em serviços-dia e hospitais especializados, este estudo visa problematizar algumas questões que decorrem das mudanças que afetam o trabalho de enfermagem e o cuidado em saúde mental . I. AS CARACTERÍSTICAS DO TRABALHO DE ENFERMAGEM EM SAÚDE MENTAL: A CONVIVÊNCIA ENTRE DIFERENTES MODELOS E ÉTICAS. A observação das práticas de enfermagem, empreendidas nos serviços de saúde mental na última década, indica que a convivência entre diferentes éticas e modelos de intervenção ora contraditórios entre si, ora antagônicos, no interior de um mesmo modelo assistencial é uma das * Enfermeira. Professor Assistente Doutor do Departamento de Enfermagem da FCM/UNICAMP. E-mail : [email protected]

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  • O TRABALHO DE ENFERMAGEM E O CUIDADO EM SADE MENTAL : NOVOS RUMOS ? Dbora Isane Ratner Kirschbaum

    INTRODUAO Atualmente, o trabalho de enfermagem nos servios de sade mental apresenta

    caractersticas to diversificadas e heterogneas, dependendo do modelo de interveno ao qual

    ele est articulado, que dificilmente poderamos nos referir a ele no singular. Por certo, um dos principais motivos desta diversificao foi o aparecimento dos chamados novos equipamentos em sade mental, que surgiram juntamente com a Reestruturao da Assistncia Psiquitrica no Brasil, que promoveu a substituio gradativa dos hospitais como nica forma de tratamento e uma reorganizao do processo de trabalho. Em consequncia, o trabalho de enfermagem

    tambm transformou-se. De uma prtica tipicamente custodial desenvolvida em algumas instituies, em outras convive-se com um cuidado de enfermagem voltado para a Reabilitao Psicossocial de pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. As atividades historicamente atribudas enfermagem nas instituies psiquitricas, tais como o estmulo realizao das atividades de vida diria deixam de ser vistas como prticas banais e ocupam o centro do palco, pois tornam-se extremamente relevantes no tratamento de sujeitos psicticos. A participao nestes projetos implica uma mudana de posio para os profissionais de enfermagem, que, na maioria dos servios-dia passam a responsabilizar-se pela implementao

    de projetos teraputicos, de modalidades de atendimento grupais e individuais, como tambm pode produzir uma transformao no modo de apreender e de intervir junto aos sujeitos, levando o enfermeiro a buscar na clnica os fundamentos para a realizao do cuidado em sade mental . Baseado na experincia clnica e docente da autora e em pesquisas realizadas recentemente em servios-dia e hospitais especializados, este estudo visa problematizar algumas questes que decorrem das mudanas que afetam o trabalho de enfermagem e o cuidado em sade mental .

    I. AS CARACTERSTICAS DO TRABALHO DE ENFERMAGEM EM SADE MENTAL: A CONVIVNCIA ENTRE DIFERENTES MODELOS E TICAS.

    A observao das prticas de enfermagem, empreendidas nos servios de sade mental na ltima dcada, indica que a convivncia entre diferentes ticas e modelos de interveno ora

    contraditrios entre si, ora antagnicos, no interior de um mesmo modelo assistencial uma das

    Enfermeira. Professor Assistente Doutor do Departamento de Enfermagem da FCM/UNICAMP. E-mail :

    [email protected]

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    caractersticas do contexto que sucedeu a implantao da Reforma Psiquitrica brasileira. Neste sentido, prticas orientadas pelos princpios que regiam o modelo assistencial asilar convivem

    lado a lado com prticas voltadas para a substituio daquele modelo a partir de um deslocamento do lugar ocupado pela enfermeira. De vigilante e repressora para agente teraputico, preocupada com a promoo da qualidade de vida e com a constituio de sujeitos responsveis por suas escolhas.

    Esta mudana foi possvel a partir da Reestruturao da Assistncia Psiquitrica em curso no pas, desde os anos 90. Em algumas instituies, principalmente nos servios dia e extra-hospitalares, o trabalho de enfermagem (ALMEIDA, ROCHA, 1997) passou a apresentar caractersticas distintas das que o vinham marcando at ento, pois, no contexto que antecedeu a

    Reforma Psiquitrica, o trabalho de enfermagem era realizado quase que exclusivamente no interior dos hospitais psiquitricos e em raros ambulatrios de sade mental existentes na poca

    (ROCHA, 1994; FRAGA, 1993; ROLIM, 1992; COLVERO, 1994). Conforme mostram ROLIM (1992); FRAGA (1993); ROCHA (1994), as atividades administrativas ocupavam a ateno e a maior parte da jornada de trabalho dos enfermeiros, que delegavam aos auxiliares de enfermagem as aes de cuidado direto aos pacientes, criando uma tenso entre a prtica concreta e a prtica aprendida nas Universidades, onde o ensino preconizava um enfermeiro responsvel pela manuteno do ambiente teraputico e por operar as tcnicas concernentes ao chamado Relacionamento Interpessoal, enquanto nas instituies de sade no existiam condies materiais mnimas para viabilizar o papel proposto (FILIZOLA, 1990). O carter ideolgico deste discurso veiculado pelas escolas e pelas instituies psiquitricas e sua contribuio para a realizao de um trabalho alienado j foi exaustivamente apontado por pesquisadores da rea (FILIZOLA, 1990; ROCHA, 1994; FRAGA, 1993), cuja produo cientfica teve uma contribuio muito importante para subsidiar a construo de um discurso que possibilitasse um posicionamento crtico da Enfermagem Psiquitrica em relao a sua prxis e que fornecesse

    mais elementos para a proposio de um novo papel para o enfermeiro que vem sendo construdo no contexto dos novos servios.

    Mas, apesar destas mudanas, preciso reconhecer que na maioria das instituies psiquitricas brasileiras, o trabalho desenvolvido por enfermeiros, tcnicos, auxiliares de enfermagem ainda apresenta caratersticas compatveis com as que o definiam no modelo

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    assistencial manicomial, mesmo que se considere a diversidade de modelos de interveno adotados e modos de estruturao e funcionamento organizacional (CAMPOS, 1999) que podem acarretar diferentes composies nas prticas de enfermagem realizadas tambm nos servios hospitalares, sejam eles unidades psiquitricas em hospitais gerais, sejam os hospitais psiquitricos especializados.

