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11 Revista TCEMG|jul.|ago.|set.|2013| ENSAIO Em Ensaio, especialistas de diversas áreas do conhecimento são convidados a fazer uma análise crítica de temas polêmicos da atualidade. Inaugura esta nova seção da Revista do TCEMG o Desembargador Luís Carlos Balbino Gambogi. Graduado em Direito pela PUC Minas, possui os títulos de mestre e doutor pela UFMG e hoje leciona na Fundação Mineira de Educação e Cultura (Fumec). Exerceu papéis relevantes no cenário político estadual, como os de deputado constituinte em 1989, secretário de Recursos Humanos e Administração e secretário adjunto do Trabalho e Ação Social. Em 2010, foi condecorado com a Ordem do Mérito da Corte de Contas do Estado de Minas Gerais. Nesta edição o desembargador traz, à luz da pós-modernidade, suas impressões pessoais sobre as manifestações populares brasileiras mais recentes. ENSAIO CRÉDITO: ACERVO TJMG As manifestações ocorridas no país em junho deste ano deixaram, desde perplexos a encantados, os que assistiram a elas ou delas participaram. Inúmeras foram as tentativas de explicá-las, inumeráveis foram as lacunas nas explicações. De minha parte, penso que, se você quer entender o que se passou nas ruas, será preciso antes substituir os óculos da modernidade pelos óculos da pós-modernidade. Em suma, será necessário compreender as principais diferenças entre esses momentos da história. De início, cabe lembrar que o principal ponto de atrito entre os cânones da modernidade e o estatuto da pós-modernidade está na desconstrução da crença no progresso linear da razão e das ciências, fundamentos da modernidade, substituídos, na pós-modernidade, pela contingência, pela compreensão de que os desenvolvimentos, quando existem, são incontroláveis, inadministráveis, imprevisíveis, não lineares, complexos, contraditórios. Para os modernos, o espaço público, a vida pública são essenciais à vida social; para os pós-modernos, a esfera pública é histriônica, dissimulada, improdutiva; não deve haver política ou é necessário inventar outra forma de fazê-la. Para os modernos, é possível compatibilizar o particular com o universal, construir um discurso democrático convergente para as inúmeras concepções políticas, jurídicas e éticas presentes numa sociedade plural; para os pós-modernos, nada disso interessa porque, para eles, o discurso da modernidade produziu Direito: entre a modernidade e a pós-modernidade - DESEMBARGADOR LUÍS CARLOS GAMBOGI -

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Em Ensaio, especialistas de diversas áreas do conhecimento são convidados a fazer uma análise crítica de temas polêmicos da atualidade.Inaugura esta nova seção da Revista do TCEMG o Desembargador Luís Carlos Balbino Gambogi. Graduado em Direito pela PUC Minas, possui os títulos de mestre e doutor pela UFMG e hoje leciona na Fundação Mineira de Educação e Cultura (Fumec). Exerceu papéis relevantes no cenário político estadual, como os de deputado constituinte em 1989, secretário de Recursos Humanos e Administração e se cre tá rio ad jun to do Tra ba lho e Ação So cial. Em 2010, foi condecorado com a Ordem do Mérito da Corte de Contas do Estado de Minas Gerais.Nesta edição o desembargador traz, à luz da pós-modernidade, suas impressões pessoais sobre as manifestações populares brasileiras mais recentes.

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As manifestações ocorridas no país em junho deste ano deixaram, desde perplexos a encantados, os que assistiram a elas ou delas participaram. Inúmeras foram as tentativas de explicá-las, inumeráveis foram as lacunas nas explicações. De minha parte, penso que, se você quer entender o que se passou nas ruas, será preciso antes substituir os óculos da modernidade pelos óculos da pós-modernidade. Em suma, será necessário compreender as principais diferenças entre esses momentos da história. De início, cabe lembrar que o principal ponto de atrito entre os cânones da modernidade e o estatuto da pós-modernidade está na desconstrução da crença no progresso linear da razão e das ciências, fundamentos da modernidade, substituídos,

na pós-modernidade, pela contingência, pela compreensão de que os desenvolvimentos, quando existem, são incontroláveis, inadministráveis, imprevisíveis, não lineares, complexos, contraditórios. Para os modernos, o espaço público, a vida pública são essenciais à vida social; para os pós-modernos, a esfera pública é histriônica, dissimulada, improdutiva; não deve haver política ou é necessário inventar outra forma de fazê-la. Para os modernos, é possível compatibilizar o particular com o universal, construir um discurso democrático convergente para as inúmeras concepções políticas, jurídicas e éticas presentes numa sociedade plural; para os pós-modernos, nada disso interessa porque, para eles, o discurso da modernidade produziu