    1. O TRABALHO DE ENFERMAGEM NOS SERVIOS DE SADE MENTAL ORGANIZADOS SEGUNDO O MODELO MDICO

    Em pesquisas realizadas recentemente em servios de sade mental de mbito hospitalar (KIRSCHBAUM, PAULA, 1999; MACHADO, 1999), observa-se que o trabalho de enfermagem realiza-se atravs de atividades voltadas quase que exclusivamente para o cuidado fsico, a

    administrao de medicamentos, a coleta de exames laboratoriais, a vigilncia e a observao do comportamento dos pacientes com vistas a subsidiar as intervenes mdicas ainda predomina na

    maior parte das instituies organizadas a partir do modelo mdico tradicional (MENDES GONALVES, 1979) - ou seja, aquele em que o processo de trabalho se organiza em torno do ato mdico e em que as demais aes so complementares e dirigidas a aumentar a eficcia deste. Tambm a realizao de atividades de natureza administrativa, envolvendo desde as aes mais complexas (como o planejamento da assistncia de enfermagem e a organizao da distribuio dos membros da equipe de enfermagem) at as mais simples (como, por exemplo, a reposio de lmpadas e almoxarifado) consomem uma parte significativa da jornada de trabalho dos enfermeiros, sendo vista por eles como um fator que os afasta da realizao do cuidado direto,

    sendo este realizado majoritariamente pelos auxiliares e tcnicos de enfermagem. interessante notar que estes, por sua vez, raramente recebem algum preparo formal especfico para cuidar de

    pacientes com transtornos mentais, em virtude da reduzidssima carga horria terico-prtica destinada Enfermagem Psiquitrica e em Sade Mental nos cursos de nvel mdio, sobretudo para os auxiliares de enfermagem, para quem a carga horria destinada ao ensino deste contedos

    mnima (KIRSCHBAUM, OLIVEIRA, 1999). Apesar disto, possvel notar algumas mudanas no modo de pensar e agir de alguns

    profissionais de enfermagem inseridos nestes servios, que relatam a situao recm descrita como algo vivenciado de um modo inquietante, insatisfatrio e gerador de mal-estar. Dentre os motivos apontados para justificar o incmodo que experimentam em funo da posio que assumem nas instituies organizadas a partir do modelo mdico tradicional, pode-se assinalar o

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    reconhecimento de que suas intervenes so insuficientes para atender as necessidades de cuidado da clientela, sobretudo a de pacientes psicticos, uma vez que estas seriam mais eficazes

    se fossem baseadas numa viso interdisciplinar do processo sade-doena mental; numa incluso dos familiares como parceiros no tratamento, numa extenso do trabalho realizado durante a internao psiquitrica ao perodo imediatamente posterior alta, por meio de visitas domiciliares, por exemplo. Alm disso, nas investigaes realizadas, notou-se que alguns profissionais de enfermagem de nvel universitrio e de nvel mdio identificam as dificuldades para estabelecer relaes de poder mais horizontalizadas entre a equipe multiprofissional e a falta de comunicao entre seus membros, assim como a diminuta incluso das observaes realizadas pelo pessoal de enfermagem no planejamento e implementao das intervenes mdicas como um obstculo para a boa prtica da Enfermagem em Sade Mental.

    O que interessante ressaltar da leitura destes depoimentos reproduzidos na pesquisa

    que parece haver uma mudana de perspectiva expressa no discurso de alguns enfermeiros em relao s deficincias que identificam para a realizarem seu trabalho de maneira mais satisfatria. Vale notar que os pontos levantados como obstculos esto mais relacionados s dificuldades para implementar uma prtica assistencial compatvel com a que vem sendo preconizada como ideal pelos setores comprometidos com a defesa da Reforma Psiquitrica (como, por exemplo, ateno realizada por equipe multiprofissional, relaes de poder democrticas no interior da equipe e na relao com os usurios, valorizao similar dos vrios saberes envolvidos) do que a falta de preparo formal especfico do pessoal de enfermagem, o acmulo de funes de natureza burocrtica que afastariam o enfermeiro do cuidado direto e a baixa remunerao e valorizao profissional desses trabalhadores, que embora tenham sido

    citadas no foram enfatizadas como tradicionalmente acontecia nos estudos publicados nos anos 90 (FILIZOLA, 1990; FRAGA, 1993; ROCHA, 1994).

    Desse modo, seja pela apropriao de alguns aspectos contidos no discurso dos protagonistas da Reforma Psiquitrica, seja por um interesse em dar cincia ao pesquisador de que o entrevistado est preocupado em reorientar sua prtica em direo a que hoje proposta nos meios acadmicos e pelos setores mais comprometidos com uma viso crtica do campo da sade mental e, portanto, identificada como a ideal. O fato que a criao de novos dispositivos de cuidado e o desejo de estabelecer outras formas de organizao do trabalho em equipe algo

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    que vem sendo includo no discurso dos enfermeiros e apontado como uma sada para os impasses que encontram em sua prtica.

    Mas, o que chama a ateno nestes discursos o modo por vezes ingnuo, por vezes acrtico como os profissionais de enfermagem encaram sua posio na equipe e a de seu trabalho nas instituies em que o modelo mdico o hegemnico. Tem-se a impresso de que estes no percebem que os limites para a realizao de seu trabalho esto relacionados ao modo como esto organizadas as instituies em que esto inseridos e no s deficincias individuais de cada profissional, que poderiam ser superadas atravs do esforo pessoal de cada um ou atravs das propostas de formao ou de educao em servio.

    Com efeito, o modelo mdico que hoje perdura na maioria das instituies de sade mental o resultado de sucessivas transformaes por que foi passando o projeto psiquitrico desde a sua constituio no final do sculo XVIII. sempre bom lembrar que desde a sua emergncia ele contou com a enfermagem como um elemento fundamental na sua estruturao e na operacionalizao do Tratamento Moral, que foi o modelo de interveno que fundou a psiquiatria que hoje conhecemos (KIRSCHBAUM, 1994).

    Por isso, recorreu formao de pessoal de enfermagem dentro das prprias instituies psiquitricas com o intuito de garantir a eficcia do modelo. No Brasil, h exemplos disso que inclusive ajudam a entender porque no se optou pelo modelo nightingaleano. Isto , a formao moral dentro da racionalidade psiquitrica era fundamental pra operar a clnica psiquitrica, j que o alienista e os enfermeiros estavam includos no processo da cura. Depois, com o advento da

    terapias de choque e das medicaes foi possvel alcanar uma certa externalidade por parte do mdico, isto com certeza fiava mais difcil para a enfermagem, dado que pela prpria natureza

    do seu trabalho ela necessita oferecer-se como algum includo no tratamento (KIRSCHBAUM, 1994).

    De qualquer forma, o que importa que no modelo mdico o lugar da enfermagem, seja enquanto trabalho, seja enquanto agentes deste trabalho, est muito bem estabelecido. Ela est ali para garantir a observao, a vigilncia e o registro de comportamentos que subsidiam o fazer do

    mdico para que este possa estabelecer um saber sobre a doena e prescrever modos de interveno. Neste sentido, difcil estabelecer relaes mais horizontais, pois isso faria com que tais prticas deixassem de ser a clnica psiquitrica e passassem a ser outra coisa.

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    Ainda que se deseje muito que esta passagem ocorra, ainda que haja sinais de que algo est mudando ao nvel do discurso dos enfermeiros, pode-se duvidar que estas se dem na direo

    suposta pelos enfermeiros, ou seja, a democratizao do saber e do poder na equipe multiprofissional, a incluso de outros saberes e disciplinas na formulao de diagnsticos e projetos teraputicos.

    Se se acompanhar atentamente as tendncias atuais no campo da psiquiatria nos ltimos dez anos, observa-se um grande recrudescimento de uma Psiquiatria Biolgica reducionista (SERPA JNIOR, 1998) e a gradativa substituio da clnica psiquitrica fenomenolgica por uma clnica da medicao, como nomeada por LEITE (2000), em que predomina uma Psiquiatria classificatria que se pretende a-terica e a-histrica, passvel de ser aplicada em

    todos os lugares com a vantagem de evitar as divergncias e a multiplicidade que cercavam a definio de categorias diagnsticas at a elaborao do DSM III e dos atuais DSM IV e CID-10 .

    A hegemonia destes projetos traz conseqncias importantes para a prtica da enfermagem, pois, nesta perspectiva, cada vez menos se requerer do profissional de enfermagem algo alm de administrar medicamentos, observar reaes aos mesmos, preparar e encaminhar os pacientes para exames laboratoriais, vigiar a obedincia s recomendaes mdicas e anotar os comportamentos verificveis. Trata-se, portanto, de algo que transcenderia as conseqncias que se poderia levantar a uma prtica de enfermagem psiquitrica que originada no mesmo contexto em que nasceu este modelo de psiquiatria baseada na utilizao dos chamados diagnsticos de enfermagem, que padronizam e criam uma linguagem comum para descrever os comportamentos

    observveis nos clientes, preconizada num dos manuais de Enfermagem Psiquitrica que, segundo ALENCASTRE (2000) dos mais utilizados nas escolas brasileiras, por no levarem em conta a singularidade de cada cliente e de cada relao teraputica.

    A questo que por mais que o sujeito possa ser naturalizado e a subjetividade equiparada ao funcionamento cerebral, como no limite preconizado neste modelo terico, haver sempre

    situaes que escapam ao previsto, ao planejado e com estas situaes que as enfermeiras, tcnicos e auxiliares de enfermagem tem que se haver. Por exemplo, a recusa a tomar a

    medicao que poder modificar seu humor, a resistncia a se alimentar, o no querer permanecer internado. Haver sempre um paciente disposto a atrapalhar nossos planos de um Mundo Perfeito e disposto a apontar o furo em nosso saber. Ento, preparar-se para ocupar o lugar de quem tensiona e traz de volta o sujeito para estas prticas, mostrando que elas podem ser feitas, mas

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    sem se esquecerem de que no somos ainda os filhos de um Admirvel Mundo Novo. Parece ser este o grande desafio para os profissionais de enfermagem inseridos nos servios que tem no

    modelo mdico seu modo de organizao. Que enfermagem pode resultar disso ? Como a enfermeira responder a estes desafios

    colocados pela vida real ? Como administrar esta tenso entre o desejo por um modo de trabalhar que possibilite ao cliente sair desta condio objetivada e garantir as condies de produo que possibilitam ao modelo biomdico a sua reproduo ? So questes que ficam como um convite reflexo neste incio de sculo.

    2. O TRABALHO DE ENFERMAGEM NOS SERVIOS-DIA E NOS HOSPITAIS PSIQUITRICOS ESPECIALIZADOS EM TRANSFORMAO

    Enquanto isso, nos servios de sade mental, organizados a partir dos princpios preconizados pela Reforma Psiquitrica, o foco da ateno dos profissionais de enfermagem

    desloca-se para questes ligadas reorganizao do processo de trabalho em sade mental e viabilizao de condies mais favorveis ao exerccio da clnica e da reabilitao psicossocial, embora no estejam isentos das demais discusses que afetam aos seus colegas inseridos em outros modelos de interveno.

    Uma delas justamente a preocupao em caracterizar o trabalho de enfermagem que vm inventando nos servios-dia: NAPS, CAPS, Hospitais-Dia, Centros de Convivncia, Oficinas Protegidas, Lares Abrigados e Moradias extra-hospitalares distribudos por diferentes regies do pas, os quais, por sua vez, apresentam percursos bastante particulares em termos de

    tempo, estilo de trabalho, concepo teraputica, dentre outros. Neste servios, o pessoal de enfermagem vive s voltas com interrogaes sobre: Como cuidar de forma a estimular a

    construo de subjetividades ? Como incluir-se na equipe multiprofissional a partir de uma posio de terapeuta ? Como desenvolver o papel de tcnico de referncia ? Como lidar com famlia ? Como realizar o acompanhamento teraputico ? Como ser agente reabilitador ? Outra

    questo que ganha relevo a busca de um fundamentao terica que sustente a implementao de dispositivos de cuidado em elaborao e que viabilize a transmisso destes saberes construdos

    a partir da experincia clnica desenvolvida nos novos equipamentos. E ainda outra questo parece ser a necessidade de estabelecer os contornos desta posio ocupada pelos profissionais de enfermagem num modelo de ateno em sade mental em transformao.

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    Obviamente, estas questes no eram formuladas de forma to clara nos primrdios da Reforma Psiquitrica brasileira. De fato, elas foram se configurando medida que os primeiros

    servios substituivos ao hospital psiquitrico passaram a ser implementados no final dos anos 80 e incio dos 90 e que seus projetos teraputicos iam sendo submetidos a avaliaes e reformulaes por parte das equipes (WETZEL, 1995; GOLDBERG, 1996, 1998; BANZATO et al., 1993; VICHI et al., 1997; FILIZOLA, 1999;)1. Alm disso, a expanso destes equipamentos pelas diversas regies do pas no final da dcada de 90 contribuiu para ampliar o nmero de profissionais envolvidos, com experincias diversas de insero nos servios, oferecendo mais elementos para que se possa refletir criticamente sobre as tendncias e rumos possveis para o trabalho dos agentes de enfermagem no contexto da Reforma (Anais de BH, 1998).

    Ao direcionar o olhar para as primeiras experincias ( WETZEL, 1995; FRAGA, 1996; KIRSCHBAUM, 1996; MIRANDA, 1997) observa-se que os primeiros tempos foram marcados pela tentativa de construir uma nova posio para a enfermeira e auxiliares de enfermagem, deslocando-os da posio historicamente atribuda e assumida de vigia e repressor para uma posio de agente teraputico envolvido com a concepo, a realizao e a reflexo sobre o tratamento proposto aos clientes destes ento chamados novos servios.

    Por certo, o que favoreceu o referido deslocamento foi a reorganizao do processo de trabalho em sade mental, a partir da constituio de equipes multiprofissionais estruturadas sob uma perspectiva interdisciplinar, em que no havia uma rgida definio de funes e papis correspondentes a formao original do profissional. Como tambm contribuiu para ampliar a

    participao do enfermeiro na conduo dos projetos teraputicos individuais e, particularmente, das modalidades de atendimento grupais, atravs da assuno da coordenao de grupos

    teraputicos compostos por pacientes psicticos, neurticos ou dependentes de drogas. Neste sentido, a experincia do Hospital-Dia do Servio de Sade Cndido Ferreira ilustrativa desta conformao que o trabalho de enfermagem foi assumindo nos ento chamados novos

    equipamentos (KIRSCHBAUM, D.I.R, 1996; KIRSCHBAUM, D.I.R.; PAULA, F.K.C. , 1999) Mas situaes semelhantes ocorriam tambm nos NAPS em Santos, no CAPS Luis

    Cerqueira, em So Paulo, na Casa, em So Loureno do Sul-RS e esta conformao do processo

    1 Tal situao pode ser apreendida pela anlise do trabalho realizado pelos enfermeiros em diferentes servios de

    sade mental situados nos municpios de Campinas, Belo Horizonte, Santos, So Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Porto Alegre, onde o processo de implantao da Reforma Psiquitrica e a conseqente diversificao da oferta de dispositivos de cuidados em sade mental encontra-se em curso h pelo menos mais de cinco anos.