Direito: entre a modernidade e a pós-modernidade

- DESEMBARGADOR LUÍS CARLOS GAMBOGI -

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a homogeneização, eliminou a diferenças e adversidades, que agora devem ser prestigiadas.

O estatuto do saber pós-moderno pressupõe a impossibilidade de planejar, de maneira coerente, sistemática e homológica, o dinamismo da vida. Repele, por conseguinte, a hermenêutica do sentido, a razão comunicacional que persegue o consenso e os ideais da emancipação do sujeito pela razão, fundamentos da modernidade, substituindo-os pela sensibilidade, pela transgressão metodológica, pelo lúdico, pela força vital. Saem de cena os heróis, as metanarrativas, as grandes soluções e os grandes objetivos; entram em cena o pontual, o micro, o instável e o irracional.

Na pós-modernidade, experimenta-se uma realidade em que o passado se perdeu e o futuro tornou-se obsoleto. Nela, as relações humanas tornaram-se frágeis, incongruentes, paradoxais, quebradiças, não confiáveis, descartáveis. A reação ao real, quando existe, nega-se a mostrar o seu rosto, seu ideário; os que reagem, fazem-no de modo espontâneo, sem organização, sem lideranças; não são a favor de algo nem contra algo. Dir-se-ia que parecem entender que reagem porque a realidade é que se põe contra eles.

Para o pós-moderno, os modernos refletem uma espécie de obsessão pela eternidade do presente e uma resistência ao pluralismo e à diferença. Tudo o que destoe de seu ritmo pré-datado, de sua harmonia universalizante, deve ser enquadrado, chamado à ordem, incorporado às suas estruturas adestradoras. Por isso é que no coração da pós-modernidade está o ideal da desconstrução e, no coração da aventura desconstrucionista, a negação do sentido, um gesto de desconfiança em relação à cultura e uma aposta no presente, na imagem, no desejo e no desvio. Não mais o político, não mais o intelectual de viés público têm vez e voz, mas, sim, as redes sociais.

Poder-se-ia dizer que a modernidade gerou a reação pós-moderna, que se dá de modo espontâneo e desorganizado, razão de sua aversão ao Estado, ao público, sua ojeriza à política e às normas gerais. Quer o poder, a ideologia, a família, o conhecimento, quer

qualquer valor da modernidade, é capaz de comover o homem pós-moderno, que repele o conceito de liderança, de ideário, de limite, que não acredita em projetos históricos, em mobilizações organizadas, em bandeiras que prometam resultados gloriosos, homens gloriosos. Na pós-modernidade, todos são heróis de si mesmos. Não é à toa que o ator, o protagonista das mudanças sociais e políticas da atualidade, é o protagonista anônimo. Não é à toa que partem das redes sociais os principais movimentos políticos, sociais e culturais da atualidade.

A sociedade moderna é regida pela razão iluminista, que a tudo queria prever e controlar, enquanto que a pós-moderna rege-se pelo instável, pelo movediço, pelo risco, pela incerteza. Deixemos a palavra aos cuidados do poeta Chacal; no verso que se segue o poeta sintetiza o descompasso dos modernos com a pós-modernidade:

Como era bom / o tempo em que Marx / explicava o mundo / tudo era luta de classes / como era simples / o tempo em que freud explicava / que édipo tudo explicava / tudo era clarinho limpinho / explicadinho / tudo muito mais asséptico / do que era quando eu nasci / hoje rodado sambado pirado / descobri que é preciso / aprender a nascer todo dia.