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    de trabalho generalizou-se na maioria dos servios-dia posteriormente criados pelo pas, segundo mostram ( FRAGA, 1993; WETZEL, 1995; MIRANDA, 1997; FILIZOLA, 1999; COLVERO, 1999 ) .

    Foi um tempo tambm de iniciar, nos hospitais, a desconstruo dos procedimentos disciplinares que possibilitavam obter a obedincia e a docilidade dos internados s regras asilares, manejadas principalmente pelo pessoal de enfermagem ( MIRANDA, 1994, 1997; KIRSCHBAUM, 1994) . Refiro-me aqui s filas para tomar medicao, alimentar-se e tomar banho. As proibies de visitas, de sadas para passeio, de acesso aos pertences pessoais e principalmente aos maos de cigarro, cujo controle e manipulao pelo pessoal de enfermagem favorecia certos excessos e o exerccio do poder. O abandono destas prticas implicava na

    produo de um novo estilo de trabalho, em que se passasse a lidar com as pessoas em tratamento nestas instituies como sujeitos que tinham um nome, uma histria de vida, um jeito muito prprio de encarar a si mesmos e de relacionar-se com as outras pessoas.

    Neste contexto, desinstitucionalizar ou reabilitar representava restituir a cada um deles os direitos civis, uma identidade, um lugar no grupo a que pertenciam, um espao na instituio em que pudessem conservar consigo seus pertences pessoais. Tratava-se ento de reconstruir projetos de vida e isso no era algo simples fosse a clientela constituda por pacientes asilados, s vezes com mais de 30 anos de institucionalizao, fosse pela que habitava os Hospitais-dia, os CAPS, as Oficinas Protegidas, as Unidades de Internao, cuja trajetria pessoal era geralmente marcada por diversas internaes psiquitricas, abandonos de tratamentos, vnculos familiares e sociais

    extremamente desgastados ou enfraquecidos. Fazia-se necessrio ento abordar esses pacientes de uma maneira radicalmente diferente

    da que marcava as intervenes psiquitricas no modelo assistencial asilar, recorrendo a estratgias e modalidades teraputicas grupais ou individuais que favorecessem aos pacientes a retomada de seu lugar de sujeito falante, reflexivo, produtivo, responsvel, capacitado para retornar a vida social e conviver com seus familiares, amigos, colegas de trabalho.

    Inspirados nos projetos de Reforma Psiquitrica empreendidos em outros pases desde o ps-guerra e, s vezes, em experincias de reformulao implementadas anteriormente no pas, os profissionais envolvidos com a implementao dos servios-dia e com a desinstitucionalizao dos hospitais psiquitricos aglutinaram-se em torno da proposta de Reabilitao Psicossocial (PITTA, 1996). Assim, ao mesmo tempo em que buscavam neste referencial instrumentos para

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    abordar a problemtica da reinsero social, os profissionais de sade mental procuravam abordar as prticas de reabilitao no como uma tcnica, mas como uma tica de solidariedade que

    facilite aos sujeitos com transtornos mentais severos e persistentes, o aumento da contratualidade afetiva, social e econmica, que viabilize o melhor nvel possvel de autonomia para a vida na comunidade (PITTA, 1996, p.9) .

    No cotidiano das instituies, o recurso a um imenso leque de intervenes - que am das Assemblias Gerais ( para estabelecer com os usurios as regras que regeriam a convivncia de profissionais e pacientes no espao institucional ) aos grupos de verbalizao, de medicao, de atividades, de recepo, de passeio, de musicoterapia, de arteterapia, de jornal, de contos, de teatro, de produo artstica, expresso corporal, de familiares e destes s oficinas protegidas,

    ateliers, festas comunitrias - visava substituir o enfoque hegemnico no modelo mdico por uma abordagem psicossocial do tratamento dos doentes mentais, que embora no exclusse os

    aspectos fsicos no lhes atribua uma primazia em relao aos demais. Com a adeso a este enfoque pretendia-se aumentar a eficcia e a efetividade das aes em sade mental, a fim de ampliar os recursos disponveis para a reinsero social do paciente, atravs da construo de uma rede social, na qual ele pudesse estabelecer laos afetivos, e da criao de oportunidades ocupacionais, profissionalizantes, educacionais, que lhes permitiria reinserir-se no processo produtivo e resgatar o respeito e a valorizao social, muitas vezes perdido em funo da situao de excluso e estigmatizao que os cercava. Alm disso, estas medidas tinham como finalidade evitar internaes psiquitricas desnecessrias e a perda de vnculos sociais delas decorrentes.

    Conforme mencionado anteriormente, esse modo de conceber e organizar as prticas em sade mental produziu efeitos considerveis para a realizao do trabalho de enfermagem,

    embora, inicialmente, no tenham envolvido da mesma forma a totalidade da equipe de enfermagem. De fato, nos momentos iniciais, estes efeitos puderam ser apreendidos de forma mais contundente no que concernia s atividades assumidas pelas enfermeiras. Os relatos de

    experincia e as pesquisas que reconstituram a trajetria que marcou a implementao dos servios-dia e a desinstitucionalizao de alguns hospitais, mostram que o papel tradicionalmente

    assumido pela enfermeira, marcado por uma maior dedicao s atividades administrativas, foi abandonado em favor de uma maior insero nas atividades de assistncia direta, sobretudo nas equipes em que o processo de trabalho foi reorganizado sob um enfoque interdisciplinar. Com isso, o que era atribuio especfica da enfermeira pode ser compartilhado com outros

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    profissionais e ela pde ampliar sua atuao, passando a coordenar grupos teraputicos, oficinas de trabalho, responsabilizar-se pela elaborao de projetos teraputicos individuais ou de grupos de pacientes e pela implementao de programas para clientelas especficas. Em alguns servios, que adotaram a estratgia de case manegement (VASCONCELOS, 1997) ou de equipe de referncia (CAMPOS, 1999), as enfermeiras tornaram-se tcnico de referncia, o que representava assumir o gerenciamento do projeto teraputico. Nestes casos, as atribuies podem estender-se das atividades desenvolvidas no interior do servio s que envolvem o cuidado extramuros e domiciliar, que incluem a realizao do acompanhamento teraputico.

    Em que pese as crticas falta de formao das enfermeiras e dos demais profissionais da equipe para assumirem este tipo de atividades, pois os currculos das instituies de ensino

    superior no tem por objetivo a preparao de trabalhadores polivalentes e sim a de generalistas, observa-se que as enfermeiras tendem a buscar a qualificao requerida para o trabalho nos

    equipamentos de sade mental em cursos de especializao, em cursos de formao em psicoterapia, psicanlise, psicoterapia de grupo, psicodrama (KIRSCHBAUM, 1996, FILIZOLA, 1999).

    Desenvolver estas novas atribuies como atividades do campo da enfermagem acarreta uma mudana radical nas caractersticas deste trabalho, pois, mais do que envolver uma dedicao significativa s atividades de assistncia direta, implica em responsabilizar-se pela implementao de projetos teraputicos e atividades de cunho psicoterpico, o que significa voltar-se para a clnica (BEZERRA, 1996; MACEDO, MARON, 1997; LEITE, 2000 ). Torna-se cada vez mais necessrio um aprofundamento da leitura clnica dos casos, como condio para atingir os objetivos dos projetos de Reabilitao Psicossocial.