Não se quer aqui afirmar que o Brasil é pós-moderno. Não! Temos segmentos pós-modernos, modernos e medievais. Porém, assim como o segmento medieval caminha rumo à modernidade, inegável que os modernos caminham rumo à pós-modernidade.

A PÓS-MODERNIDADE E O DIREITO

O levante pós-moderno dirige uma pergunta inexorável aos cientistas do Direito: qual a extensão do seu impacto nas teorias e práticas jurídicas? Precisamos refletir, e muito, sobre o Direito na pós-modernidade. Que o paradigma racional-sistemático do direito moderno não dá mais conta das demandas do real pós-moderno é inegável, induvidoso. O direito moderno

foi concebido e estruturado originariamente em cima de certezas, dogmas, previsões e crenças herdadas da ideologia ilustrada,

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modelada pelo influxo das poderosas narrativas utópicas de transformação social, pela excessiva confiança num certo tipo de racionalidade instrumental-formal, e apoiado firmemente na pretensão de aplicação mecânica de concepções abstratas à realidade. [...] Constatado o acelerado anacronismo de muitas formas e modelos jurídicos de caráter unívoco, linear, casual e determinista forjados no século passado, torna-se indispensável a abertura para uma outra compreensão dos fenômenos complexos. [...] Juízes, legisladores e juristas em geral, já não sabem, hoje, como responder às demandas de regulação, diante de situações cada vez mais ininteligíveis, segundo parâmetros rígidos, casuais e lineares tradicionais.1

O pós-moderno, ao tempo em que decreta a falência do universal, habilita o pensamento singular e requer a análise pessoalizada das situações; decreta, também, a insubsistência do pensamento linear, causal, dos modelos unívocos, das concepções abstratas e do raciocínio lógico-formal. Na pós-modernidade, tudo é rearrumado, inclusive as ciências, que perdem a harmonia e experimentam uma desordem fundadora. Os segmentos pós-modernos, essencialmente heterogêneos, plurais, fragmentados, em permanente tensão, não conseguem enxergar, no Estado e no ordenamento jurídico, a segurança e a liberdade que estes prometem ao organismo social, nascendo, desse descompasso, as dificuldades que têm os processos políticos, jurídicos e institucionais para se legitimarem.

Em verdade, a realidade pós-moderna se caracteriza pelo descrédito das instituições políticas e, portanto, públicas, até agora incapazes de atrair, absorver, comprometer, ou mesmo de despertar o interesse de uma sociedade marcada pelo pluralismo e pela diversidade. Não é à toa que decresce o prestígio do Legislativo e do Executivo enquanto cresce o do Judiciário, visto como o legislador do caso concreto, defensor do pluralismo e da diferença, paladino dos direitos e garantias fundamentais.

1 DINIZ, Antonio Carlos. Verbete pós-modernismo. In: BARRETO, Vicente de Paula (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Coedição Unisinos; Renovar, 2006, p. 647-650.

É que tanto o Legislativo quanto o Executivo, quando no uso de suas atividades normativas, tendem a buscar soluções gerais e abstratas, universalizantes e homogêneas, exatamente o que não quer o estatuto pós-moderno. O lado preocupante desse quadro está em que, por nos encontrarmos atomizados e sem referências, a vida social acaba por perenizar conflitos, permitindo o florescer de uma espécie de guerra silenciosa só mediada por juízes e tribunais. Com esse cenário, em vez de instaurar a paz, o Direito acaba acolhendo litígios desnecessários porque a vida pós-moderna, sem uma moral, um ideal, passa a depender da jurisdição para encontrar o caminho perdido. Dissolvido o horizonte moral da sociedade, é crescente o volume de questões submetidas aos juízes.

Porém, afora as demandas produzidas pelo Estado, sobretudo o brasileiro, que exigem uma reflexão à parte, a denominada judicialização da vida é um fenômeno que impõe grandes desafios ao Judiciário. Os operadores do Direito, sobretudo os juízes, devem se acautelar. A sedução que nos ronda, a demanda crescente por soluções singulares, heterogêneas, fundadas necessariamente mais em princípios do que em regras, não pode almejar a substituição da ordem jurídica pelo juiz. Aparentemente, se assim procedemos, imaginamos que sobe o prestígio do Judiciário; no entanto, perde a democracia porque quanto mais sucesso obtém a Justiça com suas intervenções, maior é o descrédito da política e das suas instituições típicas, o que só aumenta o desinteresse pelo público. A posição do Poder Judiciário, atuando fora de seus padrões constitucionais, não compensa o deficit democrático.