    Todavia, as prticas concretas, cotidianamente realizadas nestas instituies, no esto livres nem isentas de uma srie de equvocos, de leituras contraditrias, de incongruncias entre o que dito e proposto nos documentos oficiais, nos conclaves cientficos e o que posto em ato,

    como prprio, alis, s atividades humanas. So, alis, o seu reconhecimento e a sua delimitao que permitem a produo de saber, de conhecimentos cientficos, a realizao da

    clnica e a reorientao das prticas com vistas a aumentar sua eficcia teraputica e a contribuir para a melhoria da qualidade de vida das pessoas.

    Ciente de que no possvel encontrar respostas nicas, totalitrias e a-temporais s questes que emergem da clnica, do ensino e da investigao em sade mental e que no h um

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    modo ideal de agir, mas estilos e leituras possveis para o contexto em que estamos inseridos nos servios de sade mental, de agora em diante, tratarei de algumas questes que ao meu ver

    tornam problemtica a implementao do cuidado em sade mental e, mais particularmente, o realizado pelas enfermeiras e pelos tcnicos e auxiliares de enfermagem em servios-dia, moradias extra-hospitalares e nas instituies psiquitricas em processo de desinstitucionalizao.

    SER QUE TODOS OS MODOS DE PRATICAR A REABILITAO PODEM CONTRIBUIR EFETIVAMENTE PARA QUE OS CLIENTES SE TORNEM SUJEITOS COM MAIOR AUTONOMIA ?

    Tambm no campo da Reabilitao Psicossocial, o modo como se opera o cuidado em sade mental est relacionado com as concepes de doena mental, de sujeitos e de tratamento existentes. Foi assinalado antes que os servios-dia foram criados com o intuito de oferecer

    tratamento a uma clientela composta por pessoas com transtornos mentais severos e persistentes,

    cuja necessidade de cuidados demanda intervenes contnuas, sistemticas e, s vezes, complexas. Concretamente, os sintomas apresentados por estas pessoas traduzem-se em dificuldade para estabelecer relaes interpessoais efetivas; para realizar atividades de vida diria, mais especificamente as de auto-cuidado, sem a colaborao de outras pessoas; para comprometerem-se com atividades de vida prtica, dentre outras.

    Em vista disso, a maioria dos projetos de Reabilitao Psicossocial (BANDEIRA, 1999; SARACENO, 1999) preconizam a adoo de intervenes diversificadas que visam estabelecer condies para que os pacientes possam resgatar, recuperar ou adquirir habilidades2 que lhes possibilitem conviver com seus familiares, amigos, colegas na prpria comunidade, e conquistar,

    assim, uma melhor qualidade de vida. Segundo expe SARACENO (1999) , h entendimentos controversos acerca do que seja

    reabilitao, havendo os que a consideram uma tcnica, ao passo que outros vem-na como um processo, uma exigncia tica. Tal como os ltimos, o autor define-a assim :

    A Reabilitao deveria ser, portanto, o conjunto dos procedimentos que procuram aumentar as Habilidades (ou diminuir as Desabilitaes) e diminuir a deficincia.(...) O possvel paralelismo com a Reabilitao fsica, no entanto, termina aqui, enquanto provvel que

    intervenes eficazes sobre a desabilitao e sobre a deficincia melhorem, tambm no caso do

    2 SARACENO (1999) , baseado numa classificao proposta pela OMS, define desabilitao como limitao ou

    perda de capacidades operativas produzidas por hipofunes e diferencia-a da deficincia, que consistiria na desvantagem, consequncia de uma hipofuno/eou desabilitao que limita ou impede o desempenho do sujeito ou

  • 13

    paciente psiquitrico, tambm o estado do dano, o que no se d no caso da patologia fsica (p.34-5)

    No entanto, h vrios modelos de Reabilitao e estes podem basear-se em correntes tericas as mais diversas, que vo da cognitivo-comportamental s , de onde decorrem tambm intervenes tcnicas bastante reducionistas. Portanto, a denominao de reabilitao psicossocial para designar certos projetos no garante em si mesma o direcionamento do trabalho para uma abordagem ampla e interdisciplinar dos transtornos mentais, como poderia parecer a primeira vista. Apesar disso, esta crtica no parece ser suficientemente evidente para o conjunto dos trabalhadores que militam nos servios de sade mental. Em geral, os depoimentos coletados entre estes profissionais(KIRSCHBAUM, FRANCISCHETI, 2000; KIRSCHBAUM, PAULA, 2000) permitem supor que existem certas ambiguidades, alguma confuso em torno da noo de reabilitao, seja devido as contradies contidas na prpria proposta (BEZERRA, 1996), seja em decorrncia da forma como os profissionais se apropriam das proposies e as articulam em seu discurso num momento inicial.

    Neste sentido, um dos pontos que chama a ateno o fato de que a reabilitao psicossocial frequentemente significada a partir das atividades realizadas com os pacientes em vez de ser retratada conforme proposto por PITTA (1996) e SARACENO (1996, 1999). Ainda que se leve em conta que a Reabilitao Psicossocial, sob o referido enfoque, seja uma novidade entre ns, no se pode menosprezar a presena, entre os profissionais de sade mental e, dentre eles, os de enfermagem, de uma certa tendncia a aderir s novidades de maneira acrtica e

    imediatista, confundindo os fins com os meios e absolutizando o valor dos ltimos. Um exemplo disto a supervalorizao da realizao de atividades grupais 3 da mais variada natureza na

    implementao dos projetos teraputicos, a despeito de uma avaliao mais cuidadosa e criteriosa da indicao das mesmas para cada paciente. sempre bom lembrar que o recurso s atividades de extrema valia e que elas possuem um significativo potencial teraputico quando a sua

    implementao est articulada a uma discusso clnica, que possibilita ampliar o entendimento de um caso (ou de um projeto teraputico) e uma maior compreenso das questes que afetam o sujeito. No entanto, quando descoladas de qualquer avaliao desta natureza no proporcionam

    das capacidades de qualquer sujeito, eslarecendo que esta condicionada resposta que a organizao social d a um sujeito com desabilitao e no est, portanto, referida a ele mesmo. 3 Trata-se das oficinas, ateliers, grupos de desenho, pintura, msica, atividades corporais, culinria, salo de beleza,

    dentre outros.

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    aqueles efeitos e corre-se o risco de banaliz-las como estratgia de tratamento, assim como o de transform-las em uma forma da manter o paciente ocupado com a execuo de tarefas sem

    qualquer sentido, ou como frequente ouvir-se , distrado , transformando o espao de tratamento num espao de alienao, ou segundo prefere SARACENO (1999), de entretenimento.

    Ironicamente, parece que fenix renasce das cinzas. No seria este modo de encarar a ocupao semelhante ao que era preconizado pelos alienistas desde o sculo XIX , que acreditavam que a ocupao por si s produzia benefcios teraputicos ao desviar a ateno do louco de seu delrio para a realizao da atividade ? E cuja concepo de doena mental e formas de trat-la os profissionais de sade mental desejam transformar, desconstruir ?