Por outro lado, como o homem pós-moderno decreta o colapso do pensamento linear, causal, dos modelos unívocos, das concepções abstratas e do raciocínio lógico-formal, o Direito passa a requerer a construção de uma nova concepção teórica e hermenêutica. Afigura-se-nos certo que o Direito contemporâneo atravessa e atravessará ainda mais uma fase em que os seus arquétipos modernos são e serão cada vez mais flexibilizados, e até mesmo substituídos. Nesse cenário, a própria

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reabilitação da razão prática pela ciência jurídica ou — como preferimos — da sensibilidade intelectual2, faz-se necessária para que o Direito possa responder a uma realidade instável, plural, típica da pós-modernidade, de modo a torná-lo menos formal, mais flexível, dinâmico, mesmo porque o pós-moderno repugna uma concepção formal de justiça.

A mudança provocada pela pós-modernidade impôs e impõe ao Direito outro modo de raciocinar, outra lógica à qual temos chamado pós-positivismo. De início, superada está a rígida clivagem entre direito, política e moral, passando todos esses elementos a integrar o Direito, que agora será compreendido como fenômeno ético-normativo. O diálogo entre moral, política e direito produz, entre outros epifenômenos, o desprestígio da igualização formal dos direitos e busca pela justiça material mediante a pessoalização das situações consagradas pela ordem jurídica. Entre outros, Rawls, Dworkin, Alexy e Habermas são autores que se situam no espectro pós-positivista, e que, portanto, imprimem às suas reflexões uma compreensão ético-normativa do fenômeno jurídico, isto é, sustentam ser impensável o juízo jurídico sem o juízo político e moral. Dirá Habermas que “o direito situa-se entre a política e a moral: Dworkin demonstra que o discurso jurídico trabalha não somente com argumentos políticos que visam ao estabelecimento de objetivos, mas também com argumentos de fundamentação moral”3.

O pós-positivismo, no entanto, ao tempo em que agrega valor moral ao fenômeno jurídico, ao tempo em que o faz crescer em sua dimensão política, revela-se frágil do ponto de vista epistemológico, razão pela qual devem os cientistas do Direito empreender esforços com vistas a preservar os ganhos políticos e morais que nos rendeu o pós-positivismo, sem, contudo, permitir que a ciência do Direito perca qualidade epistêmica.

2 GAMBOGI, Luís Carlos B. Direito: razão e sensibilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

3 HABERMAS, Jugen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de: Flávio Beno Siebeneichker. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. II, p. 218.

Exigir qualidade epistemológica não significa impor amarras aos intérpretes. A passividade hermenêutica é mortal ao Direito. Aos intérpretes, magistrados ou não, é dado descobrir o Direito, construí-lo ou fazê-lo durante o processo interpretação/aplicação, até mesmo inventá-lo. No Direito, inventar é ousar, é pensar o que ninguém pensou, é dar vida ao que espera para a vida. As letras jurídicas — sabemos — podem viver mil vidas antes de morrer. Portanto, é preciso desenvolver teorias que emprestem qualidade e rigor epistemológico ao pós-positivismo sem permitir que se mate o que há de mais digno na Ciência: a atitude criadora — valorativa.

REFERÊNCIAS

DINIZ, Antonio Carlos. Verbete pós-modernismo. In: BARRETO, Vicente de Paula (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Coedição Unisinos; Renovar, 2006.

GAMBOGI, Luís Carlos B. Direito: razão e sensibilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

HABERMAS, Jugen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de: Flávio Beno Siebeneichker. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. II.

STRECK, Lênio Luiz. O que é isto — “Decidir conforme a consciência”? Protogênese do protagonismo judicial. Constituição e processo: entre o direito e a política. In: MACHADO, Felipe; CATTONI, Marcelo (Coords.). Constituição e processo. Entre o Direito e a Política. Belo Horizonte: Fórum, 2011.