    Longe de negar ou desconsiderar a importncia dos momentos de descontrao, de convivncia social, de encontros, de trocas afetivas e de momentos ldicos para a clientela que

    frequenta estes servios, as crticas feitas at aqui tem por objetivo ressaltar a importncia de se preservar estes servios como espaos de tratamento, diferenciando-os de locais que disfarados de instituio de tratamento contribuam na realidade para aprofundar a excluso e a segregao que marca a vida das pessoas com transtornos mentais severos e persistentes.

    Alm disso, h que se levar em conta tambm que a prpria conformao da Reabilitao Psicossocial, enquanto proposio, favorece a construo de certas interpretaes prescritivas, normativas. Pois, se o que est em jogo a aquisio de habilidades em lugar das desabilidades e se estas correspondem s dificuldades ou limitaes para os afazeres cotidianos que afetam os

    sujeitos com transtornos mentais severos razovel que se procure modific-las por meio de intervenes prticas, voltadas para o aprendizado de comportamentos ou de formas de agir mais

    eficientes, que propiciem aos pacientes adquirir a mxima autonomia possvel para participar da vida comunitria ? E, aqui, h um ltimo ponto que vale a pena destacar para reflexo.

    Pode-se notar que as prticas voltadas para a Reabilitao Psicossocial trazem em si

    mesmas um carter pedaggico, normativo. Trata-se de estimular os sujeitos a adquirirem habilidades que tornem cada vez mais possvel aproximarem-se de um certo ideal de homem,

    como se houvesse um determinado modo de ser que caracterizasse melhor do que outros o que seja um sujeito habilitado e autnomo. Uma indagao que se faz necessria o quanto este posicionamente no poderia provocar uma conformao do sujeito ao ideal propugnado pelos profissionais e o quanto este tipo de interveno de fato favoreceria a autonomia do paciente. E

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    de autonomia em relao a qu ? Aos servios, aos familiares, ao acompanhamento teraputico feito por profissionais devidadmente qualificados ? No haveria, embutida nesta concepo, uma

    certa equivocao no sentido de equiparar autonomia e cura, favorecendo a adoo de intervenes voltadas quase que exclusivamente para a assistncia social em detrimento de intervenes clnicas, fundamentais para proporcionar aos sujeitos psicticos uma certa estabilizao que lhes permita estabelecer vnculos sociais e usufruir destes equipamentos comunitrios ?

    QUE CONSEQUNCIAS PODEM ADVIR DE UMA REABILITAO APREENDIDA E PRATICADA NUMA PERSPECTIVA NORMATIVA ?

    As consequncias que podem decorrer da adoo de uma perspectiva normatizadora,

    supostamente pedaggica, na realizao do cuidado em sade mental s vezes no so devidamente apreciadas ou consideradas pelos profissionais envolvidos com a criao de novos

    dispositivos de cuidados ou de servios extra-hospitalares. Mas a experincia clnica mostra que, dependendo da situao e do sujeito em questo, a adoo de uma atitude prescritiva4, ainda que motivada pelas melhores intenes, este tipo de interveno pode produzir efeitos nefastos ao tratamento, provocando uma piora dos sintomas e trazendo maior sofrimento para o paciente5, por motivos que sero assinalados mais adiante. Embora esta questo seja levada em conta na prtica da clnica psicanaltica h tempos (BEZERRA, 1996; LEITE, 2000), ela raramente considerada na implementao das atividades de reabilitao desenvolvidas cotidianamente nos servios de sade mental.

    Talvez seja a prpria multiplicidade de sentidos atribuveis a noo de reabilitao o que favorea a sua apreenso pelos profissionais como sinnimo de reeducao, readaptao, e,

    consequentemente, leve-os a assumir uma atitude semelhante pedaggica na conduo das modalidades teraputicas e particularmente nas que visam a melhoria do desempenho na realizao de atividades de vida diria. O carter normatizador que pode ser imprimido durante a

    implementao destas prticas o importa aqui assinalar, sobretudo por que aos profissionais de enfermagem e principalmente aos auxiliares de enfermagem que continua sendo atribuda a

    sua implementao nos servios de sade mental. Como tais atividades consistem no cuidado do

    4 No sentido de aproximar ou levar o paciente a adotar um certo modo de agir que parea mais adequado s

    exigncias sociais ou s formas de relacionamento social mais apreciadas pelo grupo em que ele deveria estar inserido . 5 Por exemplo, no caso de um psictico, aumentando o fosso entre ele e os outros, acirrando as idias de perseguio.

  • 16

    corpo, do espao de moradia, da alimentao e nas questes que envolvem o exerccio da sexualidade e da convivncia social, elas podem tornar-se mais facilmente um alvo para

    intervenes claramente normativas e para a formao de discursos investidos de uma forte conotao moral. H algumas situaes vivenciadas com frequncia no cotidiano destas instituies que ilustram de maneira exemplar aquelas atitudes. Tome-se, por exemplo, o caso do namoro entre pacientes. A polmica que resulta desta situao na instituio impressionante. Os discursos que os profissionais dirigem aos pacientes, que vo desde dizer que namorar bom, saudvel, desde que as pessoas se amem e estejam bem intencionadas umas com as outras at o afirmar que s se deve ter relaes sexuais com quem se tem vnculos afetivos duradouros evidenciam de forma to explcita uma inteno normativa e moralizante, que dispensam maiores

    comentrios. Alm disso, chama a ateno o uso de argumentos que parecem deslocados de seu tempo, pois lanam mo de valores morais que seriam questionados hoje - com perdo pela ironia - pelos adolescentes pertencentes s melhores famlias da nossa sociedade e que, muito provavelmente, num mundo em que o ficar e as novas formas de relao amorosa so cada dia mais comuns, dificilmente seriam utilizados para as pessoas que no so portadoras de transtornos mentais severos e persistentes. O que se observa entre os profissionais de sade mental e de enfermagem, em particular, uma preocupao em prescrever, orientar, ensinar, treinar os pacientes a fim de eliminar ou reduzir de forma significativa as suas dificuldades na execuo das atividades de vida diria que acaso possam inviabilizar a sua insero social e a convivncia comunitria. No entanto, o que fica evidente na operacionalizao do cuidado em

    sade mental a predominncia de intervenes pautadas em vises de senso comum, ou por idias pretensamente cientficas, juzos de valor dominantes na sociedade e, em funo disso, equiparados a verdades universais e a-histricas.

    bem provvel que a assuno de uma atitude normativa na implementao das prticas de sade mental esteja relacionada com a uma concepo cartesiana de sujeito, por mais incompatvel e contraditria que possa parecer. No entanto, um dos problemas que decorrem desta conformao da Reabilitao Psicossocial a tentativa de conciliar prticas baseadas em

    ticas e concepes tericas distintas, produzindo algumas vezes significaes que esvaziam o significado que estas possuam originariamente e esvaziando a capacidade explicativa e operativa de certos conceitos. Um exemplo disto o uso frequente de determinados conceitos como sujeito, desejo, subjetividade, lao social, escuta que, apesar de possurem uma filiao tica e terica

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    clnica psicanaltica lacaniana, so empregados de forma indistinta e imprecisa. Assim, sujeito utilizado como sinnimo de pessoa, sem qualquer relao ao conceito de sujeito do inconsciente; desejo, como sinnimo de vontade, e no como uma noo articulada falta; subjetividade como equivalente ao que da ordem do no objetivo, do particular; lao social como contato social e no como o modo como o sujeito est inserido na linguagem; escuta como sinnimo de ouvir, de atentar para o que o paciente disse, sem qualquer articulao com a associao livre e com a leitura de uma cadeia de significantes. Supor que estas preocupaes consitam em preciosismo terico, de exerccio de retrica, de esnobismo intelectual uma ingenuidade, pois seria negar as implicaes prticas que decorrem da opo por uma tica e no por outra, da vinculao a uma posio terica e no outra. A adoo de uma posio pedaggica, na qual o profissional se

    autoriza a ocupar um lugar de mestria e prescrever modos de sentir, agir e pensar, mais compatvel com uma tica da tutela, implica necessariamente numa viso de sujeito cartesiana e inconcilivel com uma tica do desejo, que reconhece no sujeito os efeitos de sua diviso pelo inconsciente, o que equivale a admitir que no h um modo de existir, mas diversos modos possveis de existncia.

    Um outro ponto a ser destacado a eficcia teraputica destas intervenes ligadas ao cuidado dirio. A experincia cotidiana com pacientes que apresentam diferentes estruturas clnicas e diagnsticos psiquitricos (LEITE, 2000) mostra o quanto faz diferena manejar um caso a partir de uma posio tica que responsabiliza o sujeito, em vez de trat-lo como um indivduo em treinamento.

    3. A BUSCA POR UM ESTILO DE CUIDAR Para tornar mais claras as consideraes a seguir, vale a pena recorrer ao relato do caso de

    uma paciente que retrata uma situao comum, cotidianamente vivenciada nos servios, envolvendo o banho de uma pessoa com transtorno mental severo e persistente. Tratava-se de uma mulher jovem, solteira, com escolaridade universitria, desempregada, que vivia com seus pais idosos, e que se recusava diariamente a tomar banho, lavar-se, trocar suas roupas, seja em sua prpria casa, seja no servio-dia em que se tratava h dois meses, sob a alegao de que no precisava, estava bem, em resposta aos insistentes convites que lhe dirigiam inicialmente, as duas auxiliares de enfermagem, com quem havia estabelecido um bom vnculo. Tal situao, obviamente, provocava um grande incmodo, que, com o passar dos dias, estendeu-se equipe como um todo, pois, por maiores que fossem, eram inteis os esforos dos profissionais para

  • 18

    convenc-la. Os argumentos usados iam desde a necessidade de tomar banho para manter a sade, para ficar mais bonita, para sentir menos calor, at a importncia de faz-lo para poder

    conviver com as outras pessoas, participar de grupos teraputicos. Diante deles, depois de algumas horas de negociao, conseguia-se, finalmente que ela entrasse embaixo do chuveiro. Aps o banho, a paciente tornava-se extremamente assutada. Dizia que tinham-na espiado no banheiro e que tinha perdido partes de seu corpo durante o banho. Diante da sua fala, os profissionais que a acompanhavam esforavam-se por convenc-la de que ningum a havia espiado, argumentando que tinham ficado ao lado da porta do banheiro e ningum mais tinha aparecido por ali. Quanto s alteraes corporais, com o intuito de tranquiliz-la, estimulavam-lhe a mirar-se no espelho para ver que tudo continuava ali e aproveitavam para ressaltar o quanto

    ela ficara ainda mais bonita aps o banho. claro que h n modos diferentes de manejar esta situao, e cada um de ns teria uma

    sugesto melhor a propor. No se trata aqui de avaliar a correo das intervenes, relatadas em reunies de superviso clnica pelos profissionais envolvidos. O que importa ressaltar aqui o sentido de orientao, de educao para a sade que marcava tais intervenes. Evocando-as, o que se quer chamar a ateno para a forma de leitura (ou para a falta dela) feita por quem cuida de pacientes psicticos dia a dia.

    Note-se que, a despeito do cuidado no tratar, da preocupao em dar ouvidos a fala do cliente e evitar o emprego de atitudes violentas e autoritrias no lidar com o mesmo, as intervenes que se pretendem reabilitadoras no nos isentam de assumir atitudes que dificultam

    o reconhecimento das questes que esto em jogo para o sujeito e que implicam em coloc-lo numa posio de objeto do desejo do Outro (Lacan, 1988), entendido aqui enquanto um saber suposto como absoluto ou como o conjunto de significantes disponveis na linguagem.

    Disso decorre a possibilidade de chamar a si a funo s vezes ocupada pelo(s) perseguidor (es) no delrio psictico, s vezes a de algum que o invade implacavelmente, contra o qual ele nada pode fazer, ficando merc de suas vontades, aes, reatualizando, portanto, a posio que ele ocupara nos momentos iniciais de sua vida em sua relao com a me, ou com

    quem a substituiu no exerccio da funo materna (Lacan, 1988), particularmente nos casos em que o lugar a ser preenchido pelo Nome-do Pai esteve ausente . Atente-se para o fato de que, no caso relatado, no se tratava de uma pessoa que desconhecesse a importncia do banho para a manuteno da sade. A jovem possua formao universitria, fora uma boa aluna e

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    eventualmente fazia comentrios sobre temas ligados biologia e sade nas diferentes atividades teraputicas de que participava, que evidenciavam a posse daquele conhecimento que os sujeitos que dela cuidavam insistiam em ensinar-lhe, cnscios que estavam da sua funo de reabilitadores.

    Logo, o que lhes escapava, na interpretao que faziam da recusa a tomar banho, era que o saber que a estava em jogo de natureza diferente do referido na concepo cartesiana. Em decorrncia desta posio - que v o saber como produto da razo, exclusivamente - no h maior problematizao das relaes que possam existir entre o modo como o sujeito em questo signifique seu corpo, o cuidado corporal e a estrutura clnica prpria psicose. como se os significados atribuveis ao banho pudessem ser limitados a uns poucos, tais como: a limpeza, o

    combate aos germes. E exclussem outros significados possveis, tais como: a de ter o corpo derretido pela gua6, a de desintegrao do corpo, a de uma situao de extrema vulnerabilidade e

    de exposio ao olhar do Outro7. esse mesmo saber, a que damos o nome de inconsciente, que est envolvido no processo

    de constituio do sujeito, a partir de sua diviso pela lei da castrao, com a qual est relacionada a possibilidade do mesmo estruturar-se como neurtico, psictico, perverso ou como um caso inclassficavel (LEITE, 2000).

    Vale esclarecer, tambm, que conceber o sujeito a partir destes princpios ticos implica em reconhecer que o corpo no consiste apenas num conjunto de clulas, uma estrutura puramente biolgica, onde reaes qumicas se processam, mas numa materialidade investida de

    significaes. Em vista disso, h que se reconhecer que o processo de constituio da subjetividade est intrisecamente relacionado formao da imagem corporal. A existncia de um descompasso jamais preenchido entre a imagem disforme do corpo percebida nos primeiros anos de vida e a constituio da imagem corporal que o sujeito atribui a si e que constituinte no processo de formao do Eu, cujos percalos Lacan ( 1998) apontou ao formalizar a teorizao do estdio do espelho. Com ele, aprendemos que a construo destas imagens corporais est profundamente articulada produo do conhecimento paranico, no sentido que nos

    identificamos com uma imagem que a do outro (aquele que est l, o nen que vemos a nossa

    6 Que foi a explicao posteriormente dada pela paciente auxiliar de enfermagem para dar a conhecer o motivo de

    sua recusa. 7 Descrito pela paciente como as pessoas que a espiavam enquanto banhava-se, com o intuito de comprovarem a

    dissoluo por que passava seu corpo e divertirem-se com o seu sofrimento.

  • 20

    frente e que, s depois, em um momento seguinte reconheceremos como sendo Eu) e esta estar sempre a nos observar e nomear enquanto uma alteridade.

    Nos casos em que o Nome-do-Pai foracludo, ou seja, em que a ausncia da metfora paterna marca o processo de estruturao do sujeito, que o que fundamentalmente determina se algum se tornar psictico, a relao que este estabelece com seu corpo necessariamente atravessada pela maneira como ele se reconhece, ou seja, um Sujeito invadido pelo Outro. O que equivale a dizer que a posio em que se supe que o Sujeito estaria situado8 , caso houvesse um barramento entre eles, ocupada pelo Outro. Este, por sua vez, no precisa ser necessariamente uma pessoa, mas pode tambm ser representado por uma pessoa ou por um grupo de pessoas e, estas tanto podem corresponder a uma pessoa real quanto imaginria. esta juno entre o Sujeito e o Outro que proporciona o aparecimento dos fenmenos elementares, chamados alucinaes. E explica por qu, por exemplo, alguns pacientes percebem as vozes com contedos

    acusatrios como vindas do exterior e porqu s vezes identificam-nas como sendo de pessoas conhecidas (tais como: familiares, vizinhos, parentes mortos).

    Obviamente no se tem a pretenso de fazer uma sntese das formulaes de Jacques Lacan sobre as psicose no mbito deste artigo. Seria uma ousadia descabida e uma injustia obra deste autor, que tratou do tema em diferentes momentos de sua produo, em cada um dos quais abordou-a de modo original e totalmente novo. No entanto, no poderia deixar de trazer aqui algumas elaboraes que a leitura de seus textos possibilita para a clnica das psicoses nos equipamentos em sade mental. Nem deixar de expor as contribuies preliminares que desta

    leitura pude extrair para propor um modo de realizao do cuidado de enfermagem a partir de um novo estilo, mesmo correndo o risco de coloc-las de forma apressada e um tanto incompleta de

    modo que, talvez, no expressem a complexidade que possuem as formulaes produzidas por Lacan ou, ao contrrio do que desejaria, contribuam para mistificar ainda mais as dificuldades que envolvem a sua leitura. De qualquer modo, no seria possvel perder a oportunidade de criar

    um meio de interlocuo com meus pares atravs desta escrita. Para concluir, penso que seria interessante expor brevemente os caminhos que esta leitura

    possibilita com vistas a fundamentar terca e ticamente o direcionamento do cuidado de enfermagem em sade mental.

    8 Tal como ocorre na estrutura da neurose, na qual h um barramento do Outro, separando-o do Sujeito. A isso se

    nomeia como presena do Nome-do Pai , segundo assinala LEITE (2000).

  • 21

    CONSIDERAES FINAIS Encarar o psictico como um sujeito que pode advir de uma interveno que introduza

    algum tipo de corte entre ele e o Outro talvez seja um bom comeo. As maneiras de faz-lo podem ser infinitas e precisam ser inventadas, descobertas, redescobertas a cada dia com cada sujeito, no havendo portanto um modelo a ser seguido, repetido ou passvel de sistematizao a partir da padronizao de condutas, procedimentos, tcnicas, atos to caros e comuns a nossa prtica profissional. Alis, a receita convencer-se de que no h receitas.

    Com elas, o mximo que promovemos o silenciamento dos sujeitos, o tamponamento da sintomatologia, cuja exposio fundamental para que possamos efetivamente dar um direcionamento a esta to evocada escuta. Mas, para haver escuta, preciso que haja palavra e, ento, uma das primeiras coisas a fazer seria criar condies para que a palavra seja dita, circule, comparea no discurso, inscreva-se atravs da escrita. Por isso importante que as atitudes e

    palavras de tranquilizao, que visam antes de mais nada aplacar a angstia de quem as enuncia, talvez com o intuito de defender-se da angstia que advm da percepo da falta no Outro, ou, dito de outra forma, da constatao de nossa impotncia e no-saber diante da psicose, sejam banidas de nosso dircurso, a fim de favorecer a emergncia de um outro discurso. Aquele, que historicamente foi desautorizado, em consequncia do que tende-se tratar seu autor como um incapaz, uma pessoa infantil, algum com quem no se conta no processo de produzir um projeto de vida, algum por quem precisamos zelar, ainda que correndo o risco de invad-lo e suprimir sua posiao de sujeito.

    Realizar um cuidado de enfermagem a partir de uma clnica do sujeito implica em conceb-lo diferentemente, ou seja, trata-se de responsabiliz-lo, convidando-o a ocupar uma posio diferente da de objeto do desejo do Outro.

    a que comea a parte mais difcil desta histria. Por que para que ele possa deslocar-se desta posio necessrio que um outro deslocamento tambm ocorra. preciso que haja ali um profissional disposto a desocupar o lugar reservado ao grande Outro nas psicoses.Algum que se reconhea como um sujeito dividido, condio fundamental para criar a possibilidade de aparecimento de um Outro barrado tambm. Algum, disposto a colocar-se em posio de secretrio do alienado, como ensina Lacan ( 1998 ).

    Em outras palavras, um trabalhador de enfermagem que reconhea que no obrigar a tomar banho no significa que se democrtico. Ou melhor, de que no se trata de ser autoritrio

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    ou respeitar o gosto e a vontade do paciente, mas sim de buscar juntamente com o sujeito a relao que ele estabelece entre o cuidado corporal e quem ele , ou seja, os nexos entre delrio e a dificuldade de cuidar do prprio corpo.

    Portanto, poder encar-lo de outro modo, implica em realizar tambm uma leitura das psicoses a partir da clnica e, neste sentido, a psicanlise tem contribuies bastante importantes.

    No entanto, no h como encerrar esta exposio sem pelo menos fazer uma referncia a

    questo da formao do profissional de enfermagem e da posio de excluso do processo de concepao do projeto teraputico a que boa parte deles ainda est sujeito.

    Resgatando uma pontuao feita a pouco neste texto, sempre importante lembrar que o saber que est em jogo numa clnica psicanaltica no o mesmo presente no discurso universitrio, cartesiano, racionalista. Talvez, por suas caractersticas, ele no caiba nas escolas, pelo menos no em todas e, s vezes tambm no encontre espao nas instituies de sade

    mental comprometidas com o fechamento das hincias que necessariamente aparecem onde se faa a clnica, onde habitarem humanos, onde, afinal, a vida se fizer presente.

    Isto no significa que o acesso a este saber construdo a partir da experincia a que chamamos de clnica no demande espaos ou momentos de formalizao. Ao contrrio, ele implica um esforo significativo, s vezes monumental, construdo na leitura de textos, na escrita de casos clnicos e de elaboraes produzidas a partir das anlises e da decifrao dos textos. Enfim, implica na construo de um percurso, s vezes solitrio, s vezes compartilhado, mas fundamentalmente rico de sentidos, de descobertas, de invenes.

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